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a Garota do
outro
lado da rua
Lycia Barros
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Sinopse: Enzo é um menino intelectual e aplicado nos estudos que
não se importa em ser ridicularizado pela maioria dos colegas de turma.
Ao lado de seu amigo Leandro, entra e sai do colégio com uma vida
monótona e sem grandes emoções. Entretanto, há alguém que sempre
balança a serenidade de Enzo: Rafaela, sua vizinha da frente, por quem é
apaixonado desde a infância e é sua colega de turma. Porém, linda e
popular entre os estudantes, Rafaela não se dá conta da sua existência até
que um dia, em uma excursão do colégio, ambos se perdem juntos na
mata. Rafaela e Enzo começarão a se conhecer melhor e perceberão o
quanto estavam enganados a respeito um do outro. Mas será que esse
conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de
Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a
garota do outro lado da rua?
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O mundo não se divide em pessoas boas e más.
Todos temos luz e trevas dentro de nós.
O que importa é o lado o qual decidimos seguir.
Isso é realmente o que somos.
SIRIUS BLACK (Harry Potter e a Ordem da Fênix)
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A BORBOLETA
Há momentos em que cruzamos linhas invisíveis que jamais
poderíamos imaginar. Nunca imaginei que ele seria meu, ou que eu seria
dele. Nunca imaginei que derrubaríamos os muros que nos separavam
por nossas fraquezas. Mas fico feliz que tenha sido desse jeito. Ninguém
me compreendia muito quando tudo aconteceu, eu também não
conseguia explicar como me sentia. Na verdade, a maioria das pessoas não
estava disposta a me dar o tempo que eu precisava para falar. Houve
noites com lágrimas solitárias, houve dor, precisei esperar... Mas, quando
enfim nos unimos eu e ele já estávamos preparados para seguirmos em
uma viagem sem volta. Uma viagem rumo à felicidade, que só os puros de
coração conseguirão alcançar. E nós dois felizmente conseguimos.
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ENZO
Eu sempre havia percebido algo especial naquela menina, mas não
apenas por ela ser bonita. Contudo, não nos conhecíamos. Não havia
intimidade entre nós dois, nem sequer cordialidade. Nunca havíamos
trocado uma palavra sequer. Mas eu a observava frequentemente sair e
entrar em casa com a mãe - morava só com ela, o que vim a descobrir
mais a frente. Entretanto nunca nos cumprimentamos. Às vezes, eu ficava
durante horas sentado na calçada com a minha caixa da coleção de
insetos colocada entre os joelhos, pensando em chamá-la para brincar,
mas nunca tive coragem. Talvez porque, assim como meu pai, nunca fui
muito dado a interagir com os vizinhos. Ao contrário, meu pai estava
sempre resmungando sobre os maus hábitos alheios: seus cachorros
latiam alto demais, suas festas eram muito barulhentas, todos estavam
sempre estacionando na calçada errada... Todavia, tenho dúvidas se ele
teve culpa de ficar assim. Desde que minha mãe se foi, há quatro anos
meu pai se despediu de qualquer alegria na vida. A única coisa que lhe
restou foi o prazer de pescar. Houve ocasiões em que pensei que ele a
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esquecer-la, mas percebi que isso não era algo que ele quisesse fazer;
muito menos que simplesmente lhe acontecesse. E, de fato, não lhe
ocorreu. Ainda assim, ele sempre foi um bom pai para mim. Preocupava-
se demais, confesso, e com muita frequência, com praticamente tudo. Mas
sei que só tentava cumprir bem o seu papel.
Começamos a estudar juntos no quinto ano - eu e Rafaela. Talvez
tenha sido esse o ano em que tudo começou. Nessa época, eu sentava atrás
dela na classe. Ficava olhando para sua cabeça por trás e admirando seus
cabelos, compridos, dourados e perfumados. Parecia uma sereia. Mas
éramos incomunicáveis, como se vivêssemos em dois polos distantes. Ela
era linda, desejada e popular, e eu era o quatro-olhos CDF da nossa
turma. Na única vez em que se virou para trás para me passar uma prova,
senti minha cara ficar vermelha e meus óculos escorregarem pelo nariz.
Sua mão ficou ali, estendida, e Rafaela a me encarar. Acabou em cinco
segundos. Quando olhei para a prova e a peguei, fitei as palavras, mas
nada assimilei devido ao meu encantamento. Era como se aquela simples
troca de olhares tivesse repentinamente nos tornado mais íntimo.
Infelizmente, quando voltei a mim, dei-me conta do papel à minha frente.
É impressionante como uma prova de matemática pode sugar até a última
gota de felicidade da sua alma!
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Nesse tempo, comecei a sonhar acordado com Rafaela. Costumava
imaginar-nos juntos e sentados em seu jardim, conversando sobre a
natureza, e ela admirada com todo o meu conhecimento. Sempre tive
certeza de que, se ela me conhecesse melhor, se compreendesse as minhas
qualidades, certamente gostaria de mim, mas nunca imaginei o que
sucederia mais tarde. No pôr do sol finalmente nos beijaríamos, mas
nunca imaginava nada indecente com ela. Pelo menos, não naquela época.
Quando estávamos de férias, não costumávamos nos ver muito, ou
melhor, ela não me via mesmo a minha casa sendo bem em frente à dela.
Rafaela só saía e entrava, rapidamente, geralmente acompanhada de suas
espevitadas amigas, dando gargalhadinhas, ou então com algum
playboyzinho barulhento e espalhafatoso. O que, evidentemente, acabava
me deixando verde de inveja e emburrado pelo resto do dia.
Somente uma vez nas últimas férias, pela janela do meu quarto no
segundo andar, tive o privilégio de observá-la sentada no jardim e
jogando um disco de frisbee para o seu yorkshire pegar. Foi uma das raras
vezes em que não a vi maquiada. Ficou ali por cerca de meia hora.
Provavelmente, ela havia acabado de sair da piscina, pois estava de biquíni
e com uma canga enrolada no quadril. O sol de fim de tarde reluzia em
seus cabelos e sua pele era tão dourada quanto o sol. Em certo momento,
Rafaela deitou-se na grama e fechou os olhos para descansar. E ficou tão
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linda que me extraiu a respiração. Eu sabia que minha câmera estava ali
na escrivaninha, bem perto da minha mão, mas não me atrevi a usá-la
para bater uma foto. Sabia que não conseguiria capturar a beleza daquele
momento, por isso preferi memorizá-lo.
No oitavo ano, comecei a reparar que ela não parava de conversar
com um garoto encorpado e com o cabelo espetado com gel: Mateus. Um
dos meninos mais esnobes da nossa classe. Apesar de andarem sempre
cercados de estudantes, eles frequentemente davam um jeito de conversar
mais afastados dos outros alunos. Eu sempre ficava de longe, observando-
os, mas não me atrevia a examiná-los muitas vezes, pois tinha medo que
Rafaela reparasse.
Mateus sempre foi o tipo de cara grosseiro e vulgar, e o linguajar
que circulava entre seus amigos faria qualquer detento de Bangu I sentir-
se ultrajado. Apesar de não nos falarmos, vira e mexe ele entrava na sala e
me dava uma coronhada na nuca no estilo "e aí, meu amigo?", mas eu
sabia que era só para me humilhar. Porém, eu nunca fui esse tipo de
idiota-agressivo que fazia de tudo para aparecer. Na verdade, sempre tive
aspirações mais elevadas. Talvez por isso não conseguisse me enturmar
com facilidade. Mas Mateus sempre "se achava" na frente dos outros
alunos: era o mais forte, o mais esportista, o com a melhor aparência...
Sempre achei que todos aqueles músculos lhe davam um ar imbecil.
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Estava na cara que ele andava tomando bomba. O tipo de sujeito que só
posta fotos sem camisa no Facebook, pois é o atributo que lhe resta. O
problema era que, atém disso, ele possuía todos os bens duráveis
conhecidos pelo homem, antes mesmo que chegassem ao Brasil. Por isso,
vivia cercado de almofadinhas bajuladores.
Quando pela primeira vez vi os dois se beijarem, me senti
agoniado. Esmaguei meu celular com tanta força que por pouco o coitado
não tocou de desespero. Achei Mateus muito afobado. Se ele sentisse uma
fração mínima do que eu sentia por Rafaela, jamais se atreveria a tocá-la
daquela maneira. Eu juro que tentei esquecê-la, desarquivá-la da
memória, mas simplesmente não consegui. Comecei a acreditar que, assim
como meu pai, eu não seria um homem de pular de galho em galho.
Amaria minha escolhida para sempre. Que furada...
É claro que, com dezesseis anos eu já havia beijado outras garotas
na vida. Na verdade, duas. Uma era minha prima Patrícia. Bem, ela não
era minha prima de sangue, pois era adotada. Nosso beijo, entretanto, foi
mais uma espécie de caridade que fiz quando ela confessou que era
apaixonada por mim. Achei que como éramos parecidos, como tínhamos
os mesmos interesses e éramos ambos negligenciados pela sociedade,
aquilo poderia dar certo. Mas não consegui corresponder aos seus
sentimentos e acabei por perder a sua amizade. E ela ainda espalhou
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boatos maldosos na minha família - e que fique bem claro, não
verdadeiros - sobre o meu hálito. Por isso meus primos me batizaram de
"boca de esgoto". A outra que beijei foi à irmã mais velha do meu melhor
amigo Leandro. Nesse caso a caridade foi invertida. Mas acho que brincar
de salada mista não conta muito.
Sucedeu então que teríamos uma excursão ecológica no colégio.
Acordei angustiado naquela manhã. Em qualquer outra ocasião, eu
amaria aquele passeio. Já era um assíduo praticante de trekking¹, pois,
assim como minha mãe, eu adorava a natureza,
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¹trekking -esporte constituído de provas onde se deve percorrer trilhas pré-estabelecidas em planilhas. e já havia feito trilha centenas de vezes, apesar de nenhuma delas ser na
Floresta da Tijuca. Contudo, passar um dia completo vendo aqueles dois se
agarrando seria demais para mim. Pensei em não ir, mas sabia que a visita
valia cinquenta por cento da avaliação de ciências e, para o meu
embaraço, e deleite do resto da classe, eu era o queridinho da professora -
que não era burra, e percebia o meu interesse pela matéria. Por isso, a
título de punição, eu era oficialmente a única pessoa a quem Eva se dirigia
na classe.
Desci a escada com a mochila preparada nas costas e não avistei
meu pai por ali. Lembrei-me que era sábado, dia em que ele
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religiosamente pescava com seu irmão. Certamente, Mauro já passara
para pegá-lo e miraculosamente não acordei com o barulho do bugre.
Minha avó, como boa madrugadora que era já estava sentada na sala,
olhando para a televisão desligada. Fazia isso muitas vezes. Com o passar
do tempo, deixei de me perguntar o porquê. Sua acompanhante, Doralice,
estava passando um café na cozinha e cantarolando uma espécie de hino
de igreja. Por causa da idade, minha avó andava muito esquecida - para
não dizer esclerosada - e contava as mesmas histórias dezenas de vezes.
Narrava os mesmos detalhes e se emocionava nas mesmas pausas quando
me contava sobre sua imigração para o Brasil. Jurava que era estrangeira
e sobrevivente do Titanic, e não uma paraibana arretada. Certas vezes ela
parava no meio da história e entrava numa espécie de transe esquisito, e
eu ficava ali, parado, imaginando se ainda havia alguma coisa por vir.
Confesso que por puro constrangimento às vezes eu a evitava por causa
disso. Mas isso foi antes de tudo aquilo acontecer, ao que vou lhe narrar
mais à frente. Talvez, pensava eu se ela visse a televisão quando estivesse
ligada, tivesse novas histórias para contar. Poderia ser a rainha Elizabeth
ou alguma personagem anciã da novela das oito. Tinha ocasiões em que se
lembrava de mim, mas percebi que aquele não seria um daqueles dias.
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— Quem é você e como entrou na minha casa? — assustou-se a
velha Rose, assim que me viu, apontando-me o controle da tevê como se
fosse uma faca.
Aproximei-me cautelosamente e sentei no braço do sofá. Ela ainda
me apontava o objeto.
— Sou eu vovó, Enzo, seu neto. O papai já saiu?
— Ainda não vi meu pai hoje — disparou ela, parecendo dar-se
conta disso naquele momento.
Eu ri e passei o braço nos ombros dela.
— Não o seu pai, vovó, mas o meu pai, seu filho, Gustavo. Ele já
saiu?
— Não conheço seu filho — disse-me ela, em tom de desculpas.
Eu suspirei, desejando que ela pudesse mesmo me trocar de canal.
— Doralice! — berrei eu, já me levantando. — Já estou indo. Diga
para o meu pai que volto antes do almoço.
Interrompendo a cantoria, a acompanhante apareceu na porta da
cozinha.
— Enzo, querido, não vai tomar seu café?
— Como algo pelo caminho.
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— Nada disso — ralhou ela, — seu pai mandou que eu preparasse
um lanchinho reforçado pra você. Disse que faria uma caminhada. Só um
minuto.
Ao que parecia, a definição de lanchinho de Doralice acabaria com
os problemas de fome na Somália. Ela havia separado dois sanduíches
gigantes, uma barra de cereal, uma maçã, duas bananas e uma garrafa de
isotônico de uva. Como se não bastasse, jogou um pacote de biscoitos
recheados dentro do saco. Fiquei olhando para ela, me sentindo
desnutrido. Devido ao estirão da adolescência, eu sabia que ficara magro,
mas aquilo era ligeiramente ofensivo. Porém, antes que eu dissesse alguma
coisa, ela virou-me bruscamente de costas e enfiou todo o lanche na
minha mochila. Fiquei me perguntando se não tombaria para trás ou
arrumaria uma lordose por causa do peso. Vovó ainda me apontava o
controle remoto, de modo que resolvi não contestar nada. Só queria dar o
fora dali antes que ela começasse com a história do cruzeiro.
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Quando cheguei ao colégio, Rafaela já estava lá, linda de morrer,
junto com a galera e esperando pelo ônibus. Vestia uma legging preta,
uma regata roxa e usava um rabo de cavalo no alto da cabeça. Tinha um
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casaco amarrado na cintura. Maquiada como sempre. Fiquei um pouco
preocupado quando olhei para os seus pés: All Star não era bem a melhor
escolha para se fazer uma trilha. Mas eu a entendi, pois a cor roxa do
tênis combinava com sua blusa. Rafaela era muito ligada em moda.
O dia estava perfeito. O céu de um azul firme e intenso. Mas,
apesar do dia ensolarado, o ar estava um pouco frio naquelas últimas
semanas. Era abril, e a maioria dos alunos, assim como eu, havia trazido
um casaco. Os alunos que vinham chegando se embotavam numa confusa
troca de abraços, socos no peito e tapas nas costas. Eu ainda estava
olhando Rafaela quando Mateus apareceu, agarrou-a pela cintura e
plantou-lhe um beijo na boca. Um ressentimento agudo quase me
sufocou. Fumegando de raiva, olhei para o relógio. Eram sete e quinze e o
ônibus já estava atrasado. Naquele momento, eu não conseguia pensar em
nada melhor para mim atém de tentar ignorar aqueles dois. Ignorar
Rafaela - pensei desanimado. Como eu gostaria de obter êxito! Se pudesse
fazer um único pedido naquele momento, seria uma lavagem cerebral,
para poder esquecê-la. Perdendo as forças, volteia olhar para os dois. À
nossa volta, alguns pais espiavam os filhos mais afastados e o ônibus já
estava estacionando. Suspirei.
— Não sabia que você também vinha... — Uma voz animada me
assustou.
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Olhei para o lado e avistei Alana. Ela era da minha classe, aliás, a
única garota da turma que falava comigo. Ou, pelo menos, a única que
era educada. Falava, não. Tagarelava sem parar. Como sabia que eu era
um amante de biologia, ela sempre me procurava para discutir cada novo
microorganismo que descobria pela esfera terrestre. Ela sorria
alegremente, me olhando com seu rosto cheio de sardas e arregalados
olhos azuis. Seu cabelo liso estava eternamente preso em um rabo de
cavalo desarrumado e com alguns fios soltos caídos por cima dos óculos
de hastes vermelhas. Como sempre, parecendo não fazer absolutamente
questão de se destacar das outras meninas, vestia uma blusa bege sem
graça e uma bermuda de mesmo tom, que descia até os joelhos. Agarrava
o livro de biologia como se fosse uma bíblia e me olhava como se fosse
anunciar à salvação. Por que será que eu atraio esse tipo de gente?
— Resolvi vir de última hora — eu disse — mas pelo visto já me
arrependi. — Olhei para a bagunça dos alunos perto do ônibus.
O sorriso de Alana abriu-se ainda mais quando olhou para os
alunos, inexplicavelmente feliz.
— É sempre assim, a espécie humana fica muito animada quando
tem novidades. Logo, logo eles vão se acalmar — Ela virou-se novamente
para mim. — Escuta Enzo, estou com um trabalho sobre genética pra
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fazer e vi na aula que você sabia tudo sobre esse negócio de "azinho" e
"azão". Será que podia me dar uma ajuda?
— Claro — falei, forçando o sorriso. — É só a gente combinar de
estudar.
— Maravilha! — Era fácil ver o cérebro de Alana se animar ao
ouvir a palavra "estudo". — Também podemos nos sentar juntos no ônibus
hoje, o que acha? Assim, na volta, poderemos ficar comentando sobre a
flora que vislumbraremos por lá.
Claro, pensei, já com pena dos meus ouvidos, não há nada que eu
deseje mais neste mundo!
Sem saber como recusar, olhei para a galera e, pela cara vermelha,
vi que Leandro também já estava por ali, ao lado da mãe e jogando M&M's
para dentro da boca. Senti-me aliviado. Ele acenou para mim
vigorosamente e sorriu, sobressaltando suas bochechas permanentemente
vermelhas. Era único aluno cuja mãe estava perto e limpando a sua blusa.
Um perfeito suicídio social.
— Sinto muito, Alana, mas eu e Leandro já combinamos de
sentarmos juntos. Nos vemos quando chegarmos lá na trilha, ok? —
Despedi-me dela e fui caminhando em direção aos estudantes.
A porta do ônibus abriu e todos começaram a entrar. Ainda
agonizando por causa da minha musa, aproximei-me do grupo. Estou
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agindo como um idiota, eu dizia a mim mesmo ao caminhar para o
ônibus. Afinal, eu não tenho nada com ela. Basta ignorá-los, resmunguei
ao chegar perto da porta. Não será tão difícil, acrescentei para mim
mesmo ao subir as escadas. Será simplesmente impossível concluí, vendo
os se agarrando num banco no fundo.
Rangendo os dentes, procurei uma cadeira vazia no meio do
ônibus. Leandro se sentou ao meu lado.
— Dia ruim? — foi o que perguntou.
Meti a mão no saco de M&M's, sem ser convidado.
— Mais ou menos — respondi. — A meu ver, sábados deveriam
ser vinte e quatro horas mágicas sem nenhuma preocupação com o
colégio.
Erguendo uma sobrancelha, Leandro girou o corpo para mim.
— Não estou te reconhecendo. Desde quando você não gosta de
fazer trilha?
— Desde que estou sendo torturado. — Olhei para trás, Leandro
me acompanhou.
— Cara, você é doente... — ele resmungou e sacudiu a cabeça. —
Sabe quando terá uma chance com a Rafaela? Nunca! Você não é o tipo de
cara com quem ela sai.
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— Não entendi — retruquei. — O objetivo foi me elogiar ou me
insultar?
— Nenhum dos dois. — ele riu. — Olha — Leandro respirou
fundo, parecendo evitar falar de supetão algo que julgava melhor, ser
abordado com delicadeza, — A Rafaela nem ao menos te cumprimenta. E
olha que vocês são vizinhos há anos! Se você tivesse aproveitado enquanto
eram pequenos... As meninas são mais vulneráveis quando são crianças.
Mas agora suas chances de ela notar sua existência são de uma em um
milhão. Ainda que você se torne um cientista famoso, ela nunca vai saber,
pois não deve ler esse tipo de revista. Já o jornal de esportes... — Ele olhou
para trás, em um tom sugestivo.
Lancei-lhe um olhar gelado. Graças a Deus, meu mau humor
raramente transbordava. Para suavizar a bofetada, Leandro me ofereceu o
M&M's novamente. Deixei escapar um suspiro desconsolado e enfiei a
mão no saco. Em seguida, foquei os olhos na visão através da janela.
Partimos, buzinando, em meio a uma grande quantidade de pais e um
cachorro que nos seguiu por cerca de dois quilômetros. Um pandemônio
absoluto se instaurou. Como era de se prever, o trajeto até o nosso destino
foi uma aporrinhação. Barulhento, caótico e torturante. Um dos meninos
botou funk alto no celular e tive vontade de me atirar pela janela. Ou
melhor, de atirá-lo pela janela. O motorista não tirava os olhos da rua, as
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mãos apertadas no volante. Parecia tão irritado quanto eu, que saquei meu
mangá do Naruto para ler no mesmo instante em que uma cabeça
apareceu por cima da cadeira da frente. Era Alana. Fechei a revista.
— Você sabia que milhões de árvores no mundo são plantadas
acidentalmente por esquilos que enterram nozes e não lembram onde as
esconderam? — ela perguntou.
E lá vamos nós de novo, pensei comigo mesmo.
~~~~~~~~~~~~~~~~
Depois de quarenta minutos de puro suplício, finalmente
chegamos. Como masoquistas adoradores de filas que somos, levantamos
todos ao mesmo tempo para sair do ônibus juntos. Pablo, um aluno
sentado mais à frente, que era amigo de Mateus, tentou fazer Leandro
tropeçar na minha frente enquanto passava. Mas antevi o que ele ia fazer
e acabei empurrando Leandro e atropelando o pé do garoto, esmagando
seu calcanhar. O infeliz uivou alto. Olhei para ele e pedi desculpas, com
uma mistura de raiva e vontade de rir. Ele disse que iria trocar uma
palavrinha comigo depois. Fingi que não ouvi e continuei caminhando.
Como disse antes, nunca fui violento, mas Pablo era muito mais baixo e
tão magro quanto eu. O tipo de cara que só se garante quando está em
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grupinho. Mas, na boa: bastaria pegá-lo sozinho para tirar aquele
sorrisinho marrento da sua cara.
Depois do que me pareceu uma eternidade, conseguimos descer do
veículo. A professora insistiu para que todos se juntassem na entrada da
floresta para bater uma foto. Isso feito, Eva imediatamente me chamou
para ficar ao seu lado, ao que Leandro me seguiu, debaixo de assovios
maliciosos. Eva devia ter no máximo trinta anos. E sabendo que meu
amigo resolvera fazer dela a personagem principal de seus sonhos
eróticos, eu sabia que nada o deixaria mais feliz.
Começamos pela trilha dos bancos. Chama-se assim, pois é
margeada por bancos de pedra do período imperial. Disfarçadamente,
olhei para trás e vi que os dois pombinhos nos seguiam abraçados: Mateus
e a minha sereia. Decidindo que era melhor me concentrar em outra
coisa, verei para frente. Por sorte, a floresta sempre me fascinava. Minha
mãe - uma apaixonada por botânica, como eu - já havia me ensinado a
identificar algumas árvores, flores e frutos. Penetramos a suave caridade
verde e as sombras aconchegantes da mata fechada, enquanto Eva nos
contava que estávamos na maior floresta urbanizada do mundo. Fora
restaurada por volta de 1800 com o objetivo de proteger os mananciais. A
área havia sido devastada para o plantio de café e cana de açúcar, mas
fora reflorestada depois por ter prejudicado o abastecimento de água no
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Rio de Janeiro. Contudo, obviamente, jamais recuperaria suas
características originais. Era o homem brincando de Deus. Eva disse-nos
que a não ser que essa área não sofresse mais intervenções humanas,
sobretudo nas áreas mais preservadas, dentro de algumas décadas poderia
voltar a assumir, paulatinamente, as características dos ecossistemas
intactos e, quem sabe, voltar a cumprir plenamente sua função ecológica.
Mas ainda assim a floresta era encantadora. O verde cobria o
cenário de tonalidades e texturas diferentes. Havia chovido no dia
anterior, então levantei bem o rosto para sentir ao máximo o cheiro de
terra úmida. Vi que alguns esparsos raios de sol se infiltravam pelas copas
das árvores acima de nós e sua luz era tão suave que quase se podia senti-
la na pele. O aroma de mata molhada, troncos apodrecidos e variedades
de flores era tão flagrante que podia deixar uma pessoa inebriada. E havia
os sons... Nada era mais agradável do que os sons dos nossos pés pisando
nos cascalhos e folhas. Os movimentos de pequenos animais que corriam
de um lado para o outro o canto dos passarinhos, o murmúrio de água
correndo nas redondezas... Tudo se fundia de maneira extraordinária. A
única coisa que estragava o cenário, a meu ver, éramos nós mesmos. As
pessoas acabavam com a magia. Com seus barulhos de sacos plásticos não
recicláveis, risadas espalhafatosas e toques de celulares. Aquilo não
combinava com aquele ambiente, que precisava ser sentido, precisava ser
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memorizado. Havia algumas placas de madeira indicando a direção das
grutas pelo caminho. Quando ouvimos o som de uma cachoeira perto dali,
Rafaela saiu correndo como uma bala, os cabelos loiros esvoaçando livres
ao vento. Enterneci-me com sua cara desapontada quando soube que não
poderia mergulhar. A cascata era realmente convidativa, somente pela
beleza. Fazia-nos desejar sermos parte daquele cenário. Seria realmente
ótimo nadar um pouco, mesmo não sendo temporada de calor. Mas as
águas daquela floresta abasteciam boa parte do Rio de Janeiro, portanto,
não eram liberadas para banho.
Prosseguimos no passeio visitando tudo: a capela Mayrink, o
centro de visitantes, o locai separado para rituais de luto, onde se jogava
as cinzas das pessoas já falecidas. No chão, uma artista tinha esculpido a
epígrafe: "O tempo não passa". Em seguida, visitamos o Lago das Fadas, a
Vista do Almirante... Demorou um pouco mais do que eu imaginava, com
certeza eu não chegaria na hora do almoço. Passei uma mensagem para o
meu pai para que ele não se preocupasse comigo. Em certo trecho do
passeio, Eva nos mostrou uma planta em especial, para nos falar das suas
propriedades. Mateus como o imbecil sem salvação possível que era,
perguntou se a planta era afrodisíaca e ameaçou colocar na boca de
Rafaela.
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— É medicinal? — indaguei para Eva, ignorando o seu gracejo
idiota.
—É sim. — Ela sorriu para mim e começou a pormenorizar os seus
benefícios.
Continuamos na empreitada a caminho das grutas. A primeira a
que chegamos foi à gruta Luiz Fernandes, que à primeira vista parecia
mais ser um buraco. Precisamos amarrar uma corda num tronco próximo
para as meninas se sentirem seguras para descer. Fiquei atento quando
Rafaela desceu com medo que se machucasse, visto que Mateus estava
entretido em fazer baderna com seus amigos. Mas, tudo correu bem. Ela
era pequena, porém era safa. Em seguida, visitamos a gruta dos morcegos,
completamente escura apesar de ter uma fenda no alto. O ambiente era
frio e úmido. Sua passagem era extremamente estreita, o que espantou
alguns claustrofóbicos. Quando saímos, nos deparamos com uma família
de quatis. Os animais nos olhavam com um misto de amizade e apreensão.
Não resisti e saquei uma banana. Aos poucos, fui jogando pedacinhos e
eles foram se aproximando de mim. Logo eu estava cercado por vários
deles. Com os olhos brilhando, Rafaela se aproximou e me pediu um
pedaço para dar para eles também. Devo ter parado com um ar
bestificado. Rafaela estava falando comigo! Sorri para ela, satisfeitíssimo, e
lhe entreguei a outra banana completa. Estava completamente encantado.
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Durante a vida inteira não havíamos trocado nem cinco palavras
somadas, mas naquele momento, ficamos comentando sobre os quatis. De
repente, para o meu desgosto, Alana apareceu com um sapo na mão e nos
presenteou com o seguinte comentário:
— Recentemente, foi descoberto numa missão espacial que os sapos
conseguem vomitar, sabia primeiro, eles vomitam o estômago inteiro.
Depois, usam os braços para remover todo o conteúdo do estômago e
voltam a engoli-lo. Interessante, não?
— Que máximo! — empolgou-se Leandro, aproximando-se de
Alana e mostrando o sapo para mim, acabando com as minhas esperanças
de fingir que eu não conhecia aquela gente esquisita.
Como era de se esperar, Rafaela torceu a cara com ar de nojo e
votou para perto de Mateus. Onde fui amarrar o meu burro?
Quando seguimos caminho, enquanto contornávamos alguns
troncos caídos e cobertos de musgos em direção à próxima gruta,
esgueirando-nos entre as árvores, fomos subitamente surpreendidos por
uma voz:
— Todo mundo parado aí! Mãos pra cima, mãos pra cima...
Alarmado, percebi três sujeitos encapuzados cercando nosso
grupo. Estávamos numa turma de cerca de vinte pessoas, o que seria
vantagem, se todos eles não estivessem armados.
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— Fiquem calmos, por favor — pediu Eva, com a voz trêmula. —
Ninguém vai reagir, podem levar o que quiserem...
— Se me obedecerem, tudo vai ficar bem — garantiu o aparente
líder do bando. — Meu comparsa vai passar por vocês pra recolher os
bagulhos. Queremos só as carteiras e os eletrônicos. Pode ir passando
tudo: essas câmeras, celular, os bagulhos de música e tudo isso...
Coloquei as mãos na cabeça e olhei para Rafaela, apavorado. Ela
tentava se aninhar atrás de Mateus, que desviava o ombro das mãos dela,
com a cara tão branca quanto uma vela. Empurrando as pessoas com o
cotovelo, um dos meliantes organizou uma roda para começar a recolher
os objetos. Sem que ninguém percebesse, postei-me ao lado de Rafaela no
círculo. Eles começaram com cinco pessoas à minha direita. Reparei que
os braços de Rafaela tremiam e seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Mesmo não estando certo disso, inclinei-me sorrateiramente para o seu
lado e sussurrei:
— Fique tranquila, vai acabar tudo bem.
Com certa surpresa, ela me olhou de relance. Em seguida mordeu
o lábio inferior e acenou minimamente com a cabeça. Eu queria poder
abraçá-la ou colocá-la atrás de mim, mas sabia que qualquer movimento
poderia desencadear violência por parte deles. Um dos bandidos andava
pelo círculo, encarando e intimidando as pessoas, muito inquieto. Fiquei
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me perguntando se ele estaria drogado, pois parecia estar jorrando
adrenalina. Todos despejavam seus objetos numa mochila preta, sem
retaliar. Quando passou por Eva, que estava à minha frente no círculo, o
mascarado eletrizado parou, olhou para o seu pescoço e arrancou com
toda força um cordão de ouro que ela usava. Eva deu um grunhido de dor.
Leandro, ao lado dela, não resistiu e passou a mão pelo seu pescoço. O
meliante bateu com a mão da arma de baixo para cima no antebraço dele,
exigindo que voltasse para a posição.
Chegou à vez de Mateus, que agora não estava mais branco, mas
parecia vermelho de raiva. Ele pegou o celular no bolso da bermuda junto
com a carteira e enfiou o braço dentro da mochila do ladrão. Quando
recuou o braço, num movimento rápido colocou as mãos diretamente
atrás da cabeça. O bandido deu um passo para a direita e parou em frente
à Rafaela. Meu coração disparou. Calmamente, apesar de nervosa, ela
pegou um iPod rosa, sua carteira e os despejou na mochila. Em seguida,
puxou a câmera que havia trazido e também deu a ele. Chegou minha
vez. Joguei meu celular na mochila e metia mão no bolso de trás da calça
para entregar a carteira. Nesse momento, um dos celulares tocou. Alguns
soltaram a respiração, presa por causa do clima tenso, o que causou um
burburinho. O líder do bando colocou o cano da arma diante da boca e
sibilou um sonoro "shhhhhhhh". Todos olhamos uns para os outros,
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procurando ver de quem era o aparelho. O barulho não estava abafado,
por isso em poucos segundos ficou claro que o celular estava do lado de
fora da bolsa. O líder do bando seguiu o barulho e parou diante de
Mateus, tombando a cabeça lentamente de lado e em seguida estalando a
língua em reprovação. Meu rival estava visivelmente suado e tinha os
olhos arregalados. Num movimento brusco, o infrator puxou o pulso de
Mateus de trás da cabeça e abriu sua mão, avistando o aparelho
escondido.
Não houve tempo para pensar nos movimentos seguintes. O
mascarado agoniado tirou o comparsa da frente e deu uma coronhada na
cabeça de Mateus, fazendo-o cair no chão, desmaiado. Houve gritos e
muitos alunos saíram correndo. O possível drogado virou-se de costas e
deu um tiro na direção dos que fugiam. Eva ficou apavorada. Não
consegui pensar e agi por impulso. Puxei o braço de Rafaela, que já ia se
agachando para socorrer Mateus, e corri com ela em direção à mata
fechada. Houve outro tiro, o que fez com que Rafaela corresse ainda mais
rápido junto comigo. Tropeçamos em alguns galhos e troncos pelo
caminho, mas não chegamos a cair. Tentei me orientar pelo barulho da
água para não sair muito do caminho da trilha. Ouvimos uma voz
gritando: “Atrás deles!” isso fez com que Rafaela parasse e se jogasse no
chão de joelhos, enfiando o rosto nas mãos. Mesmo tão apavorado quanto
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ela, animei-a a levantar-se, dizendo que eles deviam ter ido em outra
direção.
Continuamos correndo, depois caminhando ofegantes, por cerca
de vinte minutos. Em certo momento, o zumbido sereno da mata começou
a dominar o ambiente. Achamos uma árvore com um tronco bem largo e
nos sentamos ali, em silêncio, atrás dela, sem nos importarmos com a terra
úmida abaixo de nós. A minha respiração ofegante embaçava as lentes dos
meus óculos, de modo que os tirei para limpar na ponta da minha camisa.
Creio que o coração dela estava tão disparado quanto o meu, pois ficamos
ali parados, à espreita, retomando o fôlego e tentando ouvir os barulhos
para saber se alguém vinha atrás de nós. Contudo, só ouvimos o barulho
dos micos. Um passarinho soltou um pio alto e saiu voando. Coloquei os
óculos e percebi que a poucos metros de nós havia um formigueiro no
chão. Depois de alguns segundos, levantei-me vagarosamente. Olhei por
detrás da árvore e nada vi atém da mata fechada. Rafaela continuou ali, a
limpar o nariz, me olhando com aquele olhar enigmático. Com pestanas
compridas e sobrancelhas enviesadas, seguiu-se um longo silêncio entre
nós.
— Por que você me puxou? — ela perguntou de repente.
Evidentemente, fiquei vermelho.
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— Porque você estava mais perto de mim — menti
descaradamente — e você parecia abalada. Depois houve os tiros... Se você
tivesse ficado lá com Mateus, só Deus sabe o que poderia acontecer.
Inesperadamente, os lábios dela se contraíram numa linha fina.
— Pois devia ter me deixado lá com ele. Mateus agora pode estar
morto!
Como é que é? Pensei em silêncio, com um sorriso arrasado. Ela
preferia ter morrido com aquele panaca? Devo ter ficado com um ar
estúpido, zangado com a asneira que ela acabara de me dizer, mas
incapaz de manifestar minha zanga por achá-la tão bonita irritada.
Mesmo assim, falei:
— Mateus não morreu, no máximo desmaiou. Quem mandou ser
tão idiota num assalto, querendo bancar o sabichão? Isso é bem a cara
dele.
— Ele deve ter feito isso para nos ajudar! — disse ela, revoltada, as
lágrimas descendo novamente peto seu rosto. — Assim que os ladrões nos
deixassem, ele chamaria a polícia e todos recuperariam seus bens. Foi um
ato de coragem.
A raiva subiu pela minha garganta, queimando-a.
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— Um dos atos mais idiotas — não pude deixar de dizer. — Ele
não merece suas lágrimas, não fez nada para te proteger.
— E o que você queria? Aqueles bandidos estavam todos armados!
— Ele deveria ter entregado tudo, como todo mundo. Agora,
estaríamos a salvo. Mas, não... Mateus quis aparecer, como sempre.
Alguém pode ter morrido por causa do suposto ato heróico daquele
imbecil. Não sabemos para onde foram os tiros. E quem se importa com
nossos bens?
Parecendo furiosa, Rafaela não respondeu, só esfregou o rosto com
as mãos. Como um idiota, aproximei-me para ajudá-la a se levantar.
— Vem, vamos achar o caminho de volta. Os bandidos já devem
ter fugido.
Ignorando minha mão, Rafaela se levantou e bateu na parte de trás
da calça, olhando em volta.
— Sabe voltar? — perguntou friamente.
— Vamos retornar por onde viemos.
— Então, vá na frente.
— Tudo bem — eu disse. Em seguida comecei a procurar algo no
chão.
— O que está fazendo? Perdeu alguma coisa?
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— Precisamos de um galho grande — falei. — quando se anda na
mata, precisamos ir tateando o caminho. Muitos bichos podem se
esconder por debaixo das folhas.
— Bichos? — Ela deu um passo até mim. — Que tipo de bichos?
— Cascavéis, por exemplo. — Tentei não sorrir quando seus olhos
se arregalaram. Com certeza, agora ela andaria perto de mim. Coração
mole, tentei acalmá-la. — Mas não se preocupe as cobras não vão
deliberadamente atrás das pessoas. Sua dieta consiste de pequenos
roedores, aves, sapos e até mesmo insetos. — Por Deus! Eu estou
parecendo a Alana! Pensei em silêncio. — Mas o instinto primordial de
uma cobra é a autodefesa. Na verdade, cobra é um bicho meio indefeso,
sem pernas, sem bons ouvidos ou tamanho grande. Por isso, o veneno é
que assume o papel-chave em seu mecanismo de defesa.
— Ai, Deus! Acho que agora eu preferia os bandidos...
Eu ri.
— Para a nossa sorte — continuei, enfatizando as palavras — e
azar da natureza essa área já foi devastada um dia, e por isso não
apresenta mais todas as espécies de animais característicos da região.
— Ainda bem, né? — Olhei-a com reprovação. Ela se tocou. —
Quer dizer, para a gente. E o que devemos fazer se encontramos uma
cobra?
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— Saia do caminho — falei, finalmente achando no chão um
galho que servia. Peguei-o e franzi o cenho testando sua envergadura. —
Se não entrar no alcance da cascavel, provavelmente nada irá lhe
acontecer. A não ser que ela esteja com a cabeça levantada e o chocalho se
movendo, que são sinais evidentes de ataque. Senão, só se afaste
calmamente e fique bem quieta. Deixe a cobra ter seu espaço para ir
embora. E não a provoque. Irritar uma cobra só tem um resultado: você
vira o alvo.
Meu discurso não pareceu confortá-la.
— E se ela estiver em posição de ataque? O que devo fazer?
Com certa ironia, eu ri.
— Não se preocupe com isso. O ataque da maioria das cobras é
mais rápido do que o olho humano pode acompanhar. Quando pensar em
se dar conta, já estará morta. Vamos dar o fora daqui. — Comecei a andar.
— Espera! — ela gritou, passando um braço pelo meu. É melhor
andarmos bem juntos.
E assim estávamos ali: Rafaela agarrada a mim como se eu fosse a
sua tábua de salvação, e eu confesso todo satisfeito. Devo ter-lhe parecido
quente, pois àquela altura fique tão vermelho quanto um tomate.
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Começamos a andar de volta para a trilha principal. No fundo, eu
esperava que nosso retorno demorasse algum tempo. Estava curtindo tê-la
junto comigo. Parecia um sonho. Fiz o possível para ignorar o perfume
convidativo que emanava dela. Minha vontade era inclinar-me para o
lado e dar-lhe uma boa fungada no pescoço. Rafaela parecia estar
desconcertada com a nossa proximidade, mas, para minha vantagem, com
medo demais para ser orgulhosa.
— O que você faz da vida? — De repente saiu-me com essa. —
Por acaso é escoteiro?
— Não. — Eu ri. — Por que me perguntou isso?
— Sei lá, você sabe tanto de cobras...
— Discovery Channel. — Começando a ficar preocupado, parei
para olhar a onde estávamos indo. — É o meu programa favorito. Quando
era pequeno, até quis ser escoteiro, mas perguntei ao meu pai se podia e
ele disse que iria pensar. O que corresponde a não, em "Gustavonês". Ele é
muito protetor. Mas se você prestasse mais atenção nas aulas de ciências
(e em mim, eu queria dizer) saberia que sou o primeiro da turma.
A mão livre de Rafaela foi parar na cintura.
— O que você está querendo dizer? Eu presto atenção nas aulas de
ciências, só não é a minha matéria favorita. Quando for para a faculdade,
quero cursar Moda! Obviamente você não sabe, mas já tenho um blog que
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dá dicas sobre isso e já tenho mais de sete mil seguidores. Tenho jeito pra
coisa garoto, nossos talentos são bem diferentes. — Unindo as
sobrancelhas, ela olhou para a mata. — E por que estamos parados aqui?
Não me diga que estamos perdidos?
— Não, não. — Não quis alarmá-la. — Só estamos descansando
um pouquinho, quero saber se os bandidos já foram.
— Ah...
— Fale-me mais da sua nobre contribuição à sociedade. —
Continuei caminhando para tentar distraí-la. — Sete mil seguidores? É
coisa pra caramba. Sobre o que você fala no blog? — perguntei, como se
eu já não tivesse visto todos os vídeos.
— Todo tipo de coisa — ela deu de ombros. — As novas
tendências de acessórios, novas estampas, maquiagem e. Cara... — Ela
parou e sacudiu uma das pernas. — Esse pé ta doendo pra caramba.
— Também — olhei para ela — quem mandou vim de All Star
para uma caminhada? Devia ter vindo com um tênis mais propício.
— Acontece engraçadinho, que o único tênis esportivo que eu
tinha era branco, e com detalhes em verde. Como eu poderia usar com
essa roupa? — Olhou-me com os olhos arregalados.
— Mudasse de roupa — sugeri, ingenuamente.
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Abruptamente, ela estacou, parecendo apavorada por um instante.
Em seguida, me largou e olhou para o próprio corpo. Sua súbita distância
não foi o suficiente para interromper o fluxo do calor em meu braço.
— Acha que essa roupa está feia?
— Claro que não. — Eu ri, aliviado, quando entendi sua
preocupação. — Só acho que devia ter usado algo mais confortável. É isso
que usamos nas caminhadas, principalmente em se tratando dos pés.
Parecendo aliviada, Rafaela cruzou os braços.
— Pois desde que sou criança escuto dizer que mulher, para estar
bonita, tem que sofrer. E, até que eu tenha uma boa legging que combine
com aqueles tênis, suportarei os sacrifícios.
— Tudo bem, você que sabe — eu disse. — Mas agora precisamos
ir. Quer que eu te carregue um pouquinho?
Ela demorou uns três segundos para responder.
— Como vai cutucar o chão se me carregar?
— Se pendura nas minhas costas.
Ela fez uma careta.
— Acho que não. Dá para aguentar mais um pouquinho. Já
estamos perto, não é?
— Acho que sim — menti. — Vamos andando.
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Atrelada a mim novamente, tornamos a caminhar. Começou a me
bater um desassossego quando passou meia hora e nada de trilha. Rafaela
monologava o tempo todo, me pondo a par de um novo web site sobre
sapatos. Eu fazia perguntas esporadicamente para mantê-la distraída e
indiferente ao meu nervosismo. Tentei localizar algum barulho de rio
para seguir o seu fluxo, mas os chiados pareciam muito distantes. Tinha
certeza de que estava andando na direção certa até que percebi um
grande tronco caído no chão. Era gigante e impossível de não se notar.
Com certeza, não havíamos passado por ele na vinda. Dessa vez fui eu que
estaquei. Rafaela interrompeu o passo junto comigo e olhou para frente.
Quando viu o tronco, deve ter pensado o mesmo que eu, pois levou as
mãos ao rosto e desandou a chorar outra vez.
— Meu Deus! Estamos mesmo perdidos...
— Rafaela...
— SOCORRO! — começou a berrar. — SOCORRO! SOCORRO!
SOCORRO!
— Não faça isso — eu disse, segurando-a petos braços — pode ter
predadores por aqui. E os bandidos ainda podem estar por perto.
— Pois eu quero mais é que eles me achem! — explodiu para cima
de mim. —Pelo menos eles sabem o caminho de volta. Não sei onde estava
com a cabeça quando corri para a floresta atrás de você!
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Eu a soltei.
— Deixa de ser ingrata, garota, há essa hora você poderia estar
morta!
— E que diferença faz? — Ela colocou as mãos na cintura. Tinha
uma forte tendência a demarcar o meio do corpo. Como eu não havia
percebido? — Acha que se eu ficar perdida aqui vou sobreviver? Ainda
mais com você? Um Indiana Jones paraguaio.
Apertei minhas mãos em punho ao lado do corpo. Nunca pensei
que desejaria estrangulá-la.
— Pois, então, vá embora sozinha. A partir daqui, estamos
separados.
— Nada disso! — ela protestou. — Você me trouxe até aqui, agora
vai me levar de volta. E aceito aquela sua carona. Coloca a mochila na
frente, pois vou pular nas suas costas.
— Vai pular coisa nenhuma — rosnei para ela. — Nem me
agradeceu por salvar sua vida ainda. A partir daqui, caminhamos
sozinhos. — Para mostrar que falava sério, virei-me e dei os primeiros
passos na direção oposta.
— Enzo, espera!
Continuei caminhando.
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— Por favor...
Parei, sorrindo, mas me virei com a cara amarrada. Creio que não
deixei transparecer o prazer que tive ao ouvir meu nome em seus lábios
pela primeira vez. Bem mais humilde Rafaela torcia as mãos. Fitei-a até
ser obrigada a continuar. Então, ela murmurou:
— Não vá.
Marquei um ponto, pensei.
— Se quiser continuar caminhando comigo, terá de parar de me
acusar e reclamar o tempo todo. Estamos oficialmente perdidos, mas vivos.
Lamento que isso tenha acontecido, mas agora precisamos agir. Não
podemos ficar aqui até entardecer, ou seremos realmente devorados, mas
pelos mosquitos.
— Tudo bem. — Ela aproximou um passo de mim, o rostinho
demonstrando tal abandono que tive vontade de pegá-la no colo. — Estou
morrendo de medo. E costumo ficar histérica em situações como essa. Não
que eu já tenha me perdido na selva em situações de perigo eu quero
dizer. Mas agora você é tudo que tenho. Por favor, não me abandone.
Xeque-mate.
— É claro que não vou te abandonar. — Atrevido, passei a mão na
franja dela. Seu cabelo era sedoso como eu imaginava. — Só preciso que
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fique calma, ok? Essa é a primeira lição do exército para perdidos na
selva: manter a calma. Agora, sobe aí. — Virei-me de costas, passando a
minha mochila para frente. — Logo, logo, alguém vai nos achar. Vamos
procurar um lugar mais aberto, para que, se for o caso, um helicóptero
nos veja.
Aborrecimento esquecido, Rafaela subiu em cima de mim. Passei o
punho por debaixo dos seus joelhos para lhe dar mais firmeza nas pernas.
Caminhei com ela assim por cerca de meia hora, impressionado com a
minha resistência e secretamente apavorado com o silêncio daquela mata.
Paramos por dez minutos para comer. Dividi um sanduíche com ela. Não
sabia por quanto tempo ficaríamos alie achei melhor racionar a nossa
comida. Rafaela só tinha trazido um pacote de Pringles, uma squeeze com
água e uma barra de chocolate branco. Enquanto comíamos, ouvimos um
barulho na mata e Rafaela sobressaltou-se, achando que pudesse ser um
predador farejando a nossa comida. Pulou para cima de mim com tanta
força que cambaleei para trás. Mas era somente um casai de gambás. A
despeito do medo de partir desta vida, ou de ficar preso naquela mata
para sempre comecei a me empolgar com o incidente. Se toda vez que
Rafaela tomasse um susto de atirasse para cima mim, eu mesmo
provocaria os barulhos. De repente, ela parou e ficou mirando seu
sanduíche.
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— Acha que ele morreu?
— Quem? — Dei um gole moderado no meu isotônico,
percebendo que o mato alto arranhara um pouco as suas canelas.
— Mateus.
Ao perceber que ela ainda estava preocupada com ele, senti minha
garganta fechar, mas tentei confortá-la:
— Claro que não. Pelo menos, ele estava na trilha. Com certeza já
o encontraram. Aquela coronhada na cabeça não foi suficiente para matá-
lo.
Nenhum de nós dois disse nada por um momento.
— Mas, e se atiraram nele? — ela perguntou.
— Ele estava inconsciente, não representava perigo. Com certeza
eles correram atrás dos outros.
Desabando, Rafaela começou a soluçar.
— Que foi? — Comovido, coloquei a mão no seu ombro.
— Jéssica, a minha amiga, foi a primeira a correr. Será que eles a
pegaram?
Fiquei olhando para ela, sem saber o que dizer.
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— Vamos torcer que não. — Ela continuou me olhando. — Vem
aqui. — Puxei-a para perto de mim, largando minha garrafa no chão. —
Nesse momento, precisamos pensar em nós dois. Em como sair daqui. Não
vamos sofrer por antecedência, ok?
Um sorriso conformado, porém não menos brilhante, surgiu nos
cantos da sua boca. Fiquei satisfeito por ter provocado aquilo. Ela era
maravilhosa, tudo com que eu sempre sonhara, com os cabelos afastados
do rosto e aquele meio sorriso nos olhos castanhos. Subitamente, ela
desviou os olhos de mim e olhou para longe. Uma leve linha apareceu
entre suas sobrancelhas enquanto examinava algo a leste de nós. De
repente, me perguntou:
— Aquilo ali é uma gruta?
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Recolhemos as nossas coisas e caminhamos até lá, sem deixar
nenhum resquício de sujeira para trás. Minhas heranças ecológicas não
permitiam. Conforme chegávamos perto, avistei uma enorme rocha. As
copas iam se abrindo acima de nós, liberando os raios de sol como uma
cortina em direção ao solo. Havia uma fenda na rocha, mas não
exatamente uma gruta, na verdade estava mais para um abrigo. O que
seria bom, raciocinei, procurando ser prático, caso precisássemos de um
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lugar para passar a noite, pois dificilmente abrigaria morcegos. Entrei no
pequeno espaço seguido por Rafaela. Debaixo da cobertura, o clima ficou
imediatamente mais frio, mas eu imaginava que durante a noite o efeito
seria o contrário. Devia ter em torno de quinze metros quadrados, mas era
comprido, como se fosse um túnel. O chão era de terra irregular e em
algumas partes pontiagudo. Havia um pouco de musgo subindo pelas
paredes. Fiquei contente por não notar nenhum buraco nelas, pois poderia
conter algum animal entocado. O teto ia descendo para o fundo em
degraus como uma escada invertida. Havia uma grande pedra que
poderia servir-nos como uma espécie de mesa, apesar de ser irregular, e
pedras menores por todo o recinto. Chutei algumas delas para ver se havia
algum animal embaixo, como um escorpião, uma aranha ou sei lá o quê.
Não havia nenhum resquício do Homem naquele local. O lugar
era inóspito, sem dúvida. Rafaela sentou-se perto de um tronco
apodrecido e pensei que ela fosse chorar novamente ao se dar conta de
que estava em sua provável morada atual, mas ela apenas sibilou de
prazer quando tirou um dos tênis.
—Vamos descansar um pouquinho, ok? Meus pés estão me
matando.
— Tudo bem. — Joguei a mochila no chão. — Fique aqui. Vou ver
se consigo subir nessa pedra, tentar avistar algo ta de cima.
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— Não! — ela berrou. — E se aparecer uma cobra?
Com um suspiro, ajoelhei em frente a ela.
— Já está quase entardecendo, Rafaela, não podemos facilitar.
Precisamos sinalizar onde estamos, buscar alguma direção...
— Então, eu vou com você. — Ela começou a se levantar, mas
percebi que seu calcanhar estava mesmo machucado.
— Não, fique aqui. Olha — abri minha mochila —, fique com isso.
— Entreguei-lhe meu desodorante, me esforçando para manter a
seriedade. — Bichos têm medo disso, se algum aparecer e te ameaçar,
espirre com toda força. Mas se eles não se meterem com você, fique
quietinha.
Intrigada, Rafaela deu uma rápida borrifada no ar.
— Eu gosto do cheiro, por que eles iriam fugir?
Segurei uma risada.
— Por causa do barulho, não do cheiro.
Pouco convencida, Rafaela se ajeitou novamente no chão, porém
alerta, com o dedo no gatilho. Acenei com a cabeça e sai pelo abrigo afora,
morrendo de vontade de rir e torcendo para que nenhum predador
realmente aparecesse. Qualquer cachorro do mato a deixaria apavorada.
Contornei a rocha que nos abrigava que parecia bem grande e que
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dificilmente seria escalada, porém servia perfeitamente para rapel. Olhei
ao redor para ver se via alguma árvore mais fácil de subir e tentar avistar
algo na superfície, mas todas tinham troncos muito longos e grossos, ou
pareciam muito frágeis. Ao que parecia, a floresta, com suas sombras
verdes e cheiro de umidade, por enquanto seria meu lar. Meu e de Rafaela,
pelo menos.
Olhei ao redor para ver se via alguma árvore frutífera e reconheci
algumas espécies: murici, ipê-amarelo, cambuí, jequitibá, cedro e pau-
pereira eram apenas algumas delas. Felizmente, avistei uma jaquelra perto
dali. Não que eu gostasse de jaca, mas havia visto uma matéria da tevê que
dizia que essa fruta era muito rica em proteínas e vitaminas,
principalmente cálcio, tanto que era indicada na alimentação de crianças
para fortalecer os dentes e os ossos. E que também era rica em fibras e sais
minerais, como ferro e fósforo. Pelo menos, não morreríamos de inanição.
A esse pensamento, fui acometido por um leve tremor. Pela
primeira vez dei-me conta de que estava realmente perdido. Mas não
podia parecer amedrontado, pelo menos não para Rafaela. Por isso, voltei
para lá. Quando cheguei, ela já havia se levantado. Estava descalça e
pulando de um pé para o outro com uma mão no ventre e a outra no
desodorante. Olhou-me com uma cara desesperada e disse que precisava
fazer xixi. Um silêncio se seguiu a esse seu comentário. Corei inteiro,
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pensando no que deveria fazer, como se houvesse outra solução.
Afastamo-nos um pouco da nova "casa" para que ela pudesse aliviar-se
mais longe dali. Evidentemente, ela não quis ir sozinha, pois ainda estava
com medo da vida selvagem. Vi que trazia algo na mão, parecido com um
lenço de papel. A certa distância, ela pediu que eu me virasse de costas e
me entregou o desodorante. Fiquei contente, pois me sentiria ofendido se
ela me visse como um ser absolutamente assexuado. Ou gay. Só assim
ficaria nua na minha frente. Tentando parecer tão casual quanto possível,
virei o corpo para o outro lado, mantendo-me a uns dois metros de
distância.
— Que horas são? — perguntou Rafaela, enquanto voltávamos.
Olhei para o relógio e informei que eram duas horas.
— Conseguiu enxergar algo lá de cima? — Ela apontou para o
teto.
— Nem consegui subir, a parede é muito íngreme.
— E o que vamos fazer? — Ela arregalou os olhos, enquanto eu
pegava a mochila. — Não podemos passar a noite perdidos aqui. Tem que
haver algum jeito...
— Vamos tentar voltar para a trilha de novo, mas desta vez, vamos
marcar o caminho. Se não acharmos, pelo menos saberemos como voltar.
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Rafaela parou e me mirou em silêncio. Mas não foi um silêncio
normal, muito menos amistoso.
— E por que eu voltaria para cá? — indagou ela, já perdendo a
paciência, coisa que nunca tinha muito, pelo visto.
— Provavelmente, está olhando para o nosso futuro lar. Em termos
de perdidos na floresta, isso aqui é o mais perto que chegaremos de um
hotel cinco estrelas.
Rafaela piscou atônita.
— O quê? Acha que vou ficar aqui e dormir com você? Nem
morta! — disse incisiva, como se fosse a pior escolha a se fazer na história
da humanidade.
Fiquei mirando seu rosto, estupefato. Uma raiva súbita me fez
estremecer até a medula. Nunca havia visto alguém tão irritante e ingrato
na vida. Olhava desdenhosamente para mim. Havia qualquer coisa no seu
olhar que me perturbou, uma espécie de aversão ou de medo de ficar ali
sozinha comigo. Não parecia, nem por um momento, sentir-se grata por
tudo que eu já havia feito por ela. Estava sempre a pedir algo ou a exigir,
muito diferente do que eu a imaginava. Foi como se eu tivesse um clique:
Rafaela era rabugenta. E estava me magoando. Magoando muito. Por isso
não respondi, só fechei a cara e fui andando para a mata sozinho.
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— Ei, pera aí a onde você está indo? — Ela veio correndo atrás de
mim. — Por que me deixou falando sozinha?
— Se que saber, estamos os dois no mesmo barco, e ele está
afundando. Se estiver a fim de ficar dando chiliques, pode fazer suas
escolhas sozinha. Não tô mais a fim de ficar dando uma de babá.
Resolvendo parar, ela gritou para mim.
— Pois quer saber, que se dane você! Ninguém está pedindo sua
proteção. Não sei por que diabos fugi com você do assalto. Agora vou
morrer aqui, devorada por animais selvagens! Já posso até ver as
manchetes: "Menina sobrevivente de assalto é encontrada no bucho de
uma sucuri". Mas, tudo bem. Posso perfeitamente achar o caminho da
trilha sozinha. Não via Discovery channel, mas via Lost. E quando eu
voltar vou dizer que você está morto na barriga de um jacaré. Vai ficar
perdido nesta selva pelo resto da sua vida miserável. Ninguém virá te
buscar...
Silêncio! Gritei na minha mente.
— Pois boa sorte, então. — Continuei andando, com vontade de
me virar e lhe dar uns bons tapas na bunda, como se ela fosse uma
criança birrenta. — pode ficar com o meu desodorante. Só vai deixar a
cobra perfumada antes de dar um bote em você. Mas, não se preocupe do
jeito que você é enjoada, é capaz dela te vomitar.
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Esse argumento a calou por alguns segundos. Pelo pouco que
conhecia sobre ela, comecei a contar mentalmente. Três, dois, um...
— Enzo — sua voz surgiu fininha atrás de mim. Abri um sorriso
malicioso. — Volte aqui, não vai adiantar nada a gente discutir desse jeito.
Sentindo-me um rei cruel, não respondi. Mas involuntariamente
senti meus pés diminuírem minhas passadas.
— Isso é burrice. Precisamos nos unir — ela insistiu. — Nossas
chances de sobrevivência serão muito maiores. Ambos sabemos disso.
Continuei sem responder. Rafaela era uma mulher sem tirar nem
pôr: amável e amistosa num momento, despeitada e insuportável no outro.
Perguntei-me para onde fora minha determinação, pois acabei parando.
Eu era como cera em suas mãos.
— Por favor — ela me disse por fim, suave e delicadamente. Foi
difícil resistir.
Virei-me para ela e lhe disse:
— Você precisa entender que não é a única a estar perdida por
aqui. Estou fazendo de tudo para manter o controle, o que não quer dizer
que também não esteja assustado. Então, em vez de ficar reclamando de
tudo o tempo todo, FAÇA ALGUMA COISA PARA AJUDAR! — berrei no
final.
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Olhou-me apavorada. Como se eu tivesse exigido que descobrisse
a cura do câncer.
— Mas, o que posso fazer? Na verdade, não sei nada sobre esse
negócio de mata.
— Vamos tentar achar a trilha de novo e precisaremos estar
atentos a vestígios que as pessoas deixam pelo caminho, como pegadas,
roupas e restos de comida. Também precisamos ficar com os ouvidos
atentos para identificar barulhos. Portanto, se mantiver essa matraca
fechada, já estará me ajudando.
Cerrou os olhos, ultrajada.
— Grosso! — disse cruzando os braços na altura do peito.
Satisfeito por tê-la nas mãos, virei-me de costas e continuei
caminhando. Ela correu e se pôs ao meu lado, acompanhando meus
passos. Durante o percurso, marcamos caminho fazendo cruzes em alguns
troncos com a minha chave. Acredito que andamos por cerca de uma
hora. Rafaela permaneceu miraculosamente calada. Não falamos pelo que
me pareceu muito tempo. Só ouvíamos o zumbido das folhas, o que me
ajudou a raciocinar com maior clareza. Se realmente fôssemos pernoitar
por ali, havia algumas providências a serem tomadas. Parecia que
andávamos em círculos, pois não chegávamos a lugar algum. Nenhum
cenário novo, nenhum barulho, nada. Éramos como se fossemos as únicas
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pessoas do mundo. Rafaela parou mais uma vez para fazer xixi. Em certo
momento, os mosquitos começaram a nos incomodar. Com medo de ficar
escuro Rafaela sugeriu que voltássemos para o abrigo. Como tínhamos
pouca comida e não podíamos desperdiçar energia, concordei. Foi como se
levantássemos uma bandeira branca nos rendendo àquela imensa floresta.
Rafaela, talvez por causa da tensão, estava o tempo todo com fome e
queria beliscar alguma coisa. Não deixei que fizesse isso, explicando que
precisaríamos poupar os suprimentos, mas ela continuava insistindo.
Deixei bem claro que a resposta era "não", mas a criatura parecia não
entender português.
Quando chegamos novamente na caverna, sentamos um em cada
canto e seguiu-se um longo silêncio entre nós. Quase podíamos ouvir o
batimento das nossas artérias. Rafaela ficou ali sentada, as costas contra a
parede, com um ar tão infeliz que eu não sabia o que podia fazer. Olhou
para mim de repente, sem expressão. Deu-me a impressão de estar
pensando em qualquer coisa desagradável. Em seguida, fechou os olhos,
como se só olhar para mim já cansasse sua vista. Diálogo que se seguiu:
Ela: Acha que já estão procurando por nós?
Eu: Não sei (eu olhava para o chão). Mas não podemos ficar
contando com isso.
Ela: E o que vamos fazer?
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Eu: Precisamos recolher galhos e folhas secas.
Ela: Por quê?
Eu (me levantei): A não ser que queira morrer congelada,
precisamos providenciar uma fogueira.
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Rafaela tornou a chorar e tapou os ouvidos. Mas não foi um choro
histérico como os outros, ela parecia realmente amedrontada. Vi seus
ombros estremecerem e quis aproximar-me para abraçá-la, para
confortá-la, mas não sabia se era isso que ela queria. Não depois daquele
olhar que ela me lançou. Mas transtornou-me realmente vê-la daquele
jeito, tão fragilizada. Disse-lhe que ficaria tudo bem e fui para a mata
buscar o que precisava. Em segundos, Rafaela se recuperou e me seguiu.
Juntamos gravetos finos, cascas de árvore, folhas, musgos soltos, capim
seco, tudo que imaginamos que fosse facilmente inflamável. Achamos
também alguns tocos de madeira de árvores mortas, galhos caídos e
escolhemos os mais secos para servir de lenha. Quando retornamos para o
abrigo, aproveitei as pedras menores do chão e construí uma plataforma
bem atrás da pedra maior, a que seria usada como mesa. Essa pedra
serviria para isolar o calor em direção ao fundo do abrigo, nos protegendo
53
mais eficientemente do frio. Dispus os materiais que recolhemos de forma
que permitisse a circulação de oxigênio no meio. Então, chegou a hora do
meu maior desafio: fazer o fogo.
Já havia feito isso com a ajuda de um amigo, mas nunca havia
experimentado sozinho. Minha primeira tentativa foi fazer a chama com
o atrito de pedras, quase consegui uma tendinite de tanto tentar, mas não
funcionou. Em seguida, peguei o meu cadarço do tênis e um pedaço mais
resistente de galho. Torci-o um pouco e fiz um arco com ele. Depois,
organizei uma pequena quantidade de materiais inflamáveis em cima de
uma madeira maciça. Peguei outro toco de madeira e tentei parti-lo no
meio, mas o destruí. Estava multo velho e desgastado. Procurei outro.
Depois da terceira tentativa, achei um que parecia ideal. Enrolei-o no
cadarço e comecei a friccioná-lo na base, movendo o arco
horizontalmente depressa. O galho quebrou. Tentei com mais três deles,
sem sucesso nenhum. Por fim, Rafaela foi à mata novamente em busca de
um galho mais duro. Foi eficiente na sua empreitada, pois o que ela trouxe
não quebrou. Creio que fiz isso por uns cinco minutos até ver o primeiro
resquício de fumaça surgir. Rafaela ficou tão excitada com aquilo que deu
um berro de empolgação. Na verdade, eu também fiquei. Parei e me
abaixei para soprar a fumaça.
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— Não faça isso! — ela berrou. — Já estamos há meia hora aqui e
nada. Daqui a pouco estará escuro. Não está vendo que vai apagar a
fumaça?
— O fogo precisa de oxigênio — eu lhe disse. — Não fui escoteiro,
mas já acampei com um amigo que era escoteiro uma vez, ele me ensinou
como fazer isso. Veja...
Continuei soprando e, diante de nossos olhos atônitos, como num
passe de mágica, o fogo finalmente acendeu. Joguei o pequeno tufo de
palha que estava queimando no meio da fogueira que eu mesmo havia
montado me sentindo um herói. As labaredas foram se formando aos
poucos e em poucos minutos já estávamos aquecidos. O calor do fogo nos
abraçou. Sentamos em frente à fogueira. O chão não estava exatamente
confortável, mas estávamos tão cansados que não nos incomodamos.
Rafaela olhou para mim e as chamas denunciaram uma onda de gratidão
em seus olhos. Tinha um verdadeiro sorriso no rosto, o primeiro que
dirigia a mim desde que ficamos perdidos ali. Não pude fazer outra coisa a
não ser sorrir de volta para ela. Estávamos sujos e igualmente exaustos.
Havia arranhões em nosso corpo e picadas de mosquitos. Depois de tantas
brigas, eu desejava que ela estivesse pálida, desgrenhada e horrorosa. Mas
aquela beleza descuidada só aumentava seu encanto. Eu desejava e não
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desejava tocá-la. Não consegui definir direito se eu ainda estava com raiva
dela. A beleza nos confunde. Deixamos de saber o que queremos ou não.
Aproveitamos nosso descanso para beber um pouco do meu
isotônico. Ainda havia água na garrafa de Rafaela, mas achamos melhor
reservá-la. Abrimos a barra de chocolate e pegamos um quarto para cada
um. Ela deu uma mordida, um grunhido de satisfação e recostou-se na
parede em seguida. De repente, abriu os olhos e ficou me olhando por um
longo tempo. Comecei a corar, não pude evitar. Seus olhos grandes e
ardentes estavam ali, a me olhar fixamente. Eu não queria me sentir
daquele jeito, emocionado por estar ali com ela, finalmente sozinhos,
naquela situação horrorosa. Rafaela era muito diferente do que eu
idealizara. Era imprevisível. Criticava tudo constantemente. Eu não queria
sentir aquele prazer incompreensível e ofuscante que ela sempre me
causava. Meu sentimento por ela apenas crescia, mesmo depois de
descobrir os seus defeitos. Ela era egoísta, mimada e exigente. Mas
olhando para ela ali parada, eu me esquecia de tudo. Eu amava o jeito
como seu cabelo emoldurava seu rosto, caindo numa curva graciosa,
como se fosse um véu. Caia-lhe até a altura dos cotovelos. Adorava
quando ela girava o cabelo de lado, num movimento descontraído. Acho
que não tinha a menor ideia de como ficava encantadora. Eu poderia ver
56
aquele movimento dezenas de vezes sem jamais me cansar. Odiava-me
por isso.
— Obrigada — disse ela subitamente —, não sei o que faria se
estivesse perdida sozinha. Com certeza iria morrer. Se não fosse
congelada, devorada pelos animais. Uma vez li que a chama os afasta...
— É verdade — pigarreei, desconcertado com seu primeiro surto
de gratidão —, mas não precisa me agradecer. Afinal, fui eu quem te
trouxe para a mata.
Parecendo arrependida, Rafaela deu um longo suspiro.
— Desculpe por tê-lo acusado disso também. Ficamos
desesperados, sei que você só queria ajudar.
Olhei para ela de relance.
— Prometo que vou tirá-la daqui. Não quero que tenha medo.
Com certeza amanhã nos acharão.
—Não estou mais com medo. — Ela fez uma pausa. — Sabe — me
apontou o chocolate — fiquei aqui me perguntando por que... — fez uma
pausa — por que nunca fomos amigos? Por que nunca nos falamos? Você
é meu vizinho de frente...
— Pois é. — Joguei um galho na fogueira. — Coisas da vida.
Pensativa, Rafaela continuou me encarando.
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— Você quase nunca saía na rua. Por quê?
— Sempre fui muito tímido. — Dei de ombros. — Ainda sou. Mas
às vezes eu saía, sim. Na verdade, não gostava muito dos meninos do nosso
condomínio. E ainda não gosto. São todos muito baderneiros. A maioria
ainda não mudou.
— É verdade — ela riu, parecendo conhecê-los bem de perto —, a
maioria realmente não mudou.
Eu ri.
— Sabe... — ela continuou — eu sempre acreditei que as
impressões dos primeiros anos permanecem por mais tempo com a gente.
Boas ou ruins, elas acabam determinando quem nós somos. — Parecendo
realmente interessada, inclinou-se para mim e abraçou os joelhos,
sorrindo. — Conte-me, quando você pensa nos seus cinco anos, do que se
lembra?
Engoli em seco. Depois olhei para as minhas mãos fechadas em
punho diante de mim, como se ali estivessem minhas memórias. Depois de
alguns segundos, disse:
— Lembro-me da minha mãe. De ficar sentado no barco
esperando ela emergir do oceano. Ela era mergulhadora. — A lembrança
surgiu com tanta claridade, que sorri. — Ela morreu mergulhando
sozinha, ficou presa nos corais. — A expressão de Rafaela se enterneceu.
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— Lembro-me do cheiro das flores que ela trazia para dentro de casa, do
bolo de cenoura que ela fazia... Também me lembro de como ela brigava
comigo quando eu ficava dividido entre terminar de arrumar o meu
quarto ou espiar a sua casa pela janela. — Calei-me por dois segundos,
embaraçado pelo que acabara de revelar. —Lembro-me de você —
confessei num murmúrio.
— De mim? — repetiu Rafaela, o riso demonstrando mais
divertimento do que ironia. Colocou as mãos no queixo, curvando-se,
enfeitiçando-me com o jogo de luz e sombras em seu rosto. — Lembra-se
de mim quando eu era pequena?
Senti meu rosto queimar, mas não por causa do fogo. Mantive os
olhos na chama.
— Me lembro da primeira vez em que te vi pela janela do quarto.
Você estava na rua, andando de bicicleta de rodinhas, seu pai estava
ensinando. Você caiu e machucou o joelho, ele veio te socorrer. — Por
causa do silêncio de sua parte, virei o rosto para ela. — Sente falta dele?
Rafaela olhou para o chocolate nas mãos, parecendo-me ter
perdido o apetite.
— Muito. — Seus olhos se enevoaram com a memória. — Desde
que se separou da minha mãe, ele não veio me visitar. Acho que sua nova
mulher tem ciúmes. Não costumo pensar muito nisso, não me lembro dele
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com frequência. Mas quando acontece, as lembranças são nítidas, claras
como água. E machuca. Não gosto muito de falar sobre isso.
Fiquei olhando para ela. Eu também nunca falava dessa época da
minha vida, nem da minha mãe. Nunca! Nem mesmo com a minha
família. Nosso primeiro contato pacífico pareceu dissipar o ar entre nós.
Mas, como ela continuava triste, senti uma necessidade desesperada de
mudar de assunto. Comecei a fazer perguntas sobre seu blog de moda, o
que fez com que Rafaela disparasse a falar novamente. Eu ria diante da
sua empolgação. Rafaela era muito expressiva enquanto falava. Agitava os
braços, fazia caretas e elevava o tom de voz quando queria ressaltar
algum fato importante. E de repente estávamos ali, como eu sempre
sonhei. Conhecendo melhor um ao outro. A despeito das circunstâncias,
eu só queria que ela estivesse tão feliz quanto eu. Continuando nosso
papo, de repente perguntei:
— O que você costuma fazer nas noites de sábado? Quer dizer,
além de pernoitar em florestas...
Rafaela sorriu.
— Bem, costumo ir a vários lugares com as minhas amigas. Vamos
ao shopping, ao cinema, comemos alguma coisa... Hoje eu tinha uma festa
de quinze anos para ir. Mas eu nunca fui muito com a cara da debutante,
então, tudo bem.
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Rimos juntos.
— Mateus costuma ir com vocês? — tentei falar de modo
descontraído.
A expressão dela esmaeceu um pouquinho, Rafaela olhou para as
mãos.
— Na maioria das vezes, não.
— Pensei que estivessem namorando — instiguei —, sempre vejo
vocês dois juntos.
Pensando em como responder, Rafaela jogou o cabelo de lado.
Admirei-a.
— Ainda não sei bem o que temos. Na escola, ele sempre fica atrás
de mim. E durante a semana, às vezes, aparece na minha casa. Nunca
definimos realmente o que é isso entre nós. Mas, no final de semana ele
some. Sábado ele diz que é o dia dos amigos e costuma sair com eles. Diz
que precisamos ter nosso espaço. E domingo ele sempre tem algum
compromisso, em geral um jogo de futebol. Mas, e você? — Ela olhou
novamente para mim, querendo deixar aquele assunto de lado. — O que
costuma fazer?
Mirei as chamas novamente e dei um sorriso de lado.
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— Geralmente eu e Leandro vamos ao boliche, ao Paint-ball, ou
passamos a noite jogando RPG. Mas a noite sempre termina no Pizza Hut.
Somos viciados na pizza de peperone.
— Não tem namorada? — Ela devolveu a pergunta.
— Não.
— Mas, não sai com ninguém? Nem esporadicamente?
Meu pomo de adão subiu e desceu.
— No momento, não. Mas gosto de uma pessoa — deixei escapar.
— Sério? — Com um sorriso nos olhos, ela se inclinou para frente.
— Como é que ela é? É bonita? Vocês dois já ficaram?
Nessa hora, meu rosto já não estava mais quente, estava pegando
fogo. Perdido por cem, perdido por mil, pensei.
— É a garota mais bonita que já vi na vida — eu disse —, mas ela
ainda não sabe do meu interesse. Praticamente nunca nos falamos.
— Como assim? — ela uniu as sobrancelhas. — Vocês dois nunca
ficaram? Nem uma paquerinha?
— Não. — Estiquei o corpo e pus as mãos atrás da cabeça, fingindo
me espreguiçar. — Digamos que é um tipo de amor platônico da minha
parte. Ela nem desconfia.
— Ela é da escola? — ela investigou.
62
Virei o rosto de lado e dei outro meio sorriso.
— Aí você já tá querendo saber demais.
Rafaela me lançou um sorriso estranho.
— Nossa... — ela se recostou na parede. — Como pode amar
alguém que não te conhece? Somente por vê-la? Não consigo
compreender.
— Provavelmente, eu e você temos um tipo diferente de coração.
— O que quer dizer com isso?
Abracei os joelhos.
— Não consigo entender o que você viu no Mateus, não consigo
enxergar as qualidades dele.
Houve uma pausa meio tensa entre nós.
— Ele é divertido — disse mais séria. — E bonito.
— Se isso é suficiente para você... — Antes que começássemos a
discutir novamente, levantei-me. Não queria estragar a atmosfera. — Se
me der licença, acho que vou ao reservado, já está escuro. Também
precisa ir?
— Não, não... — Ela devolveu o sorriso, meio sem graça. — Nem
morta me atrevo a ir lá no escuro.
63
— Tudo bem então, eu já volto.
Quando me levantei, com o canto dos olhos vi que Rafaela
acompanhou os meus movimentos. Daria tudo para saber o que ela estava
pensando. Assim que saí para o relento, fui golpeado no rosto por um frio
cortante. Batendo os dentes, demorei uns bons cinco minutos até
conseguir urinar. Havia vários ruídos estranhos a minha volta. Fiquei com
medo. Assim que consegui, retornei para o abrigo e, quando cheguei, a
visão foi arrebatadora.
Rafaela estava deitada de lado no chão, dormindo e fazendo sua
mochila de travesseiro. Seus cabelos escorregavam pela mochila
parecendo uma cascata dourada. As chamas iluminavam sua pele, dando-
lhe um ar sereno, quase infantil. Fiquei perdido olhando a curva do seu
quadril, desabando na cintura fina, tão delicada. Ela parecia uma deusa na
abundância dos atributos. Mesmo quando fazia coisas feias, como bocejar,
se coçar, ou dar um grunhido de raiva, nela sempre pareciam bonitas. E
agora, dormindo... Gostaria de ter palavras para descrever a cena como
um poeta saberia. Andei até ali e me sentei perto dela. E em algum
momento da noite, comecei a achar que tudo aquilo na verdade fora um
grande golpe de sorte, e não um acidente sem nenhum propósito. Prometi
a mim mesmo que a levaria em segurança para casa. Se precisasse, eu
tinha certeza, daria a minha vida para isso.
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~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
O dia seguinte também não foi nada fácil. Estávamos mais
cansados e famintos do que no dia anterior. Acordei com Rafaela gritando
"ladrão!". Fiquei com medo que um dos meliantes tivesse nos encontrado,
mas depois percebi que ela berrava para um sagui. Segundo ela, o bicho
viu minha mochila aberta e roubou nossa única maçã. (Tenho certeza de
que deixei a mochila fechada, para mim, foi ela quem abriu durante a
noite). Ela pegou o coitado no ato do furto, mas não soube o que fazer
para impedi-lo, pois teve medo de se aproximar. O resultado foi o de
sempre: Rafaela já estava de mau humor. Tentando animá-la, abri meu
saco de biscoitos recheados e tirei cinco para cada um de nós, imaginando
que seu mau humor fosse fome. Mas tão logo deu a primeira mordida,
Rafaela soltou um grito de pavor. Um inseto desconhecido, muito parecido
com um besouro preto, estava subindo pela sua perna. Rafaela ficou
pulando feito uma gazela maluca. Fui obrigado a fincar o pé dela no chão
para dar um peteleco no bicho. Daí, ela fez algo que me chocou. Sem
pensar duas vezes, pegou minha garrafa de isotônico - que ainda devia ter
um quarto de líquido - e, tomada de cólera, espatifou-o com toda força
contra a parede. Fiquei olhando para ela, atônito.
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— Muito obrigado — disse eu, com tom de sarcasmo —, agora
além de termos que achar a saída, precisaremos achar água também. E o
cheiro de isotônico vai atrair os insetos para cá. E esteja grata se for só isso
que o cheiro atrair.
Rafaela tapou o rosto, parecendo tentar se acalmar. A essa altura,
já começara a compreender que não ganhava nada comigo com seus
chiliques.
— Foi mal, Enzo, mas preciso que me tire daqui. Eu devia estar na
praia, pegando sol com as minhas amigas — parecia estar falando consigo
mesma. — Pelo amor de Deus! Não é possível que isso tudo não te
desespere... — ela apontou as paredes da rocha. — Passei a pior noite da
minha vida, espantando um inseto da perna a cada cinco minutos,
assustada com os barulhos. Estou nervosa, não estou em meu estado
normal.
— Ainda bem — falei me levantando, indignado com o seu
egoísmo. — Senão, te indicaria urgentemente alguma clínica psiquiátrica.
Já te disse que esse seu desespero não ajuda em nada. Precisamos pensar
com clareza. Vamos buscar a trilha novamente. Mas preciso que esteja
calma. Também dormi mal essa noite, mas nem por isso descontei em
você, muito menos desperdicei nossos suprimentos. Aquela garrafa podia
servir para abastecimento de líquido, sabia? O ser humano pode resistir
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vários dias sem alimento, mas essa possibilidade diminui muito com a
falta de água.
— Tudo bem — ela disse de novo —, não vai mais se repetir. O
que quer que eu faça agora?
— Junte suas coisas. Não deixe nada para trás que possa atrair
algum bicho pra cá. Se não encontrarmos o caminho, voltaremos.
Rafaela amarrou o cabelo na nuca e fez o que eu lhe disse.
Parecia-me contrariada por receber ordens minhas, porém, nada falou.
Também me deu a impressão de ter novamente acusações contra mim na
ruga que se formou entre as sobrancelhas, como se eu fosse o culpado
daquela situação. Ignorei-a, pois pelo visto seu mau humor era
contagioso.
Caminhamos novamente marcando o caminho. A densidade da
vegetação só nos permitia enxergar de dez a trinta metros de distância.
Diferente de Rafaela, andei praticamente cantando por cerca de duas
horas. Deparamos com um lagarto, alguns macacos-prego e uma dupla de
quatis. Rafaela se enrijecia a cada encontro inesperado com eles. Mas, dessa
vez - é claro, com algum esforço - repeti-a todas as vezes que se
aproximava de mim e não deixei que se pendurasse no meu braço. Em
certo momento, comecei a notar uma mudança no clima. Os galhos das
árvores começaram a dançar e sentimos um vento frio nos envolver. Dei-
67
me conta de que iria chover e sugeri que retornássemos peto caminho.
Sabia que nossa saúde poderia ficar debilitada se ficássemos com as
roupas molhadas. Era uma das primeiras regras de sobrevivência na mata:
manter-se seco. Aproveitamos para fazer nossas necessidades por causa
do abrigo. Por sorte, Rafaela tinha na bolsa alguns lenços umedecidos, que
serviam para tirar maquiagem. Apesar da situação constrangedora, tive de
concordar: foram providenciais. Senti que ela ficou inchada de orgulho
por desempenhar um papel tão importante na nossa expedição.
No caminho de volta, parei para pegar uma fruta estranha caída
no chão. Eu não conhecia, mas vi alguns micos comendo pelo caminho.
Parecia uma castanha gigante. E eu ouvi dizer uma vez, em um programa
de televisão, que tudo que os animais comem também pode ser consumido
peto homem. Rafaela franziu o cenho e me perguntou:
— Pra que está pegando isso?
— E comida, não vê?
— Não vou comer essa porcaria! — afirmou ela, insolente como
de costume. Respirei fundo.
— Não deve ter um gosto tão ruim. Vi vários micos devorando isso
pelo caminho.
— E por acaso eu tenho cara de babuíno?
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Esforço sobre-humano.
— Conversaremos sobre isso quando a nossa comida acabar.
Provavelmente, em pouco tempo vamos degustar larvas ou raízes de
plantas. E na maior alegria. Agora, cale a boca e recolha algumas dessas
frutas também.
— Sim, chefe. — Ela bateu continência, com evidente sarcasmo.
Recolhemos umas cinco frutas e retornamos para o abrigo. Assim
que chegamos, vimos três quatis passeando dentro da caverna. Eram os
animais mais abundantes da região. Provavelmente, haviam sido atraídos
pelo cheiro de isotônico. Lancei um Olhar acusador para ela e entrei
sozinho no abrigo para espantá-los. Depois disso, isolei bem as comidas
que ainda tínhamos no fundo da minha bolsa. Pelo cheiro, percebi que a
chuva estava prestes a começar, então chamei Rafaela para o lado de fora
para cavarmos um buraco no chão.
— Precisamos cavá-lo na profundidade de um balde — avisei a
ela.
— Pra quê?
— Para armazenarmos água da chuva. Cavaremos e colocaremos
um saco dentro. Pegue aquele da minha bolsa.
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Rafaela me obedeceu sem reclamar, o que achei um milagre.
Verifiquei se o saco que trouxe estava furado, mas parecia que não. A
seguir, recolhemos materiais para fazer uma nova fogueira. Sugeri que
recolhêssemos o máximo de galhos secos possíveis, pois não sabíamos por
quanto tempo iria chover. Assim que deixei tudo preparado, voltei para a
caverna e comecei a montar a fogueira para acender mais à noite.
Dividimos o segundo sanduíche. Afinal, não podíamos nos arriscar a
deixá-lo estragar. Naquele momento, estava mais do que agradecido por
Doralice achar que eu sofria de bulimia. Bebemos o resto da água e
guardamos a garrafa para armazenar a água da chuva. Após um silêncio
tenso, Rafaela tombou a cabeça de lado e falou:
— Está com raiva de mim?
Joguei uma pedrinha no lado de fora.
— Às vezes, é difícil não ficar.
— Não sei como tem me aturado — confessou e me observou ao
mesmo tempo, para ver o efeito que suas palavras me produziam. — Você
é sempre assim, tão paciente com todos? Ou eu tenho algo especial?
Fiquei gelado. Eu sabia onde ela estava querendo chegar, queria
saber se a garota que eu amava era ela. Por isso, permaneci calado.
— Diga-me — ela insistiu —, há algum motivo para ser tão
generoso comigo? Qualquer outro já teria me largado na mata.
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— Qualquer outro como Mateus? — perguntei, para espezinhá-la.
Ignorando a alfinetada, Rafaela sorriu.
— Não estamos falando dele. — Ela não parecia abalada. —
Venha, sente aqui do meu lado. Vamos conversar mais um pouco, para
passar o tempo.
Persuasiva, pensei eu. Muito persuasiva.
— Estou te ouvindo perfeitamente daqui — defendi-me. Não
queria que ela arrancasse a verdade de mim, não com aquela cara
debochada. Eu estava doido para ajustar algumas contas com ela, pois às
vezes me atacava sem motivo, mas não lhe daria aquele gostinho. Rafaela
tinha uma forte tendência a apreciar bate-bocas. Eu não.
— Já jogou imagem e ação? — ela perguntou de repente.
Olhei para ela e pisquei.
— Já. Várias vezes — respondi ainda emburrado.
— Que tal brincarmos um pouco, para passar o tempo?
— Não sou muito bom nessa coisa de mímica — afirmei. Irritado.
— Então eu faço e você adivinha — ela sugeriu.
Expiei seu rosto, que parecia exibir um sorriso sincero. Derreteu-
me. É impressionante o que a garota mais linda do mundo pode fazer com
a gente.
71
— Tudo bem — eu disse, me odiando por estar sempre cedendo.
— Vamos ver se você tem talento para o teatro.
Instantaneamente animada, Rafaela pôs-se de pé à minha frente.
Em seguida, jogou o cabelo de lado - enfeitiçando-me por alguns
segundos - e começou a fazer uma mímica. Fez diversos gestos e
movimentos, contando palavras ao meio, separando sílabas, mas eu não
tinha nenhuma habilidade naquele jogo. Às vezes ela parava e se acabava
de rir diante das minhas tentativas estúpidas. Uma das palavras foi "avião".
Dei o nome de todos os pássaros que vieram à minha cabeça, talvez
influenciado pelo ambiente, mas não acertei. Em determinado momento,
enquanto ela fazia ou outra mímica, falei a palavra "helicóptero". Rafaela
desabou no chão rindo e me disse que eu era um caso perdido.
— Helicóptero - repeti, com um olhar mais atento. — Não está
ouvindo?
Creio que ela também começou a ouvir o barulho da hélice, pois
danou a correr para fora e a pular cruzando os braços por cima da
cabeça.
— Aqui, aqui! — gritava ela, agoniada.
Saí também, mas ainda não o avistava.
— Precisamos correr para um lugar mais alto — falei.
72
Rafaela olhou para os lados, apavorada. Em seguida saiu correndo
contornando a Pedra.
— Não é possível, não é possível! — dizia, tateando as paredes da
rocha. — Tem que ter um jeito de subirmos aqui.
Lembrei-me da fogueira e corri para nossa caverna. Talvez, se eles
vissem a fumaça, saberiam onde nos encontrávamos. No exato momento
que entrei, peto barulho concluí que o helicóptero estava passando bem
em cima de nós. Ouvi Rafaela gritando mais alto: "Estamos aqui, estamos
aqui!"' Comecei usar o arco freneticamente, tentando acender a fogueira.
Mas minhas mãos tremiam, por isso deixei o galho cair várias vezes. Ouvi
o barulho de novo, mas não consegui' Somente depois de uns oito
intermináveis minutos vi a fumaça começar a sair. Assim que acendi, vi
Rafaela aparecer na porta da gruta, com um ar derrotado. Ficamos nos
encarando, calados e deprimidos. Reparei que um de seus joelhos estava
sangrando. Provavelmente, em seu desespero, havia tentado escalar a
pedra. Levantei-me para ampará-la. Começou a chover. Fiz com que ela
entrasse e se sentasse junto comigo.
— Vou pegar um pouco de água da chuva para limpar seu
machucado — eu disse.
73
— Não. — A voz de Rafaela foi mais um sussurro. Ela olhou para
fora, a chuva já estava ficando um pouco mais forte. — Eu estou mesmo
precisando de um banho. Estou me sentindo nojenta.
Tentei impedi-la.
— Não pode molhar suas roupas. Ficará resfriada na certa.
— E quem disse que vou tomar banho de roupa? Ficarei só com as
roupas de baixo.
Senti um calor intenso subindo pelo meu corpo, que deve ter
transparecido no rosto, pois ela emendou:
— Não fique tão animadinho... É claro que vou tomar banho
sozinha. Se precisar de você, eu grito. Mas se pegar você me espiando
sequer uma vez, arrancarei seus olhos e os comerei no jantar. Está me
entendendo?
Olhei para a chuva de novo, tentando bloquear meus
pensamentos, não exatamente produtivos.
— E como vai se enxugar depois disso? — perguntei, tentando
demonstrar que era isso que me intrigava, sem muito sucesso.
— Me enxugarei com a blusa e vestirei meu casaco. Depois a
secarei na fogueira.
Acenei com a cabeça positivamente.
74
— Está certo — eu disse. — Não se preocupe, não vou espiá-la. E
depois de você, tomarei um banho também.
Rafaela pediu que eu me virasse de costas para que pudesse tirar a
roupa. Obrigou-me a encarar a parede até retornar. Imaginar Rafaela
seminua na chuva era uma tortura para mim. Tive que me conter dezenas
de vezes para não espiá-la. Mas eu realmente a respeitava e não poderia
ser tão canalha com ela. Em seguida, fui eu. Não foi o pior banho da
minha vida, mas com certeza foi o mais congelante. Aproveitei para beber
um pouco de água da chuva. Quando voltei, fiquei feliz ao ver que o saco
no chão já estava cheio de água e desejei que tivéssemos outro.
Rafaela encarava a parede quando entrei no abrigo. Também me
enxuguei com a blusa. Em seguida, vesti meu casaco e a calça por cima da
cueca molhada. Coloquei os óculos. Infelizmente, o zíper do casaco estava
quebrado, por isso teve de ficar aberto. Aproximei-me da lareira e me
sentei. Rafaela se virou para mim e nossos olhos se encontraram. O cabelo
todo úmido e solto pareceu lhe dar um ar mais ameno, mais suave.
Sorrimos um para o outro, como duas crianças travessas, envergonhadas
por terem um segredo. Dividimos minha barra de cereal e estendemos
nossas blusas perto do fogo para secá-las. A tarde virou noite. Apesar da
lareira, às vezes meus lábios estremeciam por causa do clima. Meu nariz
devia estar vermelho como o de um palhaço, pois Rafaela comentou:
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— Você está tremendo de frio. Por que não fica aqui mais certo de
mim? Também estou tremendo um pouco. E dois corpos juntos se
aquecem mais rápido, não é?
— Principalmente pelados — retruquei, brincando com ela, mas
torcendo para que Rafaela abraçasse a ideia. Ela somente riu e chegou
mais para o lado.
— É a primeira vez que é mais atrevido comigo. Se fosse outro,
aposto que já teria me cantado.
— Não sou como os outros — falei, e de repente percebi minhas
lentes ficando embaçadas.
— Mas acha que sou bonita?
— A mais bonita que já vi — deixei escapar.
— Eu sabia... — Rafaela jogou a cabeça para trás e sorriu. Só então
me dei conta de que tinha sido pego no flagra. Eu já havia dito que a
garota que eu amava era a mais bonita que já vira. — É por isso que
sempre espiava minha casa, não é? Por que é apaixonado por mim?
Não olhei para ela. Não sabia o que dizer como negar.
— Isso não faz diferença — foi o que consegui dizer. — Não sou o
tipo de garoto com quem você sai, nem pretendo ser.
Rafaela franziu o cenho e parou para pensar.
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— Como sabe de que tipo de garoto eu gosto? Não pode me julgar
somente por Mateus. Ele não foi o único garoto com quem saí.
— Sei disso — falei, lembrando-me dos tipinhos que a pegavam
em casa. — Mas tenho certeza de que não sou como eles. Tenho outras
qualidades, outras aspirações, outras atitudes.
— Como amar uma pessoa em silêncio? — ela me provocou, com
um pequeno sorriso.
Nunca mais se calava. Não largava o assunto.
— Não vamos mais falar sobre isso. Não tem sentido — eu lhe
disse.
Pegando-me de surpresa, Rafaela veio para perto de mim e
encostou no meu braço. Depois, retirou meus óculos e ergueu o meu
queixo delicadamente, olhando-me fixamente nos olhos. Era como se
estivesse me dando carta branca para beijá-la. Eu não podia acreditar no
que estava vendo. Rafaela estava ali, se oferecendo para mim. Tudo que eu
sempre desejara na vida estava acontecendo. Sua mão estava pousada no
meu rosto, quente, sedosa e macia. Delicadamente, seus dedos
escorregaram pelo meu pescoço, passando pelo peito e parando na
barriga. Fiquei tão zonzo com o seu toque que bastaria um sopro para eu
cair. Todavia, um fiapo de amor-próprio falou mais alto dentro de mim.
Eu não queria somente viver uma aventura com ela. Já sofria por Rafaela o
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suficiente. Se ficássemos juntos agora, como seria quando fôssemos
resgatados? Como seria quando eu a visse de novo nos braços de Mateus?
Não queria que ficasse comigo somente uma vez por caridade, gratidão,
ou simplesmente para não morrer de tédio na mata. Meditei sobre o nosso
relacionamento, ou melhor, sobre o nosso não relacionamento, como um
jogo de xadrez, no qual nunca chegaríamos a um xeque-mate. Por isso,
com uma força que não sabia de onde vinha, resisti. De repente, ela disse:
— Você parece o Harry Potter. Os cabelos negros e lisos, o nariz
anguloso, esses lábios finos. — Ela passou um dos dedos sobre eles. — Só
faltava ter os olhos azuis...
— Não faça isso — pedi.
— Fazer o quê? — ela abriu um sorriso inocente.
Não respondi. Somente pus os óculos de novo.
— Você não quer me beijar? — ela perguntou. — Não era isso que
queria esse tempo todo?
Com um profundo suspiro, reforcei minha determinação.
— Não. Não como nós estamos agora — falei.
Rafaela recuou um pouco o rosto, parecendo me examinar.
— E como é que estamos agora? — ela me perguntou.
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— Confusos. Perdidos. Você não sabe o que está fazendo. É sempre
tão impulsiva... — À minha critica, seus olhos se estreitaram
minimamente.
— Eu sou assim mesmo — ela confirmou. — impulsiva. Às vezes
corro riscos que outras pessoas não correriam. Mas, pelo menos, nunca
vou deixar uma oportunidade escapar. Fique tranquilo. Esse momento não
vai voltar a acontecer. — Ela saiu de perto de mim. — Eu devo mesmo
estar muito confusa para querer beijar um CDF como você! Devo ter
destrambelhado de vez! Estou ficando maluca!
A seguir, cruzou os braços e se recusou a falar comigo, me olhando
com a mesma expressão petulante de sempre. Ergui os olhos para ela, com
meu ego irremediavelmente machucado. Reconsiderei seriamente meus
sentimentos por Rafaela. Eu estava farto daquela situação. Das suas súbitas
e constantes variações de humor. Sempre tão irritável, tão exigente. Não
quero dizer que eu também não tivesse momentos alegres, que não fosse
vibrante, mas tinha grandes inclinações a mergulhar num estado de mau
humor. Estou convencido de que ela estaria mais feliz se estivesse
maquiada. Sempre com aquela expressão que, começo a compreender, é
descontentamento. Reclama de tudo.
E fato. É a pessoa mais tremendamente propensa a tagarelar que já
conheci. Até mais do que Alana. Depois de uma vida inteira de expectativa
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de conhecê-la melhor, tive vontade de amordaçá-la dezenas de vezes. Eu
só queria escafeder-me na escuridão. Tudo ali, incluindo ela mesma,
parecia-me insuportável. Nunca imaginei que ficaria fatigado dela, mas,
naquele momento, para minha surpresar eu fiquei.
Rafaela
Segunda-feira.
Ainda não acredito que estou presa nessa selva idiota. Isso tudo só
pode ser um pesadelo, ou um castigo de Deus. Como se não bastasse, a
minha única real companhia resolveu ficar muda, praticamente não se
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comunica comigo. Eita garoto mandão! Eu juro que tentei entendê-lo, mas
Enzo é a criatura mais complicada que já conheci. Sempre com aquele
jeito tão centrado e dono da situação.
Adora dar ordens.
Como pode não estar endoidecendo com tudo isso? Estamos
perdidos! Às vezes, sua falta de desespero parece alarmante, me irrita.
Confesso que no começo cheguei a ser meio cruel com ele por causa disso.
Fui uma verdadeira peste. Gritava horrivelmente, amaldiçoando a sua
vida, amaldiçoando sua tentativa estúpida de me salvar me levando para
dentro da mata... Mas não há nada mais difícil do que colocá-lo na
defensiva. Dificilmente se irrita. Possui um autocontrole monumental.
Disparei-lhe perguntas na cabeça diversas vezes para irritá-lo, mas ele
não se cansava de responder. Dava-me até a impressão de que até gostava
de fazer isso. Como se só o fato de comunicar-se comigo já o encantasse o
suficiente. Penso que eu fazia isso porque gostaria que ele fizesse alguma
coisa absurda, algo que chamasse a atenção para nós. Como escalar uma
rocha, provocar um estouro, derrubar uma árvore...
Ousadia. É disso de que Enzo precisa.
Por mim, passearíamos berrando por cerca de duas horas até que
alguém nos achasse. Que se danem os predadores! Sua praticidade só
serviu para nos manter salvos até agora, mas o que quero mesmo é sair
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logo desse lugar. Nunca mais vou explorar a natureza. Somente
frequentarei os passeios urbanos. Se tivesse sido assaltada na Praça XV
nada disso estaria acontecendo. Prefiro arriscar minha vida a ficar presa
nesse abrigo para sempre. Minhas costas doem. Meu cabelo está um ninho
de nós. E - tenho certeza – estou começando a variar das ideias.
Ontem - que ninguém nunca descubra isso - tentei beijar o Enzo.
Logo eu, que sempre julguei minhas amigas quando ficavam com esses
caras sem nexo. Mas, por um segundo, eu realmente queria fazer isso.
Devo ter perdido um parafuso na mata. Se fossem vinte e quatro horas
atrás, só a ideia me deixaria nauseada. Cheguei perto dele e mantive meus
olhos no mesmo nível que os seus, mas não esperava me emocionar com o
modo gentil com que Enzo me olhou. O garoto parecia estar
contemplando um milagre. Fiz isso - acredito eu – pelo prazer de me
sentir dona da situação, de ter poder sobre o coração de outra pessoa.
Senti vontade de inebriá-lo, de lhe dar um presente, de me exibir... Ele era
apaixonado por mim uma vida inteira, ora bolas! Eu me senti...
Envaidecida quando soube de tudo isso! Quer dizer, todo mundo deseja
ser especial para alguém. E nunca ninguém sentiu nada parecido por
mim. Pelo menos ninguém que me conhecesse de verdade. Contudo, por
menos que Enzo tenha falado, percebo que seus sentimentos por mim são
profundos. Totalmente diferentes dos de Mateus, que já mostrou que não
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tem intenções exatamente inocentes comigo. Tenho certeza de que, se eu
tivesse cedido, Mateus já teria pulado para a próxima vítima, pois ele só
pensa em fazer bonito para os amigos. Mas não posso julgá-lo por isso,
pois estou com ele, em parte, pela mesma motivação: status. E não se
engane, é duro ter que admitir isso para mim mesma, mas a verdade é que
Mateus é um dos garotos mais cobiçados daquela escola, e estar com ele é
quase como... Como levar um troféu para casa. Minhas amigas estão
morrendo de inveja, tenho certeza disso. Eu sempre dei mais sorte do que
elas com os meninos, mas é claro que me comporto de maneira humilde
quando estou com as garotas, ignorando os olhares masculinos, dando a
transparecer que não sei o quanto sou sortuda e tenho boa aparência, e
muito menos como sei aproveitar-me dessa vantagem. E assim as derrubo
ainda mais: sendo absolutamente simpática.
Mas agora, eu só queria... Saber como era beijar alguém que me
amasse de verdade. Sentir uma sensação diferente.
Isso significa que tenha perdido o controle sobre as minhas
emoções? Claro que não. Significa que agi de forma irracional,
simplesmente por que meus impulsos e vaidade tinham conseguido abrir
caminho para as ações? Talvez. De qualquer modo, como se já não fosse
suficientemente humilhante me oferecer para Enzo, o panaca me recusou.
Fiquei lívida, me recusando a acreditar. Não só por ele ser um CDF
83
insignificante, que jamais deve ter beijado uma bela menina, mas por
saber que ele sempre foi apaixonado por mim! Que tipo de idiota
dispensaria uma chance dessas? Será que ele imagina, por um sequer
esperançoso minuto, que haverá outra chance como aquela? Será que ele
não se enxerga?
O fato é, que desde esse episódio, Enzo tem me parecido cansado,
exaurido de mim. Não me dirigiu mais uma palavra sequer. E, pior,
começo realmente a sentir falta da sua voz. Será que estou pirando de vez?
Sinto falta do seu sorriso, sinto falta das suas tiradas sarcásticas, daquele
ar protetor... Porém, preciso confessar: depois que Enzo recusou aquele
beijo, fiquei bastante irritada com ele. Por isso, acabei disparando ofensas
na sua cara sem premeditar. Estou arrependida, de verdade. Ainda mais
depois daquele olhar que ele me lançou profundamente magoado.
Internamente, eu não queria ter provocado aquilo. Permanecemos
calados. A chuva que caía do lado de fora do abrigo parecia interminável,
monótona. Pensei que Enzo fosse deixar aquilo pra lá, esquecer
rapidamente o incidente, mas ele passou o resto da noite estudando
atentamente a fogueira. Nem sequer ergueu os olhos das labaredas
douradas que crepitaram quando dei boa noite, tentado amenizar o clima
entre nós. Pare perdido no fogo.
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Dei-lhe boa noite, tentado amenizar o clima entre nós. Parecia
perdido no fogo.
Percebo que, ao descobrir a Rafaela que existia dentro de mim, a
minha alma, as minhas emoções, Enzo ficou completamente
decepcionado. O que só prova - segundo a minha teoria - que ele nunca
me amou de verdade. Nunca amou a verdadeira Rafaela. Ele é tão fútil e
superficial quanto eu. Pois era ao meu exterior, ao meu aspecto e à
fantasia que criou em sua mente que Enzo acreditava amar. Afinal, que
reação ele esperava de mim? Estou confusa, nervosa e perdida. E, atém de
estar absurdamente com fome, também começo a desconfiar que esteja
entrando na TPM, período em que meu humor oscila freneticamente. Mas,
como abordar um assunto desses com um menino? A despeito das
circunstâncias, somos praticamente desconhecidos. Pelo menos, eu me
sentia assim até algumas horas atrás. Talvez ficar ilhado com alguém faça
com que nos sintamos muito próximos a essa pessoas mesmo que
desejássemos estar em qualquer outro lugar. Até mesmo em outro país.
Até mesmo na lua!
O problema é que sinto que algo está se transformando dentro de
mim. Foram somente algumas horas de convivência, mas foram intensas, e
tenho medo dos sentimentos despertados por Enzo. Sentimentos
indesejáveis. Principalmente a culpa. Quando estou perto dele, não gosto
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de mim. Ele faz com que eu me sinta culpada quando infrinjo alguma
regra, quando extrapolo os limites. Mas eu sempre agi assim, minhas
amigas sempre agiram assim. Mas agora, com ele, é como se tudo que eu
fizesse fosse completamente idiota. Como seu eu fosse vazia e inútil.
Infantil. A única vez em que Enzo me elogiou desde que chegamos foi
quando providenciei lenços umedecidos para as nossas necessidades. Na
verdade, nem foi bem um elogio:
"Que providencial!" ele comentou.
"Obrigada" falei, sentindo-me orgulhosa e deprimida ao mesmo
tempo.
Eu estou acostumada a ser sempre elogiada, mas a verdade é que,
pelo menos aqui, Enzo é muito melhor do que eu em quase tudo. Sempre
tão educado, tão prestativo, tão cheio de qualidades... E em uma de nossas
poucas conversas, completamente comovido, Enzo me falou sobre sua
mãe. E a sinceridade na sua voz tocou-me o ponto mais vulnerável: o
amor à família. Começo a perceber que sempre quis admirar esse tipo de
cara. Talvez já admirasse secretamente, embora reconheça que não são
populares. Mas é como se Enzo cutucasse uma parte boa dentro de mim.
Tenho plena consciência disso, muito embora acredite que jamais darei o
braço a torcer. Minha vida era tão simples antes de conhecê-lo... Eu a
quero de volta. Quero voltar a me sentir bem comigo mesma. Quero sair
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dessa selva. E quero um repelente, pelo amor de Deus! Ainda faço um
pedido secreto: se houver realmente um Criador neste mundo, por favor,
transforme Enzo em alguém atraente!
Ai Deus! Se minhas amigas ouvissem isso...
Coisa ainda mais estranha: Enzo me fascina. Nunca havia reparado
nele até chegarmos aqui. Ele era como parte do mobiliário daquela escola,
totalmente ignorável, e no condomínio, praticamente invisível!
Se bem que, certa vez, eu e minhas amigas fizemos apostas sobre
os possíveis garotos virgens da nossa classe e Enzo encabeçava o topo da
lista. Foi à única vez em que tocamos no nome dele. E também, quando
éramos mais novas, apesar de nos acharmos adoráveis, éramos um pouco
cruéis com os meninos desse tipo, que sentam sempre na primeira fileira
da classe e ficam todos satisfeitos quando a professora lhes faz alguma
pergunta; só para responder corretamente e esnobar o resto da classe com
o seu elevado intelecto. Costumávamos mandar bilhetes secretos de amor
para esses sujeitos, assinando como uma anônima apaixonada, marcando
encontro no recreio do colégio, só para morrer de dar risada quando eles
iam e não aparecia ninguém. Agora, ao lembrar-me que fiz isso com Enzo
uma vez, bateu uma pontada de culpa.
A verdade é que nunca pensei nesse tipo de cara – que nunca usa
roupas nem acessórios de grife - objetivamente como outra pessoa. E não
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era só por fora que Enzo era diferente dos outros meninos. Ele nunca
aparecia nas festas, não fazia parte do time de futebol, nunca se metia em
nenhuma briga, não zoava ninguém... Eu odiava aquele seu jeito certinho
e pensamentos organizados. Porém, agora, confesso que passei a sentir um
profundo respeito por ele. E não se trata somente de ele ter muito mais
conhecimento sobre tudo do que eu - tanto conhecimento que me faz
balançar a cabeça e me perguntar de que planeta ele veio -, mas é que
Enzo sempre diz o que pensa e isso faz com que eu questione a minha
própria conduta. Percebo agora que nunca tive para com a sua espécie, os
nerds, compreensão suficiente. E, verdade seja dita: se não fosse Enzo e
seus neurônios de CDF, há essa hora eu já estaria a caminho da luz. Além
do que, qualquer outro garoto podia ter sido mais abusado comigo. Mas
Enzo, não. Por isso, quando ele me trata com tanto respeito, não consigo
evitar encher-me de culpa ao lembrar-me de tudo que dizíamos sobre ele.
Mas também tenho uma crítica a fazer: Enzo nunca viveu a vida como
merece ser vivida. Acredito que ele nunca agiu por impulso. Afinal,
adolescência significar arriscar, fazer coisas ilícitas, cometer alguns
erros... Inacreditavelmente, ele nem tentou me espiar quando tomei banho
ao relento, sozinha. Enzo é um perfeito cavalheiro, daquele tipo que dá o
braço para atravessar as velhinhas na rua.
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O engraçado é que sempre desprezei sujeitos como ele, que não
têm grandes atributos visuais. Mede aproximadamente um metro e
setenta e cinco - o quer para mim, significa girafa, visto a minha
insignificante estatura. Todavia, não é desengonçado como a maioria dos
adolescentes. Anda sempre tão seguro de si... Tem olhos aguçados,
expressivos e vigilantes. Parece que tudo assimila. Possui mãos grandes e
panturrilhas avantajadas. Mas se veste com muita simplicidade,
simplicidade até demais para o meu gosto. Sempre com aquele ar
inteligente, aquela expressão madura, como se fosse muito mais velho do
que eu. O tipo de garoto que esperamos ver num evento de Campus
Party².
Mas enrubesce, enrubesce por tudo. Principalmente quando chega
perto de mim. Quando toquei o seu braço pela primeira vez, acho que foi
o prazer que deixou suas bochechas rosadas. E quando descobri que ele
era apaixonado por mim, pensei que fosse incendiar tamanha a
vermelhidão de seu rosto.
_________________________________________________ ²Campus Party - é o principal acontecimento tecnológico realizado em diversos países e também no Brasil desde 2008.
Fui muito astuta. Já estava desconfiada de que ele era apaixonado
por mim, só o encheu de perguntas e, pimba, apanhei-o com a boca na
botija. Creio que, antes de cair na minha emboscada, ele apreciou minha
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genuína curiosidade petos seus interesses, mas eu estava igualmente
determinada em explorar áreas mais pessoais. Confesso que ele ficou uma
gracinha quando pareceu tão tímido e embaraçado por eu ter descoberto
seus sentimentos. Seu olhar se tornou estático, suas bochechas ficaram
avermelhadas, a respiração levemente ofegante...
Mas por que diabos eu estou reparando nele?, Eu me perguntei,
decidindo que era melhor observar a caverna. Já imaginou o que minhas
amigas diriam se desconfiassem disso? Sinto-me tão atribulada com meus
pensamentos... Será que ingeri algum cogumelo alucinógeno por
acidente? Bem que desconfiei daquelas frutas malucas que recolhemos
pelo caminho.
Mas já estou divagando.
Há essa hora, eu deveria estar no curso de inglês. Deveria estar
seguindo com a minha vida. Será que o mundo lá fora continua? Será que
já estão espalhando cartazes por aí procurando por mim? Bem, pensei eu,
me consolando, depois de ser vetada no Big Brother por ser menor de
idade, finalmente serei famosa por alguma coisa. Fico imaginando se já há
faixas diante da nossa escola, velas acesas nos enviando boa energia, flores
jogadas perto do muro do condomínio...
Deus! Será que sairei na capa da revista Veja desta semana?
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Agora senti um real arrepio de medo. Que foto, pelo amor de Deus,
minha mãe deverá escolher? Ela sempre foi péssima para essas coisas.
Espero que não escolha aquela que tirou de surpresa no último Natal. Eu
estava ridícula, com o rímel todo borrado e a cara abatida de sono. Mas
minha mãe adorou, inclusive colocou-a na sala, em um porta-retrato. Já
posso até ver minhas amigas maldosas, se empurrando numa briga louca
para olhar a fotografia e me criticar. Não posso pensar sobre isso, preciso
ser otimista: minha mãe escolherá uma foto do Facebook.
Talvez, quando voltarmos, serei convidada para desfiles de moda.
Também darei entrevistas, posarei para capas de revistas... E, quem sabe,
não serei convidada para atuar em Malhação? Sairei do anonimato para a
fama, como tantas ex-BBBs! Afinal, vamos combinar a maioria não tinha
talento nenhum. Foi à beleza que deu um empurrãozinho. E isso - beleza -
, com toda licença, eu tenho de sobra.
Preciso mesmo pensar nessas coisas, pensava eu, remexendo na
minha mochila em busca do último quadradinho de chocolate. Preciso
alimentar minha esperança. Na verdade, sinto-me grata por ainda estar
viva. Não quero morrer. Há tantas coisas que ainda desejo fazer... Se
conseguir sair daqui, nunca mais serei a mesma pessoa fútil de antes.
Amarei a vida mais apaixonadamente. Farei com que cada segundo seja
digno de ser vivido. Também vou passar o fazer caridade! Zelar pelos
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pobres! Doar todas as minhas roupas de marco para... Ah! Que maravilha!
Vejo só onde botei meu batom da MAC. Já estava procurando por ele há
um tempão. É como eu digo: a vida ainda me reserva gratas surpresas!
Esse batom custou-me os olhos da cara. Só pode ser um sinal do Divino.
Um sinal de que tudo dará certo no fim. Serei tão famosa quando a marca
MAC, tão famosa quanto a Grazi Massafera! Com certeza, vou amar o
estrelato. Quem sabe até posso escrever um livro? Se bem que, na verdade,
pensei comigo mesma, isso seria muito mais a cara do Enzo.
Aliás, ele ainda não voltou, percebi, olhando para os lados.
Confesso que quando acordei e não o vi, fiquei assustada. Não fosse pela
mochila que deixou para trás, eu pensaria que ele tinha me abandonado
depois de todas as coisas estúpidas que eu disse. Mas, pelo pouco que
conheço dele, Enzo nunca faria isso. Pelas novas marcas nas árvores, vejo
que ele foi à outra direção. Deve ter acordado cedo para tentar buscar a
saída sozinho. Porém, não gosto de ficar aqui, esperando sozinha. Tenho
medo de que um animal apareça. E, impossível compreender, tenho ainda
mais medo de que Enzo volte ferido. Ainda mais depois de tudo que fez
por mim.
É estranho, mas eu estou tão ansiosa para vê-lo de novo... Claro
que isso não significa que alguém precise saber, mas Enzo consegue me
fazer depender dele, desejar a sua presença. Como meus sentimentos
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saíram de controle dessa maneira, meu Deus do céu? É como se Enzo fosse
à única pessoa que eu conhecesse neste mundo. Sei que parece esquisito,
mas é assim que me sinto. Sinto-me tão longe da normalidade, da minha
vida e de tudo o mais. Não que eu não queira voltar, é claro que quero.
Mas, será que tudo voltará a ser como antes?
Estava pensando em tudo isso quando, de repente, minha pulsação
disparou. Levantei em silêncio, detectando o barulho. Era o helicóptero de
novo. Saí em disparada para a mata. Não sabia o que devia fazer. Vi-o
passando bem em cima de nós, mas as copas daquelas árvores me
camuflavam. Será que Enzo conseguira buscar ajuda? Meu coração
transbordou de esperança. Fiquei olhando para cima, depois olhei para a
maldita pedra. Por que tinha de ser tão íngreme? Se eu conseguisse subir,
facilmente seria avistada por eles. O zumbido das hélices foi parecendo
esmaecer, indo para longe. Fiquei parada por uns dois minutos, atenta, na
esperança de ele voltar. Em seguida, desalentada, caí de joelhos no chão e
levei as mãos ao rosto. Pela primeira vez fechei os olhos e lembrei-me da
minha mãe, o que só serviu para aumentar as saudades de casa. Éramos só
nós duas, só tínhamos uma à outra. Como ela deve estar desesperada,
comecei a pensar. Tinha hipertensão. Será que passava bem? Será que
sentia que eu ainda estava viva? Dizem que as mães têm esse tipo de
93
premonição. Eu não poderia fazer isso com ela, não poderia abandoná-la
sozinha.
Não como meu pai.
Naquele momento, decidi que iria sobreviver. Custasse o que
custasse. A partir de então, colaboraria em tudo com Enzo. Eu sabia que só
ele poderia nos tirar dali. Deixaria de fazer da sua vida um inferno.
Queria tanto que ele estivesse ali comigo...
— Volte logo — falei em voz alta, embora ninguém pudesse me
ouvir.
— Já está falando sozinha? — perguntou ele por trás de mim. —
Mau sinal.
Virei-me e olhei para ele. Enzo estava corado, provavelmente se
cansara na caminhada. Segurava um galho grande, como sempre, e estava
muito descabelado. Seu rosto tinha novos arranhões, um bem perto do
olho esquerdo. Pela primeira vez, não sei por quer reparei como seus cílios
eram longos. Nossa garrafa de água estava no bolso esquerdo da sua calça.
Enzo me encarava muito sério, com a mesma expressão de ontem. Senti
uma nova onda de culpa.
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— Que bom que voltou. Estava preocupada com você — eu disse,
e percebi que era a pura verdade. Assim como estava estupidamente
decepcionada por ver que ele ainda estava magoado comigo.
— Tentei ir por um caminho diferente — ele desviou os olhos de
mim e jogou o galho no chão. — Não achei a saída, mas descobri uma
queda-d'água perto daqui.
— Jura? — Me levantei, desejando parecer animada. — E dá para
mergulhar?
— Não. É muito rasinha. Mas enchia garrafa de água. Pelo menos
não morreremos de sede.
Dito isso, ele encaminhou-se para dentro do abrigo.
— Enzo — fui atrás dele. — Queria falar com você.
— Pode falar. — Sem olhar para mim, Enzo se abaixou e guardou
a garrafa de água na mochila. Fiquei incomodada com sua falta de
atenção, mas prossegui:
— Sei que tenho sido uma imbecil desde que chegamos aqui, e
você não merece isso. Queria saber se você me perdoa.
Enzo se conteve, em seguida olhou para mim como se eu fosse uma
alienígena.
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— Por acaso ingeriu alguma folha desconhecida? — ele me
perguntou.
A esse comentário, senti um resquício de raiva borbulhando dentro
de mim, mas mantive-me pacífica e somente ri.
— Você está me pedindo desculpa? — ele insistiu, voltando os
olhos para a mochila.
— Sim, estou.
— E exatamente pelo quê? — Ele ficou de pé e se virou para mim.
Em seguida, cruzou os braços e exibiu um sorriso satisfeito.
— Por tudo que eu disse... — tentei resumir, afinal, eu não
esperava por aquela pergunta.
Ele ergueu uma sobrancelha. Eu suspirei.
— Tudo bem. Por ter feito da sua vida um inferno e por ter te
chamado de CDF.
Enzo deu um sorriso sarcástico.
— E acha que foi isso que me ofendeu? Ser chamado de CDF? —
Ele balançou a cabeça, evidentemente reprovando meu raciocínio. — Pois
fique sabendo que isso, pra mim, foi um elogio. Sujeitos descerebrados
como o seu amiguinho Mateus, no futuro, trabalharão para nós, os CDFs
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da turma. O que eu não suporto é essa sua atitude egoísta. Você só pensa
em si mesma, não tem respeito pelos sentimentos dos outros. Mas, sabe,
você acabou me fazendo um favor, pois me arrancou da famosa terra da
fantasia. Sei que você julga os outros pela aparência, mas percebi que
cometi o mesmo erro, pois julguei você pela "capa". Pensei que você fosse
doce, inteligente e delicada. Mas a verdadeira Rafaela é o antônimo disso
tudo.
Fiquei parada por alguns instantes, magoada, olhando para ele.
— Está me chamando de burra? — me enfureci.
— Não espero que sejamos amigos — continuou ele, ignorando a
minha pergunta —, só espero que você me respeite. Quanto eu, torço
para que sejamos resgatados o mais rápido possível. Não aguento mais
nem um minuto perdido nessa selva com você.
Tão logo senti minhas lágrimas brotando de novo, mordi os lábios,
fechei as mãos com bastante força e disse a mim mesma que não iria
chorar. Era impossível me dar bem com aquele imbecil. Cruzei os braços e
experimentei mostrar-me mal-humorada. Em geral, Enzo sempre me
adulava quando eu fazia isso. Mas percebi que naquele dia não iria rolar.
Ele havia criado uma espécie de barreira entre nós. Eu poderia gritar
insultos pelo resto do dia que ele não iria se importar. Agora, eu era como
a sua mochila, algo que Enzo precisaria carregar, pois seu espírito de bom
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moço não permitiria que ele fizesse o contrário. Mas eu era como um
objeto, como algo insignificante, exatamente como eu o via antes de tudo.
E de repente, senti-me triste, pois percebi que não queria ser só isso para
Enzo.
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Eu pretendia recuperar o tempo perdido, desfazer a má impressão
que Enzo tinha sobre mim e ajudá-lo no que fosse possível para o nosso
retorno. Passamos o dia a fazer caminhadas em várias direções, mas ele
permanecia mudo, só que agora eu respeitava o seu silêncio. Nossa
comida estava se esgotando e isso sempre acabava com o meu humor, mas
fiz de tudo para controlar os meus faniquitos. Devoramos quilos e quilos
de jaca e eu já estava nauseada só de olhar para a fruta. Eu detestava jaca,
mas Enzo insistiu que eu comesse. Cheguei a argumentar que eu só
precisava comer um pouquinho, afinal, somente cem gramas da fruta
continham SESSENTA E UMA calorias. Mas Enzo me fulminou com os
olhos. Eu estava com fome. Ele venceu.
No final da tarde seguinte, ele resolveu sair para buscar um pouco
de água e eu pedi para ir com ele, que somente deu de ombros e saiu
andando na minha frente.
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A cascata era realmente muito rasar por isso, ao chegarmos lá,
sentei em uma pedra próxima e enfiei os pés dentro da água enquanto
Enzo enchia a garrafinha. Ele estava dentro do pequeno lago e a água
batia em seus joelhos. Eu estava farta daquele clima tenso entre nós, por
isso arrisquei.
— Por quanto tempo vai ficar assim comigo?
Enzo me espiou rapidamente.
— Assim como? — ele tampava a garrafinha.
Pulei na água ao seu lado e olhei-o de cabeça para baixo.
— Assim — disse eu —, me ignorando.
— Não estou te ignorando, só não quero falar com você —
respondeu ele, lacônico.
Eu ri.
— Que frase inteligente! — comentei, ainda sorrindo para ele.
Enzo quase riu enquanto enfiava a garrafinha no bolso.
— Já está ficando tarde — ele disse —, é melhor voltarmos logo
para o abrigo.
— Não vou voltar até você me dar um sorriso — cruzei os braços.
Enzo suspirou.
99
— Acha que isso tudo é uma brincadeira? — perguntou ele,
pondo as mãos na cintura. — Estamos perdidos e nossa comida está quase
acabando.
— Só um sorriso... — Aproximei o indicador e o polegar. — Um
sorrisinho pequeno...
Enzo continuou me encarando com a amabilidade de um galo de
rinha.
— Ah, não vai rir? — Abaixei-me com as mãos em concha. —
Mas também não vai me desprezar. Prefiro que fique bravo comigo. —
Comecei a jogar água na roupa dele.
— Que isso? Está maluca, garota? Como eu vou me secar? — Ele
tentou segurar o meu braço. — Ah, você está rindo? Pois não vou ser o
único a ficar gripado por aqui.
Enzo me deu uma banda e afundou-me no fundo do lago. A água
estava tão gelada que pareciam mil agulhas penetrando na minha pele.
Quando emergi, meu cabelo tapava o meu rosto, mas vi que Enzo já estava
sorrindo, por isso não reclamei. Segurei-o pelas pernas e derrubei-o na
água também. Ficamos lutando para ver quem afogava um ao outro.
Somente quando vi nossa garrafinha seguindo no curso do rio, comecei a
gritar:
100
— Nossa água! Nossa água!
A garrafa havia escapado da calça de Enzo e seguia para uma
queda próxima a nós. Se não chegássemos a tempo, perderíamos nosso
último depósito de líquido. Enzo saiu correndo na minha frente, mas
escorregou e caiu pelo caminho. Ultrapassei-o, andando com dificuldade
por causa da água pelos joelhos.
Desesperada, quando a garrafa estava a uns dois metros da queda,
lancei-me para frente e a agarrei, mas bati com o queixo em uma pedra
submersa.
— Ai... - gritei de dor ao sentir minha língua latejar.
Em um segundo, Enzo materializou-se atrás de mim.
— Você se machucou — ele segurou o meu queixo com um ar
apavorado. — Vi que você bateu em alguma coisa.
— Acho que mordi a língua — avisei, espantada com toda a sua
preocupação.
— Não parece que está sangrando — ele observou. O rosto dele
estava tão próximo, que meu rosto queimou de repente.
— Já, já vai passar... — disse eu. Em seguida me desvencilhei da
mão dele, incomodada com os sentimentos que me dominaram.
101
Enzo me puxou para fora da água e sentamos lado a lado em uma
pedra. Ele deve ter percebido que eu estava tremendo, pois, como se
sempre tivesse sido assim, passou o braço esquerdo em torno do meu
pescoço.
— Pelo menos eu salvei a nossa garrafa de água — falei, sem
graça com a nossa proximidade, mas feliz por estarmos às boas de novo.
Enzo riu com sarcasmo em seguida passou a mão direta em seu
próprio cabelo, ajeitando-o para trás.
— Já temos água suficiente nas nossas roupas hoje seria só torcer
e beber.
Mordi os lábios, receosa.
— Me desculpe por isso, Enzo. É que você não falava comigo —
eu abri os dedos. — E essa situação toda já é tão angustiante... Sei que fui
uma peste, mas preciso de você... — adulei-o.
Enzo retirou o braço de mim. Parecia magoado de repente.
— Já disse que não vou te abandonar, não precisa temer. Não vou
fazer isso.
Engoli um nó que se apertou na minha garganta e me virei para
ele.
102
— Não, não é só por isso, Enzo. Não é só porque pode me ajudar
que eu quero que você fale comigo — procurei deixar claro. — Precisa
acreditar em mim. Esses dias que passei com você, me fez perceber o
quanto fui idiota. Nunca lhe dei atenção. E você é tão inteligente, tão
sensato, tão gentil... Nós somos vizinhos e colegas de classe! Já deveríamos
ser amigos há muito tempo.
Enzo me olhou por um segundo, em silêncio.
— Bem — ele riu, depois jogou uma pedrinha na água —, pelo
visto nosso relacionamento evoluiu muito rápido, pois agora não somos
mais somente vizinhos, nós moramos juntos. Então, acho melhor
começarmos a nos entender.
— É — verdade. — Eu ri, mas em seguida franzi o cenho. —
Enzo?
— Que foi?
— O que você acha de mim?
Surpreso pela pergunta, Enzo uniu as sobrancelhas. Mas eu queria
mesmo saber. Acho que nunca tinha ouvido uma resposta sincera para
essa pergunta. Minha mãe me achava o máximo, minhas amigas me
achavam o máximo e os meninos me achavam gostosa. E se Enzo falasse o
103
que realmente pensava sobre mim, talvez eu me sentisse mais à vontade
para dizer como me surpreendi o conhecendo melhor.
— Quer saber o que eu acho sobre você?
Assenti com a cabeça. Ele ficou mudo por alguns instantes. Dava
para ver que ele estava processando como falar.
— Por favor, seja sincero — pedi.
Enzo suspirou, tomando coragem.
— Bem — começou ele, olhando para frente —, acho que você se
importa muito com a opinião dos outros. E fica muito preocupada em ter a
aprovação alheia. Mas, talvez, seja porque seu pai a abandonou.
Aquilo doeu. Mas eu concordei com a cabeça, incentivando-o a
continuar.
— Também acho que você é meio egoísta — ele espiou-me com
os olhos — e bastante mimada.
Resignada, concordei novamente.
— Também não gosto muito das suas amigas.
Eu concordei mais uma vez.
— Nem dos seus amigos.
104
Já entendi, pensei, sentindo-me deprimida. Pra que eu fui
perguntar...
— Mas sabe mesmo o que eu acho? — ele disse de repente.
— O quê? — perguntei, pensando se poderia ficar pior.
— Acho que debaixo dessa fachada fútil, existe uma pessoa
realmente especial. É impossível que alguém vazio pudesse emanar tanto
brilho. Se você juntasse o que tem por dentro, com o que já tem por fora, a
verdadeira Rafaela seria simplesmente imbatível.
Obviamente, enrubescida mesma hora, e minha boca ficou aberta
por três segundos. E não, meninas, eu não pulei nele — Fico feliz que veja
algo bom dentro de mim — eu disse, Olhando para as mãos — e feliz que
não esteja mais irritado comigo.
Enzo lançou-me um sorriso triste.
— Por mais que eu me esforce, não consigo odiar você por muito
tempo.
Ao ouvir isso, olhei para as flores ao nosso lado, com um misto de
alegria e tristeza. Alegria por ter ouvido o que ouvi, e tristeza por perceber
o quanto agora eu me importava com o que Enzo pensava de mim.
Seguiu-se um longo silêncio entre nós, que ele quebrou.
105
— E você? — perguntou-me repentinamente, olhando bem nos
meus olhos. — O que acha de mim?
Senti meu estômago embrulhar, pois percebi que não estava
preparada para falar a verdade.
— Acho que você é inteligente — respondi concisa.
— Tem certeza? — ele perguntou. — É isso que você e seus
amigos sempre acharam de mim?
— Que amigos? — indaguei, tentando fugir do assunto, embora
soubesse multo bem a resposta.
Percebendo o estratagema, Enzo apertou os olhos para mim. Eu
suspirei.
— Você me perguntou o que eu acho de você agora... — eu
assinalei.
— E o que achava antes — ele quis saber.
— Não nos conhecíamos muito bem — respondi vagamente. Eu
não queria aprofundar aquele assunto.
Enzo ficou calado por uns cinco segundos. Depois, apoiou os
cotovelos no joelho e ficou mirando um pedaço de grama das mãos.
-—Você me achava um otário — ele disse por fim.
106
— Claro que não — menti.
Enzo riu num suspiro.
— Se vamos começar uma amizade, precisamos ser sinceros um
com o outro. Eu fui sincero com você. Portanto, não minta para mim. Você
me achava esquisito?
— Sim — respondi, após alguns segundos. Triste por ter de
confessar aquilo.
— Foi por isso que nunca falou comigo? — ele perguntou.
Responder aquela pergunta doeu-me mais do que eu esperava.
— Acho que sim — tentei ser honesta — mas hoje não acho mais
isso. Só acho que você é mal compreendido pelas outras pessoas.
— Como se eu me importasse... — murmurou, em seguida
ficando em silêncio de novo. Aquilo me incomodou. Eu não queria vê-lo
daquele jeito, não queria que ficasse magoado comigo. Demorei algum
tempo para perceber que a conversa tinha acabado e que era a minha vez
de falar alguma coisa.
— E você, por que nunca falou comigo antes? Também me achava
esquisita? — Eu ri, tentando recuperar o clima bom entre nós.
Enzo sorriu e começou a se levantar.
107
— Confesso que te estranhei quando chegamos aqui, mas agora,
que está mais calma, posso até dizer que você é quase simpática. Bem
próxima da Rafaela que imaginei.
Senti um estranho pulinho de alegria no meu estômago, que tentei
ignorar. Não consegui.
— Quase — fingi estar magoada, segurando em sua mão para
me levantar.
— Isso mesmo. Mas não se engane — ele advertiu —, se
continuar enchendo meu saco, vou arrumar uma mordaça para sua boca.
Agora vamos, não quero que você pegue um resfriado.
— Quer dizer que ainda se importa com a minha saúde? —
perguntei, curiosidade e tom de brincadeira disputando lugar em minha
voz.
Enzo virou-se para mim e grudou os olhos molhados nos meus.
Senti algo em meu peito aquecer, algo que me assustou. Ele ergueu o
braço e colocou uma mão no meu queixo suavemente me causando um
tremor, que não era de frio.
— Me importo com tudo que envolve você, Rafaela, não consigo
evitar. Você é a parte mais bonita da minha vida... — Ele fez uma pausa,
parecendo angustiado, mas em seguida sorriu. — Mas a verdade é que
108
você já me dá trabalho suficiente quando está saudável. Por isso, vamos,
garota, ainda preciso bancar o senhor do fogo hoje à noite, de novo.
Ele pegou minha mão com firmeza e foi caminhando na minha
frente como sempre. Apertei bem meus dedos em torno dos seus, para
fazê-lo parar, pois só uma imbecil como eu o teria evitado por tanto
tempo. Só uma tola não perceberia o quanto Enzo era especial. O quanto
era mais interessante do que qualquer outro garoto daquela escola.
Enquanto ele me mirava, para ver o que me fizera estacar, fiquei olhando
em seus olhos sentindo um leve tremor na mão, enquanto borboletas
agitavam-se no meu estômago. Não havia mais como negar: sobre tudo
que Enzo representava como pessoas eu o queria para mim. Nem que
fosse por um dia.
Como não havia testemunhas, mesmo tremendo, puxei-o um
pouco para mais perto de mim. Ele não relutou, mas seus olhos
arregalaram-se levemente. Eu nunca havia tomado a iniciativa com um
menino na minha vida, mas enchi-me de coragem naquela hora. Toquei
no rosto dele delicadamente e retirei seus óculos. Quando fiz isso, Enzo
ergueu uma mão e segurou o meu pulso, em seguida fechou os olhos e
beijou a palma da minha mão, com muito carinho. O toque doce dos seus
lábios na minha mão disparou calores que se estenderam pelo meu braço
e tomaram o meu coração. E quando Enzo envolveu-me pela minha
109
cintura, pensei que meu coração fosse explodir. Eu nunca havia sentido
isso por um menino, nunca tive tanta expectativa antes de um beijo. Por
isso, fechei os olhos para absorver melhor o momento. Estávamos às
margens da cachoeira, molhados e descalços. O cheiro de flores e frutos
impregnava o ar ao nosso redor. Eu não via à hora de Enzo me beijar e de
poder retribuir seu carinho. Mas de repente, um barulho ensurdecedor
como uma britadeira foi preenchendo o ambiente, interrompendo o clima
entre nós. Um barulho que eu havia desejado tanto nos últimos dias, mas
que pensei em ignorar solenemente naquela hora. Mas eu sabia que não
podia fazer isso. Quando abri os olhos, contemplei Enzo se afastar, tão
constrangido quanto eu, e dei-me conta, infeliz, de que aquele momento
nunca mais se repetiria.
ENZO
Eu já havia ouvido algumas histórias de pessoas que ganharam na
loteria e perderam o bilhete, mas nunca havia conseguido imaginar qual
110
era a sensação. Agora, eu sabia. Havia ficado sozinho com Rafaela por três
dias completos e tudo que consegui foram dois quase beijos dela. E um -
agora eu quero me matar - que eu recusei. Abafei um grito estrangulado
no meu travesseiro. Eu estava com ódio de mim. Eu não tinha ideia do que
aconteceria agora entre nós. Por um momento, enquanto estávamos
perdidos na mata, achei que poderia realmente esquecê-la. Estava tão
irritado com ela... Além do que, eu não estava mais iludido a respeito de
sua personalidade. Sabia que Rafaela podia ser a pessoa mais irritante do
mundo, se assim o quisesse. Mas, a cada vez que eu a olhava, cada traço
do seu rosto, cada gesto despreocupado me hipnotizavam de uma forma
preocupante.
Desde que voltamos para casa não havíamos nos falado. Era
quarta-feira e nenhum de nós foi à aula. Eu tinha uma entrevista para dar
e meu pai havia marcado uns quinze exames médicos para eu fazer.
Queria ter certeza de que minha saúde não fora abalada. Mas eu pouco
me importava com isso, minha cabeça estava em outro lugar.
Desde que voltei, olhei pela janela dezenas de vezes para ver se
avistava Rafaela. Mas fora um entre e sai desenfreado de suas amigas, eu
não vi nada que me animasse naquela casa. Para culminar, a Scooter de
Mateus estava parada na frente da casa dela desde que Rafaela retornou.
Confesso que vigiei a porta praticamente a noite toda, na esperança de vê-
111
la enxotá-lo de lá, ou de que o conduzisse até o portão com qualquer
indício físico de que o relacionamento havia acabado. Mas, meu sacrifício
foi inútil. Mateus ficou por lá a noite toda.
Eu não podia acreditar que nada havia mudado entre nós, que
nada havia mudado nos sentimentos de Rafaela por mim. Afinal, ela
tentara me beijar! E duas vezes! E da última vez, posso jurar que ela
queria me beijar de verdade. Por isso, ouvir a voz do megafone que veio
daquele helicóptero foi de lascar. Nunca imaginei que desejaria tanto ficar
perdido na mata.
Mesmo em somente três dias, nós ficamos muito próximos um do
outro. Será que tudo ficaria para trás? Será que eu seria somente uma
experiência que Rafaela desejaria esquecer? Esse pensamento me
consumia. Ela fora o centro da minha vida durante anos!
Quando fomos resgatados no fim da tarde, percebi, para o meu
espanto - e também absoluta vergonha - que estávamos a cerca de duas
horas de distância da trilha. Andamos para o lado totalmente oposto na
mata. Primeiro, um bombeiro desceu do helicóptero por uma corda e nos
perguntou se estávamos bem. Conferindo que sim, nos orientou que
pegássemos nossas coisas enquanto um segundo bombeiro descia. Fomos
amarrados e resgatados pelo helicóptero e, quando descemos, havia
dezenas de pessoas e flashes esperando por nós.
112
Assim que Rafaela colocou os pés em solo de novo, sua mãe e
Mateus correram para a abraçarem. Qualquer idiota poderia notar como
Mateus estava satisfeito diante das câmeras. Meu pai, tio Mauro, Leandro,
Eva e Alana também aguardavam por mim. Eu nunca havia visto meu pai
tão comovido na vida. Chorava feito criança, e fiquei feliz por ver que
minha presença daria um fim ao seu sofrimento. Quando cheguei em
casa, a recepção efusiva de Doralice quase me estrangulou. Chorando,
lançou os braços em torno do meu pescoço e enfiou meu nariz com toda a
força contra o seu peito. Vovó Rose, como já era de se esperar, sorrindo
para mim, pediu à Doralice que servisse um café à visita. Nunca imaginei
que ficaria tão feliz em revê-la.
A quarta-feira finalmente virou quinta, triplicando a minha
ansiedade. Durante a noite, vi que Rafaela havia aceitado meu convite de
amizade do MSN, mas estava constantemente ausente. Arrumei-me como
nunca para o colégio naquela manhã. E, pela primeira vez em minha vida,
utilizei as lentes de contato que havia ganhado de tio Mauro no Natal.
Coloquei o meu melhor par de tênis, minha melhor calça jeans,
mas não tive como escapar da horrenda blusa azul e vermelha para poder
entrar no colégio. Mesmo desconfiado de que havia expirado o prazo da
validade, coloquei um pouco do perfume importado do meu pai, que
minha mãe, antes de morrer, lhe trouxera de uma de suas viagens. O
113
cheiro era ótimo e, se fosse o caso, eu suportaria as alergias que
aparecessem depois.
Quando cheguei ao colégio, meu coração retumbava tão alto no
peito que achei que alguém poderia escutá-lo. Não só por saber que
finalmente a veria, mas porque sabia que eu seria o centro das atenções
naquela semana. Desci do carro de meu pai, que fez questão de me
acompanhar naquele dia importante, e investigue em torno para ver se
avistava Leandro. Ele já havia deixado bem claro ao telefone que queria
saber todos os detalhes de minha empreitada selvagem com Rafaela.
Tenho certeza de que ele estava imaginando altas cenas eróticas rolando
na mata. Mas Leandro não estava por ali.
Cruzei o portão de cabeça baixa, tentando, inutilmente, me tornar
invisível. Todos olhavam na minha direção, alguns até batendo fotos com
o celular. Era ridículo! Pessoas que nunca falaram comigo na vida vieram
me cumprimentar, cheios de preocupação. Achei impressionante a
quantidade de caras-de-pau. Mas eu não estava me importando com isso,
a cada aproximação eu perguntava por Rafaela. Depois de perguntar pela
décima vez, avisaram-me que ela estava no pátio, cercada por suas
amigas. Ainda que relutante, caminhei para lá. Não sabia como seria
recebido. Será que ela correria e se lançaria em meus braços? Isso era
tudo que eu mais desejava, mas é claro que desconfiava que não. Todavia,
114
certamente, nosso relacionamento já havia mudado. E fomos
interrompidos em um ponto de evolução muito importante, que eu
pretendia alcançar agora o mais breve possível. Ainda procurava por ela
quando senti uma mão tocar minhas costas. Virei-me e vi Alana sorrindo.
— Que bom que voltou para a escola! — disse-me ela em um tom
alegre.
Assenti com a cabeça, também sorrindo.
— Pois é...eu...
- Não imagina como fiquei curiosa para saber como você
sobreviveu na floresta. Você deve ter tido experiências incríveis!
— Nem tan...
— Você precisou comer alguma minhoca? Ou de repente algum
desses bichos nojentos?
— Não, não foi necessário — respondi, olhando em torno, com
uma agonia evidente.
— Está procurando Leandro? — ela me perguntou, deixando um
de seus livros caírem no chão. — Pois eu o vi agora a pouco lá na cantina
comprando M&M.
115
— Não, não... Estou procurando por Rafaela, me disseram que ela
estava aqui no pátio. Você a viu?
Alana ajeitou os óculos que lhe escorregavam pelo nariz,
indicando com a cabeça que não.
— Acho que vou procurá-la novamente lá fora, e... — Olhei para
ela. — Ei... Você soltou o cabelo!
— Pois é — ela enrubesceu um pouquinho. — E você tirou os
óculos. Ficou muito bem assim.
— Você também — eu ainda olhava para os lados.
— Olha — ela disse —, acho que a Rafaela já deve ter ido para a
sala. Agora que ela e Mateus terminaram, acho que não tem mais motivo
para ela ficar enrolando aqui fora. Mas ele já deve estar por aí
paquerando a mulherada como sempre.
— Como é que é... — Segurei no braço dela, o coração
fervilhando de esperança. — Rafaela e Mateus terminaram?
— Sim — ela arregalou mais olhos. — Você não sabia?
— Não — respondi, engolindo um grunhido de alegria.
116
— Mas nem parece — Alana continuou. — Mateus chegou ao
colégio tão alegre hoje cedo... Ah — ela estalou os dedos —, Enzo, preciso
mesmo fazer aquele trabalho sobre genética e queria saber se você vai
mesmo poder me ajudar. Não posso deixar minha média em ciências cair.
Eu poderia passar na sua casa hoje à noite e então...
— Acho que não vai dar. — Nesse momento, como uma cortina se
abrindo para mostrar um grande espetáculo, um grupo de garotas se
afastou e pude ver Rafaela no meio delas. Sorrindo! Constatei otimista.
Não parecia nem um pouco abalada com o fim do namoro. — Peça para o
Leandro te ajudar, ele adora essa matéria.
— Mas...
— Preciso ir agora, Alana, a gente se fala depois.
Caminhando com cautela, comecei a me aproximar das meninas.
Rafaela estava de lado para mim e encostada em uma das mesas do pátio.
Uma de suas amigas avistou minha aproximação e deu uma cotovelada na
outra. Eu ainda estava a uns cinquenta metros dela quando tive a
impressão de que Rafaela também me notou. Ela endireitou a postura e
parou de sorrir, Olhando para frente. Deu-me a impressão de que ficara
um pouco nervosa. Confiante, continuei caminhando, dizendo a mim
mesmo que talvez ela não tivesse realmente me visto, senão teria acenado
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ou coisa parecida. Mas Rafaela espiou-me rápido mais uma vez e dessa
vez eu tive certeza de que ela tinha me avistado, pois em seguida, jogou o
cabelo de lado como sempre. Mas dessa vez ela não me encantou. Ao
contrário, senti uma pontada aguda e traiçoeira no coração. Parecia que
ela usava o cabelo para cobrir o rosto, como que colocando uma cortina
entre nós. Meu estômago estava tão retorcido que faria inveja a qualquer
escultura de arame, mas já era tarde demais para eu dar meia-volta. Todas
as meninas olhavam para mim e em poucos segundos eu estava parado ao
lado delas.
— Rafaela — uma das meninas disse —, seu namorado está aqui.
— Eu não tenho namorado — rosnou ela entre os dentes.
— Seu noivo?
— Cata a boca, Dandara! — Com um sorriso forçado, Rafaela
respirou fundo e olhou para mim, fingindo surpresa. — E aí Enzo, tudo
bom com você?
— Tudo — respondi, tentando ignorar seu desprezo.
Ela se virou para as amigas.
— Meninas, acho que todas já conhecem o Enzo, não é?
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A maioria me olhou com desdém e respondeu com um
desanimado "E, aí?". Cumprimentei-as de volta e voltei meus olhos para
ela. Uma onda de mágoa me invadiu, pois reconheci em seus olhos a
mesma distância com que olhava para mim antes de tudo. Eu achei que
Rafaela fosse se manifestar para vir conversar comigo a sós, mas parece
que isso não estava nos seus planos. Com vergonha do meu silêncio,
comecei a dizer;
— Tive que fazer um monte de exames médicos ontem, sabe como
é o meu pai... — Droga! Pensei, assim que acabei de falar. Será que não
consigo nem puxar um assunto decente?
Houve uma chuva de risadinhas das suas amigas e uma delas
virou para outra e formou nos lábios a palavra "papai", mas Rafaela
somente olhou para mim, com um olhar que agora me parecia culpado.
Tentei não demonstrar emoção.
— Espero que tenha dado tudo certo — ela murmurou.
— Ainda não sei — olhei para meu tênis —, vamos pegar o
resultado na sexta.
— Hum...
Outro silêncio perturbador. Eu não acreditava no que estava
acontecendo. Parecia que eu havia entrado em um túnel do tempo e
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estávamos exatamente do modo como éramos antes, em dois polos
distantes, divididos por um muro invisível que dividia dois mundos: o meu
e o dela. Era como se tudo que tivéssemos vivido naqueles dias não
passasse de um sonho distante. Eu não podia admitir essa possibilidade.
Afinal, Rafaela terminara com Mateus, e isso devia significar alguma coisa
em meu benefício, não é? Por isso, arrisquei:
— Podemos conversar a sós um minuto?
Outra chuva de risadinhas das suas amigas. Aquilo já estava me
dando nos nervos. Rafaela estava mordendo os lábios, com uma expressão
reticente. Por um minuto, pensei que fosse recusar. Mas em seguida ela
concordou e fomos caminhando para a cantina.
— Você me parece estranha — comentei, tentando entender o
motivo.
— Estou?
— Bem — dei de ombros —, soube que você e Mateus
terminaram. Talvez seja por isso. Aliás, sinto muito.
— Pois eu não — ela disse e ergueu mais a cabeça. A seguir,
estacou e virou-se para mim. — O que quer falar comigo, Enzo? Já
estamos quase na hora da aula.
120
— Queria saber como você estava depois de tudo que passamos...
— Pois estou ótima. E, pelo visto, você também. Podemos ir? Não
quero ouvir gracinha da professora.
— Por que está fazendo isso? — segurei seu braço, para impedi-la
de prosseguir.
— Fazendo o quê?
— Me evitando, como sempre.
Rafaela puxou o braço da minha mão.
— Se estivesse te evitando, não estaria aqui com você.
— Acha que sou algum idiota? Vi como você me tratou na frente
das suas amigas. E essa frieza toda com que está me tratando agora...
— Enzo, o que você quer de mim? — Rafaela cruzou os braços.
— Espero que me trate com o mesmo interesse que me tratou
naquele último dia.
— Escuta — ela pôs uma mão na testa —, sabe que sou muito
grata a você por tudo que fez, mas aquilo que quase rolou... — ela fez
uma cara de desculpas. — Aquilo não vai mais acontecer. Eu estava
confusa. Nós dois somos muito diferentes.
121
— Mas você terminou com Mateus, então eu pensei...
— Foi o Mateus quem terminou comigo — ela confessou.
Perdi o que ia dizer, abismado.
— Mas eu vi a Scooter dele em frente à sua casa ontem, a noite
toda.
— Ele foi embora de madrugada. — Rafaela ergueu os olhos para
mim, só que agora estavam enevoados. — Ele quis tentar até o último
minuto.
Pisquei os olhos e sacudi a cabeça, confuso.
— Não entendi. Tentar o quê?
Ela enxugou o rosto.
— Não vou ficar aqui explicando tudo tin-tin por tin-tin pra você,
Enzo. Às vezes você é tão lento... Eu não tenho mais nada que interesse ao
Mateus. Deixei bem claro para ele que não iríamos chegar onde ele
queria. Ele achou que, com todo aquele incidente na mata, eu voltaria
para casa muito carente, por isso ficou forçando a barra para nós dois...
— E parou de falar, ruborizando levemente de vergonha.
O entendimento me atropelou como um trem de carga. Mateus era
mesmo um cafajeste! A única coisa que ele poderia querer de qualquer
122
garota era... Trinquei os dentes e olhei em torno de nós. A não ser pelas
amigas de Rafaela, esperando por ela, não havia mais ninguém por ali.
Sorte dele, pois eu desejava esmurrar o maldito.
— Fico feliz que não tenha cedido a ele — eu disse, voltando os
olhos para ela. — isso não seria muito digno de você.
— Obrigada. Mas agora eu preciso ir mesmo, minhas amigas estão
me esperando.
— Rafaela — segurei-a de novo —, podemos conversar mais no
recreio? Ainda tem muita coisa que eu preciso lhe dizer.
Antes de me responder, Rafaela espiou rápido suas amigas. Olhei
para o grupo também, a tempo de ver uma delas revirar os olhos quando
olhou para mim.
— Olha Enzo, é claro que podemos ser amigos fora daqui, mas
esse negócio de ficarmos andando juntos aqui no colégio... — Ela se calou,
torcendo um pouco os lábios ao olhar para os pés. — Você já havia dito
que não gosta muito das minhas amigas, e eu não vou abandoná-las para
andar com você. Que tal... — aproximando-se de mim, baixou um pouco
a voz. - Que tal a gente se falar no MSN mais tarde?
É claro que eu não gostei do que ouvi, mas mesmo assim disse:
123
— Pelo MSN, não. Que tai eu ir à sua casa por volta das sete
horas?
— Na minha casa? — Ela arregalou os olhos, parecendo
apavorada. — Não, não... Alguma amiga minha pode aparecer por lá de
repente. Atém do que, ainda tenho a esperança de que Mateus... —
Rafaela se interrompeu e olhou para mim.
— Como é que é? Você ainda pretende dar outra chance para
aquele panaca? Mesmo depois do modo como te tratou?
Rafaela não respondeu, mas seu rosto refletia um patético sim. Por
isso, virei-me de costas, completamente sem ar. Naquele momento, ao
fechar os olhos, penso que experimentei uma profunda sensação de
catarse. Comecei a me lembrar de como eu a admirava, do tempo que
perdi imaginando as nossas conversas, dos plantões que fiz espionando
sua casa. Dos desenhos que fiz imaginando seu rosto. Eu sempre havia
colocado Rafaela num pedestal, mas agora, ele estava em mil cacos no
chão. Lembrei-me também que uma vez li que não é bom que cheguemos
muito perto de um ídolo, pois ao tocá-lo o dourado poderia escorrer-nos
nas mãos. E era a pura verdade, pois as minhas mãos, agora, já estavam
manchadas.
124
Olhei para Rafaela de novo, como se a enxergando
verdadeiramente pela primeira vez e não gostei do que vi. Ela não era,
nem de longe, a garota que eu sonhava para mim. Eu sonhava com uma
garota que fosse forte, que se amasse em primeiro lugar. Que não se
importasse com o que as outras pessoas falariam dela. Que fosse doce,
sincera e genuína. Uma pessoa que tivesse os mesmos valores e interesses
que eu. De repente, ela perguntou:
— Está com raiva de mim?
— Não — respondi, sereno. — Estou com raiva de mim por ter
sido tão idiota esses anos todos pensando em você. A Rafaela que idealizei
não existe. Nunca existiu.
Ela se aproximou e tocou no meu rosto.
— Ainda podemos ser amigos, Enzo. Quando sairmos daqui...
— Não — protestei, retirando sua mão —, não quero mais a sua
amizade, não quero nada que venha de você. E isso é mesmo a sua cara...
— eu ri com sarcasmo. — Só quer ser minha amiga fora daqui, onde suas
amigas não poderão te julgar. Sabe agora eu tenho pena de você, Rafaela.
Pena da sua falta de amor-próprio, pena dos falsos amigos que você tem e
pena da sua prisão. Você não é uma pessoa livre, pois vive sob as regras e
a ditadura das suas amigas, e uma pessoa assim não tem nada para me
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acrescentar. Então, me faça um favor, me evite realmente de agora em
diante. — Dito isso, virei de costas e fui andando para sala de aula. Meu
corpo tremia de ódio dos pés à cabeça. Eu desejava esmurrar alguma coisa
e foi quase o que fiz a uns dez passos da sala, quando Leandro me agarrou
pela mochila.
— Cara, foi isso mesmo que ouvi?
— Tudo bem com você também, Leandro?
— Para de cerimônia, desembucha logo. A propósito, ficou bem
sem óculos. Estava dando um fora na Rafaela?
— Não foi exatamente um fora. Ela não me ofereceu nada, além
de migalhas de sua amizade.
— Nada disso, bonitinho. Escutei tudo da janela do banheiro. Você
disse que ela tentou te beijar!
— Então também deve ter ouvido o que ela disse que sente por
Mateus.
— E daí? — perguntou ele, inabalado. — Quem disse que você
não pode ser o outro? Vai me dizer que não gostaria de pôr um galho na
cabeça daquele idiota?
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Parei, olhando para o chão. Em seguida espiei a cara dele, balancei
a cabeça e tornei a andar.
— Ei, não vai tão rápido — ele disse. — Quero andar ao lado do
destaque do jornal dessa semana.
— Que jornal?
Leandro revirou os olhos.
— Sabia que você não tinha visto. Só fica aí suspirando pela
Rafaela...
Ele me entregou o jornal. Era do dia anterior. E eu estava mesmo
tão atormentado para ver Rafaela que nem havia visto nada na internet,
nem no jornal. Sabia que as matérias saíram, mas também sabia que seria
uma fama relâmpago. Não estava emocionado por isso. Mesmo assim,
passei os olhos pelo artigo. Em destaque, havia uma foto minha e de
Rafaela em preto e branco.
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DUPLA DE JOVENS SE PERDE EM MATA POR MAIS
DE 72 HORAS NO RJ
Os dois jovens que estavam desaparecidos desde o assalto aos
estudantes do colégio Dilebrian, e que eram procurados pelo Corpo de
Bombeiros na Floresta da Tijuca, região metropolitana do Rio de Janeiro,
voltaram para casa na tarde desta terça-feira. De acordo com os
bombeiros, os jovens de 16 e 15 anos encontraram um abrigo em uma
gruta e passaram os três dias no local. Ambos estavam perdidos desde
sábado e, segundo sua colega de turma Alana Gonçalves, que ajudou
incansavelmente na busca mobilizando um grupo de trilheiros
experientes, eles somente sobreviveram devido ao vasto conhecimento
científico do rapaz. O jovem conseguiu não só achar água e alimento,
como também fazer uma fogueira à moda antiga para aquecê-los. Por
causa do sumiço da dupla, o corpo de bombeiros mobilizou equipes com
cães farejadores e dois helicópteros durante todo esse tempo. Eles não
tiveram ferimentos graves e passavam bem quando reencontraram
amigos e familiares.
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Fiquei olhando para aquela matéria, me sentindo um imbecil, pois
percebi que sempre estive tão envolvido com meus próprios interesses que
não percebi o que acontecia bem debaixo do meu nariz. Foi como se eu
tivesse tido uma luz: Alana era apaixonada por mim! Ela havia me
procurado incansavelmente por três dias. Onde eu encontraria maior
prova de amor do que essa?
E, por Deus! Só um idiota não teria percebido aqueles olhos míopes
e em estado de adoração quando Alana me olhava. Aquela alegria
constante. Os assuntos científicos que puxava, pensando que fosse me
agradar. Sempre havia sido educada e solícita comigo.
Naquele momento, fechei os olhos, lembrando-me de como a
havia tratado naquela manhã, e fiquei com vergonha de mim. Eu mal
havia olhado em seus olhos. Nunca lhe dei a devida atenção. Para mim,
Alana era invisível simplesmente porque não se vestia como as outras
garotas. Exatamente como eu era para Rafaela. Flquei triste ao me dar
conta daquilo. Ambos só enxergávamos a aparência. Pelo menos nesse
sentido, eu e Rafaela éramos iguais. Mas felizmente, não em tudo...
— Onde está Alana? — pergunte para Leandro, olhando para
dentro da sala.
— Quem?
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— Alana — gritei para ele.
— Ah, sei ta! Acho que ela passou por mim, indo em direção à
quadra.
— Tem certeza?
— Certeza, certeza, eu não tenho. Não fico reparando muito nela.
Mas, por que a pergunta?
Entreguei o jornal para ele.
— Porque venho cometendo o mesmo erro.
Aproveitei a ausência do monitor no corredor e corri para a
quadra. Esperava sinceramente encontrá-la por lá, mas espiei toda a
arquibancada e não havia sinal de ninguém por ali. Continuei
procurando. Olhei na secretaria, na biblioteca, no laboratório de ciências...
Cheguei a ir até a enfermaria para ver se a encontrava, mas lá só havia
uma criança vomitando. Espreitei por todos os corredores e no
estacionamento. Tornei a olhar na sala de aula e a carteira dela ainda
estava vazia. Por fim, apoiei-me de costas no corredor e encostei a cabeça
na parede. Estava exausto e não sabia mais por onde procurar. Repassava
o mapa do colégio na minha mente, quando de repente ouvi passos vindo
em minha direção. A qualquer momento o monitor viraria a esquina no
corredor onde eu estava. O esconderijo mais próximo era o banheiro das
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meninas. Não titubeei. Entrei e fechei a porta de alumínio. Nesse
momento, ouvi uma fungada que vinha de um dos boxes privativos. O
monitor estava já no corredor, eu não podia sair. Portanto, achei melhor
anunciar minha presença no recinto.
— Olha, não se assuste, não sou nenhum tarado. Só entrei aqui
porque estou matando aula, mas assim que o monitor sair do corredor, eu
sairei do banheiro...
— Enzo? — Escutei uma voz conhecida. — por que está matando
aula?
— Alana?
Ela abriu a porta e eu a vi chorando, sentada na tampa da privada,
com os livros no colo.
— Por que está chorando? — Agachei-me diante dela.
— Não estou chorando — ela se levantou. — E que eu tenho
alergia. Por que está matando aula? — Mudou de assunto e foi andando e
direção ao espelho.
— Estava procurando você.
— Eu? — Ela girou para mim, deixando os livros caírem. Adorei o
movimento dos seus cabelos.
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— Sim.
— E por que estava me procurando? — Ela já catava os livros do
chão.
— Para saber por que você estava procurando por mim.
— Quê? — ela endireitou os óculos. — Como assim?
Olhei fixo em seus olhos azuis.
— Soube que você estava ajudando nas buscas. Queria muito te
agradecer.
— Ah! — O rosto inchado sorriu para mim e corou. Eu nunca
havia reparado como seu sorriso era meigo. — Não foi nada. Já faço trilha
há muito tempo. Foi até divertido. — Ela soprou um cabelo da testa.
— Então, me procurou só por isso? Por causa da diversão?
Alana perdeu um tempo engolindo a saliva. Pela primeira vez, eu a
vi sem palavras.
— O que está querendo saber exatamente, Enzo? Somos amigos.
Foi por isso que fui te procurar.
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— Não — eu disse, segurando uma de suas mãos. — Você sempre
foi minha amiga, mas eu ainda não fui seu amigo... — Fiz uma pausa. —
Até hoje.
Alana ficou me olhando, com o rosto em vários tons de vermelho,
sem saber o que fazer.
— O que quer dizer? — ela perguntou.
— Que ainda não te dei a atenção que você merece. Você é uma
menina muito especial. Talvez, a mais especial desse colégio. Mas, como
posso ter certeza se não tiver uma chance...
Delicadamente, Alana recolheu sua mão.
— Chance de que, Enzo? Você está me deixando confusa...
— De te conhecer melhor. — Enfiei as mãos nos bolsos. — Ainda
quer estudar comigo hoje à noite?
— Não sei — ela enxugou os olhos. — Você disse que estava
ocupado.
Passeia mão pela sua bochecha molhada.
— E era por isso que você estava chorando? — perguntei.
Alana arregalou os olhos para mim, sem palavras de novo. Dei um
meio sorriso.
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— Olha — coloquei seu cabelo atrás da orelha —, sei que não
mereço nenhuma chance de me aproximar de você pelo modo como a
tratei até hoje. Mas eu estava hipnotizado por Rafaela. Precisei tomar uma
bordoada para perceber que havia idealizado uma pessoa que não existia.
Mas agora, eu enxergo você. E sei que você é de verdade. Por isso, quero te
conhecer melhor.
Com a mão visivelmente trêmula, Alana ergueu os dedos e também
tocou no meu rosto.
— Pensei que nunca fosse me notar.
Beijei sua mão.
— Mas notei. Você foi pra mim como uma borboleta, que saiu do
casulo e de repente me mostrou outro tipo de beleza. E então, ainda
podemos estudar juntos? — Com o olhar carregado de emoção, Alana
indicou com a cabeça que sim. — Bem — aproximei-me mais dela —, a
primeira coisa que você precisa saber sobre genética é que geralmente os
opostos se atraem, mas na vida real, isso não é exatamente uma regra... —
Passei um braço em sua cintura. — Podemos fazer uma experiência
científica quanto a isso. O que acha?
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Com nossos rostos a um palmo de distância, Alana sorriu
graciosamente para mim. Em seguida, colocou os livros em cima da pia. A
doçura que havia em seus olhos adoçaria o mais amargo dos vinhos.
— Tudo bem — ela disse, passando os braços em torno do meu
pescoço — somos um casal de alunos bastante aplicado. Portanto —
mordiscou levemente a minha boca —, comecemos a pesquisa.
Fim!
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A autora Lycia Barros reside com o marido e os filhos em sua cidade natal: Rio
de Janeiro. Hoje, como sua função principal, atua apaixonadamente como escritora.
Paixão essa, herdada desde que cursou letras na UFRJ. Seu primeiro romance foi o livro
que já é sucesso "A Bandeja- qual pecado te seduz?" lançando em Outubro de 201.
Autora de "A Bandeja - Qual Pecado Te Seduz?" , "Entre a Mente e o Coração"
(Coleção Despertares) e "Tortura cor-de-rosa" (Geração Z). Uma excelente escritora!
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