12 O Futuro Do Sindicalismo

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A crise da crise do sindicalismo Armando Boito Jr. * Há muito tempo atrás, no final da década de 1970, alguns estudiosos europeus começaram a falar em crise do movimento sindical. Tomavam como indicadores da crise a queda nos índices de sindizalização e a diminuição do número de greves. Dez anos depois, no final da década de 1980, alguns pesquisadores começaram a falar em agonia ou morte do sindicalismo. Alguns não chegam a afirmar que o sindicalismo irá desaparecer por completo, mas insistem que seria um movimento fadado à decadência e a desempenhar um papel de pequena importância no século XXI. Geralmente, a explicação para essa suposta decadência é procurada no nível da economia capitalista contemporânea. As novas tecnologias, os novos métodos de organização do trabalho, o declínio da ocupação na indústria e o crescimento da ocupação no setor de serviços, o desemprego, o crescimento do setor informal, esses e outros fatores de ordem econômica condenariam o sindicalismo à decadência irreversível. Há trabalhos de fôlego defendendo essa tese, inclusive no Brasil ( 1 ). É certo que o sindicalismo está atravessando um período muito difícil e que recuou nos últimos anos. Mas, como devemos caracterizar esse recuo? Aí é que começa o debate. Trata-se de decadência ou de refluxo? Ou seja, trata-se de uma perda crescente e irreversível de energia ou de um recuo momentâneo, após o qual o sindicalismo poderia recobrar suas forças sem mudar o seu perfil? Ou será ainda que, além de um recuo momentâneo, que seria a dimensão quantitativa do fenômeno, tal fenômeno teria, também, uma dimensão qualitativa, representada por uma mutação no movimento sindical? Essas questões, por si só muito difíceis, referem-se, no entanto, apenas à caracterização do fenômeno. Temos de considerar, ainda, a explicação para o recuo do movimento sindical, a localização das causas que produziram esse fenômeno. E no plano da explicação cabem, também, diversas e complexas perguntas. Devemos falar de uma ou de várias causas articuladas para as dificuldades do movimento sindical? Quais são essas causas? É claro também que a caracterização do fenômeno e a sua explicação não estão separadas de modo estanque. Se as causas do recuo do sindicalismo forem mudanças econômicas irreversíveis na sociedade atual, tal fato tornaria igualmente irreversível a decadência desse movimento. Se, diferentemente, as causas do recuo forem também conjunturais, envolvendo a política, o Estado, sua política social, a conjuntura internacional, então, tais causas poderão desaparecer e o sindicalismo recobrar a sua força. Vê-se ainda pela lista de questões apresentada que a natureza do nosso tema exige uma análise prospectiva, obrigando o analista à difícil tarefa de conjeturar sobre o futuro desse movimento reivindicativo dos trabalhadores. Salientemos de saída que a análise das dificuldades do sindicalismo esteve, entre os autores ligados ao pensamento crítico, muito marcada, e também muito prejudicada, pelo uso abusivo da conhecida metáfora “mundo do trabalho”. Essa metáfora, se usada com Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e autor do livro Política Neoliberal e Sindicalismo no Brasil, Editora Xamã, São Paulo, 1999. 1 Citemos, como exemplo, o importante trabalho de Leôncio Martins Rodrigues, Destino do Sindicalismo, Edusp, São Paulo, 1999. Trabalhando com os conceitos de sociedade industrial e sociedade pós-industrial (ou sociedade de serviços) esse autor conclui: “(....) as características gerais da sociedade pós-industrial abrem pouco espaço para a organização sindical (....).” (p. 301).

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  • A crise da crise do sindicalismo

    Armando Boito Jr.

    H muito tempo atrs, no final da dcada de 1970, alguns estudiosos europeus comearam a falar em crise do movimento sindical. Tomavam como indicadores da crise a queda nos ndices de sindizalizao e a diminuio do nmero de greves. Dez anos depois, no final da dcada de 1980, alguns pesquisadores comearam a falar em agonia ou morte do sindicalismo. Alguns no chegam a afirmar que o sindicalismo ir desaparecer por completo, mas insistem que seria um movimento fadado decadncia e a desempenhar um papel de pequena importncia no sculo XXI. Geralmente, a explicao para essa suposta decadncia procurada no nvel da economia capitalista contempornea. As novas tecnologias, os novos mtodos de organizao do trabalho, o declnio da ocupao na indstria e o crescimento da ocupao no setor de servios, o desemprego, o crescimento do setor informal, esses e outros fatores de ordem econmica condenariam o sindicalismo decadncia irreversvel. H trabalhos de flego defendendo essa tese, inclusive no Brasil (1).

    certo que o sindicalismo est atravessando um perodo muito difcil e que recuou nos ltimos anos. Mas, como devemos caracterizar esse recuo? A que comea o debate. Trata-se de decadncia ou de refluxo? Ou seja, trata-se de uma perda crescente e irreversvel de energia ou de um recuo momentneo, aps o qual o sindicalismo poderia recobrar suas foras sem mudar o seu perfil? Ou ser ainda que, alm de um recuo momentneo, que seria a dimenso quantitativa do fenmeno, tal fenmeno teria, tambm, uma dimenso qualitativa, representada por uma mutao no movimento sindical? Essas questes, por si s muito difceis, referem-se, no entanto, apenas caracterizao do fenmeno. Temos de considerar, ainda, a explicao para o recuo do movimento sindical, a localizao das causas que produziram esse fenmeno. E no plano da explicao cabem, tambm, diversas e complexas perguntas. Devemos falar de uma ou de vrias causas articuladas para as dificuldades do movimento sindical? Quais so essas causas? claro tambm que a caracterizao do fenmeno e a sua explicao no esto separadas de modo estanque. Se as causas do recuo do sindicalismo forem mudanas econmicas irreversveis na sociedade atual, tal fato tornaria igualmente irreversvel a decadncia desse movimento. Se, diferentemente, as causas do recuo forem tambm conjunturais, envolvendo a poltica, o Estado, sua poltica social, a conjuntura internacional, ento, tais causas podero desaparecer e o sindicalismo recobrar a sua fora. V-se ainda pela lista de questes apresentada que a natureza do nosso tema exige uma anlise prospectiva, obrigando o analista difcil tarefa de conjeturar sobre o futuro desse movimento reivindicativo dos trabalhadores.

    Salientemos de sada que a anlise das dificuldades do sindicalismo esteve, entre os autores ligados ao pensamento crtico, muito marcada, e tambm muito prejudicada, pelo uso abusivo da conhecida metfora mundo do trabalho. Essa metfora, se usada com

    Professor do Departamento de Cincia Poltica da Unicamp e autor do livro Poltica Neoliberal e Sindicalismo no Brasil, Editora Xam, So Paulo, 1999.1 Citemos, como exemplo, o importante trabalho de Lencio Martins Rodrigues, Destino do Sindicalismo, Edusp, So Paulo, 1999. Trabalhando com os conceitos de sociedade industrial e sociedade ps-industrial (ou sociedade de servios) esse autor conclui: (....) as caractersticas gerais da sociedade ps-industrial abrem pouco espao para a organizao sindical (....). (p. 301).

  • parcimnia e sob controle consciente, pode ter alguma utilidade crtica, j que pode sugerir uma distino entre os trabalhadores e o mundo da riqueza. Mas, como conceito, isto , como instrumento de anlise nas cincias sociais, os inconvenientes dessa metfora so muitos. Tal metfora sugere que os trabalhadores vivem e trabalham num ambiente parte (o mundo do trabalho, como indica a expresso), como se a sociedade pudesse ser subdivida em compartimentos estanques. por isso que a maioria dos estudiosos que utilizam a metfora mundo do trabalho como se ela fosse um conceito tendem a se restringir, na anlise do movimento sindical, ao nvel da fbrica e do mercado de trabalho, que seria o mundo do trabalho por excelncia, separando o sindicalismo da sociedade, da poltica e do Estado, procedimento terico esse que tende a fortalecer a idia segundo a qual o refluxo ou crise do sindicalismo origina-se na economia e seria irreversvel. Essa metfora partilha do vcio dualista que tem marcado a histria de parte das cincias sociais, e que, nos ltimos vinte anos, tem sido apangio da obra de J. Habermas, cujo dualismo est presente em noes como as de mundo da vida e mundo do sistema (2).

    Dito isso, avancemos duas idias iniciais ao leitor. A primeira diz respeito caracterizao da situao atual do movimento sindical. De certo modo, podemos dizer que j estamos vivendo a crise da crise do sindicalismo. O sindicalismo est dando claros sinais de recuperao e j hora de os cientistas sociais, observadores e sindicalistas deixarem de lado o discurso da crise estrito senso e comearem a discutir e entender essa recuperao. Tal recuperao , por si s, um elemento perturbador para as anlises que previram o declnio irreversvel do movimento sindical.

    A segunda observao diz respeito a alguns dos pressupostos que a discusso sobre a crise do sindicalismo permitiu entrever. Esses pressupostos permaneceram, no mais das vezes, intocados e, no entanto, vale a pena question-los. Um deles, ao qual faremos referncia neste ensaio, aquele que identifica a crise do sindicalismo com a crise do movimento operrio ou socialista. preciso lembrar que o socialismo nasceu antes do sindicalismo, que este ltimo floresceu em muitos pases que nunca tiveram um movimento socialista significativo (EUA) e que o socialismo cresceu em pases de muito pouca tradio sindical (Rssia czarista). No se pode, ento, identificar, de modo mecnico e direto, o declnio, crise ou refluxo do sindicalismo com o declnio, crise ou refluxo do socialismo. No entanto, essa identificao muito corrente, embora nem sempre seja explcita e tampouco consciente da parte dos autores que a sugerem.

    Aqui reencontramos de novo a metfora mundo do trabalho funcionando como conceito e provocando estragos. Essa metfora polissmica. Mundo do trabalho pode significar, sucessiva e arbitrariamente, num mesmo e nico texto, quase tudo: relaes de trabalho, processo de trabalho, condies de vida das classes trabalhadoras, composio social dessas mesmas classes, movimento operrio, movimento socialista etc. A essa metfora ainda foi acoplado um uso elstico e vago da noo de crise. O resultado foi que, quando o leitor depara com a expresso crise do mundo do trabalho num texto, ele que tem de descobrir do que se est falando. Essa expresso pode significar muitas coisas diferentes e, ao mesmo tempo, nada. Muitas vezes, mais uma forma de no definir com preciso do que se est falando, liberar um discurso genrico e aparentemente crtico, dispensando-se do esforo de aprofundar a anlise. Geralmente, sugere-se que h uma crise de tudo o que se refere a movimento de trabalhadores, apesar de a anlise tratar apenas e

    2 Para uma anlise do dualismo da teoria da ao comunicativa de Habermas ver Catherine Colliot-Thelne Habermas, leitor de Marx e de Max Weber, revista Crtica Marxista, n. 12, Editora Boitempo, So Paulo, 2001.

  • to somente de um movimento reivindicativo dos trabalhadores assalariados, que o movimento sindical.

    De nossa parte, sustentamos que preciso definir com rigor de que crise se est falando. Tratamos da crise do sindicalismo, no da crise do movimento operrio ou socialista. Em segundo lugar, tentaremos mostrar que a crise do sindicalismo pode estar se aproximando do seu fim e que, para entend-la, no podemos nos restringir anlise das transformaes econmicas do perodo recente.

    H um recuo internacionaldo sindicalismo?

    A maioria dos autores que fala em declnio do sindicalismo apresenta uma viso limitada do fenmeno. Esses autores circunscrevem a anlise a apenas uma rea do globo quase sempre, os pases capitalistas centrais. A partir da, procuram tirar, de modo provinciano, concluses gerais sobre o sindicalismo. Ora, para oferecer concluses gerais sobre o assunto, necessrio considerar as principais regies da economia mundial.

    correto que o sindicalismo perdeu filiados, diminuiu sua atividade reivindicativa e perdeu influncia poltica nas principais economias capitalistas Europa Ocidental, Amrica do Norte e Japo. Isso verdadeiro, embora a situao esteja longe de ser homognea. O ritmo e a intensidade do refluxo sindical variam muito de acordo com o setor econmico e o pas considerado. Em alguns pases, como os Estados Unidos e a Frana, a queda nos nveis de organizao sindical foram muito maiores que em outros, como a Inglaterra e Alemanha. H o caso do Canad que manteve os mesmos nveis de sindicalizao ao longo das dcadas de 1970, 1980 e 1990. H, inclusive, a situao particular dos pases escandinavos, nos quais, a despeito da tendncia dominante na Europa Ocidental, o sindicalismo cresceu. No que respeita ao nvel de sindicalizao, os pases escandinavos atingiram um patamar de organizao inimaginvel at pouco tempo atrs. Na Sucia, praticamente todos os trabalhadores esto sindicalizados.

    Ampliando nosso campo de viso para alm dos pases capitalistas centrais, podemos dizer que tambm correto afirmar que se verifica uma crise e um refluxo do movimento sindical nos pases da Amrica Latina. Caram as taxas de sindicalizao, a freqncia de greves e a importncia poltica do movimento sindical no Brasil, no Mxico, na Argentina, no Chile, na Bolvia e em outros pases. H, portanto, um refluxo, ao menos como tendncia dominante, na parte ocidental da Europa e em quase todo continente americano, tanto na Amrica do Norte como na Amrica do Sul.

    No se pode, contudo, a partir desses dados concluir, sem ressalvas e especificaes, que o sindicalismo est em refluxo em escala internacional. H regies do planeta em que o sindicalismo est crescendo, e crescendo muito. Nos pases da Europa Oriental, devido recente implantao da liberdade de organizao sindical, o movimento sindical est ressurgindo aps longo perodo de letargia. Nos pases asiticos de industrializao recente, pases que se contam entre os mais populosos do planeta, apenas agora o sindicalismo comea a se organizar como um movimento social.

    Perguntamos, ento: correto falar em crise e refluxo do sindicalismo em escala internacional? Devemos tomar em considerao para responder essa questo, a situao geral resultante das tendncias opostas que o sindicalismo tem apresentado em escala internacional. A resultante dessas tendncias opostas de refluxo na Amrica, no Japo e na Europa Ocidental, e de ascenso, em grande parte da sia e Europa Oriental, foi, no balano final, um enfraquecimento, verdade, do movimento sindical. Isso porque, enquanto, por

  • um lado, a crise e o refluxo prolongados predominaram nas regies onde o sindicalismo era, at um passado recente, muito forte, por outro lado, a ascenso desse movimento ocorreu em pases nos quais ele ainda se encontra num nvel inferior de organizao, de luta e de influncia poltica. Apenas devido a esse quadro geral criado por tais tendncias opostas o sindicalismo cai onde era muito forte, e cresce onde ainda est fraco - que legtimo afirmar que o refluxo a caracterstica dominante da situao atual do movimento sindical em escala internacional. certo, ento, que o recuo do sindicalismo a tendncia dominante, mas o fenmeno, em escala internacional, desigual e contraditrio.

    Decadncia ou refluxo do sindicalismo?

    E quanto ao contedo desse recuo? Trata-se de decadncia, declnio, crise ou refluxo do movimento sindical? Quando falamos em decadncia ou declnio, sugerimos um processo gradativo e inexorvel de perda de vitalidade o declnio ou a decadncia do Imprio Romano, para citarmos um exemplo em que esses termos foram consagrados nos estudos histricos. O livro citado de Lencio Martins Rodrigues distingue decadncia ou declnio, de um lado, de crise e refluxo, de outro, e defende a tese segundo a qual o recuo atual da organizao e da atividade sindical representaria a decadncia do sindicalismo. Ns entendemos que o correto caracterizar o recuo atual como uma fase de crise e de refluxo temporrios.

    Em primeiro lugar, o simples fato de o movimento sindical encontrar-se em ascenso na sia, regio mais populosa do planeta e onde a economia capitalista mais tem crescido, j seria suficiente para evitarmos falar em decadncia do sindicalismo. No podemos nos deixar ofuscar pelo eurocentrismo. Se um movimento social est crescendo na sia, esse movimento tem futuro. Mas h outros aspectos a serem considerados. Mesmo na Europa Ocidental, o recuo atual do sindicalismo exige uma caracterizao mais fina para sabermos se devemos falar em decadncia ou em refluxo. O recuo do sindicalismo europeu indiscutvel quando analisamos a curva da conjuntura recente. Mas, se examinarmos uma curva mais longa, verificaremos que o sindicalismo europeu mantm-se estvel ou em ascenso. O estudioso deve prestar ateno nessa forma da curva, comparar as tendncias de curto prazo com as de longo prazo, e s depois tirar suas concluses. No correto fazer projees de longo prazo como o caso do prognstico de decadncia histrica irreversvel do sindicalismo valendo-se de tendncias de curto prazo.

    Para os Estados Unidos, Japo e pases da Europa Ocidental existe, na maior parte dos casos, uma queda no volume e nas taxas de sindicalizao e de greve quando comparamos os dados atuais com aqueles relativos aos anos 70. Porm, se tomarmos como base de referncia os anos 60, verificaremos que, pelo menos para a maioria dos pases europeus, a organizao sindical e a atividade grevista encontram-se num nvel igual ou superior ao daquela dcada. Ou seja, o sindicalismo dos pases centrais refluiu, mas no desceu a nveis inferiores aos de 35 ou 40 anos atrs. Mais ainda, se compararmos a segunda metade dos anos 90 com os anos 80, veremos que o sindicalismo conheceu uma significativa recuperao nos ltimos anos nos pases de capitalismo central. Nos EUA, hoje, grande nmero de observadores concorda em que est ocorrendo uma visvel e forte recuperao do movimento sindical. Para o caso do Brasil, podemos dizer que, embora seja verdade que a organizao e a atividade sindical encontram-se em nveis inferiores aos dos anos 80, tambm verdade que a superioridade do movimento atual frente ao

  • movimento sindical dos anos 50 e 60 flagrante. No perodo da industrializao desenvolvimentista e do populismo, no existiu nada no Brasil que pudesse ser comparado Central nica dos Trabalhadores (CUT).

    Por que o sindicalismo est em crise?

    O recuo do sindicalismo , portanto, um fenmeno internacional, mas desigual e contraditrio, e parece j ter superado seu ponto mais baixo. Parece-nos mais realista caracterizar esse recuo, que real em relao aos anos 70 mas que no colocou o sindicalismo num patamar de organizao e de atividade inferior ao que ele apresentava nos anos 50 e 60, como uma situao de refluxo e no de decadncia histrica do movimento sindical. Uma outra questo importante a de saber as causas desse recuo. claro que a polmica sobre as causas um aspecto central do problema de saber se estamos diante de um refluxo ou da decadncia do sindicalismo.

    A maioria dos autores responde essa questo recorrendo a fatores como as mudanas econmicas, sociais e tecnolgicas que estariam ocorrendo nos ltimos anos. As mudanas so, na maioria das vezes, concebidas como irreversveis e, por isso, teriam selado a sorte do sindicalismo. Argumenta-se que os postos de trabalho em expanso na economia no favoreceriam a organizao e a atividade sindical. O novo operariado teria baixa propenso sindicalizao. Outra explicao corrente foi apresentada por Claus Offe em meados da dcada de 1980. Nas palavras de Claus Offe, retomadas e difundidas por muitos estudiosos brasileiros, teria ocorrido um processo de heterogeneizao e fragmentao scio-econmica da classe trabalhadora e esse processo teria minado ou inviabilizado, dependendo do autor, a organizao coletiva e unificada tpicas do movimento sindical. Os dois argumentos so de ordem econmica, imaginam que o sindicalismo est perdendo a sua base e podem sugerir que o recuo atual tende, por isso, a se perpetuar ou agravar. Porm, uma reflexo crtica sobre esses dois argumentos permite conceber o recuo do sindicalismo de uma outra maneira - como um fenmeno conjuntural e passageiro.

    fato bastante conhecido que nos pases de capitalismo avanado alguns setores econmicos com alto nvel de organizao e de ativismo sindical, como as minas, a metalurgia, os portos e ferrovias, sofreram uma drstica reduo dos postos de trabalho ao longo das ltimas dcadas e alguns deles, como minas de carvo e ferrovias, perderam importncia estratgica na economia. Mineiros, metalrgicos, porturios e ferrovirios viram desbaratar-se um acmulo de dcadas de organizao e de luta sindical. O exemplo desses trabalhadores mostra que no se cria um movimento sindical do dia para a noite. Os novos setores onde cresce o emprego e que ganham importncia econmica tambm precisaro de tempo para se organizar sindicalmente, tanto mais porque eles comeam a faz-lo em situao mais desfavorvel do que a situao na qual se organizaram os setores sindicais tradicionais. Os trabalhadores mais organizados sindicalmente da fase anterior do capitalismo puderam se beneficiar da expanso do movimento socialista em escala internacional ao longo da primeira metade do sculo XX. Embora o movimento sindical e o movimento socialista sejam dois movimentos distintos, eles podem entreter, dependendo da situao histrica, uma relao de fortalecimento mtuo, e foi justamente isso o que ocorreu em grande parte dos pases ao longo do sculo XX. J os novos setores da classe operria iniciam sua luta sindical numa conjuntura poltica muito desfavorvel, marcada pela crise do movimento socialista e pela ofensiva neoliberal em escala internacional. Por

  • isso, muito cedo para dizermos, simplesmente, que os setores emergentes da classe operria e dos assalariados de classe mdia no apresentam propenso sindicalizao.

    De resto, a histria do movimento sindical est repleta de setores aparentemente pouco propensos sindicalizao que, dadas determinadas condies histricas, passaram massivamente luta sindical. muito importante, para podermos compreender a discusso atual, lembrarmos que o primeiro setor que pareceu, aos olhos de muitos observadores, incapaz de se sindicalizar foi a massa de trabalhadores no qualificados do setor industrial e de servios, justamente o setor que viria a ser responsvel pela pujana do movimento sindical no sculo XX. Ao longo do sculo XIX e, em alguns pases, at incio do sculo XX, o movimento sindical foi um movimento dos trabalhadores qualificados, verdadeiros artesos assalariados. A incorporao da massa de trabalhadores do setor industrial ao movimento sindical dependeu de muita luta e gerou perturbaes e crises no movimento sindical, pois os trabalhadores qualificados queriam manter a exclusividade da organizao sindical.

    Olhando para a histria mais recente, temos o caso do processo de incorporao da classe mdia ao sindicalismo. Quem, na dcada de 1950, atribuiria uma alta propenso sindicalizao a trabalhadores como professores, mdicos e funcionrios pblicos? Esses trabalhadores mantinham-se indiferentes ou resistentes ao sindicalismo. Tinham uma postura elitista e viam esse movimento como algo apropriado apenas aos trabalhadores manuais, no classe mdia. Hoje, o sindicalismo da baixa classe mdia, com suas particularidades, um setor amplo e ativo do movimento sindical em escala internacional. Portanto, toda a histria do sindicalismo recomenda prudncia nessa matria. No geral, o que podemos dizer que o trabalhador assalariado, que, como tal, trabalha para um empregador, est inserido num coletivo que realiza um trabalho socializado e usufrui de liberdade pessoal, esse trabalhador tende a se organizar para reivindicar melhores salrios e condies de trabalho.

    H uma questo terica de fundo envolvida nessa discusso: vivemos numa sociedade capitalista, no numa sociedade ps-industrial ou de servios. Ou ainda, o carter agrcola, industrial ou tercirio da ocupao e da atividade econmica no suficiente para definir a sua natureza social. O capitalismo j foi agrcola, antes de ser industrial (3). Hoje, pode tornar-se, nos pases centrais, um capitalismo que emprega mais no setor tercirio, sem que, por isso, mude sua natureza social. No capitalismo, o objetivo da produo a acumulao de capital com base na explorao do trabalho alheio, seja na indstria, seja nos servios. S quando se oculta esse fato, como o fazem os conceitos de sociedade industrial e ps-industrial, pode-se subestimar a potencialidade de resistncia sindical dos trabalhadores. Ademais, o proletariado no deve ser identificado apenas com o trabalhador industrial. Existe um amplo contingente de trabalhadores no setor de servios, contingente que tem crescido nos ltimos anos, cuja situao de trabalho e nvel salarial permitem integr-los classe operria. Isso, de resto, uma novidade apenas relativa. Todo estudioso da histria do sindicalismo sabe, ou deveria saber, que o setor de servios apresentou, ao longo do sculo XX, um poderoso movimento sindical, como o sindicalismo dos porturios e dos ferrovirios, exemplos marcantes do sindicalismo do proletariado de servios.

    O fundamental o seguinte: no capitalismo, o trabalhador explorado, trabalha coletivamente, possui liberdade pessoal e vincula-se ao processo produtivo atravs de um contrato de trabalho. Todos esses fatores permitem e podem at estimular a organizao 3 Ver Ellen Wood, As origens agrrias do capitalismo, revista Crtica Marxista, n. 10, primeiro semestre de 2000, So Paulo, Boitempo Editorial, pp. 12-30.

  • sindical. Claro que h pr-condies. O tempo de maturao um fator importante. Outro a situao poltica. Mas, apesar da existncia muito recente e do momento poltico desfavorvel, em alguns dos novos setores de servio j surgem importantes manifestaes sindicais.

    Na Europa, o declnio relativo do movimento sindical dos ferrovirios est sendo acompanhado do crescimento rpido do sindicalismo dos caminhoneiros assalariados, que, em mais de uma greve na segunda metade dos anos 90, bloqueou o transporte rodovirio em todo continente europeu. Nos Estados Unidos, as greves duras e prolongadas de setores como os de entrega, de telemarketing e de telefonia, que so setores que crescem com a modernizao das comunicaes, com o comrcio pela internet e pela televiso greve dos 200 mil funcionrios da UPS em 1997, greve dos 90 mil funcionrios da Verizon em setembro de 2000 - so alguns dos indcios de que os assalariados do novo setor de servios podem sim colocar em p poderosos movimentos sindicais.

    A poltica reflexo da economia?

    O segundo argumento para explicar a crise e refluxo do sindicalismo , como indicamos, aquele que afirma ter ocorrido uma crescente fragmentao e heterogeneizao econmica da classe trabalhadora. Essa tese muito difundida tanto entre autores de esquerda quanto entre autores conservadores. A fragmentao teria colocado em crise - segundo os autores de esquerda - ou inviabilizado de modo definitivo - segundo alguns conservadores - a unidade poltica e sindical da classe operria e dos demais trabalhadores (4). Essa explicao pela economia comete dois erros: um erro histrico e outro terico.

    No plano histrico, ela supe que, em alguma poca do passado remoto ou recente, a classe trabalhadora teria sido homognea, ou algo prximo da homogeneidade. Ora, as diferenas de remunerao, qualificao, de setor econmico, de sexo, de idade, de etnia, de capacidade de organizao etc. sempre foram uma constante na histria da classe operria e das demais classes trabalhadoras. Hoje, certo, existem novas fragmentaes. A principal delas a que divide os trabalhadores com contrato em tempo integral e com durao indeterminada dos trabalhadores em tempo parcial, com contrato precrio, subempregados ou desempregados. Porm, cabem aqui dois esclarecimentos: em primeiro lugar, a fragmentao econmica dos trabalhadores no um processo linear e, em segundo lugar, para que essa fragmentao produza efeitos no terreno da organizao sindical, so necessrias certas condies ligadas conjuntura poltica.

    Ao contrrio do que sugere a observao superficial da situao atual dos trabalhadores assalariados, h fragmentaes econmicas antigas que desapareceram ou foram reduzidas nos ltimos anos. Estamos nos referindo a diferenas que separam os trabalhadores de classe mdia dos operrios, a diferenas que separam os trabalhadores de diferentes nacionalidades dos pases integrantes dos novos espaos econmicos supra-nacionais, como a Unio Europia e o Mercosul, a diferenas que separam os operrios de diferentes profisses e carreiras, a diferenas que opem os trabalhadores s trabalhadoras at h pouco tempo a classe operria estava dividida entre as mulheres que ficavam em casa e os homens que trabalhavam - etc. Todas essas antigas fragmentaes perderam fora com o 4 Dois textos que pretendem explicar o refluxo do movimento sindical recorrendo tese de Claus Offe sobre a fragmentao/heterogeneizao da classe trabalhadora so o livro j citado de Lencio Martins Rodrigues e o livro de Ricardo Antunes Adeus ao Trabalho? - So Paulo, Editora Cortez, 1995.

  • desenvolvimento recente da economia capitalista. Falar de maneira apressada e superficial em fragmentao crescente da classe trabalhadora, como faz a tese de Claus Offe, ignorar a natureza complexa e contraditria das transformaes que tm ocorrido no seio das classes trabalhadoras, transformaes que apontam, simultaneamente, tanto para a heterogeneizao quanto para a homogeneizao dessas classes sociais.

    O segundo esclarecimento ao qual nos referimos acima diz respeito possibilidade das fragmentaes econmicas e sociais produzirem efeitos polticos e ideolgicos no movimento sindical. O economicismo presente na tese de Claus Offe ignora que essa possibilidade depende da conjuntura poltica para se tornar diviso sindical efetiva. Vejamos o que isso significa na presente conjuntura. Essa conjuntura est marcada pela ofensiva neoliberal. H fragmentaes scio-econmicas antigas, que at h pouco se encontravam poltica e sindicalmente adormecidas, como a diviso econmica que separa o trabalhador do setor pblico do trabalhador do setor privado, que agora, num momento de grande difuso da ideologia neoliberal, ganharam importncia e significado novos no movimento sindical. Foi o privatismo neoliberal da atual conjuntura que construiu, ao satanizar o funcionrio pblico, a diviso poltica e sindical entre funcionrios pblicos e trabalhadores do setor privado. Num pas como o Brasil, a incidncia da nova conjuntura poltico-ideolgica sobre essa antiga diviso scio-econmica um dos principais fatores responsveis pela diviso entre a CUT e a Fora Sindical. A obra de todo movimento social e poltico da classe operria e das demais classes trabalhadoras sempre foi superar a fragmentao scio-econmica, permanente e constitutiva das classes trabalhadoras, para alcanar a unidade no plano poltico e sindical.

    O erro terico do raciocnio que estamos criticando consiste em analisar a classe operria e o sindicalismo separadamente do processo poltico nacional e internacional. Toda classe social deve ser analisada em sua relao com as demais classes sociais, nunca isoladamente. Dizer que o movimento sindical declinou porque a classe trabalhadora est mais fragmentada, ignorar que o aguamento da luta de classes e da luta antiimperialista nos anos 60 e 70 teve uma influncia positiva sobre o movimento sindical de ento, ocorrendo o inverso na situao atual, que uma situao de ofensiva capitalista e imperialista sob a bandeira do neoliberalismo. Apenas mais recentemente, o desgaste do neoliberalismo tem propiciado o surgimento de novas lutas sociais desempregados, trabalhadores do setor informal e uma recuperao do sindicalismo. E esses dois movimentos podero se fortalecer mutuamente.

    Em resumo, as classes trabalhadoras sempre apresentaram uma heterogeneidade e fragmentao scio-econmica muito grande. Essa fragmentao se renova e se transforma a cada nova etapa do capitalismo. Sua importncia e significado dependem, tambm, da conjuntura poltica, econmica e social. essa conjuntura e a luta que diro se possvel unificar os trabalhadores num amplo movimento social e poltico.

    Concluso: crise e mutaes do sindicalismo

    Tentemos resumir os resultados dessa nossa discusso.O movimento sindical sofreu um recuo em escala internacional. No que tenha

    recuado em todas as partes. Pelo contrrio, o sindicalismo cresceu em algumas regies do globo. Mas, o problema foi que o sindicalismo recuou justamente nas regies em que era mais forte e, por isso, a resultante dessas tendncias opostas foi, no conjunto, desfavorvel para o sindicalismo.

  • O recuo internacional, desigual e contraditrio, do sindicalismo configura-se, ao que tudo indica, como um fenmeno conjuntural. Ele real quando comparamos o volume e a taxa de sindicalizao e de greve dos anos 80 e do incio dos anos 90 com os nmeros da dcada de 1970. Porm, observando uma curva de longo prazo, podemos verificar que o sindicalismo mantm-se num nvel de organizao e de atividade igual ou superior ao dos anos 60 para a maioria dos pases. Ademais, no que respeita conjuntura curta presente, parece que o sindicalismo j superou, nesta segunda metade da dcada de 1990, o ponto mais baixo do seu recuo.

    O recuo internacional do sindicalismo no uma decadncia histrica que adviria de uma mudana econmica irreversvel das sociedades atuais. Ele sintoma de uma crise, oriunda de causas reversveis, e que pode, por isso, ser superada. Essa crise aponta, tambm, para um processo de mutao do movimento sindical. Na Europa Ocidental e na Amrica, declinou o sindicalismo de antigos setores operrios, tanto da indstria (siderurgia, metalurgia), quanto dos servios (portos, ferrovias). Parte desse movimento poder readquirir a importncia que teve no passado; parte dele parece definitivamente condenado a desempenhar um papel de importncia menor. Est crescendo o sindicalismo do novo proletariado de servios. Parece consolidado, pelo menos a mdio prazo, o sindicalismo de classe mdia, principalmente no setor pblico. Ampliando o horizonte da anlise, cabe acrescentar que em inmeros pases da Europa Oriental e da sia, graas ao processo de democratizao e o vertiginoso processo de industrializao dos ltimos anos, s agora o sindicalismo de indstria vem dando os seus primeiros passos. Ele dever ter uma importncia crescente nesses pases nos prximos anos.

    H um recuo internacionaldo sindicalismo?Por que o sindicalismo est em crise?Concluso: crise e mutaes do sindicalismo