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Artigo sobre trabalho Rural

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  • AGRRIA, So Paulo, N 4, pp. 165-184, 2006

    MODERNIZAO E RELAES DE TRABALHO NA AGRICULTURA

    BRASILEIRA*

    MODERNIZATION AND WORK RELATIONS IN THE BRAZILIAN

    AGRICULTURE

    MODERNIZACIN Y RELACIONES DE TRABAJO EN LA AGRICULTURA

    BRASILEA

    Rodrigo Constante Martins

    Professor do Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais da Universidade

    Federal de So Carlos e pesquisador convidado da Maison des Sciences de

    lHomme, Frana (Programme Hermes 2005-2006). E-mail: [email protected]

    Resumo

    A elaborao de conceitos tericos sobre a chamada industrializao da agricultura

    brasileira envolve a contextualizao analtica mais ampla dos processos agrrios. Para

    alm das explicaes sobre o aprofundamento das relaes entre indstria e agricultura,

    a produo conceitual acerca deste processo gerou impactos substantivos sobre a

    prpria constituio dos discursos polticos em torno da transio do trabalho rural no

    pas para uma etapa eminentemente moderna. O objetivo deste artigo realizar uma

    reviso crtica da formulao do conceito industrializao da agricultura, dando nfase

    s implicaes desta abordagem conceitual nas anlises sobre as relaes de trabalho na

    agricultura brasileira. Faremos o uso analtico da categoria marxista de totalidade como

    proposta de construo de abordagens concretas sobre as especificidades das relaes

    de trabalho produzidas no movimento de modernizao da agricultura nacional.

    Palavras-chave: relaes de trabalho na agricultura; trabalho e capitalismo; agricultura

    e capitalismo; modernizao da agricultura; trabalho, natureza e agricultura

    Abstract

    The theoretical construction of concepts about the called industrialization of the

    Brazilian agriculture involves the wide analytic treatment of the agrarian processes.

    Besides the explanations on the deepening about the relationships between industry and

    agriculture, the conceptual production concerning this process generated substantive

    impacts about the own constitution of the political discourses around the transition of

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 166

    the rural work in Brazil to one stage eminently modern. The objective of this article is to

    make a critical revision on the formulation of the concept industrialization of

    agriculture, giving emphasis in the implications of this conceptual approach on analyses

    about the work relations in Brazilian agriculture. We will utilize the Marxist analytical

    category of the totality for the construction of concrete approaches about the

    particularities of the work relations produced in the movement of modernization on

    Brazilian agriculture.

    Key-words: work relations in the agriculture; work and capitalism; agriculture and

    capitalism; modernization of agriculture; work, nature and agriculture.

    Resumen

    La elaboracin de conceptos tericos sobre la llamada industrializacin de la agricultura

    brasilea implica una contextualizacin ms amplia de los procesos agrarios. Ms all

    de las explicaciones sobre la profundizacin de las relaciones entre industria y

    agricultura, la produccin conceptual acerca de este proceso gener impactos

    sustantivos sobre la propia constitucin de los discursos polticos en torno de la

    transicin del trabajo rural en el pas hacia una etapa eminentemente moderna. El

    objetivo de este trabajo es revisar crticamente la formulacin del concepto

    industrializacin de la agricultura, haciendo nfasis en las implicaciones de este

    abordaje conceptual en los anlisis de las relaciones de trabajo en la agricultura

    brasilea. Haremos un uso analtico de la categora marxista de totalidad como

    propuesta para la construccin de abordajes concretos de las especificidades de las

    relaciones de trabajo producidas en el movimiento de modernizacin de la agricultura

    nacional.

    Palabras llave: relaciones de trabajo en la agricultura; trabajo y capitalismo; agricultura

    y capitalismo; modernizacin de la agricultura; trabajo, naturaleza y agricultura.

    Introduo

    Ao longo do sculo XX, foi notria a aproximao estabelecida entre

    a agricultura e os demais setores da economia. Integrada cada vez mais ao processo

    industrial de produo de valores excedentes, a agricultura capitalista incorporou, neste

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 167

    perodo, incrementos tecnolgicos decisivos para a consolidao de um movimento de

    relativizao das barreiras naturais que se colocavam sua produo intensiva.

    Como sabido, ao contrrio da indstria, a produo agrcola tem

    como uma das suas principais caractersticas a descontinuidade da ao do trabalho

    humano no seu interior devido sua dependncia para com os fenmenos naturais.

    Tanto o ritmo biolgico do ciclo de crescimento das plantas quanto os fatores climticos

    do local de produo determinam a forma de ao do trabalho. Alm de o processo

    produtivo possuir datas pr-determinadas de incio e trmino, condicionadas pelos

    fatores supra, ocorre que ele no pode ser interrompido pelo exclusivo arbtrio social.

    Dada a natureza sequencial das etapas produtivas e a dispensa do trabalho humano para

    algumas delas, a produo agrcola assume uma singularidade que no permite o pleno

    controle externo das suas atividades. A rigidez desta ordem seqencial limita, inclusive,

    o prprio alcance do progresso tcnico no setor.

    No Brasil, especialmente a partir da segunda metade do sculo XX, a

    aliana entre a agricultura e os capitais industriais, ao confrontar o objetivo da

    acumulao com os limites naturais da produo agrcola, dirigiu suas aes para a

    maximizao do controle dos processos naturais e para a conquista de novos espaos de

    produo de valores excedentes. Neste caso, sua expanso sobre as reas rurais deu-se,

    no mais das vezes, mediante a conciliao dos interesses da grande propriedade agrcola

    com aqueles da manuteno das circunstancias locais de domnio e desigualdades

    sociais, constituindo assim o que convencionou-se chamar de modernizao

    conservadora das reas rurais.

    A anlise deste fenmeno na agricultura brasileira j produziu um

    amplo debate terico-conceitual. Trabalhos de expresso cunharam o termo

    industrializao da agricultura para expor as caractersticas fundamentais deste

    movimento (GRAZIANO DA SILVA, 1981; GUIMARES, 1982; KAGEYAMA,

    1990). A despeito de suas ambivalncias abordadas por autores como Veiga (1991) e

    Abramovay (1992) tal conceito ganhou notoriedade em parcela significativa dos

    estudos sobre as temticas agrcola e agrria no pas. Ademais, suas possibilidades

    analticas forneceram as bases para a consolidao da interpretao de supostas

    insuficincias do processo de modernizao da agricultura nacional insuficincias

    marcadas, sobretudo, pelo emprego temporrio da fora de trabalho na produo

    imediata.

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    Neste artigo, procuraremos examinar criticamente a construo desta

    alternativa conceitual. Pretendemos, mais especificamente, demonstrar como permanece

    insuficiente o modo como tal enfoque aborda as transformaes das relaes de trabalho

    na agricultura brasileira. Para tanto, faremos um breve resgate do debate conceitual

    travado em torno das mudanas tecno-produtivas na agricultura moderna, tomando por

    referncia os termos empreendidos pelos estudiosos do caso brasileiro. Posteriormente,

    tentaremos recuperar a perspectiva da categoria marxista de totalidade para a

    compreenso das especificidades da modernizao da agricultura nacional, atentando

    especialmente para aquelas caractersticas que se destacam, na anlise dialtica, como

    determinaes particulares da reproduo de contextos mais amplos de sociabilidade;

    ou, nos termos de Castells (2001), da reproduo dos modos de organizao da

    experincia social e das relaes de poder que lhes so intrnsecas sobre os espaos,

    sejam estes ltimos de fluxos ou de lugares.

    A problemtica da industrializao da agricultura

    O termo industrializao da agricultura tornou-se corrente nas

    cincias sociais brasileiras para caracterizar as transformaes ocorridas no processo de

    produo agrcola ao longo dos ltimos 50 anos. Entretanto, o mesmo tornou-se fonte

    de polmica, possibilitando, assim, o surgimento de uma diversidade de anlises, ora

    reforando a sua utilidade, ora contestando-a.

    Para Alberto Passos Guimares, um dos estudiosos que mais

    contriburam para a anlise da questo agrria no pas, a transformao das foras

    produtivas industriais teria sido o elemento propulsor dos processos modernos de

    produo agrcola. De acordo com o autor, medida em que os conhecimentos tcnicos

    e cientficos da indstria foram se ampliando, abriu-se o caminho para um salto

    qualitativo da produo agrcola no sentido da melhoria de sua produtividade e do

    aumento da produo propriamente dita. Se no passado ter sido a revoluo agrcola a

    responsvel pela abertura do caminho revoluo industrial, formando mercados para o

    consumo das manufaturas, na segunda metade do sculo XX seria o desenvolvimento

    industrial o responsvel pela dinmica do desenvolvimento agrcola, ditando

    agricultura as regras segundo as quais esta poderia progredir, bem como os limites at

    onde poderia expandir-se (GUIMARES, 1982: 83)

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 169

    Segundo Guimares, este no seria um processo no qual a agricultura

    estaria industrializando-se, mas sim uma etapa em que a indstria estaria

    industrializando a agricultura. Tal etapa seria caracterizada por dois momentos: um

    primeiro, denominado industrializao espontnea, teria se iniciado com o uso de uma

    tecnologia incipiente, expressada pelos adubos naturais (orgnicos e minerais) e pelos

    arados e outros implementos operados pela fora animal em substituio fora

    humana; um segundo momento, chamado de industrializao dirigida, teria surgido

    com a substituio dos adubos naturais pelos adubos artificiais e da maquinaria agrcola

    simples por equipamentos complexos, ambos provenientes de indstrias de grande

    porte, dotadas de alto nvel tecnolgico:

    Com a implantao de um parque industrial de grande magnitude,

    especializado na produo de equipamentos e insumos agrcolas de

    alta complexidade (...), cria-se uma situao qualitativamente

    diferente, que se caracteriza pela dependncia cada vez maior da

    agricultura grande indstria (e paralelamente ao grande capital

    urbano-industrial), pela integrao das duas atividades atravs de

    vnculos contratuais ou orgnicos, e que conduzem formao do

    complexo agroindustrial (GUIMARES, 1982: 92).

    Desta maneira, o surgimento dos complexos agroindustriais seria, para

    Guimares, a expresso final de um processo evolutivo da atividade agrcola que, aps

    ser industrializada a partir de elementos determinantes da prpria indstria, culminaria

    com a integrao destas duas esferas produtivas. Em outras palavras, tratar-se-ia do

    processo o qual Kautsky (1970) chamou de supresso do divrcio entre indstria e

    agricultura.

    Graziano da Silva (1996) tambm compartilhou desta concepo de

    que haveria dependncia do padro agrcola moderno para com a indstria. De acordo

    com o autor, para alm do simples consumo de bens industriais pela agricultura, a

    industrializao desta caracterizar-se-ia como o momento decisivo da perda de

    autonomia de seu prprio desenvolvimento; a partir de ento, a agricultura teria sua

    dinmica atrelada s demandas dos setores industriais. Neste movimento estaria

    estabelecida sua submisso indstria, a qual passaria a comandar a direo, as formas

    e o ritmo das transformaes operadas na base de produo agrcola. O entendimento do

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 170

    autor estaria intimamente ligado apreenso do fenmeno de constituio dos

    Complexos Agroindustriais1:

    A constituio dos CAIs e a industrializao da agricultura passam a

    ser os novos determinantes da dinmica da agricultura. (...) A partir

    desse momento o desenvolvimento da agricultura no mais

    autnomo, mas passa a depender da dinmica da indstria; no se

    pode mais falar da agricultura como grande setor na economia

    (como na diviso tradicional agricultura-indstria-servios), porque

    grande parte das atividades agrcolas integrou-se profundamente na

    matriz de relaes interindustriais, sendo seu funcionamento

    determinado de forma conjunta. (GRAZIANO DA SILVA, 1996: 32-

    33)

    Neste mesmo sentido, seguiram Kageyama et al (1990), que

    atriburam ao conceito industrializao da agricultura a pertinncia de demonstrar a

    maneira pela qual a agricultura teria se transformado num ramo de produo semelhante

    a uma indstria, atrelando-se mais intensamente ao movimento geral de valorizao

    capitalista. Seja comprando insumos industriais ou produzindo matrias-primas para

    indstrias de transformao, a agricultura estaria submetendo-se ao domnio do capital

    industrial tanto no que tange ao predomnio de suas relaes sociais de produo quanto

    no que se refere superao dos obstculos representados pela natureza ao seu processo

    de valorizao.

    O longo processo de transformao da base tcnica chamado de

    modernizao culmina na prpria industrializao da agricultura.

    Esse processo representa a subordinao da natureza ao capital que,

    gradativamente, liberta o processo de produo agropecuria das

    condies naturais dadas, passando a fabric-las sempre que se

    fizerem necessrias (KAGEYAMA et al., 1990: 114).

    1 Por conta deste movimento, autores como Muller (1989), Kageyama (1990) e o prprio Graziano da Silva (1996) propem que os Complexos Agroindustriais devam ser entendidos como unidade de anlise do moderno padro de relaes da agricultura brasileira.

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 171

    Concordando com parte desta argumentao, Szmrecsnyi (1990), por

    sua vez, afirmou que o conceito industrializao da agricultura deveria referir-se

    essencialmente adaptao das formas de produo da indstria aos processos

    produtivos do setor agropecurio, adaptao esta que, longe de significar que a indstria

    se quede aos requerimentos da agricultura, demonstra exatamente o seu contrrio: a

    indstria se adapta a eles para que seus tentculos se expandam sobre setores at ento

    fora de seus domnios. A agricultura transformar-se-ia, por envolvimento, em indstria,

    mas, conforme observa o autor, no viria a ser um ramo industrial como outro qualquer,

    visto que o alcance de tais transformaes ainda estaria por ser examinado.

    No obstante a evidncia da parceria subordinada da produo

    agrcola com os interesses industriais, alguns tericos contestaram a pertinncia do

    termo industrializao da agricultura para exprimir o devir da agricultura. De um modo

    geral, tais contestaes foram balizadas pelo seguinte questionamento: a natureza se

    subordinar ao capital irremediavelmente, a ponto do termo industrializao da

    agricultura abranger a compreenso do futuro mais remoto desta parceria?

    Refletindo sobre esta questo, Veiga (1991) afirmou que a retomada

    da discusso acerca das especificidades do setor agrcola frente a outras esferas

    produtivas teria que transcender ao conceito industrializao da agricultura, posto que

    o mesmo revelaria um certo otimismo em relao capacidade do capital em superar

    os limites que a natureza impe ao seu processo de valorizao na produo agrcola.

    Isso sem falar na importncia implcita que este termo concede ao papel do trabalho

    direto no interior da prpria produo agrcola. Se, na indstria, o trabalho humano teria

    a funo de transformar uma matria-prima em um novo produto, na agricultura o

    trabalho humano poderia somente sustentar ou regular condies especficas sob as

    quais as plantas crescem e se reproduzem. A etapa de transformao neste processo

    estaria necessariamente sob o comando de mecanismos orgnico-naturais e no do

    trabalho humano, como o na indstria. Nos termos do autor,

    O papel do homem na produo agropecuria consiste em fornecer

    aos organismos vivos as condies que mais favoream o seu

    desenvolvimento, para depois colher a massa de matria nutritiva

    produzida. Mas o essencial dessa operao, isto , a produo dessa

    matria nova, realizado pelos prprios organismos vivos. (VEIGA,

    1991: 177)

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 172

    A prpria noo de Complexo Agroindustrial poderia segundo

    Veiga ser til na tentativa de criao de tipologias que pudessem auxiliar na apreenso

    da relao agricultura-indstria no interior de determinados segmentos produtivos, mas

    de maneira alguma poderia ser entendida enquanto uma teorizao acabada a respeito da

    dinmica de tais relaes.

    Para Veiga, uma forma mais adequada para se compreender o real

    contedo da relao agricultura-indstria seria a partir dos conceitos apropriacionismo-

    substitucionismo de Goodman, Sorj e Wilkinson (1990), os quais possibilitariam a

    superao da noo de industrializao da agricultura atravs de uma anlise histrica

    da aproximao das produes agrcola e industrial.

    De acordo com Goodman, Sorj e Wilkinson (1990), em sua busca

    incessante por movimentos mais amplos de valorizao, o capital industrial teria

    pretendido, na agricultura, maximizar seu controle sobre os processos naturais, de tal

    modo que ele prprio pudesse assegurar novos espaos de valorizao e reproduo de

    suas relaes. Neste caso, a noo de apropriacionismo representaria um movimento de

    apropriao industrial de fraes do processo de produo agrcola superando restries

    ambientais sendo que uma de suas principais expresses seria a mecanizao dos

    instrumentos de trabalho necessrios ao preparo do solo , enquanto que o

    substitucionismo evidenciaria um momento em que o produto agrcola passaria cada vez

    mais a ser substitudo por produtos industriais evidncia que poderia ser notada a

    partir do desenvolvimento recente da indstria alimentcia. Desta maneira, para estes

    autores, apropriacionismo e substitucionismo seriam a resposta industrial especfica

    resistncia do processo biolgico da produo agrcola transformao industrial

    direta (GOODMAN, SORJ, WILKINSON, 1990: 89).

    Neste mesmo movimento, as modernas biotecnologias teriam trazido

    um importante avano na capacidade dos capitais industriais ampliarem seu controle

    sobre o ciclo biolgico da produo agrcola. Tal avano marcaria o surgimento de uma

    etapa de manipulao industrial generalizada da natureza sob o comando da engenharia

    gentica, possibilitando assim o reforo dos padres de apropriacionismo e

    substitucionismo na agricultura moderna. No que se refere ao primeiro, tem-se a

    possibilidade, a partir de alteraes no cdigo gentico das plantas, de se tentar criar

    sistemas agrcolas automatizados e de produo contnua. Quanto ao substitucionismo,

    os autores observam, nas tendncias gerais do desenvolvimento biotecnolgico, a

    possibilidade de um distanciamento cada vez maior por parte da indstria alimentcia

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 173

    frente agricultura convencional na medida em que os avanos de conhecimento sobre

    as manipulaes de processos qumicos possibilitam a criao de ambientes artificiais

    para a produo de alimentos, caracterizando assim a chamada bioindustrializao. Este

    fato poderia vir a romper conexes estratgicas de cadeias agroalimentares, gerando

    uma espcie de trivializao do produto agrcola.

    Do ponto de vista conceitual, importante destacar que, assim como

    afirma Veiga, os conceitos apropriacionismo e substitucionismo abarcam elementos

    fundamentais para o entendimento do processo de capitalizao da atividade agrcola.

    De fato, o pressuposto de uma industrializao do processo de produo agrcola

    confronta-se com as particularidades que os processos biolgicos impem prpria

    agricultura. Por certo, a situao geogrfica do espao caracteriza-o como ambiente,

    apresentando condies e caractersticas naturais especiais, com graus de fertilidade,

    variaes de clima, disponibilidade de recursos hdricos, entre outros, muito

    particulares, os quais formam sinergias que determinam inputs tecnolgicos

    diferenciados, como diferenciado tambm o trabalho direto aplicado sobre as lavouras.

    Assim, pensar a industrializao da agricultura como um processo social e econmico

    de absoro completa da lgica produtiva da indstria pela agricultura deixar de

    considerar, dentre outros aspectos, a dimenso ambiental que est imbricada na

    produo.

    As determinaes particulares do capitalismo na agricultura

    Alguns dos limites das interpretaes baseadas na abordagem

    conceitual da industrializao da agricultura tornam-se mais evidentes quanto

    confrontamos estas interpretaes com os objetivos de construo de anlises concretas

    propostos pelo materialismo dialtico. Neste caso, uma questo em especial revela

    dificuldades substanciais na referida abordagem para a interpretao histrica sobre as

    formas sociais de uso e acesso aos recursos naturais. Tal questo diz respeito ao modo

    como o trabalho social concebido no espectro da teorizao sobre a industrializao

    das prticas agrcolas.

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 174

    Se partirmos da relao dialtica em que Marx (1987) aponta o

    trabalho como categoria fundamental para se apreender as manifestaes essenciais das

    formas de reproduo de um conjunto social e o fundamental aqui deve ser entendido

    enquanto determinao irredutvel2 , torna-se imprescindvel a compreenso do

    contedo particular que o trabalho assume em situaes histricas especficas.

    Conforme vimos, na agricultura capitalista, a relao trabalho-natureza apresenta uma

    importante especificidade que no pode ser descartada: a transformao da matria

    prima em mercadoria no realizada exclusivamente pelo trabalho humano, mas sim

    atravs da combinao de seu exerccio com o ritmo biolgico das foras naturais3. Sem

    embargo, isto confere aos processos ecossistmicos uma dimenso decisiva no mbito

    da produo de valores na agricultura. Do ponto de vista analtico, tais processos

    adquirem um contedo histrico que ultrapassa a simples condio de base biofsica dos

    processos de acumulao. Conforme ressalta Leff (2001: 73-74):

    (...) se a formao do valor surge como o centro organizador dos

    processos produtivos do capital, seu meio est conformado pelos

    processos ecossistmicos de produo e regenerao de um sistema de

    recursos que, ao no incorporar trabalho vivo, so carentes de valor.

    Entretanto, a dotao de recursos, sua capacidade de regenerao e sua

    produtividade ecolgica, os limites para as taxas e os ritmos de

    explorao dos recursos fixados pela resilincia e a capacidade de

    carga do meio condicionam o processo de valorizao, de acumulao

    e reproduo do capital..

    Considerando a importncia das variveis ecolgicas na produo de

    valor, cumpre tambm destacar que a composio particular estabelecida entre a

    2 Na dialtica marxista, a busca analtica das determinaes simples, dos elementos irredutveis de totalidades histricas, o fundamento da construo de anlises concretas sobre a realidade social. Isto significa, portanto, que as determinaes simples aqui referidas em nada se aproximam dos mtodos de causalidade social empregados pelas correntes deterministas das cincias sociais. Diferem, portanto, de esforos interpretativos tais como a teoria dos jogos, na qual fatos so relacionados de tal modo que, atravs de proposies gerais e normas relativas a seu quadro de referncia e contedo, venha a instalar-se entre os elementos prprios do sistema descritivo uma relao de implicao lgica. Ao contrrio disso, as determinaes simples, apontadas por Marx (1983), dizem respeito justamente s relaes elementares da vida cotidiana, que so reconstitudas, atravs do movimento dialtico, em redes mais amplas de relaes e novas determinaes. 3 A propsito do debate recente sobre o avano das relaes capitalistas em direo mercantilizao dos prprios recursos naturais, ver Martins (2004).

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 175

    configurao territorial formada pelos objetos da natureza e por suas funes

    ecossistmicas e a esfera social, formada pelo conjunto de relaes que definem uma

    sociedade em um dado momento histrico, pode influir decisivamente no regime de

    acumulao4 na agricultura. Tal fator, entretanto, parece no ter sido devidamente

    considerado nas abordagens sobre a industrializao da agricultura quando estas se

    dedicaram, por exemplo, anlise da sazonalidade no emprego da fora de trabalho

    agrcola. De acordo com Graziano da Silva (1981), autor que dedicou-se com

    profundidade s questes relativas ao emprego agrcola, o trabalho temporrio sazonal

    foi uma estratgia eficiente do capital, num momento histrico especfico, para

    solucionar o impasse colocado pelo processo produtivo agrcola reduzindo a disfuno

    entre tempo de trabalho e tempo de produo. Mesmo assim, o trabalho temporrio na

    agricultura seria um forte indcio da insuficincia e fraqueza do desenvolvimento

    capitalista na produo agrcola, uma vez que, por representar as discrepncias

    existentes entre os tempos de trabalho necessrios s diversas fases que envolvem o

    perodo de produo plantio, tratos culturais e colheita , o mesmo evidenciaria

    fragilidades que dificultariam a total subordinao da natureza ao capital.

    Conforme o prprio autor,

    interessante observar que as opes de mecanizao de colheita

    existem para as culturas como trigo e soja, mas no para as

    tipicamente tropicais, como o caf e a cana-de-acar. Apenas depois

    da 2 Guerra Mundial que se iniciaram as tentativas de adaptar uma

    colhedeira de cereja dos EUA para colher caf no Brasil; e de uma

    colhedeira de cana a partir de mquinas desenvolvidas na Austrlia. A

    explicao para isso parece estar no fato de que as transformaes que

    o capital provocou na agricultura inglesa e norte-americana levaram

    realmente revoluo da produo agrcola em si mesma. J as

    colnias de explorao, como o Brasil e demais pases da Amrica

    4 Por regime de acumulao, tomamos a definio de Benko (1996: 244) que o designa como o conjunto das regularidades que asseguram a progresso geral e relativamente coerente de acumulao do capital, isto , que permitem assimilar ou desdobrar no tempo as distores e os desequilbrios que nascem permanentemente do prprio processo. Compreender a formao de tais possibilidades de acumulao em um dado espao requer a observao, de acordo com o autor, de trs processos, quais sejam: a) o tipo de evoluo de organizao da produo e da relao dos assalariados com os meios de produo; b) a forma de partilha do valor criado que permite a reproduo dinmica das diferentes classes e grupos sociais; e c) a modalidade de articulao com as formas no capitalistas de reproduo social, sobretudo quando estas possuem lugar determinante na formao econmica estudada.

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 176

    Latina, a subordinao da produo ao capital comercial teve um

    carter profundamente reacionrio, dificultando essas transformaes.

    sintomtico, por exemplo, que, enquanto nos EUA a mecanizao

    crescia rapidamente, no Brasil se reinventava a parceria e o colonato

    para fazer frente escassez de mo de obra nas lavouras. Da ser o

    mais correto afirmar que, alm do trabalho assalariado temporrio

    ser um produto do desenvolvimento das foras capitalistas na

    agricultura (enquanto embrio da formao do proletariado rural)

    ele , ao mesmo tempo, resultado da insuficincia e da fraqueza desse

    desenvolvimento: da insuficincia do capital em submeter as foras da

    natureza, do ponto de vista tcnico; da fraqueza de generalizar essa

    subordinao, no apenas do ponto de vista formal, mas sobretudo de

    uma maneira real e ampla, revolucionado a produo agrcola em

    todas as suas fases. (GRAZIANO DA SILVA, 1981: 119. Grifo do

    autor)

    Como a passagem acima assinala, Graziano da Silva atribui o grau

    de desenvolvimento das foras produtivas capitalistas no campo a um conjunto de

    instrumentos que funcionam e melhor viabilizam o processo tcnico-produtivo. No

    caso brasileiro, o fato de, em certos momentos da produo, o trabalho humano ser

    substitudo por mquinas, e em outros, apesar de existirem mquinas para substitu-lo,

    os investimentos necessrios para a efetivao de tal substituio ainda no terem

    ocorrido dando margem ao surgimento do trabalhador temporrio , demonstra,

    segundo Graziano, a insuficincia e a fraqueza do desenvolvimento capitalista na

    atividade agrcola nacional.

    Entretanto, tal fenmeno parece apontar ainda para as particularidades

    que o capital confere produo agrcola nacional. Isto porque a atividade econmica

    no apenas uma relao dos homens com a natureza e com os instrumentos

    intermediadores, mas tambm e sobretudo uma relao inter-sujeitos. Trata-se,

    portanto, de uma relao que, por ser econmica, tambm cultural e poltica. esta

    interpretao que nos permite compreender o capital como uma relao social com um

    suporte material, e o capitalismo, por sua vez, como uma forma histrica de organizao

    da produo. Assim, para alm do dimensionamento da estrutura tcnica de produo, o

    capital deve ser apreendido como sendo o contedo de uma relao social de dominao

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 177

    do trabalho materializado (meios de produo, produtos e dinheiro), e de dominao do

    trabalho vivo que cria valor (fora de trabalho). Nesta relao, o trabalhador assalariado,

    com seu trabalho concreto, transfere para o novo produto a parte do valor dos meios de

    produo consumidos produtivamente e, ao mesmo tempo, com seu trabalho abstrato,

    cria um novo valor, materializado na mercadoria que ele mesmo produz.

    Entretanto, a composio tcnica dos processos de produo de valor

    no pode servir como parmetro para anlises sobre a consistncia de relaes

    capitalistas. Se adotarmos a perspectiva da totalidade concreta, a inadequao deste tipo

    de anlise torna-se ainda mais ntida. Conforme ressaltam Lukcs (1992) e Kosk

    (1976), na dialtica marxista, a totalidade concreta se constitui no espao de

    objetivao das partes em suas relaes com o todo. A anlise dialtica da relao entre

    o geral e o especfico permite justamente o encontro da totalidade em cada momento

    particular, guardando de cada momento o seu carter de momento. Do ponto de vista

    analtico, portanto, a realidade social pode ser compreendida pela constante tenso entre

    os momentos parciais e a totalidade5.

    Esta a essncia da explicao do materialismo dialtico, qual seja, a

    concepo e apreenso dos fenmenos sociais com referncia ao singular e ao geral.

    Empregando tal mtodo interpretao ao problema aqui exposto, podemos compreender

    o trabalho temporrio como forma particular, especificidade histrica do

    desenvolvimento geral do capitalismo na agricultura. Isto porque o prprio movimento

    de acumulao se instaura atravs de relaes sociais que so tecidas em bases

    territoriais, polticas e culturais diferenciadas. mister, portanto, evidenciar-se a

    importncia de variveis histricas locais (sejam de carter social, cultural, poltico,

    biofsico etc.) no entendimento tanto do progresso tcnico e das relaes de trabalho na

    agricultura, bem como das formas que assumem os padres de apropriacionismo e

    substitucionismo industriais; isto , trata-se de considerar, no sentido weberiano, o

    milieu econmico que, de maneiras distintas, tenciona o remodelamento das estratgias

    de acumulao no campo6.

    5 Neste sentido, Cardoso (1993: 91-92) enfatiza que, metodologicamente, trata-se de um esforo de elevao do particular para o geral no qual as relaes parciais (particulares) vo sendo circunscritas em teias de relaes e vo se especificando e determinando de tal modo que a sntese resultante (o todo, a totalidade) aparea, no como amlgama confuso, indeterminado,geral, mas como um conjunto hierarquizado e articulado de relaes. Este conjunto articulado de relaes s se alcana por intermdio da produo de conceitos que ponham a nu o modo de relao entre as partes que compem o todo e as leis de seu movimento. 6 Em Weber, a noo de milieu econmico supe a interpretao das relaes de processos sociais distintos na caracterizao de cenrios de sociabilidade. Dentre tais processos, destacam-se a histria

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 178

    Neste sentido, cabe a afirmao de Prado Jr (1977, 99), para quem

    (..) preciso no confundir `capitalismo com tecnologia

    desenvolvida. Essa confuso insinuada e estimulada por concepes

    apologticas do capitalismo, e toma por padro de referncia o sistema

    tal como se apresenta nos pases altamente desenvolvidos, como os

    Estados Unidos e na Europa Ocidental. Mas o que caracteriza

    essencialmente o capitalismo como sistema econmico e social, so as

    relaes de produo e trabalho em que os fatores ou bens de

    produo, ou que concorram na produo de mercadorias

    (instrumentos de produo e mquinas, matria-prima a ser elaborada

    etc., e particularmente fora de trabalho empregada na produo), so

    mercadorias que se compram e vendem, e privadamente apropriadas: a

    fora de trabalho, pelo trabalhador; as demais, pelo capitalista e

    empresrio da produo. O capitalismo assim, no importando

    essencialmente a tecnologia empregada na produo.

    Sob tal perspectiva, a contradio posta por Graziano da Silva sobre a

    situao do assalariado temporrio que seria, ao mesmo tempo, produto do

    desenvolvimento das foras capitalistas na agricultura e resultado da fraqueza e

    insuficincia desse desenvolvimento , no mbito da totalidade, apenas uma

    contradio aparente, falseada em suas caractersticas de manifestao imediata. Isto

    porque, quando analisado em suas conexes significativas com os interesses de

    acumulao da moderna agroindstria, este assalariamento temporrio revela-se como

    categoria absolutamente atrelada ao movimento de produo de valor. Em essncia, os

    aspectos relativos produtividade do trabalho social que poderia ser incrementada

    mediante a incorporao de tal ou qual tcnica so expresses materiais do

    movimento de criao de valor, servindo to somente para refor-lo. A contradio

    concreta do trabalho temporrio justamente sua manuteno como relao particular

    no movimento de produo de valor. Ou seja, seu contedo contraditrio reside em sua

    dependncia para com a manuteno de uma relao de assalariamento que,

    poltica, as caractersticas culturais, os atributos de prestgio social, as particularidades da histria econmica (que tambm envolve as caractersticas dos grupos sociais, dos atributos ambientais e das relaes de propriedade sobre o espao). Esta noo foi particularmente til na interpretao desenvolvida pelo autor a respeito da formao do capitalismo Junker nas reas rurais da Alemanha no final no sculo

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 179

    simultaneamente, o reproduz e o precariza socialmente. Em termos histricos, uma

    importante expresso desta contradio tem sido o debate recente acerca dos impactos

    sociais da proibio das queimadas dos canaviais no estado de So Paulo7.

    O trabalho temporrio uma forma especfica de manifestao do

    desenvolvimento capitalista na agricultura. A hiptese da possvel insuficincia deste

    desenvolvimento fundada na anlise da resposta social aos impasses locais das

    diferenas entre os tempos de trabalho e de produo, assume traos positivistas

    justamente por introduzir na anlise noes de mediao e de progresso linear da

    prpria histria. Neste sentido, tal como observa Elias (1991) em torno das

    representaes sociais dominantes no processo de conhecimento, o conceito tambm

    expresso das formas como a sociedade se experimenta em momentos histricos

    especficos. A insuficincia supe o inconcluso, ou seja, o no acabado que passvel

    de projeo teleolgica, previsvel, sujeito regra e que pode ser inequivocamente

    interpretado sob a perspectiva do devir. Revela, portanto, uma concepo de fenmeno

    menos atenta estruturao de certas relaes contraditrias de interdependncia do que

    caracterizao de possveis coerncias formais do progresso tcnico na agricultura

    moderna.

    Com efeito, o trabalho temporrio na agricultura faz parte de uma teia

    complexa de relaes interdependentes que estruturam o modo como o

    apropriacionismo industrial relacionou-se com a produo agrcola no pas. No s as

    dimenses econmicas do hiato entre tempos de trabalho e de produo, mas tambm

    conflitos de classe relativos s questes fundirias e determinao dos direitos

    trabalhistas no campo, esto envolvidos na construo social do trabalho temporrio e

    de sua expresso simblica mais marcante, qual seja, a figura do bia-fria. Conforme

    apropriadamente destacado por Silva (1999), os marcos institucionais que reafirmaram,

    ainda na dcada de 60, os direitos trabalhistas fora de trabalho rural (com destaque

    para o Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963), contriburam de modo decisivo para a

    XIX, caracterizado pelo alto grau de excluso social e por sua cultura fortemente autoritria. A propsito, ver Weber (1982). 7 Como sabido, o aumento da mecanizao das lavouras de cana-de-acar acelerado, dentre outras razes, pela perspectiva de proibio das queimadas como prtica de preparo para a colheita vem ocasionando a dispensa de grandes massas de trabalhadores nas regies canavieiras de So Paulo. Tal situao tem feito com que sindicatos de trabalhadores rurais e mesmo administraes municipais manifestem severas restries regulamentao das queimadas no estado. A rigor, tal situao expe, de maneira inequvoca, a luta das prprias entidades de representao destes trabalhadores pela manuteno da modalidade de assalariamento temporrio na agricultura, ainda que tal relao de emprego os subjugue cotidianamente. A propsito dos diversos interesses dispostos no debate sobre as queimadas de cana crua no estado de So Paulo, ver Gonalves (2002).

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 180

    expanso do trabalho temporrio no pas na medida em que se restringiram a regular

    apenas as formas de contratao da fora de trabalho permanente, deixando os volantes

    fora seu espectro de regulao. Tratada como temporria, eventual, a categoria dos

    bias-frias, desprovida ento de direitos trabalhistas, tornou-se funcional ao

    movimento de acumulao na agricultura, posto que passou a representar uma

    alternativa menos onerosa (dos pontos de vista econmico e de compromisso

    trabalhista) de emprego da fora de trabalho no empreendimento capitalista no campo.

    Portanto, o trabalho temporrio pode ser adequadamente

    compreendido como uma das formas sociais produzidas pelo desenvolvimento

    capitalista da agricultura brasileira, e no expresso de sua suposta inconclusividade.

    Resulta da emergncia de processos econmicos e polticos envolvidos em contradies

    de classe, expressando parte das especificidades das relaes estabelecidas entre

    trabalho social e propriedade fundiria na sociedade brasileira. Assim como o trabalho

    escravo, que a despeito do ar de atraso permanece articulado s propriedades rurais

    com perfis indiscutivelmente modernos de produo agrcola8, o trabalho volante

    circunstancialmente eficiente, em termos de produo de valores excedentes, para a

    preservao das relaes de dominao scio-poltica da agricultura modernizada e de

    sua expresso maior, qual seja, os Complexos Agroindustriais.

    Nestes termos, longe de expressar insuficincia presa a lugares

    especficos, o trabalho temporrio compe o cenrio do espao de fluxos da moderna

    agricultura nacional. Ou seja, lanando mo dos termos de Castells (2001), o trabalho

    temporrio tambm integra a organizao material das prticas sociais de tempo

    compartilhado que funcionam por meio de fluxos (espao com fronteiras fsicas frouxas

    onde se desenrolam a produo, a experincia e o poder na sociedade em rede). Alm de

    alterar de maneira fundamental o significado e a dinmica dos lugares, sobretudo

    daqueles lugares de onde partem os migrantes para o trabalho sazonal, este espao de

    fluxos prope novas referncias de interpretao do cotidiano do lugar. Isso ocorre, por

    exemplo, na medida em que estes migrantes constroem suas identidades

    8 Nos ltimos anos, tm sido recorrente os alertas da OIT (Organizao Internacional do Trabalho) sobre o crescimento do trabalho escravo em todo o mundo. No Brasil, em particular, a OIT tem destacado, a partir dos dados do Ministrio do Trabalho, que o emprego de modalidades de escravido e trabalho forado no pas segue fortemente atrelado aos movimentos migratrios de trabalhadores que so efetivamente traficados, pelos gatos intermedirios, de regies com graves bolses de pobreza, afetadas pelo desemprego sazonal ou pela seca, para empresas agrcolas altamente capitalizadas (OIT, 2002). Dados da Comisso Pastoral da Terra do conta de que atualmente haveria cerca de 25 mil trabalhadores escravizados no pas; a Contag, por sua vez, trabalha com nmeros em torno de 40 mil trabalhadores (SILVA, 2005).

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 181

    permanentemente em trnsito, buscando reinventar projetos e expectativas para o lugar

    atravs da reproduo de suas condies de precariedade no fluxo do emprego

    temporrio.

    Consideraes finais

    Na tentativa de superar as limitaes que a prpria natureza impe

    acumulao no campo, o movimento de produo de valores no s cria relaes

    especficas de manuteno e subordinao da natureza e de antigas relaes sociais de

    produo - como, no caso brasileiro, o colonato e a parceria sua lgica, como

    tambm desenvolve novas relaes para a apropriao do trabalho social excedente. Ou

    seja, tal movimento no s rearticula antigas relaes em seu desenvolvimento, mas

    tambm desenvolve o moderno sobre bases tradicionais, conservando contradies

    sociais no como resqucios de atraso, mas como relaes singulares de sua prpria

    modernidade.

    Na medida em que as contradies que sustentam o trabalho

    temporrio na agricultura brasileira so interpretadas como relaes caractersticas de

    um modo de modernizao territorial e historicamente circunscrito, os processos

    envolvidos na totalidade do desenvolvimento capitalista da agricultura nacional podem

    ganhar maior nitidez analtica. Abrindo mo da noo de insuficincia, torna-se possvel

    a compreenso aprofundada da complexa teia de relaes sociais que suportam o

    trabalho temporrio como elemento fundamento do apropriacionismo industrial da

    agricultura nacional. Nesta perspectiva, categorias sociais fundamentais para a

    compreenso das relaes de trabalhos em tempos de alta modernidade tais como

    classes sociais, raa/etnia e gnero podem ser analisadas e dimensionadas no interior

    desta modalidade especfica de emprego da fora de trabalho na agricultura,

    possibilitando assim a complexificao da anlise do fenmeno.

    Ademais, ao superar a noo de insuficincia, tambm se criam novas

    perspectivas quanto compreenso dos embates polticos envolvidos nas esferas

    jurdica e mesmo na representao sindical destes trabalhadores temporrios. Os demais

    processos sociais que conferem contedo concreto ao fenmeno, como o caso da

    migrao de trabalhadores das regies norte e nordeste do pas para o trabalho sazonal

    nas lavouras do sudeste (sobretudo nas lavouras de cana-de-acar, no estado de So

    Paulo), podem ser articulados anlise no mais como formas residuais de organizao

    do trabalho, mas sim como elementos nucleares para a interpretao dos sentidos de

  • AGRRIA, So Paulo, N 4, 2006 MARTINS, R. C. 182

    modernidade de algumas das cadeias agroindustriais de maior densidade poltica e

    econmica no pas.

  • Modernizao e Relaes de Trabalho na Agricultura Brasileira, pp. 165-184 183

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