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Sinopse - A garota do outro lado da rua - Lycia Barros Enzo é um menino intelectual e aplicado nos estudos que não se importa em ser ridicularizado pela maioria dos colegas de turma. Ao lado de seu amigo Leandro, entra e sai do colégio com uma vida monótona e sem grandes emoções. Entretanto, há alguém que sempre balança a serenidade de Enzo: Rafaela, sua vizinha de frente, por quem Enzo é apaixonado desde a infância e é sua colega de turma. Porém, linda e popular entre os estudantes, Rafaela não se dá conta da sua existência até que um dia, em uma excursão do colégio, ambos se perdem juntos na mata. Rafaela e Enzo começarão a se conhecer melhor e perceberão o quanto estavam enganados a respeito um do outro. Mas será que esse conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a garota do outro lado da rua?

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a Garota do

outro

lado da rua

Lycia Barros

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Sinopse: Enzo é um menino intelectual e aplicado nos estudos que

não se importa em ser ridicularizado pela maioria dos colegas de turma.

Ao lado de seu amigo Leandro, entra e sai do colégio com uma vida

monótona e sem grandes emoções. Entretanto, há alguém que sempre

balança a serenidade de Enzo: Rafaela, sua vizinha da frente, por quem é

apaixonado desde a infância e é sua colega de turma. Porém, linda e

popular entre os estudantes, Rafaela não se dá conta da sua existência até

que um dia, em uma excursão do colégio, ambos se perdem juntos na

mata. Rafaela e Enzo começarão a se conhecer melhor e perceberão o

quanto estavam enganados a respeito um do outro. Mas será que esse

conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de

Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a

garota do outro lado da rua?

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O mundo não se divide em pessoas boas e más.

Todos temos luz e trevas dentro de nós.

O que importa é o lado o qual decidimos seguir.

Isso é realmente o que somos.

SIRIUS BLACK (Harry Potter e a Ordem da Fênix)

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A BORBOLETA

Há momentos em que cruzamos linhas invisíveis que jamais

poderíamos imaginar. Nunca imaginei que ele seria meu, ou que eu seria

dele. Nunca imaginei que derrubaríamos os muros que nos separavam

por nossas fraquezas. Mas fico feliz que tenha sido desse jeito. Ninguém

me compreendia muito quando tudo aconteceu, eu também não

conseguia explicar como me sentia. Na verdade, a maioria das pessoas não

estava disposta a me dar o tempo que eu precisava para falar. Houve

noites com lágrimas solitárias, houve dor, precisei esperar... Mas, quando

enfim nos unimos eu e ele já estávamos preparados para seguirmos em

uma viagem sem volta. Uma viagem rumo à felicidade, que só os puros de

coração conseguirão alcançar. E nós dois felizmente conseguimos.

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ENZO

Eu sempre havia percebido algo especial naquela menina, mas não

apenas por ela ser bonita. Contudo, não nos conhecíamos. Não havia

intimidade entre nós dois, nem sequer cordialidade. Nunca havíamos

trocado uma palavra sequer. Mas eu a observava frequentemente sair e

entrar em casa com a mãe - morava só com ela, o que vim a descobrir

mais a frente. Entretanto nunca nos cumprimentamos. Às vezes, eu ficava

durante horas sentado na calçada com a minha caixa da coleção de

insetos colocada entre os joelhos, pensando em chamá-la para brincar,

mas nunca tive coragem. Talvez porque, assim como meu pai, nunca fui

muito dado a interagir com os vizinhos. Ao contrário, meu pai estava

sempre resmungando sobre os maus hábitos alheios: seus cachorros

latiam alto demais, suas festas eram muito barulhentas, todos estavam

sempre estacionando na calçada errada... Todavia, tenho dúvidas se ele

teve culpa de ficar assim. Desde que minha mãe se foi, há quatro anos

meu pai se despediu de qualquer alegria na vida. A única coisa que lhe

restou foi o prazer de pescar. Houve ocasiões em que pensei que ele a

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esquecer-la, mas percebi que isso não era algo que ele quisesse fazer;

muito menos que simplesmente lhe acontecesse. E, de fato, não lhe

ocorreu. Ainda assim, ele sempre foi um bom pai para mim. Preocupava-

se demais, confesso, e com muita frequência, com praticamente tudo. Mas

sei que só tentava cumprir bem o seu papel.

Começamos a estudar juntos no quinto ano - eu e Rafaela. Talvez

tenha sido esse o ano em que tudo começou. Nessa época, eu sentava atrás

dela na classe. Ficava olhando para sua cabeça por trás e admirando seus

cabelos, compridos, dourados e perfumados. Parecia uma sereia. Mas

éramos incomunicáveis, como se vivêssemos em dois polos distantes. Ela

era linda, desejada e popular, e eu era o quatro-olhos CDF da nossa

turma. Na única vez em que se virou para trás para me passar uma prova,

senti minha cara ficar vermelha e meus óculos escorregarem pelo nariz.

Sua mão ficou ali, estendida, e Rafaela a me encarar. Acabou em cinco

segundos. Quando olhei para a prova e a peguei, fitei as palavras, mas

nada assimilei devido ao meu encantamento. Era como se aquela simples

troca de olhares tivesse repentinamente nos tornado mais íntimo.

Infelizmente, quando voltei a mim, dei-me conta do papel à minha frente.

É impressionante como uma prova de matemática pode sugar até a última

gota de felicidade da sua alma!

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Nesse tempo, comecei a sonhar acordado com Rafaela. Costumava

imaginar-nos juntos e sentados em seu jardim, conversando sobre a

natureza, e ela admirada com todo o meu conhecimento. Sempre tive

certeza de que, se ela me conhecesse melhor, se compreendesse as minhas

qualidades, certamente gostaria de mim, mas nunca imaginei o que

sucederia mais tarde. No pôr do sol finalmente nos beijaríamos, mas

nunca imaginava nada indecente com ela. Pelo menos, não naquela época.

Quando estávamos de férias, não costumávamos nos ver muito, ou

melhor, ela não me via mesmo a minha casa sendo bem em frente à dela.

Rafaela só saía e entrava, rapidamente, geralmente acompanhada de suas

espevitadas amigas, dando gargalhadinhas, ou então com algum

playboyzinho barulhento e espalhafatoso. O que, evidentemente, acabava

me deixando verde de inveja e emburrado pelo resto do dia.

Somente uma vez nas últimas férias, pela janela do meu quarto no

segundo andar, tive o privilégio de observá-la sentada no jardim e

jogando um disco de frisbee para o seu yorkshire pegar. Foi uma das raras

vezes em que não a vi maquiada. Ficou ali por cerca de meia hora.

Provavelmente, ela havia acabado de sair da piscina, pois estava de biquíni

e com uma canga enrolada no quadril. O sol de fim de tarde reluzia em

seus cabelos e sua pele era tão dourada quanto o sol. Em certo momento,

Rafaela deitou-se na grama e fechou os olhos para descansar. E ficou tão

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linda que me extraiu a respiração. Eu sabia que minha câmera estava ali

na escrivaninha, bem perto da minha mão, mas não me atrevi a usá-la

para bater uma foto. Sabia que não conseguiria capturar a beleza daquele

momento, por isso preferi memorizá-lo.

No oitavo ano, comecei a reparar que ela não parava de conversar

com um garoto encorpado e com o cabelo espetado com gel: Mateus. Um

dos meninos mais esnobes da nossa classe. Apesar de andarem sempre

cercados de estudantes, eles frequentemente davam um jeito de conversar

mais afastados dos outros alunos. Eu sempre ficava de longe, observando-

os, mas não me atrevia a examiná-los muitas vezes, pois tinha medo que

Rafaela reparasse.

Mateus sempre foi o tipo de cara grosseiro e vulgar, e o linguajar

que circulava entre seus amigos faria qualquer detento de Bangu I sentir-

se ultrajado. Apesar de não nos falarmos, vira e mexe ele entrava na sala e

me dava uma coronhada na nuca no estilo "e aí, meu amigo?", mas eu

sabia que era só para me humilhar. Porém, eu nunca fui esse tipo de

idiota-agressivo que fazia de tudo para aparecer. Na verdade, sempre tive

aspirações mais elevadas. Talvez por isso não conseguisse me enturmar

com facilidade. Mas Mateus sempre "se achava" na frente dos outros

alunos: era o mais forte, o mais esportista, o com a melhor aparência...

Sempre achei que todos aqueles músculos lhe davam um ar imbecil.

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Estava na cara que ele andava tomando bomba. O tipo de sujeito que só

posta fotos sem camisa no Facebook, pois é o atributo que lhe resta. O

problema era que, atém disso, ele possuía todos os bens duráveis

conhecidos pelo homem, antes mesmo que chegassem ao Brasil. Por isso,

vivia cercado de almofadinhas bajuladores.

Quando pela primeira vez vi os dois se beijarem, me senti

agoniado. Esmaguei meu celular com tanta força que por pouco o coitado

não tocou de desespero. Achei Mateus muito afobado. Se ele sentisse uma

fração mínima do que eu sentia por Rafaela, jamais se atreveria a tocá-la

daquela maneira. Eu juro que tentei esquecê-la, desarquivá-la da

memória, mas simplesmente não consegui. Comecei a acreditar que, assim

como meu pai, eu não seria um homem de pular de galho em galho.

Amaria minha escolhida para sempre. Que furada...

É claro que, com dezesseis anos eu já havia beijado outras garotas

na vida. Na verdade, duas. Uma era minha prima Patrícia. Bem, ela não

era minha prima de sangue, pois era adotada. Nosso beijo, entretanto, foi

mais uma espécie de caridade que fiz quando ela confessou que era

apaixonada por mim. Achei que como éramos parecidos, como tínhamos

os mesmos interesses e éramos ambos negligenciados pela sociedade,

aquilo poderia dar certo. Mas não consegui corresponder aos seus

sentimentos e acabei por perder a sua amizade. E ela ainda espalhou

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boatos maldosos na minha família - e que fique bem claro, não

verdadeiros - sobre o meu hálito. Por isso meus primos me batizaram de

"boca de esgoto". A outra que beijei foi à irmã mais velha do meu melhor

amigo Leandro. Nesse caso a caridade foi invertida. Mas acho que brincar

de salada mista não conta muito.

Sucedeu então que teríamos uma excursão ecológica no colégio.

Acordei angustiado naquela manhã. Em qualquer outra ocasião, eu

amaria aquele passeio. Já era um assíduo praticante de trekking¹, pois,

assim como minha mãe, eu adorava a natureza,

___________________________

¹trekking -esporte constituído de provas onde se deve percorrer trilhas pré-estabelecidas em planilhas. e já havia feito trilha centenas de vezes, apesar de nenhuma delas ser na

Floresta da Tijuca. Contudo, passar um dia completo vendo aqueles dois se

agarrando seria demais para mim. Pensei em não ir, mas sabia que a visita

valia cinquenta por cento da avaliação de ciências e, para o meu

embaraço, e deleite do resto da classe, eu era o queridinho da professora -

que não era burra, e percebia o meu interesse pela matéria. Por isso, a

título de punição, eu era oficialmente a única pessoa a quem Eva se dirigia

na classe.

Desci a escada com a mochila preparada nas costas e não avistei

meu pai por ali. Lembrei-me que era sábado, dia em que ele

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religiosamente pescava com seu irmão. Certamente, Mauro já passara

para pegá-lo e miraculosamente não acordei com o barulho do bugre.

Minha avó, como boa madrugadora que era já estava sentada na sala,

olhando para a televisão desligada. Fazia isso muitas vezes. Com o passar

do tempo, deixei de me perguntar o porquê. Sua acompanhante, Doralice,

estava passando um café na cozinha e cantarolando uma espécie de hino

de igreja. Por causa da idade, minha avó andava muito esquecida - para

não dizer esclerosada - e contava as mesmas histórias dezenas de vezes.

Narrava os mesmos detalhes e se emocionava nas mesmas pausas quando

me contava sobre sua imigração para o Brasil. Jurava que era estrangeira

e sobrevivente do Titanic, e não uma paraibana arretada. Certas vezes ela

parava no meio da história e entrava numa espécie de transe esquisito, e

eu ficava ali, parado, imaginando se ainda havia alguma coisa por vir.

Confesso que por puro constrangimento às vezes eu a evitava por causa

disso. Mas isso foi antes de tudo aquilo acontecer, ao que vou lhe narrar

mais à frente. Talvez, pensava eu se ela visse a televisão quando estivesse

ligada, tivesse novas histórias para contar. Poderia ser a rainha Elizabeth

ou alguma personagem anciã da novela das oito. Tinha ocasiões em que se

lembrava de mim, mas percebi que aquele não seria um daqueles dias.

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— Quem é você e como entrou na minha casa? — assustou-se a

velha Rose, assim que me viu, apontando-me o controle da tevê como se

fosse uma faca.

Aproximei-me cautelosamente e sentei no braço do sofá. Ela ainda

me apontava o objeto.

— Sou eu vovó, Enzo, seu neto. O papai já saiu?

— Ainda não vi meu pai hoje — disparou ela, parecendo dar-se

conta disso naquele momento.

Eu ri e passei o braço nos ombros dela.

— Não o seu pai, vovó, mas o meu pai, seu filho, Gustavo. Ele já

saiu?

— Não conheço seu filho — disse-me ela, em tom de desculpas.

Eu suspirei, desejando que ela pudesse mesmo me trocar de canal.

— Doralice! — berrei eu, já me levantando. — Já estou indo. Diga

para o meu pai que volto antes do almoço.

Interrompendo a cantoria, a acompanhante apareceu na porta da

cozinha.

— Enzo, querido, não vai tomar seu café?

— Como algo pelo caminho.

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— Nada disso — ralhou ela, — seu pai mandou que eu preparasse

um lanchinho reforçado pra você. Disse que faria uma caminhada. Só um

minuto.

Ao que parecia, a definição de lanchinho de Doralice acabaria com

os problemas de fome na Somália. Ela havia separado dois sanduíches

gigantes, uma barra de cereal, uma maçã, duas bananas e uma garrafa de

isotônico de uva. Como se não bastasse, jogou um pacote de biscoitos

recheados dentro do saco. Fiquei olhando para ela, me sentindo

desnutrido. Devido ao estirão da adolescência, eu sabia que ficara magro,

mas aquilo era ligeiramente ofensivo. Porém, antes que eu dissesse alguma

coisa, ela virou-me bruscamente de costas e enfiou todo o lanche na

minha mochila. Fiquei me perguntando se não tombaria para trás ou

arrumaria uma lordose por causa do peso. Vovó ainda me apontava o

controle remoto, de modo que resolvi não contestar nada. Só queria dar o

fora dali antes que ela começasse com a história do cruzeiro.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Quando cheguei ao colégio, Rafaela já estava lá, linda de morrer,

junto com a galera e esperando pelo ônibus. Vestia uma legging preta,

uma regata roxa e usava um rabo de cavalo no alto da cabeça. Tinha um

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casaco amarrado na cintura. Maquiada como sempre. Fiquei um pouco

preocupado quando olhei para os seus pés: All Star não era bem a melhor

escolha para se fazer uma trilha. Mas eu a entendi, pois a cor roxa do

tênis combinava com sua blusa. Rafaela era muito ligada em moda.

O dia estava perfeito. O céu de um azul firme e intenso. Mas,

apesar do dia ensolarado, o ar estava um pouco frio naquelas últimas

semanas. Era abril, e a maioria dos alunos, assim como eu, havia trazido

um casaco. Os alunos que vinham chegando se embotavam numa confusa

troca de abraços, socos no peito e tapas nas costas. Eu ainda estava

olhando Rafaela quando Mateus apareceu, agarrou-a pela cintura e

plantou-lhe um beijo na boca. Um ressentimento agudo quase me

sufocou. Fumegando de raiva, olhei para o relógio. Eram sete e quinze e o

ônibus já estava atrasado. Naquele momento, eu não conseguia pensar em

nada melhor para mim atém de tentar ignorar aqueles dois. Ignorar

Rafaela - pensei desanimado. Como eu gostaria de obter êxito! Se pudesse

fazer um único pedido naquele momento, seria uma lavagem cerebral,

para poder esquecê-la. Perdendo as forças, volteia olhar para os dois. À

nossa volta, alguns pais espiavam os filhos mais afastados e o ônibus já

estava estacionando. Suspirei.

— Não sabia que você também vinha... — Uma voz animada me

assustou.

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Olhei para o lado e avistei Alana. Ela era da minha classe, aliás, a

única garota da turma que falava comigo. Ou, pelo menos, a única que

era educada. Falava, não. Tagarelava sem parar. Como sabia que eu era

um amante de biologia, ela sempre me procurava para discutir cada novo

microorganismo que descobria pela esfera terrestre. Ela sorria

alegremente, me olhando com seu rosto cheio de sardas e arregalados

olhos azuis. Seu cabelo liso estava eternamente preso em um rabo de

cavalo desarrumado e com alguns fios soltos caídos por cima dos óculos

de hastes vermelhas. Como sempre, parecendo não fazer absolutamente

questão de se destacar das outras meninas, vestia uma blusa bege sem

graça e uma bermuda de mesmo tom, que descia até os joelhos. Agarrava

o livro de biologia como se fosse uma bíblia e me olhava como se fosse

anunciar à salvação. Por que será que eu atraio esse tipo de gente?

— Resolvi vir de última hora — eu disse — mas pelo visto já me

arrependi. — Olhei para a bagunça dos alunos perto do ônibus.

O sorriso de Alana abriu-se ainda mais quando olhou para os

alunos, inexplicavelmente feliz.

— É sempre assim, a espécie humana fica muito animada quando

tem novidades. Logo, logo eles vão se acalmar — Ela virou-se novamente

para mim. — Escuta Enzo, estou com um trabalho sobre genética pra

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fazer e vi na aula que você sabia tudo sobre esse negócio de "azinho" e

"azão". Será que podia me dar uma ajuda?

— Claro — falei, forçando o sorriso. — É só a gente combinar de

estudar.

— Maravilha! — Era fácil ver o cérebro de Alana se animar ao

ouvir a palavra "estudo". — Também podemos nos sentar juntos no ônibus

hoje, o que acha? Assim, na volta, poderemos ficar comentando sobre a

flora que vislumbraremos por lá.

Claro, pensei, já com pena dos meus ouvidos, não há nada que eu

deseje mais neste mundo!

Sem saber como recusar, olhei para a galera e, pela cara vermelha,

vi que Leandro também já estava por ali, ao lado da mãe e jogando M&M's

para dentro da boca. Senti-me aliviado. Ele acenou para mim

vigorosamente e sorriu, sobressaltando suas bochechas permanentemente

vermelhas. Era único aluno cuja mãe estava perto e limpando a sua blusa.

Um perfeito suicídio social.

— Sinto muito, Alana, mas eu e Leandro já combinamos de

sentarmos juntos. Nos vemos quando chegarmos lá na trilha, ok? —

Despedi-me dela e fui caminhando em direção aos estudantes.

A porta do ônibus abriu e todos começaram a entrar. Ainda

agonizando por causa da minha musa, aproximei-me do grupo. Estou

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agindo como um idiota, eu dizia a mim mesmo ao caminhar para o

ônibus. Afinal, eu não tenho nada com ela. Basta ignorá-los, resmunguei

ao chegar perto da porta. Não será tão difícil, acrescentei para mim

mesmo ao subir as escadas. Será simplesmente impossível concluí, vendo

os se agarrando num banco no fundo.

Rangendo os dentes, procurei uma cadeira vazia no meio do

ônibus. Leandro se sentou ao meu lado.

— Dia ruim? — foi o que perguntou.

Meti a mão no saco de M&M's, sem ser convidado.

— Mais ou menos — respondi. — A meu ver, sábados deveriam

ser vinte e quatro horas mágicas sem nenhuma preocupação com o

colégio.

Erguendo uma sobrancelha, Leandro girou o corpo para mim.

— Não estou te reconhecendo. Desde quando você não gosta de

fazer trilha?

— Desde que estou sendo torturado. — Olhei para trás, Leandro

me acompanhou.

— Cara, você é doente... — ele resmungou e sacudiu a cabeça. —

Sabe quando terá uma chance com a Rafaela? Nunca! Você não é o tipo de

cara com quem ela sai.

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— Não entendi — retruquei. — O objetivo foi me elogiar ou me

insultar?

— Nenhum dos dois. — ele riu. — Olha — Leandro respirou

fundo, parecendo evitar falar de supetão algo que julgava melhor, ser

abordado com delicadeza, — A Rafaela nem ao menos te cumprimenta. E

olha que vocês são vizinhos há anos! Se você tivesse aproveitado enquanto

eram pequenos... As meninas são mais vulneráveis quando são crianças.

Mas agora suas chances de ela notar sua existência são de uma em um

milhão. Ainda que você se torne um cientista famoso, ela nunca vai saber,

pois não deve ler esse tipo de revista. Já o jornal de esportes... — Ele olhou

para trás, em um tom sugestivo.

Lancei-lhe um olhar gelado. Graças a Deus, meu mau humor

raramente transbordava. Para suavizar a bofetada, Leandro me ofereceu o

M&M's novamente. Deixei escapar um suspiro desconsolado e enfiei a

mão no saco. Em seguida, foquei os olhos na visão através da janela.

Partimos, buzinando, em meio a uma grande quantidade de pais e um

cachorro que nos seguiu por cerca de dois quilômetros. Um pandemônio

absoluto se instaurou. Como era de se prever, o trajeto até o nosso destino

foi uma aporrinhação. Barulhento, caótico e torturante. Um dos meninos

botou funk alto no celular e tive vontade de me atirar pela janela. Ou

melhor, de atirá-lo pela janela. O motorista não tirava os olhos da rua, as

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mãos apertadas no volante. Parecia tão irritado quanto eu, que saquei meu

mangá do Naruto para ler no mesmo instante em que uma cabeça

apareceu por cima da cadeira da frente. Era Alana. Fechei a revista.

— Você sabia que milhões de árvores no mundo são plantadas

acidentalmente por esquilos que enterram nozes e não lembram onde as

esconderam? — ela perguntou.

E lá vamos nós de novo, pensei comigo mesmo.

~~~~~~~~~~~~~~~~

Depois de quarenta minutos de puro suplício, finalmente

chegamos. Como masoquistas adoradores de filas que somos, levantamos

todos ao mesmo tempo para sair do ônibus juntos. Pablo, um aluno

sentado mais à frente, que era amigo de Mateus, tentou fazer Leandro

tropeçar na minha frente enquanto passava. Mas antevi o que ele ia fazer

e acabei empurrando Leandro e atropelando o pé do garoto, esmagando

seu calcanhar. O infeliz uivou alto. Olhei para ele e pedi desculpas, com

uma mistura de raiva e vontade de rir. Ele disse que iria trocar uma

palavrinha comigo depois. Fingi que não ouvi e continuei caminhando.

Como disse antes, nunca fui violento, mas Pablo era muito mais baixo e

tão magro quanto eu. O tipo de cara que só se garante quando está em

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grupinho. Mas, na boa: bastaria pegá-lo sozinho para tirar aquele

sorrisinho marrento da sua cara.

Depois do que me pareceu uma eternidade, conseguimos descer do

veículo. A professora insistiu para que todos se juntassem na entrada da

floresta para bater uma foto. Isso feito, Eva imediatamente me chamou

para ficar ao seu lado, ao que Leandro me seguiu, debaixo de assovios

maliciosos. Eva devia ter no máximo trinta anos. E sabendo que meu

amigo resolvera fazer dela a personagem principal de seus sonhos

eróticos, eu sabia que nada o deixaria mais feliz.

Começamos pela trilha dos bancos. Chama-se assim, pois é

margeada por bancos de pedra do período imperial. Disfarçadamente,

olhei para trás e vi que os dois pombinhos nos seguiam abraçados: Mateus

e a minha sereia. Decidindo que era melhor me concentrar em outra

coisa, verei para frente. Por sorte, a floresta sempre me fascinava. Minha

mãe - uma apaixonada por botânica, como eu - já havia me ensinado a

identificar algumas árvores, flores e frutos. Penetramos a suave caridade

verde e as sombras aconchegantes da mata fechada, enquanto Eva nos

contava que estávamos na maior floresta urbanizada do mundo. Fora

restaurada por volta de 1800 com o objetivo de proteger os mananciais. A

área havia sido devastada para o plantio de café e cana de açúcar, mas

fora reflorestada depois por ter prejudicado o abastecimento de água no

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Rio de Janeiro. Contudo, obviamente, jamais recuperaria suas

características originais. Era o homem brincando de Deus. Eva disse-nos

que a não ser que essa área não sofresse mais intervenções humanas,

sobretudo nas áreas mais preservadas, dentro de algumas décadas poderia

voltar a assumir, paulatinamente, as características dos ecossistemas

intactos e, quem sabe, voltar a cumprir plenamente sua função ecológica.

Mas ainda assim a floresta era encantadora. O verde cobria o

cenário de tonalidades e texturas diferentes. Havia chovido no dia

anterior, então levantei bem o rosto para sentir ao máximo o cheiro de

terra úmida. Vi que alguns esparsos raios de sol se infiltravam pelas copas

das árvores acima de nós e sua luz era tão suave que quase se podia senti-

la na pele. O aroma de mata molhada, troncos apodrecidos e variedades

de flores era tão flagrante que podia deixar uma pessoa inebriada. E havia

os sons... Nada era mais agradável do que os sons dos nossos pés pisando

nos cascalhos e folhas. Os movimentos de pequenos animais que corriam

de um lado para o outro o canto dos passarinhos, o murmúrio de água

correndo nas redondezas... Tudo se fundia de maneira extraordinária. A

única coisa que estragava o cenário, a meu ver, éramos nós mesmos. As

pessoas acabavam com a magia. Com seus barulhos de sacos plásticos não

recicláveis, risadas espalhafatosas e toques de celulares. Aquilo não

combinava com aquele ambiente, que precisava ser sentido, precisava ser

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memorizado. Havia algumas placas de madeira indicando a direção das

grutas pelo caminho. Quando ouvimos o som de uma cachoeira perto dali,

Rafaela saiu correndo como uma bala, os cabelos loiros esvoaçando livres

ao vento. Enterneci-me com sua cara desapontada quando soube que não

poderia mergulhar. A cascata era realmente convidativa, somente pela

beleza. Fazia-nos desejar sermos parte daquele cenário. Seria realmente

ótimo nadar um pouco, mesmo não sendo temporada de calor. Mas as

águas daquela floresta abasteciam boa parte do Rio de Janeiro, portanto,

não eram liberadas para banho.

Prosseguimos no passeio visitando tudo: a capela Mayrink, o

centro de visitantes, o locai separado para rituais de luto, onde se jogava

as cinzas das pessoas já falecidas. No chão, uma artista tinha esculpido a

epígrafe: "O tempo não passa". Em seguida, visitamos o Lago das Fadas, a

Vista do Almirante... Demorou um pouco mais do que eu imaginava, com

certeza eu não chegaria na hora do almoço. Passei uma mensagem para o

meu pai para que ele não se preocupasse comigo. Em certo trecho do

passeio, Eva nos mostrou uma planta em especial, para nos falar das suas

propriedades. Mateus como o imbecil sem salvação possível que era,

perguntou se a planta era afrodisíaca e ameaçou colocar na boca de

Rafaela.

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— É medicinal? — indaguei para Eva, ignorando o seu gracejo

idiota.

—É sim. — Ela sorriu para mim e começou a pormenorizar os seus

benefícios.

Continuamos na empreitada a caminho das grutas. A primeira a

que chegamos foi à gruta Luiz Fernandes, que à primeira vista parecia

mais ser um buraco. Precisamos amarrar uma corda num tronco próximo

para as meninas se sentirem seguras para descer. Fiquei atento quando

Rafaela desceu com medo que se machucasse, visto que Mateus estava

entretido em fazer baderna com seus amigos. Mas, tudo correu bem. Ela

era pequena, porém era safa. Em seguida, visitamos a gruta dos morcegos,

completamente escura apesar de ter uma fenda no alto. O ambiente era

frio e úmido. Sua passagem era extremamente estreita, o que espantou

alguns claustrofóbicos. Quando saímos, nos deparamos com uma família

de quatis. Os animais nos olhavam com um misto de amizade e apreensão.

Não resisti e saquei uma banana. Aos poucos, fui jogando pedacinhos e

eles foram se aproximando de mim. Logo eu estava cercado por vários

deles. Com os olhos brilhando, Rafaela se aproximou e me pediu um

pedaço para dar para eles também. Devo ter parado com um ar

bestificado. Rafaela estava falando comigo! Sorri para ela, satisfeitíssimo, e

lhe entreguei a outra banana completa. Estava completamente encantado.

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Durante a vida inteira não havíamos trocado nem cinco palavras

somadas, mas naquele momento, ficamos comentando sobre os quatis. De

repente, para o meu desgosto, Alana apareceu com um sapo na mão e nos

presenteou com o seguinte comentário:

— Recentemente, foi descoberto numa missão espacial que os sapos

conseguem vomitar, sabia primeiro, eles vomitam o estômago inteiro.

Depois, usam os braços para remover todo o conteúdo do estômago e

voltam a engoli-lo. Interessante, não?

— Que máximo! — empolgou-se Leandro, aproximando-se de

Alana e mostrando o sapo para mim, acabando com as minhas esperanças

de fingir que eu não conhecia aquela gente esquisita.

Como era de se esperar, Rafaela torceu a cara com ar de nojo e

votou para perto de Mateus. Onde fui amarrar o meu burro?

Quando seguimos caminho, enquanto contornávamos alguns

troncos caídos e cobertos de musgos em direção à próxima gruta,

esgueirando-nos entre as árvores, fomos subitamente surpreendidos por

uma voz:

— Todo mundo parado aí! Mãos pra cima, mãos pra cima...

Alarmado, percebi três sujeitos encapuzados cercando nosso

grupo. Estávamos numa turma de cerca de vinte pessoas, o que seria

vantagem, se todos eles não estivessem armados.

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— Fiquem calmos, por favor — pediu Eva, com a voz trêmula. —

Ninguém vai reagir, podem levar o que quiserem...

— Se me obedecerem, tudo vai ficar bem — garantiu o aparente

líder do bando. — Meu comparsa vai passar por vocês pra recolher os

bagulhos. Queremos só as carteiras e os eletrônicos. Pode ir passando

tudo: essas câmeras, celular, os bagulhos de música e tudo isso...

Coloquei as mãos na cabeça e olhei para Rafaela, apavorado. Ela

tentava se aninhar atrás de Mateus, que desviava o ombro das mãos dela,

com a cara tão branca quanto uma vela. Empurrando as pessoas com o

cotovelo, um dos meliantes organizou uma roda para começar a recolher

os objetos. Sem que ninguém percebesse, postei-me ao lado de Rafaela no

círculo. Eles começaram com cinco pessoas à minha direita. Reparei que

os braços de Rafaela tremiam e seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Mesmo não estando certo disso, inclinei-me sorrateiramente para o seu

lado e sussurrei:

— Fique tranquila, vai acabar tudo bem.

Com certa surpresa, ela me olhou de relance. Em seguida mordeu

o lábio inferior e acenou minimamente com a cabeça. Eu queria poder

abraçá-la ou colocá-la atrás de mim, mas sabia que qualquer movimento

poderia desencadear violência por parte deles. Um dos bandidos andava

pelo círculo, encarando e intimidando as pessoas, muito inquieto. Fiquei

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me perguntando se ele estaria drogado, pois parecia estar jorrando

adrenalina. Todos despejavam seus objetos numa mochila preta, sem

retaliar. Quando passou por Eva, que estava à minha frente no círculo, o

mascarado eletrizado parou, olhou para o seu pescoço e arrancou com

toda força um cordão de ouro que ela usava. Eva deu um grunhido de dor.

Leandro, ao lado dela, não resistiu e passou a mão pelo seu pescoço. O

meliante bateu com a mão da arma de baixo para cima no antebraço dele,

exigindo que voltasse para a posição.

Chegou à vez de Mateus, que agora não estava mais branco, mas

parecia vermelho de raiva. Ele pegou o celular no bolso da bermuda junto

com a carteira e enfiou o braço dentro da mochila do ladrão. Quando

recuou o braço, num movimento rápido colocou as mãos diretamente

atrás da cabeça. O bandido deu um passo para a direita e parou em frente

à Rafaela. Meu coração disparou. Calmamente, apesar de nervosa, ela

pegou um iPod rosa, sua carteira e os despejou na mochila. Em seguida,

puxou a câmera que havia trazido e também deu a ele. Chegou minha

vez. Joguei meu celular na mochila e metia mão no bolso de trás da calça

para entregar a carteira. Nesse momento, um dos celulares tocou. Alguns

soltaram a respiração, presa por causa do clima tenso, o que causou um

burburinho. O líder do bando colocou o cano da arma diante da boca e

sibilou um sonoro "shhhhhhhh". Todos olhamos uns para os outros,

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procurando ver de quem era o aparelho. O barulho não estava abafado,

por isso em poucos segundos ficou claro que o celular estava do lado de

fora da bolsa. O líder do bando seguiu o barulho e parou diante de

Mateus, tombando a cabeça lentamente de lado e em seguida estalando a

língua em reprovação. Meu rival estava visivelmente suado e tinha os

olhos arregalados. Num movimento brusco, o infrator puxou o pulso de

Mateus de trás da cabeça e abriu sua mão, avistando o aparelho

escondido.

Não houve tempo para pensar nos movimentos seguintes. O

mascarado agoniado tirou o comparsa da frente e deu uma coronhada na

cabeça de Mateus, fazendo-o cair no chão, desmaiado. Houve gritos e

muitos alunos saíram correndo. O possível drogado virou-se de costas e

deu um tiro na direção dos que fugiam. Eva ficou apavorada. Não

consegui pensar e agi por impulso. Puxei o braço de Rafaela, que já ia se

agachando para socorrer Mateus, e corri com ela em direção à mata

fechada. Houve outro tiro, o que fez com que Rafaela corresse ainda mais

rápido junto comigo. Tropeçamos em alguns galhos e troncos pelo

caminho, mas não chegamos a cair. Tentei me orientar pelo barulho da

água para não sair muito do caminho da trilha. Ouvimos uma voz

gritando: “Atrás deles!” isso fez com que Rafaela parasse e se jogasse no

chão de joelhos, enfiando o rosto nas mãos. Mesmo tão apavorado quanto

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ela, animei-a a levantar-se, dizendo que eles deviam ter ido em outra

direção.

Continuamos correndo, depois caminhando ofegantes, por cerca

de vinte minutos. Em certo momento, o zumbido sereno da mata começou

a dominar o ambiente. Achamos uma árvore com um tronco bem largo e

nos sentamos ali, em silêncio, atrás dela, sem nos importarmos com a terra

úmida abaixo de nós. A minha respiração ofegante embaçava as lentes dos

meus óculos, de modo que os tirei para limpar na ponta da minha camisa.

Creio que o coração dela estava tão disparado quanto o meu, pois ficamos

ali parados, à espreita, retomando o fôlego e tentando ouvir os barulhos

para saber se alguém vinha atrás de nós. Contudo, só ouvimos o barulho

dos micos. Um passarinho soltou um pio alto e saiu voando. Coloquei os

óculos e percebi que a poucos metros de nós havia um formigueiro no

chão. Depois de alguns segundos, levantei-me vagarosamente. Olhei por

detrás da árvore e nada vi atém da mata fechada. Rafaela continuou ali, a

limpar o nariz, me olhando com aquele olhar enigmático. Com pestanas

compridas e sobrancelhas enviesadas, seguiu-se um longo silêncio entre

nós.

— Por que você me puxou? — ela perguntou de repente.

Evidentemente, fiquei vermelho.

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— Porque você estava mais perto de mim — menti

descaradamente — e você parecia abalada. Depois houve os tiros... Se você

tivesse ficado lá com Mateus, só Deus sabe o que poderia acontecer.

Inesperadamente, os lábios dela se contraíram numa linha fina.

— Pois devia ter me deixado lá com ele. Mateus agora pode estar

morto!

Como é que é? Pensei em silêncio, com um sorriso arrasado. Ela

preferia ter morrido com aquele panaca? Devo ter ficado com um ar

estúpido, zangado com a asneira que ela acabara de me dizer, mas

incapaz de manifestar minha zanga por achá-la tão bonita irritada.

Mesmo assim, falei:

— Mateus não morreu, no máximo desmaiou. Quem mandou ser

tão idiota num assalto, querendo bancar o sabichão? Isso é bem a cara

dele.

— Ele deve ter feito isso para nos ajudar! — disse ela, revoltada, as

lágrimas descendo novamente peto seu rosto. — Assim que os ladrões nos

deixassem, ele chamaria a polícia e todos recuperariam seus bens. Foi um

ato de coragem.

A raiva subiu pela minha garganta, queimando-a.

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— Um dos atos mais idiotas — não pude deixar de dizer. — Ele

não merece suas lágrimas, não fez nada para te proteger.

— E o que você queria? Aqueles bandidos estavam todos armados!

— Ele deveria ter entregado tudo, como todo mundo. Agora,

estaríamos a salvo. Mas, não... Mateus quis aparecer, como sempre.

Alguém pode ter morrido por causa do suposto ato heróico daquele

imbecil. Não sabemos para onde foram os tiros. E quem se importa com

nossos bens?

Parecendo furiosa, Rafaela não respondeu, só esfregou o rosto com

as mãos. Como um idiota, aproximei-me para ajudá-la a se levantar.

— Vem, vamos achar o caminho de volta. Os bandidos já devem

ter fugido.

Ignorando minha mão, Rafaela se levantou e bateu na parte de trás

da calça, olhando em volta.

— Sabe voltar? — perguntou friamente.

— Vamos retornar por onde viemos.

— Então, vá na frente.

— Tudo bem — eu disse. Em seguida comecei a procurar algo no

chão.

— O que está fazendo? Perdeu alguma coisa?

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— Precisamos de um galho grande — falei. — quando se anda na

mata, precisamos ir tateando o caminho. Muitos bichos podem se

esconder por debaixo das folhas.

— Bichos? — Ela deu um passo até mim. — Que tipo de bichos?

— Cascavéis, por exemplo. — Tentei não sorrir quando seus olhos

se arregalaram. Com certeza, agora ela andaria perto de mim. Coração

mole, tentei acalmá-la. — Mas não se preocupe as cobras não vão

deliberadamente atrás das pessoas. Sua dieta consiste de pequenos

roedores, aves, sapos e até mesmo insetos. — Por Deus! Eu estou

parecendo a Alana! Pensei em silêncio. — Mas o instinto primordial de

uma cobra é a autodefesa. Na verdade, cobra é um bicho meio indefeso,

sem pernas, sem bons ouvidos ou tamanho grande. Por isso, o veneno é

que assume o papel-chave em seu mecanismo de defesa.

— Ai, Deus! Acho que agora eu preferia os bandidos...

Eu ri.

— Para a nossa sorte — continuei, enfatizando as palavras — e

azar da natureza essa área já foi devastada um dia, e por isso não

apresenta mais todas as espécies de animais característicos da região.

— Ainda bem, né? — Olhei-a com reprovação. Ela se tocou. —

Quer dizer, para a gente. E o que devemos fazer se encontramos uma

cobra?

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— Saia do caminho — falei, finalmente achando no chão um

galho que servia. Peguei-o e franzi o cenho testando sua envergadura. —

Se não entrar no alcance da cascavel, provavelmente nada irá lhe

acontecer. A não ser que ela esteja com a cabeça levantada e o chocalho se

movendo, que são sinais evidentes de ataque. Senão, só se afaste

calmamente e fique bem quieta. Deixe a cobra ter seu espaço para ir

embora. E não a provoque. Irritar uma cobra só tem um resultado: você

vira o alvo.

Meu discurso não pareceu confortá-la.

— E se ela estiver em posição de ataque? O que devo fazer?

Com certa ironia, eu ri.

— Não se preocupe com isso. O ataque da maioria das cobras é

mais rápido do que o olho humano pode acompanhar. Quando pensar em

se dar conta, já estará morta. Vamos dar o fora daqui. — Comecei a andar.

— Espera! — ela gritou, passando um braço pelo meu. É melhor

andarmos bem juntos.

E assim estávamos ali: Rafaela agarrada a mim como se eu fosse a

sua tábua de salvação, e eu confesso todo satisfeito. Devo ter-lhe parecido

quente, pois àquela altura fique tão vermelho quanto um tomate.

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Começamos a andar de volta para a trilha principal. No fundo, eu

esperava que nosso retorno demorasse algum tempo. Estava curtindo tê-la

junto comigo. Parecia um sonho. Fiz o possível para ignorar o perfume

convidativo que emanava dela. Minha vontade era inclinar-me para o

lado e dar-lhe uma boa fungada no pescoço. Rafaela parecia estar

desconcertada com a nossa proximidade, mas, para minha vantagem, com

medo demais para ser orgulhosa.

— O que você faz da vida? — De repente saiu-me com essa. —

Por acaso é escoteiro?

— Não. — Eu ri. — Por que me perguntou isso?

— Sei lá, você sabe tanto de cobras...

— Discovery Channel. — Começando a ficar preocupado, parei

para olhar a onde estávamos indo. — É o meu programa favorito. Quando

era pequeno, até quis ser escoteiro, mas perguntei ao meu pai se podia e

ele disse que iria pensar. O que corresponde a não, em "Gustavonês". Ele é

muito protetor. Mas se você prestasse mais atenção nas aulas de ciências

(e em mim, eu queria dizer) saberia que sou o primeiro da turma.

A mão livre de Rafaela foi parar na cintura.

— O que você está querendo dizer? Eu presto atenção nas aulas de

ciências, só não é a minha matéria favorita. Quando for para a faculdade,

quero cursar Moda! Obviamente você não sabe, mas já tenho um blog que

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dá dicas sobre isso e já tenho mais de sete mil seguidores. Tenho jeito pra

coisa garoto, nossos talentos são bem diferentes. — Unindo as

sobrancelhas, ela olhou para a mata. — E por que estamos parados aqui?

Não me diga que estamos perdidos?

— Não, não. — Não quis alarmá-la. — Só estamos descansando

um pouquinho, quero saber se os bandidos já foram.

— Ah...

— Fale-me mais da sua nobre contribuição à sociedade. —

Continuei caminhando para tentar distraí-la. — Sete mil seguidores? É

coisa pra caramba. Sobre o que você fala no blog? — perguntei, como se

eu já não tivesse visto todos os vídeos.

— Todo tipo de coisa — ela deu de ombros. — As novas

tendências de acessórios, novas estampas, maquiagem e. Cara... — Ela

parou e sacudiu uma das pernas. — Esse pé ta doendo pra caramba.

— Também — olhei para ela — quem mandou vim de All Star

para uma caminhada? Devia ter vindo com um tênis mais propício.

— Acontece engraçadinho, que o único tênis esportivo que eu

tinha era branco, e com detalhes em verde. Como eu poderia usar com

essa roupa? — Olhou-me com os olhos arregalados.

— Mudasse de roupa — sugeri, ingenuamente.

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Abruptamente, ela estacou, parecendo apavorada por um instante.

Em seguida, me largou e olhou para o próprio corpo. Sua súbita distância

não foi o suficiente para interromper o fluxo do calor em meu braço.

— Acha que essa roupa está feia?

— Claro que não. — Eu ri, aliviado, quando entendi sua

preocupação. — Só acho que devia ter usado algo mais confortável. É isso

que usamos nas caminhadas, principalmente em se tratando dos pés.

Parecendo aliviada, Rafaela cruzou os braços.

— Pois desde que sou criança escuto dizer que mulher, para estar

bonita, tem que sofrer. E, até que eu tenha uma boa legging que combine

com aqueles tênis, suportarei os sacrifícios.

— Tudo bem, você que sabe — eu disse. — Mas agora precisamos

ir. Quer que eu te carregue um pouquinho?

Ela demorou uns três segundos para responder.

— Como vai cutucar o chão se me carregar?

— Se pendura nas minhas costas.

Ela fez uma careta.

— Acho que não. Dá para aguentar mais um pouquinho. Já

estamos perto, não é?

— Acho que sim — menti. — Vamos andando.

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Atrelada a mim novamente, tornamos a caminhar. Começou a me

bater um desassossego quando passou meia hora e nada de trilha. Rafaela

monologava o tempo todo, me pondo a par de um novo web site sobre

sapatos. Eu fazia perguntas esporadicamente para mantê-la distraída e

indiferente ao meu nervosismo. Tentei localizar algum barulho de rio

para seguir o seu fluxo, mas os chiados pareciam muito distantes. Tinha

certeza de que estava andando na direção certa até que percebi um

grande tronco caído no chão. Era gigante e impossível de não se notar.

Com certeza, não havíamos passado por ele na vinda. Dessa vez fui eu que

estaquei. Rafaela interrompeu o passo junto comigo e olhou para frente.

Quando viu o tronco, deve ter pensado o mesmo que eu, pois levou as

mãos ao rosto e desandou a chorar outra vez.

— Meu Deus! Estamos mesmo perdidos...

— Rafaela...

— SOCORRO! — começou a berrar. — SOCORRO! SOCORRO!

SOCORRO!

— Não faça isso — eu disse, segurando-a petos braços — pode ter

predadores por aqui. E os bandidos ainda podem estar por perto.

— Pois eu quero mais é que eles me achem! — explodiu para cima

de mim. —Pelo menos eles sabem o caminho de volta. Não sei onde estava

com a cabeça quando corri para a floresta atrás de você!

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Eu a soltei.

— Deixa de ser ingrata, garota, há essa hora você poderia estar

morta!

— E que diferença faz? — Ela colocou as mãos na cintura. Tinha

uma forte tendência a demarcar o meio do corpo. Como eu não havia

percebido? — Acha que se eu ficar perdida aqui vou sobreviver? Ainda

mais com você? Um Indiana Jones paraguaio.

Apertei minhas mãos em punho ao lado do corpo. Nunca pensei

que desejaria estrangulá-la.

— Pois, então, vá embora sozinha. A partir daqui, estamos

separados.

— Nada disso! — ela protestou. — Você me trouxe até aqui, agora

vai me levar de volta. E aceito aquela sua carona. Coloca a mochila na

frente, pois vou pular nas suas costas.

— Vai pular coisa nenhuma — rosnei para ela. — Nem me

agradeceu por salvar sua vida ainda. A partir daqui, caminhamos

sozinhos. — Para mostrar que falava sério, virei-me e dei os primeiros

passos na direção oposta.

— Enzo, espera!

Continuei caminhando.

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— Por favor...

Parei, sorrindo, mas me virei com a cara amarrada. Creio que não

deixei transparecer o prazer que tive ao ouvir meu nome em seus lábios

pela primeira vez. Bem mais humilde Rafaela torcia as mãos. Fitei-a até

ser obrigada a continuar. Então, ela murmurou:

— Não vá.

Marquei um ponto, pensei.

— Se quiser continuar caminhando comigo, terá de parar de me

acusar e reclamar o tempo todo. Estamos oficialmente perdidos, mas vivos.

Lamento que isso tenha acontecido, mas agora precisamos agir. Não

podemos ficar aqui até entardecer, ou seremos realmente devorados, mas

pelos mosquitos.

— Tudo bem. — Ela aproximou um passo de mim, o rostinho

demonstrando tal abandono que tive vontade de pegá-la no colo. — Estou

morrendo de medo. E costumo ficar histérica em situações como essa. Não

que eu já tenha me perdido na selva em situações de perigo eu quero

dizer. Mas agora você é tudo que tenho. Por favor, não me abandone.

Xeque-mate.

— É claro que não vou te abandonar. — Atrevido, passei a mão na

franja dela. Seu cabelo era sedoso como eu imaginava. — Só preciso que

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fique calma, ok? Essa é a primeira lição do exército para perdidos na

selva: manter a calma. Agora, sobe aí. — Virei-me de costas, passando a

minha mochila para frente. — Logo, logo, alguém vai nos achar. Vamos

procurar um lugar mais aberto, para que, se for o caso, um helicóptero

nos veja.

Aborrecimento esquecido, Rafaela subiu em cima de mim. Passei o

punho por debaixo dos seus joelhos para lhe dar mais firmeza nas pernas.

Caminhei com ela assim por cerca de meia hora, impressionado com a

minha resistência e secretamente apavorado com o silêncio daquela mata.

Paramos por dez minutos para comer. Dividi um sanduíche com ela. Não

sabia por quanto tempo ficaríamos alie achei melhor racionar a nossa

comida. Rafaela só tinha trazido um pacote de Pringles, uma squeeze com

água e uma barra de chocolate branco. Enquanto comíamos, ouvimos um

barulho na mata e Rafaela sobressaltou-se, achando que pudesse ser um

predador farejando a nossa comida. Pulou para cima de mim com tanta

força que cambaleei para trás. Mas era somente um casai de gambás. A

despeito do medo de partir desta vida, ou de ficar preso naquela mata

para sempre comecei a me empolgar com o incidente. Se toda vez que

Rafaela tomasse um susto de atirasse para cima mim, eu mesmo

provocaria os barulhos. De repente, ela parou e ficou mirando seu

sanduíche.

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— Acha que ele morreu?

— Quem? — Dei um gole moderado no meu isotônico,

percebendo que o mato alto arranhara um pouco as suas canelas.

— Mateus.

Ao perceber que ela ainda estava preocupada com ele, senti minha

garganta fechar, mas tentei confortá-la:

— Claro que não. Pelo menos, ele estava na trilha. Com certeza já

o encontraram. Aquela coronhada na cabeça não foi suficiente para matá-

lo.

Nenhum de nós dois disse nada por um momento.

— Mas, e se atiraram nele? — ela perguntou.

— Ele estava inconsciente, não representava perigo. Com certeza

eles correram atrás dos outros.

Desabando, Rafaela começou a soluçar.

— Que foi? — Comovido, coloquei a mão no seu ombro.

— Jéssica, a minha amiga, foi a primeira a correr. Será que eles a

pegaram?

Fiquei olhando para ela, sem saber o que dizer.

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— Vamos torcer que não. — Ela continuou me olhando. — Vem

aqui. — Puxei-a para perto de mim, largando minha garrafa no chão. —

Nesse momento, precisamos pensar em nós dois. Em como sair daqui. Não

vamos sofrer por antecedência, ok?

Um sorriso conformado, porém não menos brilhante, surgiu nos

cantos da sua boca. Fiquei satisfeito por ter provocado aquilo. Ela era

maravilhosa, tudo com que eu sempre sonhara, com os cabelos afastados

do rosto e aquele meio sorriso nos olhos castanhos. Subitamente, ela

desviou os olhos de mim e olhou para longe. Uma leve linha apareceu

entre suas sobrancelhas enquanto examinava algo a leste de nós. De

repente, me perguntou:

— Aquilo ali é uma gruta?

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Recolhemos as nossas coisas e caminhamos até lá, sem deixar

nenhum resquício de sujeira para trás. Minhas heranças ecológicas não

permitiam. Conforme chegávamos perto, avistei uma enorme rocha. As

copas iam se abrindo acima de nós, liberando os raios de sol como uma

cortina em direção ao solo. Havia uma fenda na rocha, mas não

exatamente uma gruta, na verdade estava mais para um abrigo. O que

seria bom, raciocinei, procurando ser prático, caso precisássemos de um

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lugar para passar a noite, pois dificilmente abrigaria morcegos. Entrei no

pequeno espaço seguido por Rafaela. Debaixo da cobertura, o clima ficou

imediatamente mais frio, mas eu imaginava que durante a noite o efeito

seria o contrário. Devia ter em torno de quinze metros quadrados, mas era

comprido, como se fosse um túnel. O chão era de terra irregular e em

algumas partes pontiagudo. Havia um pouco de musgo subindo pelas

paredes. Fiquei contente por não notar nenhum buraco nelas, pois poderia

conter algum animal entocado. O teto ia descendo para o fundo em

degraus como uma escada invertida. Havia uma grande pedra que

poderia servir-nos como uma espécie de mesa, apesar de ser irregular, e

pedras menores por todo o recinto. Chutei algumas delas para ver se havia

algum animal embaixo, como um escorpião, uma aranha ou sei lá o quê.

Não havia nenhum resquício do Homem naquele local. O lugar

era inóspito, sem dúvida. Rafaela sentou-se perto de um tronco

apodrecido e pensei que ela fosse chorar novamente ao se dar conta de

que estava em sua provável morada atual, mas ela apenas sibilou de

prazer quando tirou um dos tênis.

—Vamos descansar um pouquinho, ok? Meus pés estão me

matando.

— Tudo bem. — Joguei a mochila no chão. — Fique aqui. Vou ver

se consigo subir nessa pedra, tentar avistar algo ta de cima.

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— Não! — ela berrou. — E se aparecer uma cobra?

Com um suspiro, ajoelhei em frente a ela.

— Já está quase entardecendo, Rafaela, não podemos facilitar.

Precisamos sinalizar onde estamos, buscar alguma direção...

— Então, eu vou com você. — Ela começou a se levantar, mas

percebi que seu calcanhar estava mesmo machucado.

— Não, fique aqui. Olha — abri minha mochila —, fique com isso.

— Entreguei-lhe meu desodorante, me esforçando para manter a

seriedade. — Bichos têm medo disso, se algum aparecer e te ameaçar,

espirre com toda força. Mas se eles não se meterem com você, fique

quietinha.

Intrigada, Rafaela deu uma rápida borrifada no ar.

— Eu gosto do cheiro, por que eles iriam fugir?

Segurei uma risada.

— Por causa do barulho, não do cheiro.

Pouco convencida, Rafaela se ajeitou novamente no chão, porém

alerta, com o dedo no gatilho. Acenei com a cabeça e sai pelo abrigo afora,

morrendo de vontade de rir e torcendo para que nenhum predador

realmente aparecesse. Qualquer cachorro do mato a deixaria apavorada.

Contornei a rocha que nos abrigava que parecia bem grande e que

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dificilmente seria escalada, porém servia perfeitamente para rapel. Olhei

ao redor para ver se via alguma árvore mais fácil de subir e tentar avistar

algo na superfície, mas todas tinham troncos muito longos e grossos, ou

pareciam muito frágeis. Ao que parecia, a floresta, com suas sombras

verdes e cheiro de umidade, por enquanto seria meu lar. Meu e de Rafaela,

pelo menos.

Olhei ao redor para ver se via alguma árvore frutífera e reconheci

algumas espécies: murici, ipê-amarelo, cambuí, jequitibá, cedro e pau-

pereira eram apenas algumas delas. Felizmente, avistei uma jaquelra perto

dali. Não que eu gostasse de jaca, mas havia visto uma matéria da tevê que

dizia que essa fruta era muito rica em proteínas e vitaminas,

principalmente cálcio, tanto que era indicada na alimentação de crianças

para fortalecer os dentes e os ossos. E que também era rica em fibras e sais

minerais, como ferro e fósforo. Pelo menos, não morreríamos de inanição.

A esse pensamento, fui acometido por um leve tremor. Pela

primeira vez dei-me conta de que estava realmente perdido. Mas não

podia parecer amedrontado, pelo menos não para Rafaela. Por isso, voltei

para lá. Quando cheguei, ela já havia se levantado. Estava descalça e

pulando de um pé para o outro com uma mão no ventre e a outra no

desodorante. Olhou-me com uma cara desesperada e disse que precisava

fazer xixi. Um silêncio se seguiu a esse seu comentário. Corei inteiro,

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pensando no que deveria fazer, como se houvesse outra solução.

Afastamo-nos um pouco da nova "casa" para que ela pudesse aliviar-se

mais longe dali. Evidentemente, ela não quis ir sozinha, pois ainda estava

com medo da vida selvagem. Vi que trazia algo na mão, parecido com um

lenço de papel. A certa distância, ela pediu que eu me virasse de costas e

me entregou o desodorante. Fiquei contente, pois me sentiria ofendido se

ela me visse como um ser absolutamente assexuado. Ou gay. Só assim

ficaria nua na minha frente. Tentando parecer tão casual quanto possível,

virei o corpo para o outro lado, mantendo-me a uns dois metros de

distância.

— Que horas são? — perguntou Rafaela, enquanto voltávamos.

Olhei para o relógio e informei que eram duas horas.

— Conseguiu enxergar algo lá de cima? — Ela apontou para o

teto.

— Nem consegui subir, a parede é muito íngreme.

— E o que vamos fazer? — Ela arregalou os olhos, enquanto eu

pegava a mochila. — Não podemos passar a noite perdidos aqui. Tem que

haver algum jeito...

— Vamos tentar voltar para a trilha de novo, mas desta vez, vamos

marcar o caminho. Se não acharmos, pelo menos saberemos como voltar.

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Rafaela parou e me mirou em silêncio. Mas não foi um silêncio

normal, muito menos amistoso.

— E por que eu voltaria para cá? — indagou ela, já perdendo a

paciência, coisa que nunca tinha muito, pelo visto.

— Provavelmente, está olhando para o nosso futuro lar. Em termos

de perdidos na floresta, isso aqui é o mais perto que chegaremos de um

hotel cinco estrelas.

Rafaela piscou atônita.

— O quê? Acha que vou ficar aqui e dormir com você? Nem

morta! — disse incisiva, como se fosse a pior escolha a se fazer na história

da humanidade.

Fiquei mirando seu rosto, estupefato. Uma raiva súbita me fez

estremecer até a medula. Nunca havia visto alguém tão irritante e ingrato

na vida. Olhava desdenhosamente para mim. Havia qualquer coisa no seu

olhar que me perturbou, uma espécie de aversão ou de medo de ficar ali

sozinha comigo. Não parecia, nem por um momento, sentir-se grata por

tudo que eu já havia feito por ela. Estava sempre a pedir algo ou a exigir,

muito diferente do que eu a imaginava. Foi como se eu tivesse um clique:

Rafaela era rabugenta. E estava me magoando. Magoando muito. Por isso

não respondi, só fechei a cara e fui andando para a mata sozinho.

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— Ei, pera aí a onde você está indo? — Ela veio correndo atrás de

mim. — Por que me deixou falando sozinha?

— Se que saber, estamos os dois no mesmo barco, e ele está

afundando. Se estiver a fim de ficar dando chiliques, pode fazer suas

escolhas sozinha. Não tô mais a fim de ficar dando uma de babá.

Resolvendo parar, ela gritou para mim.

— Pois quer saber, que se dane você! Ninguém está pedindo sua

proteção. Não sei por que diabos fugi com você do assalto. Agora vou

morrer aqui, devorada por animais selvagens! Já posso até ver as

manchetes: "Menina sobrevivente de assalto é encontrada no bucho de

uma sucuri". Mas, tudo bem. Posso perfeitamente achar o caminho da

trilha sozinha. Não via Discovery channel, mas via Lost. E quando eu

voltar vou dizer que você está morto na barriga de um jacaré. Vai ficar

perdido nesta selva pelo resto da sua vida miserável. Ninguém virá te

buscar...

Silêncio! Gritei na minha mente.

— Pois boa sorte, então. — Continuei andando, com vontade de

me virar e lhe dar uns bons tapas na bunda, como se ela fosse uma

criança birrenta. — pode ficar com o meu desodorante. Só vai deixar a

cobra perfumada antes de dar um bote em você. Mas, não se preocupe do

jeito que você é enjoada, é capaz dela te vomitar.

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Esse argumento a calou por alguns segundos. Pelo pouco que

conhecia sobre ela, comecei a contar mentalmente. Três, dois, um...

— Enzo — sua voz surgiu fininha atrás de mim. Abri um sorriso

malicioso. — Volte aqui, não vai adiantar nada a gente discutir desse jeito.

Sentindo-me um rei cruel, não respondi. Mas involuntariamente

senti meus pés diminuírem minhas passadas.

— Isso é burrice. Precisamos nos unir — ela insistiu. — Nossas

chances de sobrevivência serão muito maiores. Ambos sabemos disso.

Continuei sem responder. Rafaela era uma mulher sem tirar nem

pôr: amável e amistosa num momento, despeitada e insuportável no outro.

Perguntei-me para onde fora minha determinação, pois acabei parando.

Eu era como cera em suas mãos.

— Por favor — ela me disse por fim, suave e delicadamente. Foi

difícil resistir.

Virei-me para ela e lhe disse:

— Você precisa entender que não é a única a estar perdida por

aqui. Estou fazendo de tudo para manter o controle, o que não quer dizer

que também não esteja assustado. Então, em vez de ficar reclamando de

tudo o tempo todo, FAÇA ALGUMA COISA PARA AJUDAR! — berrei no

final.

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Olhou-me apavorada. Como se eu tivesse exigido que descobrisse

a cura do câncer.

— Mas, o que posso fazer? Na verdade, não sei nada sobre esse

negócio de mata.

— Vamos tentar achar a trilha de novo e precisaremos estar

atentos a vestígios que as pessoas deixam pelo caminho, como pegadas,

roupas e restos de comida. Também precisamos ficar com os ouvidos

atentos para identificar barulhos. Portanto, se mantiver essa matraca

fechada, já estará me ajudando.

Cerrou os olhos, ultrajada.

— Grosso! — disse cruzando os braços na altura do peito.

Satisfeito por tê-la nas mãos, virei-me de costas e continuei

caminhando. Ela correu e se pôs ao meu lado, acompanhando meus

passos. Durante o percurso, marcamos caminho fazendo cruzes em alguns

troncos com a minha chave. Acredito que andamos por cerca de uma

hora. Rafaela permaneceu miraculosamente calada. Não falamos pelo que

me pareceu muito tempo. Só ouvíamos o zumbido das folhas, o que me

ajudou a raciocinar com maior clareza. Se realmente fôssemos pernoitar

por ali, havia algumas providências a serem tomadas. Parecia que

andávamos em círculos, pois não chegávamos a lugar algum. Nenhum

cenário novo, nenhum barulho, nada. Éramos como se fossemos as únicas

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pessoas do mundo. Rafaela parou mais uma vez para fazer xixi. Em certo

momento, os mosquitos começaram a nos incomodar. Com medo de ficar

escuro Rafaela sugeriu que voltássemos para o abrigo. Como tínhamos

pouca comida e não podíamos desperdiçar energia, concordei. Foi como se

levantássemos uma bandeira branca nos rendendo àquela imensa floresta.

Rafaela, talvez por causa da tensão, estava o tempo todo com fome e

queria beliscar alguma coisa. Não deixei que fizesse isso, explicando que

precisaríamos poupar os suprimentos, mas ela continuava insistindo.

Deixei bem claro que a resposta era "não", mas a criatura parecia não

entender português.

Quando chegamos novamente na caverna, sentamos um em cada

canto e seguiu-se um longo silêncio entre nós. Quase podíamos ouvir o

batimento das nossas artérias. Rafaela ficou ali sentada, as costas contra a

parede, com um ar tão infeliz que eu não sabia o que podia fazer. Olhou

para mim de repente, sem expressão. Deu-me a impressão de estar

pensando em qualquer coisa desagradável. Em seguida, fechou os olhos,

como se só olhar para mim já cansasse sua vista. Diálogo que se seguiu:

Ela: Acha que já estão procurando por nós?

Eu: Não sei (eu olhava para o chão). Mas não podemos ficar

contando com isso.

Ela: E o que vamos fazer?

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Eu: Precisamos recolher galhos e folhas secas.

Ela: Por quê?

Eu (me levantei): A não ser que queira morrer congelada,

precisamos providenciar uma fogueira.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Rafaela tornou a chorar e tapou os ouvidos. Mas não foi um choro

histérico como os outros, ela parecia realmente amedrontada. Vi seus

ombros estremecerem e quis aproximar-me para abraçá-la, para

confortá-la, mas não sabia se era isso que ela queria. Não depois daquele

olhar que ela me lançou. Mas transtornou-me realmente vê-la daquele

jeito, tão fragilizada. Disse-lhe que ficaria tudo bem e fui para a mata

buscar o que precisava. Em segundos, Rafaela se recuperou e me seguiu.

Juntamos gravetos finos, cascas de árvore, folhas, musgos soltos, capim

seco, tudo que imaginamos que fosse facilmente inflamável. Achamos

também alguns tocos de madeira de árvores mortas, galhos caídos e

escolhemos os mais secos para servir de lenha. Quando retornamos para o

abrigo, aproveitei as pedras menores do chão e construí uma plataforma

bem atrás da pedra maior, a que seria usada como mesa. Essa pedra

serviria para isolar o calor em direção ao fundo do abrigo, nos protegendo

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mais eficientemente do frio. Dispus os materiais que recolhemos de forma

que permitisse a circulação de oxigênio no meio. Então, chegou a hora do

meu maior desafio: fazer o fogo.

Já havia feito isso com a ajuda de um amigo, mas nunca havia

experimentado sozinho. Minha primeira tentativa foi fazer a chama com

o atrito de pedras, quase consegui uma tendinite de tanto tentar, mas não

funcionou. Em seguida, peguei o meu cadarço do tênis e um pedaço mais

resistente de galho. Torci-o um pouco e fiz um arco com ele. Depois,

organizei uma pequena quantidade de materiais inflamáveis em cima de

uma madeira maciça. Peguei outro toco de madeira e tentei parti-lo no

meio, mas o destruí. Estava multo velho e desgastado. Procurei outro.

Depois da terceira tentativa, achei um que parecia ideal. Enrolei-o no

cadarço e comecei a friccioná-lo na base, movendo o arco

horizontalmente depressa. O galho quebrou. Tentei com mais três deles,

sem sucesso nenhum. Por fim, Rafaela foi à mata novamente em busca de

um galho mais duro. Foi eficiente na sua empreitada, pois o que ela trouxe

não quebrou. Creio que fiz isso por uns cinco minutos até ver o primeiro

resquício de fumaça surgir. Rafaela ficou tão excitada com aquilo que deu

um berro de empolgação. Na verdade, eu também fiquei. Parei e me

abaixei para soprar a fumaça.

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— Não faça isso! — ela berrou. — Já estamos há meia hora aqui e

nada. Daqui a pouco estará escuro. Não está vendo que vai apagar a

fumaça?

— O fogo precisa de oxigênio — eu lhe disse. — Não fui escoteiro,

mas já acampei com um amigo que era escoteiro uma vez, ele me ensinou

como fazer isso. Veja...

Continuei soprando e, diante de nossos olhos atônitos, como num

passe de mágica, o fogo finalmente acendeu. Joguei o pequeno tufo de

palha que estava queimando no meio da fogueira que eu mesmo havia

montado me sentindo um herói. As labaredas foram se formando aos

poucos e em poucos minutos já estávamos aquecidos. O calor do fogo nos

abraçou. Sentamos em frente à fogueira. O chão não estava exatamente

confortável, mas estávamos tão cansados que não nos incomodamos.

Rafaela olhou para mim e as chamas denunciaram uma onda de gratidão

em seus olhos. Tinha um verdadeiro sorriso no rosto, o primeiro que

dirigia a mim desde que ficamos perdidos ali. Não pude fazer outra coisa a

não ser sorrir de volta para ela. Estávamos sujos e igualmente exaustos.

Havia arranhões em nosso corpo e picadas de mosquitos. Depois de tantas

brigas, eu desejava que ela estivesse pálida, desgrenhada e horrorosa. Mas

aquela beleza descuidada só aumentava seu encanto. Eu desejava e não

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desejava tocá-la. Não consegui definir direito se eu ainda estava com raiva

dela. A beleza nos confunde. Deixamos de saber o que queremos ou não.

Aproveitamos nosso descanso para beber um pouco do meu

isotônico. Ainda havia água na garrafa de Rafaela, mas achamos melhor

reservá-la. Abrimos a barra de chocolate e pegamos um quarto para cada

um. Ela deu uma mordida, um grunhido de satisfação e recostou-se na

parede em seguida. De repente, abriu os olhos e ficou me olhando por um

longo tempo. Comecei a corar, não pude evitar. Seus olhos grandes e

ardentes estavam ali, a me olhar fixamente. Eu não queria me sentir

daquele jeito, emocionado por estar ali com ela, finalmente sozinhos,

naquela situação horrorosa. Rafaela era muito diferente do que eu

idealizara. Era imprevisível. Criticava tudo constantemente. Eu não queria

sentir aquele prazer incompreensível e ofuscante que ela sempre me

causava. Meu sentimento por ela apenas crescia, mesmo depois de

descobrir os seus defeitos. Ela era egoísta, mimada e exigente. Mas

olhando para ela ali parada, eu me esquecia de tudo. Eu amava o jeito

como seu cabelo emoldurava seu rosto, caindo numa curva graciosa,

como se fosse um véu. Caia-lhe até a altura dos cotovelos. Adorava

quando ela girava o cabelo de lado, num movimento descontraído. Acho

que não tinha a menor ideia de como ficava encantadora. Eu poderia ver

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aquele movimento dezenas de vezes sem jamais me cansar. Odiava-me

por isso.

— Obrigada — disse ela subitamente —, não sei o que faria se

estivesse perdida sozinha. Com certeza iria morrer. Se não fosse

congelada, devorada pelos animais. Uma vez li que a chama os afasta...

— É verdade — pigarreei, desconcertado com seu primeiro surto

de gratidão —, mas não precisa me agradecer. Afinal, fui eu quem te

trouxe para a mata.

Parecendo arrependida, Rafaela deu um longo suspiro.

— Desculpe por tê-lo acusado disso também. Ficamos

desesperados, sei que você só queria ajudar.

Olhei para ela de relance.

— Prometo que vou tirá-la daqui. Não quero que tenha medo.

Com certeza amanhã nos acharão.

—Não estou mais com medo. — Ela fez uma pausa. — Sabe — me

apontou o chocolate — fiquei aqui me perguntando por que... — fez uma

pausa — por que nunca fomos amigos? Por que nunca nos falamos? Você

é meu vizinho de frente...

— Pois é. — Joguei um galho na fogueira. — Coisas da vida.

Pensativa, Rafaela continuou me encarando.

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— Você quase nunca saía na rua. Por quê?

— Sempre fui muito tímido. — Dei de ombros. — Ainda sou. Mas

às vezes eu saía, sim. Na verdade, não gostava muito dos meninos do nosso

condomínio. E ainda não gosto. São todos muito baderneiros. A maioria

ainda não mudou.

— É verdade — ela riu, parecendo conhecê-los bem de perto —, a

maioria realmente não mudou.

Eu ri.

— Sabe... — ela continuou — eu sempre acreditei que as

impressões dos primeiros anos permanecem por mais tempo com a gente.

Boas ou ruins, elas acabam determinando quem nós somos. — Parecendo

realmente interessada, inclinou-se para mim e abraçou os joelhos,

sorrindo. — Conte-me, quando você pensa nos seus cinco anos, do que se

lembra?

Engoli em seco. Depois olhei para as minhas mãos fechadas em

punho diante de mim, como se ali estivessem minhas memórias. Depois de

alguns segundos, disse:

— Lembro-me da minha mãe. De ficar sentado no barco

esperando ela emergir do oceano. Ela era mergulhadora. — A lembrança

surgiu com tanta claridade, que sorri. — Ela morreu mergulhando

sozinha, ficou presa nos corais. — A expressão de Rafaela se enterneceu.

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— Lembro-me do cheiro das flores que ela trazia para dentro de casa, do

bolo de cenoura que ela fazia... Também me lembro de como ela brigava

comigo quando eu ficava dividido entre terminar de arrumar o meu

quarto ou espiar a sua casa pela janela. — Calei-me por dois segundos,

embaraçado pelo que acabara de revelar. —Lembro-me de você —

confessei num murmúrio.

— De mim? — repetiu Rafaela, o riso demonstrando mais

divertimento do que ironia. Colocou as mãos no queixo, curvando-se,

enfeitiçando-me com o jogo de luz e sombras em seu rosto. — Lembra-se

de mim quando eu era pequena?

Senti meu rosto queimar, mas não por causa do fogo. Mantive os

olhos na chama.

— Me lembro da primeira vez em que te vi pela janela do quarto.

Você estava na rua, andando de bicicleta de rodinhas, seu pai estava

ensinando. Você caiu e machucou o joelho, ele veio te socorrer. — Por

causa do silêncio de sua parte, virei o rosto para ela. — Sente falta dele?

Rafaela olhou para o chocolate nas mãos, parecendo-me ter

perdido o apetite.

— Muito. — Seus olhos se enevoaram com a memória. — Desde

que se separou da minha mãe, ele não veio me visitar. Acho que sua nova

mulher tem ciúmes. Não costumo pensar muito nisso, não me lembro dele

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com frequência. Mas quando acontece, as lembranças são nítidas, claras

como água. E machuca. Não gosto muito de falar sobre isso.

Fiquei olhando para ela. Eu também nunca falava dessa época da

minha vida, nem da minha mãe. Nunca! Nem mesmo com a minha

família. Nosso primeiro contato pacífico pareceu dissipar o ar entre nós.

Mas, como ela continuava triste, senti uma necessidade desesperada de

mudar de assunto. Comecei a fazer perguntas sobre seu blog de moda, o

que fez com que Rafaela disparasse a falar novamente. Eu ria diante da

sua empolgação. Rafaela era muito expressiva enquanto falava. Agitava os

braços, fazia caretas e elevava o tom de voz quando queria ressaltar

algum fato importante. E de repente estávamos ali, como eu sempre

sonhei. Conhecendo melhor um ao outro. A despeito das circunstâncias,

eu só queria que ela estivesse tão feliz quanto eu. Continuando nosso

papo, de repente perguntei:

— O que você costuma fazer nas noites de sábado? Quer dizer,

além de pernoitar em florestas...

Rafaela sorriu.

— Bem, costumo ir a vários lugares com as minhas amigas. Vamos

ao shopping, ao cinema, comemos alguma coisa... Hoje eu tinha uma festa

de quinze anos para ir. Mas eu nunca fui muito com a cara da debutante,

então, tudo bem.

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Rimos juntos.

— Mateus costuma ir com vocês? — tentei falar de modo

descontraído.

A expressão dela esmaeceu um pouquinho, Rafaela olhou para as

mãos.

— Na maioria das vezes, não.

— Pensei que estivessem namorando — instiguei —, sempre vejo

vocês dois juntos.

Pensando em como responder, Rafaela jogou o cabelo de lado.

Admirei-a.

— Ainda não sei bem o que temos. Na escola, ele sempre fica atrás

de mim. E durante a semana, às vezes, aparece na minha casa. Nunca

definimos realmente o que é isso entre nós. Mas, no final de semana ele

some. Sábado ele diz que é o dia dos amigos e costuma sair com eles. Diz

que precisamos ter nosso espaço. E domingo ele sempre tem algum

compromisso, em geral um jogo de futebol. Mas, e você? — Ela olhou

novamente para mim, querendo deixar aquele assunto de lado. — O que

costuma fazer?

Mirei as chamas novamente e dei um sorriso de lado.

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— Geralmente eu e Leandro vamos ao boliche, ao Paint-ball, ou

passamos a noite jogando RPG. Mas a noite sempre termina no Pizza Hut.

Somos viciados na pizza de peperone.

— Não tem namorada? — Ela devolveu a pergunta.

— Não.

— Mas, não sai com ninguém? Nem esporadicamente?

Meu pomo de adão subiu e desceu.

— No momento, não. Mas gosto de uma pessoa — deixei escapar.

— Sério? — Com um sorriso nos olhos, ela se inclinou para frente.

— Como é que ela é? É bonita? Vocês dois já ficaram?

Nessa hora, meu rosto já não estava mais quente, estava pegando

fogo. Perdido por cem, perdido por mil, pensei.

— É a garota mais bonita que já vi na vida — eu disse —, mas ela

ainda não sabe do meu interesse. Praticamente nunca nos falamos.

— Como assim? — ela uniu as sobrancelhas. — Vocês dois nunca

ficaram? Nem uma paquerinha?

— Não. — Estiquei o corpo e pus as mãos atrás da cabeça, fingindo

me espreguiçar. — Digamos que é um tipo de amor platônico da minha

parte. Ela nem desconfia.

— Ela é da escola? — ela investigou.

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Virei o rosto de lado e dei outro meio sorriso.

— Aí você já tá querendo saber demais.

Rafaela me lançou um sorriso estranho.

— Nossa... — ela se recostou na parede. — Como pode amar

alguém que não te conhece? Somente por vê-la? Não consigo

compreender.

— Provavelmente, eu e você temos um tipo diferente de coração.

— O que quer dizer com isso?

Abracei os joelhos.

— Não consigo entender o que você viu no Mateus, não consigo

enxergar as qualidades dele.

Houve uma pausa meio tensa entre nós.

— Ele é divertido — disse mais séria. — E bonito.

— Se isso é suficiente para você... — Antes que começássemos a

discutir novamente, levantei-me. Não queria estragar a atmosfera. — Se

me der licença, acho que vou ao reservado, já está escuro. Também

precisa ir?

— Não, não... — Ela devolveu o sorriso, meio sem graça. — Nem

morta me atrevo a ir lá no escuro.

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— Tudo bem então, eu já volto.

Quando me levantei, com o canto dos olhos vi que Rafaela

acompanhou os meus movimentos. Daria tudo para saber o que ela estava

pensando. Assim que saí para o relento, fui golpeado no rosto por um frio

cortante. Batendo os dentes, demorei uns bons cinco minutos até

conseguir urinar. Havia vários ruídos estranhos a minha volta. Fiquei com

medo. Assim que consegui, retornei para o abrigo e, quando cheguei, a

visão foi arrebatadora.

Rafaela estava deitada de lado no chão, dormindo e fazendo sua

mochila de travesseiro. Seus cabelos escorregavam pela mochila

parecendo uma cascata dourada. As chamas iluminavam sua pele, dando-

lhe um ar sereno, quase infantil. Fiquei perdido olhando a curva do seu

quadril, desabando na cintura fina, tão delicada. Ela parecia uma deusa na

abundância dos atributos. Mesmo quando fazia coisas feias, como bocejar,

se coçar, ou dar um grunhido de raiva, nela sempre pareciam bonitas. E

agora, dormindo... Gostaria de ter palavras para descrever a cena como

um poeta saberia. Andei até ali e me sentei perto dela. E em algum

momento da noite, comecei a achar que tudo aquilo na verdade fora um

grande golpe de sorte, e não um acidente sem nenhum propósito. Prometi

a mim mesmo que a levaria em segurança para casa. Se precisasse, eu

tinha certeza, daria a minha vida para isso.

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~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

O dia seguinte também não foi nada fácil. Estávamos mais

cansados e famintos do que no dia anterior. Acordei com Rafaela gritando

"ladrão!". Fiquei com medo que um dos meliantes tivesse nos encontrado,

mas depois percebi que ela berrava para um sagui. Segundo ela, o bicho

viu minha mochila aberta e roubou nossa única maçã. (Tenho certeza de

que deixei a mochila fechada, para mim, foi ela quem abriu durante a

noite). Ela pegou o coitado no ato do furto, mas não soube o que fazer

para impedi-lo, pois teve medo de se aproximar. O resultado foi o de

sempre: Rafaela já estava de mau humor. Tentando animá-la, abri meu

saco de biscoitos recheados e tirei cinco para cada um de nós, imaginando

que seu mau humor fosse fome. Mas tão logo deu a primeira mordida,

Rafaela soltou um grito de pavor. Um inseto desconhecido, muito parecido

com um besouro preto, estava subindo pela sua perna. Rafaela ficou

pulando feito uma gazela maluca. Fui obrigado a fincar o pé dela no chão

para dar um peteleco no bicho. Daí, ela fez algo que me chocou. Sem

pensar duas vezes, pegou minha garrafa de isotônico - que ainda devia ter

um quarto de líquido - e, tomada de cólera, espatifou-o com toda força

contra a parede. Fiquei olhando para ela, atônito.

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— Muito obrigado — disse eu, com tom de sarcasmo —, agora

além de termos que achar a saída, precisaremos achar água também. E o

cheiro de isotônico vai atrair os insetos para cá. E esteja grata se for só isso

que o cheiro atrair.

Rafaela tapou o rosto, parecendo tentar se acalmar. A essa altura,

já começara a compreender que não ganhava nada comigo com seus

chiliques.

— Foi mal, Enzo, mas preciso que me tire daqui. Eu devia estar na

praia, pegando sol com as minhas amigas — parecia estar falando consigo

mesma. — Pelo amor de Deus! Não é possível que isso tudo não te

desespere... — ela apontou as paredes da rocha. — Passei a pior noite da

minha vida, espantando um inseto da perna a cada cinco minutos,

assustada com os barulhos. Estou nervosa, não estou em meu estado

normal.

— Ainda bem — falei me levantando, indignado com o seu

egoísmo. — Senão, te indicaria urgentemente alguma clínica psiquiátrica.

Já te disse que esse seu desespero não ajuda em nada. Precisamos pensar

com clareza. Vamos buscar a trilha novamente. Mas preciso que esteja

calma. Também dormi mal essa noite, mas nem por isso descontei em

você, muito menos desperdicei nossos suprimentos. Aquela garrafa podia

servir para abastecimento de líquido, sabia? O ser humano pode resistir

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vários dias sem alimento, mas essa possibilidade diminui muito com a

falta de água.

— Tudo bem — ela disse de novo —, não vai mais se repetir. O

que quer que eu faça agora?

— Junte suas coisas. Não deixe nada para trás que possa atrair

algum bicho pra cá. Se não encontrarmos o caminho, voltaremos.

Rafaela amarrou o cabelo na nuca e fez o que eu lhe disse.

Parecia-me contrariada por receber ordens minhas, porém, nada falou.

Também me deu a impressão de ter novamente acusações contra mim na

ruga que se formou entre as sobrancelhas, como se eu fosse o culpado

daquela situação. Ignorei-a, pois pelo visto seu mau humor era

contagioso.

Caminhamos novamente marcando o caminho. A densidade da

vegetação só nos permitia enxergar de dez a trinta metros de distância.

Diferente de Rafaela, andei praticamente cantando por cerca de duas

horas. Deparamos com um lagarto, alguns macacos-prego e uma dupla de

quatis. Rafaela se enrijecia a cada encontro inesperado com eles. Mas, dessa

vez - é claro, com algum esforço - repeti-a todas as vezes que se

aproximava de mim e não deixei que se pendurasse no meu braço. Em

certo momento, comecei a notar uma mudança no clima. Os galhos das

árvores começaram a dançar e sentimos um vento frio nos envolver. Dei-

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me conta de que iria chover e sugeri que retornássemos peto caminho.

Sabia que nossa saúde poderia ficar debilitada se ficássemos com as

roupas molhadas. Era uma das primeiras regras de sobrevivência na mata:

manter-se seco. Aproveitamos para fazer nossas necessidades por causa

do abrigo. Por sorte, Rafaela tinha na bolsa alguns lenços umedecidos, que

serviam para tirar maquiagem. Apesar da situação constrangedora, tive de

concordar: foram providenciais. Senti que ela ficou inchada de orgulho

por desempenhar um papel tão importante na nossa expedição.

No caminho de volta, parei para pegar uma fruta estranha caída

no chão. Eu não conhecia, mas vi alguns micos comendo pelo caminho.

Parecia uma castanha gigante. E eu ouvi dizer uma vez, em um programa

de televisão, que tudo que os animais comem também pode ser consumido

peto homem. Rafaela franziu o cenho e me perguntou:

— Pra que está pegando isso?

— E comida, não vê?

— Não vou comer essa porcaria! — afirmou ela, insolente como

de costume. Respirei fundo.

— Não deve ter um gosto tão ruim. Vi vários micos devorando isso

pelo caminho.

— E por acaso eu tenho cara de babuíno?

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Esforço sobre-humano.

— Conversaremos sobre isso quando a nossa comida acabar.

Provavelmente, em pouco tempo vamos degustar larvas ou raízes de

plantas. E na maior alegria. Agora, cale a boca e recolha algumas dessas

frutas também.

— Sim, chefe. — Ela bateu continência, com evidente sarcasmo.

Recolhemos umas cinco frutas e retornamos para o abrigo. Assim

que chegamos, vimos três quatis passeando dentro da caverna. Eram os

animais mais abundantes da região. Provavelmente, haviam sido atraídos

pelo cheiro de isotônico. Lancei um Olhar acusador para ela e entrei

sozinho no abrigo para espantá-los. Depois disso, isolei bem as comidas

que ainda tínhamos no fundo da minha bolsa. Pelo cheiro, percebi que a

chuva estava prestes a começar, então chamei Rafaela para o lado de fora

para cavarmos um buraco no chão.

— Precisamos cavá-lo na profundidade de um balde — avisei a

ela.

— Pra quê?

— Para armazenarmos água da chuva. Cavaremos e colocaremos

um saco dentro. Pegue aquele da minha bolsa.

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Rafaela me obedeceu sem reclamar, o que achei um milagre.

Verifiquei se o saco que trouxe estava furado, mas parecia que não. A

seguir, recolhemos materiais para fazer uma nova fogueira. Sugeri que

recolhêssemos o máximo de galhos secos possíveis, pois não sabíamos por

quanto tempo iria chover. Assim que deixei tudo preparado, voltei para a

caverna e comecei a montar a fogueira para acender mais à noite.

Dividimos o segundo sanduíche. Afinal, não podíamos nos arriscar a

deixá-lo estragar. Naquele momento, estava mais do que agradecido por

Doralice achar que eu sofria de bulimia. Bebemos o resto da água e

guardamos a garrafa para armazenar a água da chuva. Após um silêncio

tenso, Rafaela tombou a cabeça de lado e falou:

— Está com raiva de mim?

Joguei uma pedrinha no lado de fora.

— Às vezes, é difícil não ficar.

— Não sei como tem me aturado — confessou e me observou ao

mesmo tempo, para ver o efeito que suas palavras me produziam. — Você

é sempre assim, tão paciente com todos? Ou eu tenho algo especial?

Fiquei gelado. Eu sabia onde ela estava querendo chegar, queria

saber se a garota que eu amava era ela. Por isso, permaneci calado.

— Diga-me — ela insistiu —, há algum motivo para ser tão

generoso comigo? Qualquer outro já teria me largado na mata.

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— Qualquer outro como Mateus? — perguntei, para espezinhá-la.

Ignorando a alfinetada, Rafaela sorriu.

— Não estamos falando dele. — Ela não parecia abalada. —

Venha, sente aqui do meu lado. Vamos conversar mais um pouco, para

passar o tempo.

Persuasiva, pensei eu. Muito persuasiva.

— Estou te ouvindo perfeitamente daqui — defendi-me. Não

queria que ela arrancasse a verdade de mim, não com aquela cara

debochada. Eu estava doido para ajustar algumas contas com ela, pois às

vezes me atacava sem motivo, mas não lhe daria aquele gostinho. Rafaela

tinha uma forte tendência a apreciar bate-bocas. Eu não.

— Já jogou imagem e ação? — ela perguntou de repente.

Olhei para ela e pisquei.

— Já. Várias vezes — respondi ainda emburrado.

— Que tal brincarmos um pouco, para passar o tempo?

— Não sou muito bom nessa coisa de mímica — afirmei. Irritado.

— Então eu faço e você adivinha — ela sugeriu.

Expiei seu rosto, que parecia exibir um sorriso sincero. Derreteu-

me. É impressionante o que a garota mais linda do mundo pode fazer com

a gente.

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— Tudo bem — eu disse, me odiando por estar sempre cedendo.

— Vamos ver se você tem talento para o teatro.

Instantaneamente animada, Rafaela pôs-se de pé à minha frente.

Em seguida, jogou o cabelo de lado - enfeitiçando-me por alguns

segundos - e começou a fazer uma mímica. Fez diversos gestos e

movimentos, contando palavras ao meio, separando sílabas, mas eu não

tinha nenhuma habilidade naquele jogo. Às vezes ela parava e se acabava

de rir diante das minhas tentativas estúpidas. Uma das palavras foi "avião".

Dei o nome de todos os pássaros que vieram à minha cabeça, talvez

influenciado pelo ambiente, mas não acertei. Em determinado momento,

enquanto ela fazia ou outra mímica, falei a palavra "helicóptero". Rafaela

desabou no chão rindo e me disse que eu era um caso perdido.

— Helicóptero - repeti, com um olhar mais atento. — Não está

ouvindo?

Creio que ela também começou a ouvir o barulho da hélice, pois

danou a correr para fora e a pular cruzando os braços por cima da

cabeça.

— Aqui, aqui! — gritava ela, agoniada.

Saí também, mas ainda não o avistava.

— Precisamos correr para um lugar mais alto — falei.

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Rafaela olhou para os lados, apavorada. Em seguida saiu correndo

contornando a Pedra.

— Não é possível, não é possível! — dizia, tateando as paredes da

rocha. — Tem que ter um jeito de subirmos aqui.

Lembrei-me da fogueira e corri para nossa caverna. Talvez, se eles

vissem a fumaça, saberiam onde nos encontrávamos. No exato momento

que entrei, peto barulho concluí que o helicóptero estava passando bem

em cima de nós. Ouvi Rafaela gritando mais alto: "Estamos aqui, estamos

aqui!"' Comecei usar o arco freneticamente, tentando acender a fogueira.

Mas minhas mãos tremiam, por isso deixei o galho cair várias vezes. Ouvi

o barulho de novo, mas não consegui' Somente depois de uns oito

intermináveis minutos vi a fumaça começar a sair. Assim que acendi, vi

Rafaela aparecer na porta da gruta, com um ar derrotado. Ficamos nos

encarando, calados e deprimidos. Reparei que um de seus joelhos estava

sangrando. Provavelmente, em seu desespero, havia tentado escalar a

pedra. Levantei-me para ampará-la. Começou a chover. Fiz com que ela

entrasse e se sentasse junto comigo.

— Vou pegar um pouco de água da chuva para limpar seu

machucado — eu disse.

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— Não. — A voz de Rafaela foi mais um sussurro. Ela olhou para

fora, a chuva já estava ficando um pouco mais forte. — Eu estou mesmo

precisando de um banho. Estou me sentindo nojenta.

Tentei impedi-la.

— Não pode molhar suas roupas. Ficará resfriada na certa.

— E quem disse que vou tomar banho de roupa? Ficarei só com as

roupas de baixo.

Senti um calor intenso subindo pelo meu corpo, que deve ter

transparecido no rosto, pois ela emendou:

— Não fique tão animadinho... É claro que vou tomar banho

sozinha. Se precisar de você, eu grito. Mas se pegar você me espiando

sequer uma vez, arrancarei seus olhos e os comerei no jantar. Está me

entendendo?

Olhei para a chuva de novo, tentando bloquear meus

pensamentos, não exatamente produtivos.

— E como vai se enxugar depois disso? — perguntei, tentando

demonstrar que era isso que me intrigava, sem muito sucesso.

— Me enxugarei com a blusa e vestirei meu casaco. Depois a

secarei na fogueira.

Acenei com a cabeça positivamente.

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— Está certo — eu disse. — Não se preocupe, não vou espiá-la. E

depois de você, tomarei um banho também.

Rafaela pediu que eu me virasse de costas para que pudesse tirar a

roupa. Obrigou-me a encarar a parede até retornar. Imaginar Rafaela

seminua na chuva era uma tortura para mim. Tive que me conter dezenas

de vezes para não espiá-la. Mas eu realmente a respeitava e não poderia

ser tão canalha com ela. Em seguida, fui eu. Não foi o pior banho da

minha vida, mas com certeza foi o mais congelante. Aproveitei para beber

um pouco de água da chuva. Quando voltei, fiquei feliz ao ver que o saco

no chão já estava cheio de água e desejei que tivéssemos outro.

Rafaela encarava a parede quando entrei no abrigo. Também me

enxuguei com a blusa. Em seguida, vesti meu casaco e a calça por cima da

cueca molhada. Coloquei os óculos. Infelizmente, o zíper do casaco estava

quebrado, por isso teve de ficar aberto. Aproximei-me da lareira e me

sentei. Rafaela se virou para mim e nossos olhos se encontraram. O cabelo

todo úmido e solto pareceu lhe dar um ar mais ameno, mais suave.

Sorrimos um para o outro, como duas crianças travessas, envergonhadas

por terem um segredo. Dividimos minha barra de cereal e estendemos

nossas blusas perto do fogo para secá-las. A tarde virou noite. Apesar da

lareira, às vezes meus lábios estremeciam por causa do clima. Meu nariz

devia estar vermelho como o de um palhaço, pois Rafaela comentou:

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— Você está tremendo de frio. Por que não fica aqui mais certo de

mim? Também estou tremendo um pouco. E dois corpos juntos se

aquecem mais rápido, não é?

— Principalmente pelados — retruquei, brincando com ela, mas

torcendo para que Rafaela abraçasse a ideia. Ela somente riu e chegou

mais para o lado.

— É a primeira vez que é mais atrevido comigo. Se fosse outro,

aposto que já teria me cantado.

— Não sou como os outros — falei, e de repente percebi minhas

lentes ficando embaçadas.

— Mas acha que sou bonita?

— A mais bonita que já vi — deixei escapar.

— Eu sabia... — Rafaela jogou a cabeça para trás e sorriu. Só então

me dei conta de que tinha sido pego no flagra. Eu já havia dito que a

garota que eu amava era a mais bonita que já vira. — É por isso que

sempre espiava minha casa, não é? Por que é apaixonado por mim?

Não olhei para ela. Não sabia o que dizer como negar.

— Isso não faz diferença — foi o que consegui dizer. — Não sou o

tipo de garoto com quem você sai, nem pretendo ser.

Rafaela franziu o cenho e parou para pensar.

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— Como sabe de que tipo de garoto eu gosto? Não pode me julgar

somente por Mateus. Ele não foi o único garoto com quem saí.

— Sei disso — falei, lembrando-me dos tipinhos que a pegavam

em casa. — Mas tenho certeza de que não sou como eles. Tenho outras

qualidades, outras aspirações, outras atitudes.

— Como amar uma pessoa em silêncio? — ela me provocou, com

um pequeno sorriso.

Nunca mais se calava. Não largava o assunto.

— Não vamos mais falar sobre isso. Não tem sentido — eu lhe

disse.

Pegando-me de surpresa, Rafaela veio para perto de mim e

encostou no meu braço. Depois, retirou meus óculos e ergueu o meu

queixo delicadamente, olhando-me fixamente nos olhos. Era como se

estivesse me dando carta branca para beijá-la. Eu não podia acreditar no

que estava vendo. Rafaela estava ali, se oferecendo para mim. Tudo que eu

sempre desejara na vida estava acontecendo. Sua mão estava pousada no

meu rosto, quente, sedosa e macia. Delicadamente, seus dedos

escorregaram pelo meu pescoço, passando pelo peito e parando na

barriga. Fiquei tão zonzo com o seu toque que bastaria um sopro para eu

cair. Todavia, um fiapo de amor-próprio falou mais alto dentro de mim.

Eu não queria somente viver uma aventura com ela. Já sofria por Rafaela o

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suficiente. Se ficássemos juntos agora, como seria quando fôssemos

resgatados? Como seria quando eu a visse de novo nos braços de Mateus?

Não queria que ficasse comigo somente uma vez por caridade, gratidão,

ou simplesmente para não morrer de tédio na mata. Meditei sobre o nosso

relacionamento, ou melhor, sobre o nosso não relacionamento, como um

jogo de xadrez, no qual nunca chegaríamos a um xeque-mate. Por isso,

com uma força que não sabia de onde vinha, resisti. De repente, ela disse:

— Você parece o Harry Potter. Os cabelos negros e lisos, o nariz

anguloso, esses lábios finos. — Ela passou um dos dedos sobre eles. — Só

faltava ter os olhos azuis...

— Não faça isso — pedi.

— Fazer o quê? — ela abriu um sorriso inocente.

Não respondi. Somente pus os óculos de novo.

— Você não quer me beijar? — ela perguntou. — Não era isso que

queria esse tempo todo?

Com um profundo suspiro, reforcei minha determinação.

— Não. Não como nós estamos agora — falei.

Rafaela recuou um pouco o rosto, parecendo me examinar.

— E como é que estamos agora? — ela me perguntou.

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— Confusos. Perdidos. Você não sabe o que está fazendo. É sempre

tão impulsiva... — À minha critica, seus olhos se estreitaram

minimamente.

— Eu sou assim mesmo — ela confirmou. — impulsiva. Às vezes

corro riscos que outras pessoas não correriam. Mas, pelo menos, nunca

vou deixar uma oportunidade escapar. Fique tranquilo. Esse momento não

vai voltar a acontecer. — Ela saiu de perto de mim. — Eu devo mesmo

estar muito confusa para querer beijar um CDF como você! Devo ter

destrambelhado de vez! Estou ficando maluca!

A seguir, cruzou os braços e se recusou a falar comigo, me olhando

com a mesma expressão petulante de sempre. Ergui os olhos para ela, com

meu ego irremediavelmente machucado. Reconsiderei seriamente meus

sentimentos por Rafaela. Eu estava farto daquela situação. Das suas súbitas

e constantes variações de humor. Sempre tão irritável, tão exigente. Não

quero dizer que eu também não tivesse momentos alegres, que não fosse

vibrante, mas tinha grandes inclinações a mergulhar num estado de mau

humor. Estou convencido de que ela estaria mais feliz se estivesse

maquiada. Sempre com aquela expressão que, começo a compreender, é

descontentamento. Reclama de tudo.

E fato. É a pessoa mais tremendamente propensa a tagarelar que já

conheci. Até mais do que Alana. Depois de uma vida inteira de expectativa

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de conhecê-la melhor, tive vontade de amordaçá-la dezenas de vezes. Eu

só queria escafeder-me na escuridão. Tudo ali, incluindo ela mesma,

parecia-me insuportável. Nunca imaginei que ficaria fatigado dela, mas,

naquele momento, para minha surpresar eu fiquei.

Rafaela

Segunda-feira.

Ainda não acredito que estou presa nessa selva idiota. Isso tudo só

pode ser um pesadelo, ou um castigo de Deus. Como se não bastasse, a

minha única real companhia resolveu ficar muda, praticamente não se

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comunica comigo. Eita garoto mandão! Eu juro que tentei entendê-lo, mas

Enzo é a criatura mais complicada que já conheci. Sempre com aquele

jeito tão centrado e dono da situação.

Adora dar ordens.

Como pode não estar endoidecendo com tudo isso? Estamos

perdidos! Às vezes, sua falta de desespero parece alarmante, me irrita.

Confesso que no começo cheguei a ser meio cruel com ele por causa disso.

Fui uma verdadeira peste. Gritava horrivelmente, amaldiçoando a sua

vida, amaldiçoando sua tentativa estúpida de me salvar me levando para

dentro da mata... Mas não há nada mais difícil do que colocá-lo na

defensiva. Dificilmente se irrita. Possui um autocontrole monumental.

Disparei-lhe perguntas na cabeça diversas vezes para irritá-lo, mas ele

não se cansava de responder. Dava-me até a impressão de que até gostava

de fazer isso. Como se só o fato de comunicar-se comigo já o encantasse o

suficiente. Penso que eu fazia isso porque gostaria que ele fizesse alguma

coisa absurda, algo que chamasse a atenção para nós. Como escalar uma

rocha, provocar um estouro, derrubar uma árvore...

Ousadia. É disso de que Enzo precisa.

Por mim, passearíamos berrando por cerca de duas horas até que

alguém nos achasse. Que se danem os predadores! Sua praticidade só

serviu para nos manter salvos até agora, mas o que quero mesmo é sair

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logo desse lugar. Nunca mais vou explorar a natureza. Somente

frequentarei os passeios urbanos. Se tivesse sido assaltada na Praça XV

nada disso estaria acontecendo. Prefiro arriscar minha vida a ficar presa

nesse abrigo para sempre. Minhas costas doem. Meu cabelo está um ninho

de nós. E - tenho certeza – estou começando a variar das ideias.

Ontem - que ninguém nunca descubra isso - tentei beijar o Enzo.

Logo eu, que sempre julguei minhas amigas quando ficavam com esses

caras sem nexo. Mas, por um segundo, eu realmente queria fazer isso.

Devo ter perdido um parafuso na mata. Se fossem vinte e quatro horas

atrás, só a ideia me deixaria nauseada. Cheguei perto dele e mantive meus

olhos no mesmo nível que os seus, mas não esperava me emocionar com o

modo gentil com que Enzo me olhou. O garoto parecia estar

contemplando um milagre. Fiz isso - acredito eu – pelo prazer de me

sentir dona da situação, de ter poder sobre o coração de outra pessoa.

Senti vontade de inebriá-lo, de lhe dar um presente, de me exibir... Ele era

apaixonado por mim uma vida inteira, ora bolas! Eu me senti...

Envaidecida quando soube de tudo isso! Quer dizer, todo mundo deseja

ser especial para alguém. E nunca ninguém sentiu nada parecido por

mim. Pelo menos ninguém que me conhecesse de verdade. Contudo, por

menos que Enzo tenha falado, percebo que seus sentimentos por mim são

profundos. Totalmente diferentes dos de Mateus, que já mostrou que não

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tem intenções exatamente inocentes comigo. Tenho certeza de que, se eu

tivesse cedido, Mateus já teria pulado para a próxima vítima, pois ele só

pensa em fazer bonito para os amigos. Mas não posso julgá-lo por isso,

pois estou com ele, em parte, pela mesma motivação: status. E não se

engane, é duro ter que admitir isso para mim mesma, mas a verdade é que

Mateus é um dos garotos mais cobiçados daquela escola, e estar com ele é

quase como... Como levar um troféu para casa. Minhas amigas estão

morrendo de inveja, tenho certeza disso. Eu sempre dei mais sorte do que

elas com os meninos, mas é claro que me comporto de maneira humilde

quando estou com as garotas, ignorando os olhares masculinos, dando a

transparecer que não sei o quanto sou sortuda e tenho boa aparência, e

muito menos como sei aproveitar-me dessa vantagem. E assim as derrubo

ainda mais: sendo absolutamente simpática.

Mas agora, eu só queria... Saber como era beijar alguém que me

amasse de verdade. Sentir uma sensação diferente.

Isso significa que tenha perdido o controle sobre as minhas

emoções? Claro que não. Significa que agi de forma irracional,

simplesmente por que meus impulsos e vaidade tinham conseguido abrir

caminho para as ações? Talvez. De qualquer modo, como se já não fosse

suficientemente humilhante me oferecer para Enzo, o panaca me recusou.

Fiquei lívida, me recusando a acreditar. Não só por ele ser um CDF

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insignificante, que jamais deve ter beijado uma bela menina, mas por

saber que ele sempre foi apaixonado por mim! Que tipo de idiota

dispensaria uma chance dessas? Será que ele imagina, por um sequer

esperançoso minuto, que haverá outra chance como aquela? Será que ele

não se enxerga?

O fato é, que desde esse episódio, Enzo tem me parecido cansado,

exaurido de mim. Não me dirigiu mais uma palavra sequer. E, pior,

começo realmente a sentir falta da sua voz. Será que estou pirando de vez?

Sinto falta do seu sorriso, sinto falta das suas tiradas sarcásticas, daquele

ar protetor... Porém, preciso confessar: depois que Enzo recusou aquele

beijo, fiquei bastante irritada com ele. Por isso, acabei disparando ofensas

na sua cara sem premeditar. Estou arrependida, de verdade. Ainda mais

depois daquele olhar que ele me lançou profundamente magoado.

Internamente, eu não queria ter provocado aquilo. Permanecemos

calados. A chuva que caía do lado de fora do abrigo parecia interminável,

monótona. Pensei que Enzo fosse deixar aquilo pra lá, esquecer

rapidamente o incidente, mas ele passou o resto da noite estudando

atentamente a fogueira. Nem sequer ergueu os olhos das labaredas

douradas que crepitaram quando dei boa noite, tentado amenizar o clima

entre nós. Pare perdido no fogo.

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Dei-lhe boa noite, tentado amenizar o clima entre nós. Parecia

perdido no fogo.

Percebo que, ao descobrir a Rafaela que existia dentro de mim, a

minha alma, as minhas emoções, Enzo ficou completamente

decepcionado. O que só prova - segundo a minha teoria - que ele nunca

me amou de verdade. Nunca amou a verdadeira Rafaela. Ele é tão fútil e

superficial quanto eu. Pois era ao meu exterior, ao meu aspecto e à

fantasia que criou em sua mente que Enzo acreditava amar. Afinal, que

reação ele esperava de mim? Estou confusa, nervosa e perdida. E, atém de

estar absurdamente com fome, também começo a desconfiar que esteja

entrando na TPM, período em que meu humor oscila freneticamente. Mas,

como abordar um assunto desses com um menino? A despeito das

circunstâncias, somos praticamente desconhecidos. Pelo menos, eu me

sentia assim até algumas horas atrás. Talvez ficar ilhado com alguém faça

com que nos sintamos muito próximos a essa pessoas mesmo que

desejássemos estar em qualquer outro lugar. Até mesmo em outro país.

Até mesmo na lua!

O problema é que sinto que algo está se transformando dentro de

mim. Foram somente algumas horas de convivência, mas foram intensas, e

tenho medo dos sentimentos despertados por Enzo. Sentimentos

indesejáveis. Principalmente a culpa. Quando estou perto dele, não gosto

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de mim. Ele faz com que eu me sinta culpada quando infrinjo alguma

regra, quando extrapolo os limites. Mas eu sempre agi assim, minhas

amigas sempre agiram assim. Mas agora, com ele, é como se tudo que eu

fizesse fosse completamente idiota. Como seu eu fosse vazia e inútil.

Infantil. A única vez em que Enzo me elogiou desde que chegamos foi

quando providenciei lenços umedecidos para as nossas necessidades. Na

verdade, nem foi bem um elogio:

"Que providencial!" ele comentou.

"Obrigada" falei, sentindo-me orgulhosa e deprimida ao mesmo

tempo.

Eu estou acostumada a ser sempre elogiada, mas a verdade é que,

pelo menos aqui, Enzo é muito melhor do que eu em quase tudo. Sempre

tão educado, tão prestativo, tão cheio de qualidades... E em uma de nossas

poucas conversas, completamente comovido, Enzo me falou sobre sua

mãe. E a sinceridade na sua voz tocou-me o ponto mais vulnerável: o

amor à família. Começo a perceber que sempre quis admirar esse tipo de

cara. Talvez já admirasse secretamente, embora reconheça que não são

populares. Mas é como se Enzo cutucasse uma parte boa dentro de mim.

Tenho plena consciência disso, muito embora acredite que jamais darei o

braço a torcer. Minha vida era tão simples antes de conhecê-lo... Eu a

quero de volta. Quero voltar a me sentir bem comigo mesma. Quero sair

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dessa selva. E quero um repelente, pelo amor de Deus! Ainda faço um

pedido secreto: se houver realmente um Criador neste mundo, por favor,

transforme Enzo em alguém atraente!

Ai Deus! Se minhas amigas ouvissem isso...

Coisa ainda mais estranha: Enzo me fascina. Nunca havia reparado

nele até chegarmos aqui. Ele era como parte do mobiliário daquela escola,

totalmente ignorável, e no condomínio, praticamente invisível!

Se bem que, certa vez, eu e minhas amigas fizemos apostas sobre

os possíveis garotos virgens da nossa classe e Enzo encabeçava o topo da

lista. Foi à única vez em que tocamos no nome dele. E também, quando

éramos mais novas, apesar de nos acharmos adoráveis, éramos um pouco

cruéis com os meninos desse tipo, que sentam sempre na primeira fileira

da classe e ficam todos satisfeitos quando a professora lhes faz alguma

pergunta; só para responder corretamente e esnobar o resto da classe com

o seu elevado intelecto. Costumávamos mandar bilhetes secretos de amor

para esses sujeitos, assinando como uma anônima apaixonada, marcando

encontro no recreio do colégio, só para morrer de dar risada quando eles

iam e não aparecia ninguém. Agora, ao lembrar-me que fiz isso com Enzo

uma vez, bateu uma pontada de culpa.

A verdade é que nunca pensei nesse tipo de cara – que nunca usa

roupas nem acessórios de grife - objetivamente como outra pessoa. E não

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era só por fora que Enzo era diferente dos outros meninos. Ele nunca

aparecia nas festas, não fazia parte do time de futebol, nunca se metia em

nenhuma briga, não zoava ninguém... Eu odiava aquele seu jeito certinho

e pensamentos organizados. Porém, agora, confesso que passei a sentir um

profundo respeito por ele. E não se trata somente de ele ter muito mais

conhecimento sobre tudo do que eu - tanto conhecimento que me faz

balançar a cabeça e me perguntar de que planeta ele veio -, mas é que

Enzo sempre diz o que pensa e isso faz com que eu questione a minha

própria conduta. Percebo agora que nunca tive para com a sua espécie, os

nerds, compreensão suficiente. E, verdade seja dita: se não fosse Enzo e

seus neurônios de CDF, há essa hora eu já estaria a caminho da luz. Além

do que, qualquer outro garoto podia ter sido mais abusado comigo. Mas

Enzo, não. Por isso, quando ele me trata com tanto respeito, não consigo

evitar encher-me de culpa ao lembrar-me de tudo que dizíamos sobre ele.

Mas também tenho uma crítica a fazer: Enzo nunca viveu a vida como

merece ser vivida. Acredito que ele nunca agiu por impulso. Afinal,

adolescência significar arriscar, fazer coisas ilícitas, cometer alguns

erros... Inacreditavelmente, ele nem tentou me espiar quando tomei banho

ao relento, sozinha. Enzo é um perfeito cavalheiro, daquele tipo que dá o

braço para atravessar as velhinhas na rua.

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O engraçado é que sempre desprezei sujeitos como ele, que não

têm grandes atributos visuais. Mede aproximadamente um metro e

setenta e cinco - o quer para mim, significa girafa, visto a minha

insignificante estatura. Todavia, não é desengonçado como a maioria dos

adolescentes. Anda sempre tão seguro de si... Tem olhos aguçados,

expressivos e vigilantes. Parece que tudo assimila. Possui mãos grandes e

panturrilhas avantajadas. Mas se veste com muita simplicidade,

simplicidade até demais para o meu gosto. Sempre com aquele ar

inteligente, aquela expressão madura, como se fosse muito mais velho do

que eu. O tipo de garoto que esperamos ver num evento de Campus

Party².

Mas enrubesce, enrubesce por tudo. Principalmente quando chega

perto de mim. Quando toquei o seu braço pela primeira vez, acho que foi

o prazer que deixou suas bochechas rosadas. E quando descobri que ele

era apaixonado por mim, pensei que fosse incendiar tamanha a

vermelhidão de seu rosto.

_________________________________________________ ²Campus Party - é o principal acontecimento tecnológico realizado em diversos países e também no Brasil desde 2008.

Fui muito astuta. Já estava desconfiada de que ele era apaixonado

por mim, só o encheu de perguntas e, pimba, apanhei-o com a boca na

botija. Creio que, antes de cair na minha emboscada, ele apreciou minha

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genuína curiosidade petos seus interesses, mas eu estava igualmente

determinada em explorar áreas mais pessoais. Confesso que ele ficou uma

gracinha quando pareceu tão tímido e embaraçado por eu ter descoberto

seus sentimentos. Seu olhar se tornou estático, suas bochechas ficaram

avermelhadas, a respiração levemente ofegante...

Mas por que diabos eu estou reparando nele?, Eu me perguntei,

decidindo que era melhor observar a caverna. Já imaginou o que minhas

amigas diriam se desconfiassem disso? Sinto-me tão atribulada com meus

pensamentos... Será que ingeri algum cogumelo alucinógeno por

acidente? Bem que desconfiei daquelas frutas malucas que recolhemos

pelo caminho.

Mas já estou divagando.

Há essa hora, eu deveria estar no curso de inglês. Deveria estar

seguindo com a minha vida. Será que o mundo lá fora continua? Será que

já estão espalhando cartazes por aí procurando por mim? Bem, pensei eu,

me consolando, depois de ser vetada no Big Brother por ser menor de

idade, finalmente serei famosa por alguma coisa. Fico imaginando se já há

faixas diante da nossa escola, velas acesas nos enviando boa energia, flores

jogadas perto do muro do condomínio...

Deus! Será que sairei na capa da revista Veja desta semana?

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Agora senti um real arrepio de medo. Que foto, pelo amor de Deus,

minha mãe deverá escolher? Ela sempre foi péssima para essas coisas.

Espero que não escolha aquela que tirou de surpresa no último Natal. Eu

estava ridícula, com o rímel todo borrado e a cara abatida de sono. Mas

minha mãe adorou, inclusive colocou-a na sala, em um porta-retrato. Já

posso até ver minhas amigas maldosas, se empurrando numa briga louca

para olhar a fotografia e me criticar. Não posso pensar sobre isso, preciso

ser otimista: minha mãe escolherá uma foto do Facebook.

Talvez, quando voltarmos, serei convidada para desfiles de moda.

Também darei entrevistas, posarei para capas de revistas... E, quem sabe,

não serei convidada para atuar em Malhação? Sairei do anonimato para a

fama, como tantas ex-BBBs! Afinal, vamos combinar a maioria não tinha

talento nenhum. Foi à beleza que deu um empurrãozinho. E isso - beleza -

, com toda licença, eu tenho de sobra.

Preciso mesmo pensar nessas coisas, pensava eu, remexendo na

minha mochila em busca do último quadradinho de chocolate. Preciso

alimentar minha esperança. Na verdade, sinto-me grata por ainda estar

viva. Não quero morrer. Há tantas coisas que ainda desejo fazer... Se

conseguir sair daqui, nunca mais serei a mesma pessoa fútil de antes.

Amarei a vida mais apaixonadamente. Farei com que cada segundo seja

digno de ser vivido. Também vou passar o fazer caridade! Zelar pelos

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pobres! Doar todas as minhas roupas de marco para... Ah! Que maravilha!

Vejo só onde botei meu batom da MAC. Já estava procurando por ele há

um tempão. É como eu digo: a vida ainda me reserva gratas surpresas!

Esse batom custou-me os olhos da cara. Só pode ser um sinal do Divino.

Um sinal de que tudo dará certo no fim. Serei tão famosa quando a marca

MAC, tão famosa quanto a Grazi Massafera! Com certeza, vou amar o

estrelato. Quem sabe até posso escrever um livro? Se bem que, na verdade,

pensei comigo mesma, isso seria muito mais a cara do Enzo.

Aliás, ele ainda não voltou, percebi, olhando para os lados.

Confesso que quando acordei e não o vi, fiquei assustada. Não fosse pela

mochila que deixou para trás, eu pensaria que ele tinha me abandonado

depois de todas as coisas estúpidas que eu disse. Mas, pelo pouco que

conheço dele, Enzo nunca faria isso. Pelas novas marcas nas árvores, vejo

que ele foi à outra direção. Deve ter acordado cedo para tentar buscar a

saída sozinho. Porém, não gosto de ficar aqui, esperando sozinha. Tenho

medo de que um animal apareça. E, impossível compreender, tenho ainda

mais medo de que Enzo volte ferido. Ainda mais depois de tudo que fez

por mim.

É estranho, mas eu estou tão ansiosa para vê-lo de novo... Claro

que isso não significa que alguém precise saber, mas Enzo consegue me

fazer depender dele, desejar a sua presença. Como meus sentimentos

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saíram de controle dessa maneira, meu Deus do céu? É como se Enzo fosse

à única pessoa que eu conhecesse neste mundo. Sei que parece esquisito,

mas é assim que me sinto. Sinto-me tão longe da normalidade, da minha

vida e de tudo o mais. Não que eu não queira voltar, é claro que quero.

Mas, será que tudo voltará a ser como antes?

Estava pensando em tudo isso quando, de repente, minha pulsação

disparou. Levantei em silêncio, detectando o barulho. Era o helicóptero de

novo. Saí em disparada para a mata. Não sabia o que devia fazer. Vi-o

passando bem em cima de nós, mas as copas daquelas árvores me

camuflavam. Será que Enzo conseguira buscar ajuda? Meu coração

transbordou de esperança. Fiquei olhando para cima, depois olhei para a

maldita pedra. Por que tinha de ser tão íngreme? Se eu conseguisse subir,

facilmente seria avistada por eles. O zumbido das hélices foi parecendo

esmaecer, indo para longe. Fiquei parada por uns dois minutos, atenta, na

esperança de ele voltar. Em seguida, desalentada, caí de joelhos no chão e

levei as mãos ao rosto. Pela primeira vez fechei os olhos e lembrei-me da

minha mãe, o que só serviu para aumentar as saudades de casa. Éramos só

nós duas, só tínhamos uma à outra. Como ela deve estar desesperada,

comecei a pensar. Tinha hipertensão. Será que passava bem? Será que

sentia que eu ainda estava viva? Dizem que as mães têm esse tipo de

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premonição. Eu não poderia fazer isso com ela, não poderia abandoná-la

sozinha.

Não como meu pai.

Naquele momento, decidi que iria sobreviver. Custasse o que

custasse. A partir de então, colaboraria em tudo com Enzo. Eu sabia que só

ele poderia nos tirar dali. Deixaria de fazer da sua vida um inferno.

Queria tanto que ele estivesse ali comigo...

— Volte logo — falei em voz alta, embora ninguém pudesse me

ouvir.

— Já está falando sozinha? — perguntou ele por trás de mim. —

Mau sinal.

Virei-me e olhei para ele. Enzo estava corado, provavelmente se

cansara na caminhada. Segurava um galho grande, como sempre, e estava

muito descabelado. Seu rosto tinha novos arranhões, um bem perto do

olho esquerdo. Pela primeira vez, não sei por quer reparei como seus cílios

eram longos. Nossa garrafa de água estava no bolso esquerdo da sua calça.

Enzo me encarava muito sério, com a mesma expressão de ontem. Senti

uma nova onda de culpa.

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— Que bom que voltou. Estava preocupada com você — eu disse,

e percebi que era a pura verdade. Assim como estava estupidamente

decepcionada por ver que ele ainda estava magoado comigo.

— Tentei ir por um caminho diferente — ele desviou os olhos de

mim e jogou o galho no chão. — Não achei a saída, mas descobri uma

queda-d'água perto daqui.

— Jura? — Me levantei, desejando parecer animada. — E dá para

mergulhar?

— Não. É muito rasinha. Mas enchia garrafa de água. Pelo menos

não morreremos de sede.

Dito isso, ele encaminhou-se para dentro do abrigo.

— Enzo — fui atrás dele. — Queria falar com você.

— Pode falar. — Sem olhar para mim, Enzo se abaixou e guardou

a garrafa de água na mochila. Fiquei incomodada com sua falta de

atenção, mas prossegui:

— Sei que tenho sido uma imbecil desde que chegamos aqui, e

você não merece isso. Queria saber se você me perdoa.

Enzo se conteve, em seguida olhou para mim como se eu fosse uma

alienígena.

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— Por acaso ingeriu alguma folha desconhecida? — ele me

perguntou.

A esse comentário, senti um resquício de raiva borbulhando dentro

de mim, mas mantive-me pacífica e somente ri.

— Você está me pedindo desculpa? — ele insistiu, voltando os

olhos para a mochila.

— Sim, estou.

— E exatamente pelo quê? — Ele ficou de pé e se virou para mim.

Em seguida, cruzou os braços e exibiu um sorriso satisfeito.

— Por tudo que eu disse... — tentei resumir, afinal, eu não

esperava por aquela pergunta.

Ele ergueu uma sobrancelha. Eu suspirei.

— Tudo bem. Por ter feito da sua vida um inferno e por ter te

chamado de CDF.

Enzo deu um sorriso sarcástico.

— E acha que foi isso que me ofendeu? Ser chamado de CDF? —

Ele balançou a cabeça, evidentemente reprovando meu raciocínio. — Pois

fique sabendo que isso, pra mim, foi um elogio. Sujeitos descerebrados

como o seu amiguinho Mateus, no futuro, trabalharão para nós, os CDFs

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da turma. O que eu não suporto é essa sua atitude egoísta. Você só pensa

em si mesma, não tem respeito pelos sentimentos dos outros. Mas, sabe,

você acabou me fazendo um favor, pois me arrancou da famosa terra da

fantasia. Sei que você julga os outros pela aparência, mas percebi que

cometi o mesmo erro, pois julguei você pela "capa". Pensei que você fosse

doce, inteligente e delicada. Mas a verdadeira Rafaela é o antônimo disso

tudo.

Fiquei parada por alguns instantes, magoada, olhando para ele.

— Está me chamando de burra? — me enfureci.

— Não espero que sejamos amigos — continuou ele, ignorando a

minha pergunta —, só espero que você me respeite. Quanto eu, torço

para que sejamos resgatados o mais rápido possível. Não aguento mais

nem um minuto perdido nessa selva com você.

Tão logo senti minhas lágrimas brotando de novo, mordi os lábios,

fechei as mãos com bastante força e disse a mim mesma que não iria

chorar. Era impossível me dar bem com aquele imbecil. Cruzei os braços e

experimentei mostrar-me mal-humorada. Em geral, Enzo sempre me

adulava quando eu fazia isso. Mas percebi que naquele dia não iria rolar.

Ele havia criado uma espécie de barreira entre nós. Eu poderia gritar

insultos pelo resto do dia que ele não iria se importar. Agora, eu era como

a sua mochila, algo que Enzo precisaria carregar, pois seu espírito de bom

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moço não permitiria que ele fizesse o contrário. Mas eu era como um

objeto, como algo insignificante, exatamente como eu o via antes de tudo.

E de repente, senti-me triste, pois percebi que não queria ser só isso para

Enzo.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Eu pretendia recuperar o tempo perdido, desfazer a má impressão

que Enzo tinha sobre mim e ajudá-lo no que fosse possível para o nosso

retorno. Passamos o dia a fazer caminhadas em várias direções, mas ele

permanecia mudo, só que agora eu respeitava o seu silêncio. Nossa

comida estava se esgotando e isso sempre acabava com o meu humor, mas

fiz de tudo para controlar os meus faniquitos. Devoramos quilos e quilos

de jaca e eu já estava nauseada só de olhar para a fruta. Eu detestava jaca,

mas Enzo insistiu que eu comesse. Cheguei a argumentar que eu só

precisava comer um pouquinho, afinal, somente cem gramas da fruta

continham SESSENTA E UMA calorias. Mas Enzo me fulminou com os

olhos. Eu estava com fome. Ele venceu.

No final da tarde seguinte, ele resolveu sair para buscar um pouco

de água e eu pedi para ir com ele, que somente deu de ombros e saiu

andando na minha frente.

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A cascata era realmente muito rasar por isso, ao chegarmos lá,

sentei em uma pedra próxima e enfiei os pés dentro da água enquanto

Enzo enchia a garrafinha. Ele estava dentro do pequeno lago e a água

batia em seus joelhos. Eu estava farta daquele clima tenso entre nós, por

isso arrisquei.

— Por quanto tempo vai ficar assim comigo?

Enzo me espiou rapidamente.

— Assim como? — ele tampava a garrafinha.

Pulei na água ao seu lado e olhei-o de cabeça para baixo.

— Assim — disse eu —, me ignorando.

— Não estou te ignorando, só não quero falar com você —

respondeu ele, lacônico.

Eu ri.

— Que frase inteligente! — comentei, ainda sorrindo para ele.

Enzo quase riu enquanto enfiava a garrafinha no bolso.

— Já está ficando tarde — ele disse —, é melhor voltarmos logo

para o abrigo.

— Não vou voltar até você me dar um sorriso — cruzei os braços.

Enzo suspirou.

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— Acha que isso tudo é uma brincadeira? — perguntou ele,

pondo as mãos na cintura. — Estamos perdidos e nossa comida está quase

acabando.

— Só um sorriso... — Aproximei o indicador e o polegar. — Um

sorrisinho pequeno...

Enzo continuou me encarando com a amabilidade de um galo de

rinha.

— Ah, não vai rir? — Abaixei-me com as mãos em concha. —

Mas também não vai me desprezar. Prefiro que fique bravo comigo. —

Comecei a jogar água na roupa dele.

— Que isso? Está maluca, garota? Como eu vou me secar? — Ele

tentou segurar o meu braço. — Ah, você está rindo? Pois não vou ser o

único a ficar gripado por aqui.

Enzo me deu uma banda e afundou-me no fundo do lago. A água

estava tão gelada que pareciam mil agulhas penetrando na minha pele.

Quando emergi, meu cabelo tapava o meu rosto, mas vi que Enzo já estava

sorrindo, por isso não reclamei. Segurei-o pelas pernas e derrubei-o na

água também. Ficamos lutando para ver quem afogava um ao outro.

Somente quando vi nossa garrafinha seguindo no curso do rio, comecei a

gritar:

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— Nossa água! Nossa água!

A garrafa havia escapado da calça de Enzo e seguia para uma

queda próxima a nós. Se não chegássemos a tempo, perderíamos nosso

último depósito de líquido. Enzo saiu correndo na minha frente, mas

escorregou e caiu pelo caminho. Ultrapassei-o, andando com dificuldade

por causa da água pelos joelhos.

Desesperada, quando a garrafa estava a uns dois metros da queda,

lancei-me para frente e a agarrei, mas bati com o queixo em uma pedra

submersa.

— Ai... - gritei de dor ao sentir minha língua latejar.

Em um segundo, Enzo materializou-se atrás de mim.

— Você se machucou — ele segurou o meu queixo com um ar

apavorado. — Vi que você bateu em alguma coisa.

— Acho que mordi a língua — avisei, espantada com toda a sua

preocupação.

— Não parece que está sangrando — ele observou. O rosto dele

estava tão próximo, que meu rosto queimou de repente.

— Já, já vai passar... — disse eu. Em seguida me desvencilhei da

mão dele, incomodada com os sentimentos que me dominaram.

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Enzo me puxou para fora da água e sentamos lado a lado em uma

pedra. Ele deve ter percebido que eu estava tremendo, pois, como se

sempre tivesse sido assim, passou o braço esquerdo em torno do meu

pescoço.

— Pelo menos eu salvei a nossa garrafa de água — falei, sem

graça com a nossa proximidade, mas feliz por estarmos às boas de novo.

Enzo riu com sarcasmo em seguida passou a mão direta em seu

próprio cabelo, ajeitando-o para trás.

— Já temos água suficiente nas nossas roupas hoje seria só torcer

e beber.

Mordi os lábios, receosa.

— Me desculpe por isso, Enzo. É que você não falava comigo —

eu abri os dedos. — E essa situação toda já é tão angustiante... Sei que fui

uma peste, mas preciso de você... — adulei-o.

Enzo retirou o braço de mim. Parecia magoado de repente.

— Já disse que não vou te abandonar, não precisa temer. Não vou

fazer isso.

Engoli um nó que se apertou na minha garganta e me virei para

ele.

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— Não, não é só por isso, Enzo. Não é só porque pode me ajudar

que eu quero que você fale comigo — procurei deixar claro. — Precisa

acreditar em mim. Esses dias que passei com você, me fez perceber o

quanto fui idiota. Nunca lhe dei atenção. E você é tão inteligente, tão

sensato, tão gentil... Nós somos vizinhos e colegas de classe! Já deveríamos

ser amigos há muito tempo.

Enzo me olhou por um segundo, em silêncio.

— Bem — ele riu, depois jogou uma pedrinha na água —, pelo

visto nosso relacionamento evoluiu muito rápido, pois agora não somos

mais somente vizinhos, nós moramos juntos. Então, acho melhor

começarmos a nos entender.

— É — verdade. — Eu ri, mas em seguida franzi o cenho. —

Enzo?

— Que foi?

— O que você acha de mim?

Surpreso pela pergunta, Enzo uniu as sobrancelhas. Mas eu queria

mesmo saber. Acho que nunca tinha ouvido uma resposta sincera para

essa pergunta. Minha mãe me achava o máximo, minhas amigas me

achavam o máximo e os meninos me achavam gostosa. E se Enzo falasse o

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que realmente pensava sobre mim, talvez eu me sentisse mais à vontade

para dizer como me surpreendi o conhecendo melhor.

— Quer saber o que eu acho sobre você?

Assenti com a cabeça. Ele ficou mudo por alguns instantes. Dava

para ver que ele estava processando como falar.

— Por favor, seja sincero — pedi.

Enzo suspirou, tomando coragem.

— Bem — começou ele, olhando para frente —, acho que você se

importa muito com a opinião dos outros. E fica muito preocupada em ter a

aprovação alheia. Mas, talvez, seja porque seu pai a abandonou.

Aquilo doeu. Mas eu concordei com a cabeça, incentivando-o a

continuar.

— Também acho que você é meio egoísta — ele espiou-me com

os olhos — e bastante mimada.

Resignada, concordei novamente.

— Também não gosto muito das suas amigas.

Eu concordei mais uma vez.

— Nem dos seus amigos.

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Já entendi, pensei, sentindo-me deprimida. Pra que eu fui

perguntar...

— Mas sabe mesmo o que eu acho? — ele disse de repente.

— O quê? — perguntei, pensando se poderia ficar pior.

— Acho que debaixo dessa fachada fútil, existe uma pessoa

realmente especial. É impossível que alguém vazio pudesse emanar tanto

brilho. Se você juntasse o que tem por dentro, com o que já tem por fora, a

verdadeira Rafaela seria simplesmente imbatível.

Obviamente, enrubescida mesma hora, e minha boca ficou aberta

por três segundos. E não, meninas, eu não pulei nele — Fico feliz que veja

algo bom dentro de mim — eu disse, Olhando para as mãos — e feliz que

não esteja mais irritado comigo.

Enzo lançou-me um sorriso triste.

— Por mais que eu me esforce, não consigo odiar você por muito

tempo.

Ao ouvir isso, olhei para as flores ao nosso lado, com um misto de

alegria e tristeza. Alegria por ter ouvido o que ouvi, e tristeza por perceber

o quanto agora eu me importava com o que Enzo pensava de mim.

Seguiu-se um longo silêncio entre nós, que ele quebrou.

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— E você? — perguntou-me repentinamente, olhando bem nos

meus olhos. — O que acha de mim?

Senti meu estômago embrulhar, pois percebi que não estava

preparada para falar a verdade.

— Acho que você é inteligente — respondi concisa.

— Tem certeza? — ele perguntou. — É isso que você e seus

amigos sempre acharam de mim?

— Que amigos? — indaguei, tentando fugir do assunto, embora

soubesse multo bem a resposta.

Percebendo o estratagema, Enzo apertou os olhos para mim. Eu

suspirei.

— Você me perguntou o que eu acho de você agora... — eu

assinalei.

— E o que achava antes — ele quis saber.

— Não nos conhecíamos muito bem — respondi vagamente. Eu

não queria aprofundar aquele assunto.

Enzo ficou calado por uns cinco segundos. Depois, apoiou os

cotovelos no joelho e ficou mirando um pedaço de grama das mãos.

-—Você me achava um otário — ele disse por fim.

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— Claro que não — menti.

Enzo riu num suspiro.

— Se vamos começar uma amizade, precisamos ser sinceros um

com o outro. Eu fui sincero com você. Portanto, não minta para mim. Você

me achava esquisito?

— Sim — respondi, após alguns segundos. Triste por ter de

confessar aquilo.

— Foi por isso que nunca falou comigo? — ele perguntou.

Responder aquela pergunta doeu-me mais do que eu esperava.

— Acho que sim — tentei ser honesta — mas hoje não acho mais

isso. Só acho que você é mal compreendido pelas outras pessoas.

— Como se eu me importasse... — murmurou, em seguida

ficando em silêncio de novo. Aquilo me incomodou. Eu não queria vê-lo

daquele jeito, não queria que ficasse magoado comigo. Demorei algum

tempo para perceber que a conversa tinha acabado e que era a minha vez

de falar alguma coisa.

— E você, por que nunca falou comigo antes? Também me achava

esquisita? — Eu ri, tentando recuperar o clima bom entre nós.

Enzo sorriu e começou a se levantar.

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— Confesso que te estranhei quando chegamos aqui, mas agora,

que está mais calma, posso até dizer que você é quase simpática. Bem

próxima da Rafaela que imaginei.

Senti um estranho pulinho de alegria no meu estômago, que tentei

ignorar. Não consegui.

— Quase — fingi estar magoada, segurando em sua mão para

me levantar.

— Isso mesmo. Mas não se engane — ele advertiu —, se

continuar enchendo meu saco, vou arrumar uma mordaça para sua boca.

Agora vamos, não quero que você pegue um resfriado.

— Quer dizer que ainda se importa com a minha saúde? —

perguntei, curiosidade e tom de brincadeira disputando lugar em minha

voz.

Enzo virou-se para mim e grudou os olhos molhados nos meus.

Senti algo em meu peito aquecer, algo que me assustou. Ele ergueu o

braço e colocou uma mão no meu queixo suavemente me causando um

tremor, que não era de frio.

— Me importo com tudo que envolve você, Rafaela, não consigo

evitar. Você é a parte mais bonita da minha vida... — Ele fez uma pausa,

parecendo angustiado, mas em seguida sorriu. — Mas a verdade é que

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você já me dá trabalho suficiente quando está saudável. Por isso, vamos,

garota, ainda preciso bancar o senhor do fogo hoje à noite, de novo.

Ele pegou minha mão com firmeza e foi caminhando na minha

frente como sempre. Apertei bem meus dedos em torno dos seus, para

fazê-lo parar, pois só uma imbecil como eu o teria evitado por tanto

tempo. Só uma tola não perceberia o quanto Enzo era especial. O quanto

era mais interessante do que qualquer outro garoto daquela escola.

Enquanto ele me mirava, para ver o que me fizera estacar, fiquei olhando

em seus olhos sentindo um leve tremor na mão, enquanto borboletas

agitavam-se no meu estômago. Não havia mais como negar: sobre tudo

que Enzo representava como pessoas eu o queria para mim. Nem que

fosse por um dia.

Como não havia testemunhas, mesmo tremendo, puxei-o um

pouco para mais perto de mim. Ele não relutou, mas seus olhos

arregalaram-se levemente. Eu nunca havia tomado a iniciativa com um

menino na minha vida, mas enchi-me de coragem naquela hora. Toquei

no rosto dele delicadamente e retirei seus óculos. Quando fiz isso, Enzo

ergueu uma mão e segurou o meu pulso, em seguida fechou os olhos e

beijou a palma da minha mão, com muito carinho. O toque doce dos seus

lábios na minha mão disparou calores que se estenderam pelo meu braço

e tomaram o meu coração. E quando Enzo envolveu-me pela minha

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cintura, pensei que meu coração fosse explodir. Eu nunca havia sentido

isso por um menino, nunca tive tanta expectativa antes de um beijo. Por

isso, fechei os olhos para absorver melhor o momento. Estávamos às

margens da cachoeira, molhados e descalços. O cheiro de flores e frutos

impregnava o ar ao nosso redor. Eu não via à hora de Enzo me beijar e de

poder retribuir seu carinho. Mas de repente, um barulho ensurdecedor

como uma britadeira foi preenchendo o ambiente, interrompendo o clima

entre nós. Um barulho que eu havia desejado tanto nos últimos dias, mas

que pensei em ignorar solenemente naquela hora. Mas eu sabia que não

podia fazer isso. Quando abri os olhos, contemplei Enzo se afastar, tão

constrangido quanto eu, e dei-me conta, infeliz, de que aquele momento

nunca mais se repetiria.

ENZO

Eu já havia ouvido algumas histórias de pessoas que ganharam na

loteria e perderam o bilhete, mas nunca havia conseguido imaginar qual

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era a sensação. Agora, eu sabia. Havia ficado sozinho com Rafaela por três

dias completos e tudo que consegui foram dois quase beijos dela. E um -

agora eu quero me matar - que eu recusei. Abafei um grito estrangulado

no meu travesseiro. Eu estava com ódio de mim. Eu não tinha ideia do que

aconteceria agora entre nós. Por um momento, enquanto estávamos

perdidos na mata, achei que poderia realmente esquecê-la. Estava tão

irritado com ela... Além do que, eu não estava mais iludido a respeito de

sua personalidade. Sabia que Rafaela podia ser a pessoa mais irritante do

mundo, se assim o quisesse. Mas, a cada vez que eu a olhava, cada traço

do seu rosto, cada gesto despreocupado me hipnotizavam de uma forma

preocupante.

Desde que voltamos para casa não havíamos nos falado. Era

quarta-feira e nenhum de nós foi à aula. Eu tinha uma entrevista para dar

e meu pai havia marcado uns quinze exames médicos para eu fazer.

Queria ter certeza de que minha saúde não fora abalada. Mas eu pouco

me importava com isso, minha cabeça estava em outro lugar.

Desde que voltei, olhei pela janela dezenas de vezes para ver se

avistava Rafaela. Mas fora um entre e sai desenfreado de suas amigas, eu

não vi nada que me animasse naquela casa. Para culminar, a Scooter de

Mateus estava parada na frente da casa dela desde que Rafaela retornou.

Confesso que vigiei a porta praticamente a noite toda, na esperança de vê-

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la enxotá-lo de lá, ou de que o conduzisse até o portão com qualquer

indício físico de que o relacionamento havia acabado. Mas, meu sacrifício

foi inútil. Mateus ficou por lá a noite toda.

Eu não podia acreditar que nada havia mudado entre nós, que

nada havia mudado nos sentimentos de Rafaela por mim. Afinal, ela

tentara me beijar! E duas vezes! E da última vez, posso jurar que ela

queria me beijar de verdade. Por isso, ouvir a voz do megafone que veio

daquele helicóptero foi de lascar. Nunca imaginei que desejaria tanto ficar

perdido na mata.

Mesmo em somente três dias, nós ficamos muito próximos um do

outro. Será que tudo ficaria para trás? Será que eu seria somente uma

experiência que Rafaela desejaria esquecer? Esse pensamento me

consumia. Ela fora o centro da minha vida durante anos!

Quando fomos resgatados no fim da tarde, percebi, para o meu

espanto - e também absoluta vergonha - que estávamos a cerca de duas

horas de distância da trilha. Andamos para o lado totalmente oposto na

mata. Primeiro, um bombeiro desceu do helicóptero por uma corda e nos

perguntou se estávamos bem. Conferindo que sim, nos orientou que

pegássemos nossas coisas enquanto um segundo bombeiro descia. Fomos

amarrados e resgatados pelo helicóptero e, quando descemos, havia

dezenas de pessoas e flashes esperando por nós.

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Assim que Rafaela colocou os pés em solo de novo, sua mãe e

Mateus correram para a abraçarem. Qualquer idiota poderia notar como

Mateus estava satisfeito diante das câmeras. Meu pai, tio Mauro, Leandro,

Eva e Alana também aguardavam por mim. Eu nunca havia visto meu pai

tão comovido na vida. Chorava feito criança, e fiquei feliz por ver que

minha presença daria um fim ao seu sofrimento. Quando cheguei em

casa, a recepção efusiva de Doralice quase me estrangulou. Chorando,

lançou os braços em torno do meu pescoço e enfiou meu nariz com toda a

força contra o seu peito. Vovó Rose, como já era de se esperar, sorrindo

para mim, pediu à Doralice que servisse um café à visita. Nunca imaginei

que ficaria tão feliz em revê-la.

A quarta-feira finalmente virou quinta, triplicando a minha

ansiedade. Durante a noite, vi que Rafaela havia aceitado meu convite de

amizade do MSN, mas estava constantemente ausente. Arrumei-me como

nunca para o colégio naquela manhã. E, pela primeira vez em minha vida,

utilizei as lentes de contato que havia ganhado de tio Mauro no Natal.

Coloquei o meu melhor par de tênis, minha melhor calça jeans,

mas não tive como escapar da horrenda blusa azul e vermelha para poder

entrar no colégio. Mesmo desconfiado de que havia expirado o prazo da

validade, coloquei um pouco do perfume importado do meu pai, que

minha mãe, antes de morrer, lhe trouxera de uma de suas viagens. O

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cheiro era ótimo e, se fosse o caso, eu suportaria as alergias que

aparecessem depois.

Quando cheguei ao colégio, meu coração retumbava tão alto no

peito que achei que alguém poderia escutá-lo. Não só por saber que

finalmente a veria, mas porque sabia que eu seria o centro das atenções

naquela semana. Desci do carro de meu pai, que fez questão de me

acompanhar naquele dia importante, e investigue em torno para ver se

avistava Leandro. Ele já havia deixado bem claro ao telefone que queria

saber todos os detalhes de minha empreitada selvagem com Rafaela.

Tenho certeza de que ele estava imaginando altas cenas eróticas rolando

na mata. Mas Leandro não estava por ali.

Cruzei o portão de cabeça baixa, tentando, inutilmente, me tornar

invisível. Todos olhavam na minha direção, alguns até batendo fotos com

o celular. Era ridículo! Pessoas que nunca falaram comigo na vida vieram

me cumprimentar, cheios de preocupação. Achei impressionante a

quantidade de caras-de-pau. Mas eu não estava me importando com isso,

a cada aproximação eu perguntava por Rafaela. Depois de perguntar pela

décima vez, avisaram-me que ela estava no pátio, cercada por suas

amigas. Ainda que relutante, caminhei para lá. Não sabia como seria

recebido. Será que ela correria e se lançaria em meus braços? Isso era

tudo que eu mais desejava, mas é claro que desconfiava que não. Todavia,

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certamente, nosso relacionamento já havia mudado. E fomos

interrompidos em um ponto de evolução muito importante, que eu

pretendia alcançar agora o mais breve possível. Ainda procurava por ela

quando senti uma mão tocar minhas costas. Virei-me e vi Alana sorrindo.

— Que bom que voltou para a escola! — disse-me ela em um tom

alegre.

Assenti com a cabeça, também sorrindo.

— Pois é...eu...

- Não imagina como fiquei curiosa para saber como você

sobreviveu na floresta. Você deve ter tido experiências incríveis!

— Nem tan...

— Você precisou comer alguma minhoca? Ou de repente algum

desses bichos nojentos?

— Não, não foi necessário — respondi, olhando em torno, com

uma agonia evidente.

— Está procurando Leandro? — ela me perguntou, deixando um

de seus livros caírem no chão. — Pois eu o vi agora a pouco lá na cantina

comprando M&M.

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— Não, não... Estou procurando por Rafaela, me disseram que ela

estava aqui no pátio. Você a viu?

Alana ajeitou os óculos que lhe escorregavam pelo nariz,

indicando com a cabeça que não.

— Acho que vou procurá-la novamente lá fora, e... — Olhei para

ela. — Ei... Você soltou o cabelo!

— Pois é — ela enrubesceu um pouquinho. — E você tirou os

óculos. Ficou muito bem assim.

— Você também — eu ainda olhava para os lados.

— Olha — ela disse —, acho que a Rafaela já deve ter ido para a

sala. Agora que ela e Mateus terminaram, acho que não tem mais motivo

para ela ficar enrolando aqui fora. Mas ele já deve estar por aí

paquerando a mulherada como sempre.

— Como é que é... — Segurei no braço dela, o coração

fervilhando de esperança. — Rafaela e Mateus terminaram?

— Sim — ela arregalou mais olhos. — Você não sabia?

— Não — respondi, engolindo um grunhido de alegria.

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— Mas nem parece — Alana continuou. — Mateus chegou ao

colégio tão alegre hoje cedo... Ah — ela estalou os dedos —, Enzo, preciso

mesmo fazer aquele trabalho sobre genética e queria saber se você vai

mesmo poder me ajudar. Não posso deixar minha média em ciências cair.

Eu poderia passar na sua casa hoje à noite e então...

— Acho que não vai dar. — Nesse momento, como uma cortina se

abrindo para mostrar um grande espetáculo, um grupo de garotas se

afastou e pude ver Rafaela no meio delas. Sorrindo! Constatei otimista.

Não parecia nem um pouco abalada com o fim do namoro. — Peça para o

Leandro te ajudar, ele adora essa matéria.

— Mas...

— Preciso ir agora, Alana, a gente se fala depois.

Caminhando com cautela, comecei a me aproximar das meninas.

Rafaela estava de lado para mim e encostada em uma das mesas do pátio.

Uma de suas amigas avistou minha aproximação e deu uma cotovelada na

outra. Eu ainda estava a uns cinquenta metros dela quando tive a

impressão de que Rafaela também me notou. Ela endireitou a postura e

parou de sorrir, Olhando para frente. Deu-me a impressão de que ficara

um pouco nervosa. Confiante, continuei caminhando, dizendo a mim

mesmo que talvez ela não tivesse realmente me visto, senão teria acenado

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ou coisa parecida. Mas Rafaela espiou-me rápido mais uma vez e dessa

vez eu tive certeza de que ela tinha me avistado, pois em seguida, jogou o

cabelo de lado como sempre. Mas dessa vez ela não me encantou. Ao

contrário, senti uma pontada aguda e traiçoeira no coração. Parecia que

ela usava o cabelo para cobrir o rosto, como que colocando uma cortina

entre nós. Meu estômago estava tão retorcido que faria inveja a qualquer

escultura de arame, mas já era tarde demais para eu dar meia-volta. Todas

as meninas olhavam para mim e em poucos segundos eu estava parado ao

lado delas.

— Rafaela — uma das meninas disse —, seu namorado está aqui.

— Eu não tenho namorado — rosnou ela entre os dentes.

— Seu noivo?

— Cata a boca, Dandara! — Com um sorriso forçado, Rafaela

respirou fundo e olhou para mim, fingindo surpresa. — E aí Enzo, tudo

bom com você?

— Tudo — respondi, tentando ignorar seu desprezo.

Ela se virou para as amigas.

— Meninas, acho que todas já conhecem o Enzo, não é?

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A maioria me olhou com desdém e respondeu com um

desanimado "E, aí?". Cumprimentei-as de volta e voltei meus olhos para

ela. Uma onda de mágoa me invadiu, pois reconheci em seus olhos a

mesma distância com que olhava para mim antes de tudo. Eu achei que

Rafaela fosse se manifestar para vir conversar comigo a sós, mas parece

que isso não estava nos seus planos. Com vergonha do meu silêncio,

comecei a dizer;

— Tive que fazer um monte de exames médicos ontem, sabe como

é o meu pai... — Droga! Pensei, assim que acabei de falar. Será que não

consigo nem puxar um assunto decente?

Houve uma chuva de risadinhas das suas amigas e uma delas

virou para outra e formou nos lábios a palavra "papai", mas Rafaela

somente olhou para mim, com um olhar que agora me parecia culpado.

Tentei não demonstrar emoção.

— Espero que tenha dado tudo certo — ela murmurou.

— Ainda não sei — olhei para meu tênis —, vamos pegar o

resultado na sexta.

— Hum...

Outro silêncio perturbador. Eu não acreditava no que estava

acontecendo. Parecia que eu havia entrado em um túnel do tempo e

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estávamos exatamente do modo como éramos antes, em dois polos

distantes, divididos por um muro invisível que dividia dois mundos: o meu

e o dela. Era como se tudo que tivéssemos vivido naqueles dias não

passasse de um sonho distante. Eu não podia admitir essa possibilidade.

Afinal, Rafaela terminara com Mateus, e isso devia significar alguma coisa

em meu benefício, não é? Por isso, arrisquei:

— Podemos conversar a sós um minuto?

Outra chuva de risadinhas das suas amigas. Aquilo já estava me

dando nos nervos. Rafaela estava mordendo os lábios, com uma expressão

reticente. Por um minuto, pensei que fosse recusar. Mas em seguida ela

concordou e fomos caminhando para a cantina.

— Você me parece estranha — comentei, tentando entender o

motivo.

— Estou?

— Bem — dei de ombros —, soube que você e Mateus

terminaram. Talvez seja por isso. Aliás, sinto muito.

— Pois eu não — ela disse e ergueu mais a cabeça. A seguir,

estacou e virou-se para mim. — O que quer falar comigo, Enzo? Já

estamos quase na hora da aula.

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— Queria saber como você estava depois de tudo que passamos...

— Pois estou ótima. E, pelo visto, você também. Podemos ir? Não

quero ouvir gracinha da professora.

— Por que está fazendo isso? — segurei seu braço, para impedi-la

de prosseguir.

— Fazendo o quê?

— Me evitando, como sempre.

Rafaela puxou o braço da minha mão.

— Se estivesse te evitando, não estaria aqui com você.

— Acha que sou algum idiota? Vi como você me tratou na frente

das suas amigas. E essa frieza toda com que está me tratando agora...

— Enzo, o que você quer de mim? — Rafaela cruzou os braços.

— Espero que me trate com o mesmo interesse que me tratou

naquele último dia.

— Escuta — ela pôs uma mão na testa —, sabe que sou muito

grata a você por tudo que fez, mas aquilo que quase rolou... — ela fez

uma cara de desculpas. — Aquilo não vai mais acontecer. Eu estava

confusa. Nós dois somos muito diferentes.

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— Mas você terminou com Mateus, então eu pensei...

— Foi o Mateus quem terminou comigo — ela confessou.

Perdi o que ia dizer, abismado.

— Mas eu vi a Scooter dele em frente à sua casa ontem, a noite

toda.

— Ele foi embora de madrugada. — Rafaela ergueu os olhos para

mim, só que agora estavam enevoados. — Ele quis tentar até o último

minuto.

Pisquei os olhos e sacudi a cabeça, confuso.

— Não entendi. Tentar o quê?

Ela enxugou o rosto.

— Não vou ficar aqui explicando tudo tin-tin por tin-tin pra você,

Enzo. Às vezes você é tão lento... Eu não tenho mais nada que interesse ao

Mateus. Deixei bem claro para ele que não iríamos chegar onde ele

queria. Ele achou que, com todo aquele incidente na mata, eu voltaria

para casa muito carente, por isso ficou forçando a barra para nós dois...

— E parou de falar, ruborizando levemente de vergonha.

O entendimento me atropelou como um trem de carga. Mateus era

mesmo um cafajeste! A única coisa que ele poderia querer de qualquer

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garota era... Trinquei os dentes e olhei em torno de nós. A não ser pelas

amigas de Rafaela, esperando por ela, não havia mais ninguém por ali.

Sorte dele, pois eu desejava esmurrar o maldito.

— Fico feliz que não tenha cedido a ele — eu disse, voltando os

olhos para ela. — isso não seria muito digno de você.

— Obrigada. Mas agora eu preciso ir mesmo, minhas amigas estão

me esperando.

— Rafaela — segurei-a de novo —, podemos conversar mais no

recreio? Ainda tem muita coisa que eu preciso lhe dizer.

Antes de me responder, Rafaela espiou rápido suas amigas. Olhei

para o grupo também, a tempo de ver uma delas revirar os olhos quando

olhou para mim.

— Olha Enzo, é claro que podemos ser amigos fora daqui, mas

esse negócio de ficarmos andando juntos aqui no colégio... — Ela se calou,

torcendo um pouco os lábios ao olhar para os pés. — Você já havia dito

que não gosta muito das minhas amigas, e eu não vou abandoná-las para

andar com você. Que tal... — aproximando-se de mim, baixou um pouco

a voz. - Que tal a gente se falar no MSN mais tarde?

É claro que eu não gostei do que ouvi, mas mesmo assim disse:

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— Pelo MSN, não. Que tai eu ir à sua casa por volta das sete

horas?

— Na minha casa? — Ela arregalou os olhos, parecendo

apavorada. — Não, não... Alguma amiga minha pode aparecer por lá de

repente. Atém do que, ainda tenho a esperança de que Mateus... —

Rafaela se interrompeu e olhou para mim.

— Como é que é? Você ainda pretende dar outra chance para

aquele panaca? Mesmo depois do modo como te tratou?

Rafaela não respondeu, mas seu rosto refletia um patético sim. Por

isso, virei-me de costas, completamente sem ar. Naquele momento, ao

fechar os olhos, penso que experimentei uma profunda sensação de

catarse. Comecei a me lembrar de como eu a admirava, do tempo que

perdi imaginando as nossas conversas, dos plantões que fiz espionando

sua casa. Dos desenhos que fiz imaginando seu rosto. Eu sempre havia

colocado Rafaela num pedestal, mas agora, ele estava em mil cacos no

chão. Lembrei-me também que uma vez li que não é bom que cheguemos

muito perto de um ídolo, pois ao tocá-lo o dourado poderia escorrer-nos

nas mãos. E era a pura verdade, pois as minhas mãos, agora, já estavam

manchadas.

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Olhei para Rafaela de novo, como se a enxergando

verdadeiramente pela primeira vez e não gostei do que vi. Ela não era,

nem de longe, a garota que eu sonhava para mim. Eu sonhava com uma

garota que fosse forte, que se amasse em primeiro lugar. Que não se

importasse com o que as outras pessoas falariam dela. Que fosse doce,

sincera e genuína. Uma pessoa que tivesse os mesmos valores e interesses

que eu. De repente, ela perguntou:

— Está com raiva de mim?

— Não — respondi, sereno. — Estou com raiva de mim por ter

sido tão idiota esses anos todos pensando em você. A Rafaela que idealizei

não existe. Nunca existiu.

Ela se aproximou e tocou no meu rosto.

— Ainda podemos ser amigos, Enzo. Quando sairmos daqui...

— Não — protestei, retirando sua mão —, não quero mais a sua

amizade, não quero nada que venha de você. E isso é mesmo a sua cara...

— eu ri com sarcasmo. — Só quer ser minha amiga fora daqui, onde suas

amigas não poderão te julgar. Sabe agora eu tenho pena de você, Rafaela.

Pena da sua falta de amor-próprio, pena dos falsos amigos que você tem e

pena da sua prisão. Você não é uma pessoa livre, pois vive sob as regras e

a ditadura das suas amigas, e uma pessoa assim não tem nada para me

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acrescentar. Então, me faça um favor, me evite realmente de agora em

diante. — Dito isso, virei de costas e fui andando para sala de aula. Meu

corpo tremia de ódio dos pés à cabeça. Eu desejava esmurrar alguma coisa

e foi quase o que fiz a uns dez passos da sala, quando Leandro me agarrou

pela mochila.

— Cara, foi isso mesmo que ouvi?

— Tudo bem com você também, Leandro?

— Para de cerimônia, desembucha logo. A propósito, ficou bem

sem óculos. Estava dando um fora na Rafaela?

— Não foi exatamente um fora. Ela não me ofereceu nada, além

de migalhas de sua amizade.

— Nada disso, bonitinho. Escutei tudo da janela do banheiro. Você

disse que ela tentou te beijar!

— Então também deve ter ouvido o que ela disse que sente por

Mateus.

— E daí? — perguntou ele, inabalado. — Quem disse que você

não pode ser o outro? Vai me dizer que não gostaria de pôr um galho na

cabeça daquele idiota?

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Parei, olhando para o chão. Em seguida espiei a cara dele, balancei

a cabeça e tornei a andar.

— Ei, não vai tão rápido — ele disse. — Quero andar ao lado do

destaque do jornal dessa semana.

— Que jornal?

Leandro revirou os olhos.

— Sabia que você não tinha visto. Só fica aí suspirando pela

Rafaela...

Ele me entregou o jornal. Era do dia anterior. E eu estava mesmo

tão atormentado para ver Rafaela que nem havia visto nada na internet,

nem no jornal. Sabia que as matérias saíram, mas também sabia que seria

uma fama relâmpago. Não estava emocionado por isso. Mesmo assim,

passei os olhos pelo artigo. Em destaque, havia uma foto minha e de

Rafaela em preto e branco.

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DUPLA DE JOVENS SE PERDE EM MATA POR MAIS

DE 72 HORAS NO RJ

Os dois jovens que estavam desaparecidos desde o assalto aos

estudantes do colégio Dilebrian, e que eram procurados pelo Corpo de

Bombeiros na Floresta da Tijuca, região metropolitana do Rio de Janeiro,

voltaram para casa na tarde desta terça-feira. De acordo com os

bombeiros, os jovens de 16 e 15 anos encontraram um abrigo em uma

gruta e passaram os três dias no local. Ambos estavam perdidos desde

sábado e, segundo sua colega de turma Alana Gonçalves, que ajudou

incansavelmente na busca mobilizando um grupo de trilheiros

experientes, eles somente sobreviveram devido ao vasto conhecimento

científico do rapaz. O jovem conseguiu não só achar água e alimento,

como também fazer uma fogueira à moda antiga para aquecê-los. Por

causa do sumiço da dupla, o corpo de bombeiros mobilizou equipes com

cães farejadores e dois helicópteros durante todo esse tempo. Eles não

tiveram ferimentos graves e passavam bem quando reencontraram

amigos e familiares.

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Fiquei olhando para aquela matéria, me sentindo um imbecil, pois

percebi que sempre estive tão envolvido com meus próprios interesses que

não percebi o que acontecia bem debaixo do meu nariz. Foi como se eu

tivesse tido uma luz: Alana era apaixonada por mim! Ela havia me

procurado incansavelmente por três dias. Onde eu encontraria maior

prova de amor do que essa?

E, por Deus! Só um idiota não teria percebido aqueles olhos míopes

e em estado de adoração quando Alana me olhava. Aquela alegria

constante. Os assuntos científicos que puxava, pensando que fosse me

agradar. Sempre havia sido educada e solícita comigo.

Naquele momento, fechei os olhos, lembrando-me de como a

havia tratado naquela manhã, e fiquei com vergonha de mim. Eu mal

havia olhado em seus olhos. Nunca lhe dei a devida atenção. Para mim,

Alana era invisível simplesmente porque não se vestia como as outras

garotas. Exatamente como eu era para Rafaela. Flquei triste ao me dar

conta daquilo. Ambos só enxergávamos a aparência. Pelo menos nesse

sentido, eu e Rafaela éramos iguais. Mas felizmente, não em tudo...

— Onde está Alana? — pergunte para Leandro, olhando para

dentro da sala.

— Quem?

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— Alana — gritei para ele.

— Ah, sei ta! Acho que ela passou por mim, indo em direção à

quadra.

— Tem certeza?

— Certeza, certeza, eu não tenho. Não fico reparando muito nela.

Mas, por que a pergunta?

Entreguei o jornal para ele.

— Porque venho cometendo o mesmo erro.

Aproveitei a ausência do monitor no corredor e corri para a

quadra. Esperava sinceramente encontrá-la por lá, mas espiei toda a

arquibancada e não havia sinal de ninguém por ali. Continuei

procurando. Olhei na secretaria, na biblioteca, no laboratório de ciências...

Cheguei a ir até a enfermaria para ver se a encontrava, mas lá só havia

uma criança vomitando. Espreitei por todos os corredores e no

estacionamento. Tornei a olhar na sala de aula e a carteira dela ainda

estava vazia. Por fim, apoiei-me de costas no corredor e encostei a cabeça

na parede. Estava exausto e não sabia mais por onde procurar. Repassava

o mapa do colégio na minha mente, quando de repente ouvi passos vindo

em minha direção. A qualquer momento o monitor viraria a esquina no

corredor onde eu estava. O esconderijo mais próximo era o banheiro das

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meninas. Não titubeei. Entrei e fechei a porta de alumínio. Nesse

momento, ouvi uma fungada que vinha de um dos boxes privativos. O

monitor estava já no corredor, eu não podia sair. Portanto, achei melhor

anunciar minha presença no recinto.

— Olha, não se assuste, não sou nenhum tarado. Só entrei aqui

porque estou matando aula, mas assim que o monitor sair do corredor, eu

sairei do banheiro...

— Enzo? — Escutei uma voz conhecida. — por que está matando

aula?

— Alana?

Ela abriu a porta e eu a vi chorando, sentada na tampa da privada,

com os livros no colo.

— Por que está chorando? — Agachei-me diante dela.

— Não estou chorando — ela se levantou. — E que eu tenho

alergia. Por que está matando aula? — Mudou de assunto e foi andando e

direção ao espelho.

— Estava procurando você.

— Eu? — Ela girou para mim, deixando os livros caírem. Adorei o

movimento dos seus cabelos.

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— Sim.

— E por que estava me procurando? — Ela já catava os livros do

chão.

— Para saber por que você estava procurando por mim.

— Quê? — ela endireitou os óculos. — Como assim?

Olhei fixo em seus olhos azuis.

— Soube que você estava ajudando nas buscas. Queria muito te

agradecer.

— Ah! — O rosto inchado sorriu para mim e corou. Eu nunca

havia reparado como seu sorriso era meigo. — Não foi nada. Já faço trilha

há muito tempo. Foi até divertido. — Ela soprou um cabelo da testa.

— Então, me procurou só por isso? Por causa da diversão?

Alana perdeu um tempo engolindo a saliva. Pela primeira vez, eu a

vi sem palavras.

— O que está querendo saber exatamente, Enzo? Somos amigos.

Foi por isso que fui te procurar.

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— Não — eu disse, segurando uma de suas mãos. — Você sempre

foi minha amiga, mas eu ainda não fui seu amigo... — Fiz uma pausa. —

Até hoje.

Alana ficou me olhando, com o rosto em vários tons de vermelho,

sem saber o que fazer.

— O que quer dizer? — ela perguntou.

— Que ainda não te dei a atenção que você merece. Você é uma

menina muito especial. Talvez, a mais especial desse colégio. Mas, como

posso ter certeza se não tiver uma chance...

Delicadamente, Alana recolheu sua mão.

— Chance de que, Enzo? Você está me deixando confusa...

— De te conhecer melhor. — Enfiei as mãos nos bolsos. — Ainda

quer estudar comigo hoje à noite?

— Não sei — ela enxugou os olhos. — Você disse que estava

ocupado.

Passeia mão pela sua bochecha molhada.

— E era por isso que você estava chorando? — perguntei.

Alana arregalou os olhos para mim, sem palavras de novo. Dei um

meio sorriso.

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— Olha — coloquei seu cabelo atrás da orelha —, sei que não

mereço nenhuma chance de me aproximar de você pelo modo como a

tratei até hoje. Mas eu estava hipnotizado por Rafaela. Precisei tomar uma

bordoada para perceber que havia idealizado uma pessoa que não existia.

Mas agora, eu enxergo você. E sei que você é de verdade. Por isso, quero te

conhecer melhor.

Com a mão visivelmente trêmula, Alana ergueu os dedos e também

tocou no meu rosto.

— Pensei que nunca fosse me notar.

Beijei sua mão.

— Mas notei. Você foi pra mim como uma borboleta, que saiu do

casulo e de repente me mostrou outro tipo de beleza. E então, ainda

podemos estudar juntos? — Com o olhar carregado de emoção, Alana

indicou com a cabeça que sim. — Bem — aproximei-me mais dela —, a

primeira coisa que você precisa saber sobre genética é que geralmente os

opostos se atraem, mas na vida real, isso não é exatamente uma regra... —

Passei um braço em sua cintura. — Podemos fazer uma experiência

científica quanto a isso. O que acha?

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Com nossos rostos a um palmo de distância, Alana sorriu

graciosamente para mim. Em seguida, colocou os livros em cima da pia. A

doçura que havia em seus olhos adoçaria o mais amargo dos vinhos.

— Tudo bem — ela disse, passando os braços em torno do meu

pescoço — somos um casal de alunos bastante aplicado. Portanto —

mordiscou levemente a minha boca —, comecemos a pesquisa.

Fim!

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A autora Lycia Barros reside com o marido e os filhos em sua cidade natal: Rio

de Janeiro. Hoje, como sua função principal, atua apaixonadamente como escritora.

Paixão essa, herdada desde que cursou letras na UFRJ. Seu primeiro romance foi o livro

que já é sucesso "A Bandeja- qual pecado te seduz?" lançando em Outubro de 201.

Autora de "A Bandeja - Qual Pecado Te Seduz?" , "Entre a Mente e o Coração"

(Coleção Despertares) e "Tortura cor-de-rosa" (Geração Z). Uma excelente escritora!

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