13 - As proposições de Vigotski para transformar o...

12
II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013 1 AS PROPOSIÇÕES DE VIGOTSKI PARA TRANSFORMAR O MÉTODO DE MARX NO “CAPITAL” QUE FALTA À PSICOLOGIA Elenita de Ricio Tanamachi – UNESP Flávia da Silva Ferreira Asbahr – UNESP Maria Eliza Mattosinho Bernardes – USP Este texto apresenta algumas sínteses das discussões realizadas pelo grupo de estudo do LIEPPE (Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar), sediado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. No grupo, estudamos, desde 2003, a obra de Vigotski a partir do referencial teórico do próprio autor, ou seja, a partir da compreensão do método materialista histórico dialético. Ressalta-se que as discussões aqui brevemente realizadas foram debatidas com mais profundidade em Tanamachi, Asbahr e Bernardes (2013, no prelo). A síntese teórica ora apresentada parte de dois pressupostos fundamentais que direcionam nossa análise. O primeiro propõe que a Psicologia Histórico-Cultural é uma resposta da psicologia enquanto mediação para que se possam compreender as possibilidades de superação da constituição alienada dos indivíduos naqueles aspectos/temas a ela pertinentes. Tal pressuposto situa a ciência psicológica no contexto de todas as dimensões do conhecimento – ontológica (condições históricas e universais de constituição da atividade humana), gnosiológica e epistemológica (teorias que explicam, respectivamente, a origem do conhecimento em geral e do conhecimento científico) e lógica (como se desenvolve o pensamento). O segundo pressuposto defende que essa resposta da Psicologia Histórico- Cultural só é possível devido ao referencial teórico metodológico de seus autores, ou seja, o Materialismo Histórico Dialético.

Transcript of 13 - As proposições de Vigotski para transformar o...

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

1

AS PROPOSIÇÕES DE VIGOTSKI PARA TRANSFORMAR O

MÉTODO DE MARX NO “CAPITAL” QUE FALTA À

PSICOLOGIA

Elenita de Ricio Tanamachi – UNESP

Flávia da Silva Ferreira Asbahr – UNESP

Maria Eliza Mattosinho Bernardes – USP

Este texto apresenta algumas sínteses das discussões realizadas pelo grupo de

estudo do LIEPPE (Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia

Escolar), sediado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. No grupo,

estudamos, desde 2003, a obra de Vigotski a partir do referencial teórico do próprio

autor, ou seja, a partir da compreensão do método materialista histórico dialético.

Ressalta-se que as discussões aqui brevemente realizadas foram debatidas com

mais profundidade em Tanamachi, Asbahr e Bernardes (2013, no prelo). A síntese

teórica ora apresentada parte de dois pressupostos fundamentais que direcionam nossa

análise.

O primeiro propõe que a Psicologia Histórico-Cultural é uma resposta da

psicologia enquanto mediação para que se possam compreender as possibilidades de

superação da constituição alienada dos indivíduos naqueles aspectos/temas a ela

pertinentes. Tal pressuposto situa a ciência psicológica no contexto de todas as

dimensões do conhecimento – ontológica (condições históricas e universais de

constituição da atividade humana), gnosiológica e epistemológica (teorias que explicam,

respectivamente, a origem do conhecimento em geral e do conhecimento científico) e

lógica (como se desenvolve o pensamento).

O segundo pressuposto defende que essa resposta da Psicologia Histórico-

Cultural só é possível devido ao referencial teórico metodológico de seus autores, ou

seja, o Materialismo Histórico Dialético.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

2

Os fundamentos para estes pressupostos encontram-se em Marx para quem o

socialismo “[...] não se baseia numa exigência moral subjetiva, mas em uma teoria da

história” (Bottomore, 2001, p. 141) e a sociedade de classes, organizada a partir da

valorização do capital, não é a meta final da história. Portanto, a moral subjetiva é

impotente (insuficiente) para garantir essa meta. Considera-se, assim, que o resultado da

evolução histórica do homem e da própria sociedade deve ser a emancipação da

humanidade.

Conforme o Dicionário do Pensamento Marxista (Bottomore, 2001), os

princípios da economia capitalista não garantem a emancipação do homem enquanto

meta máxima para a humanidade, uma vez que essa forma de organização social e

política produz “A ‘exploração do homem pelo homem’, a Reificação das relações

sociais entre seres humanos como relações entre ‘coisas’, [...] a destruição dos

pressupostos vivos de toda a produção [...]” (a natureza e a humanidade) (p. 142).

São estas condições impostas pelo capitalismo aos indivíduos que devem ser

superadas para fazer coincidir os interesses privados e gerais da humanidade e garantir

que as circunstancias constitutivas dos homens possam ser formadas humanamente.

A concepção de sociedade aqui proposta supera a concepção da sociedade

existente e isso põe a questão da relação entre os meios e os fins. Há meios que são

inadequados, por princípio, para a consecução de uma sociedade de indivíduos

emancipados.

Transposta para o contexto em exposição, essa análise implica admitirmos que

há concepções teóricas em psicologia que não são suficientes para responder às

necessidades de indivíduos emancipados, mas apenas à adaptação e ao ajustamento dos

indivíduos às circunstâncias atuais.

Isso nos leva a defender a tese que organiza e orienta o trabalho de nosso grupo

de estudos do LIEPPE.

A tese propõe que o método Materialista Histórico Dialético é o diferencial da

teoria Histórico-Cultural porque permite explicar a realidade e as possibilidades

concretamente existentes para a sua transformação, desde que a finalidade seja a

superação daquelas condições ou circunstancias particulares de objetivação/apropriação

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

3

alienada no sentido da humanização, ou seja, no sentido da constituição da socialidade1

dos indivíduos.

Nessa tese defendemos que o compromisso com a emancipação humana,

mediada pela Psicologia Histórico-Cultural, expressa-se por meio do método

Materialista Histórico Dialético, porque estes veiculam uma visão de homem, de

sociedade e uma concepção ética gestadas no marco de uma nova sociedade que busca

analisar, explicar e transformar a realidade atual. Implica a construção de uma ordem

social que assegure a todos os homens um presente e um futuro dignos, exige

compromisso pessoal e com a construção de um conhecimento científico capaz de

permitir que o homem objetive-se de forma social e consciente.

Essa é a referência teórico-metodológica dos autores clássicos da Psicologia

Histórico-Cultural (Luria, Leontiev e Vigotski) por inúmeras razões considerada como

inadequada, ultrapassada e até mesmo ideológica, enfim, não compreendida na

atualidade.

Uma vez expostos os fundamentos organizadores da tese, são explicitadas as

categorias do método Materialista Histórico Dialético que têm implicações imediatas

para a Psicologia Histórico-Cultural, enfocando as proposições de Vigotski para

transformar o método de Marx no “Capital” que falta à psicologia. Finalmente, são

destacadas as consequências desse estudo para as nossas atividades teórico-práticas,

com destaque para a pesquisa.

A seguir são anunciadas as categorias do método Materialista Histórico

Dialético que garantem à Psicologia Histórico-Cultural o compromisso com a

emancipação dos indivíduos naqueles aspectos que lhe são específicos como ciência.

Ao reportar-se a obra de Marx, Betty Oliveira (2005) afirma que a referência

sobre o humano no homem não está na essência divina ou subjetiva, nem na essência

biológica ou no meio/na experiência (na relação indivíduo-sociedade), mas está no

trabalho como intercâmbio homem/natureza.

1 Por socialidade aqui estamos entendendo a constituição da condição universal nos indivíduos singulares, como marca do processo de humanização ou apropriação por indivíduos singulares daquilo que o gênero humano elaborou, tendo a relação indivíduo-sociedade como mediadora.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

4

O trabalho como atividade mediadora do processo de humanização é aqui

entendido como primado ontológico e não como atividade produtora de mais valia.

Assim, concebe-se que é na execução do trabalho como atividade vital que o homem

toma para si os bens elaborados pelo conjunto dos homens (gênero humano) e os

fenômenos da natureza, fazendo deles órgãos de sua individualidade.

Desse modo, a consciência humana é constituída e o homem participa do

desenvolvimento/transformação do ser e da realidade, objetivando-se como ser social.

Entendendo que a alienação possível é produto do trabalho na economia capitalista,

consideramos que a emancipação almejada depende da superação dessa condição

(alienada) em todos os níveis de sua relação com o trabalho (na relação com a execução,

com o seu produto, com o conjunto de atividades/gênero e na relação entre os homens).

Outra categoria fundamental é o caráter material da existência, pois permite

afirmar o modo de produção da existência como elemento explicativo e constitutivo do

processo de humanização, uma vez que se concebe ser nas relações de produção que

são constituídos o conteúdo e a forma da relação entre os homens, determinantes para a

formação da “consciência dos homens”, do ser social.

O caráter histórico do desenvolvimento humano configura-se como outra

categoria da concepção marxiana que orienta a Psicologia Histórico-Cultural, pois se as

mudanças históricas da sociedade e da vida material produzem mudanças na

consciência e no comportamento humano, então a historicidade é uma dimensão

essencial da formação do psiquismo humano, conforme Marta Shuare (1990).

Como podemos observar o trabalho, o caráter material da existência humana e a

historicidade são categorias ontológicas para a compreensão do processo de

humanização na perspectiva do Materialismo Histórico Dialético. Essas categorias só

podem ser assim compreendidas por meio da lógica dialética, a lógica de conhecimento

e de explicação da realidade peculiar à perspectiva teórico-metodológica aqui defendida

e à Psicologia Histórico-Cultural, que por meio de suas leis e categorias possibilitam

compreender as leis do pensamento como formas psíquicas do reflexo da realidade. Elas

são a apropriação do real pelo pensamento e sua transformação em ideal no psiquismo

humano, mediado pelas significações socialmente compartilhadas.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

5

A lógica dialética no materialismo histórico pressupõe a relação singular-

particular-universal em qualquer dimensão da produção humana (Oliveira, 2005). Como

pressuposto da lógica dialética, essa relação do singular-particular-universal permite

entender a realidade como uma condição particular, mediadora entre as condições

singulares e universais de humanização. É isso que torna possível ao Materialismo

Histórico Dialético e à Psicologia Histórico-Cultural serem mediações que criam

possibilidades para a superação da condição atual de humanização que ocorre por meio

da alienação.

Na sociedade de classes, a emancipação é entendida como emancipação

meramente política, a liberdade é a de mercado e a adaptação é o principio fundamental

nas condições particulares. Portanto, a alienação é a condição de todos os indivíduos no

modo de produção capitalista.

No contexto do conhecimento, essa relação dialética do singular-particular-

universal requer atenção às dimensões ontológica, gnosiológica, epistemológica e

lógica.

A atenção a essas dimensões do conhecimento e o movimento expresso pela

relação dialética do singular-particular-universal permitiram aos psicólogos russos

propor a Psicologia Histórico-Cultural com a finalidade de superar as teorias

psicológicas hegemônicas de sua época.

Vejamos algumas proposições de Vigotski para transformar o método de Marx

até aqui exposto no “Capital” que falta à Psicologia.

Uma das grandes contribuições de Vigotski para a Psicologia foi a apropriação

do Materialismo Histórico Dialético como mediação para a formulação da Psicologia

Histórico-Cultural sem, contudo, desconsiderar que o sistema categorial e o caráter do

conhecimento na filosofia e na psicologia são diferentes.

O autor defende a tese de que falta à psicologia o seu “Capital”, uma teoria geral

que, ao dialogar com as diferentes concepções, permite compreendê-las como

mediadoras entre o saber da psicologia e o conhecimento em suas diferentes dimensões,

buscando a explicação do real de forma objetiva.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

6

O método Materialista Histórico Dialético leva o autor a explicar que as

mudanças ocorridas no contexto das várias psicologias encerram-se no âmbito da teoria,

respondendo apenas à dimensão epistemológica. É isso que faz abordagens, na

aparência diferentes, terem finalidades semelhantes, já que sua lógica de

desenvolvimento é sempre a mesma – lógica formal, por meio da qual a psicologia

separa-se das demais áreas do conhecimento. Além disso, tais teorias não consideram a

sociedade como uma mediação, como uma particularidade, mas sim como a meta

máxima de constituição do indivíduo. Neste caso, seu objetivo é a adaptação dos

indivíduos às circunstâncias atuais e não a transformação de ambos para superar a

condição alienada que caracteriza o trabalho na sociedade de classes.

Vigotski trouxe para a realidade da psicologia a relação do indivíduo singular

com o gênero humano, mediada pelas condições particulares, o que lhe faz explicar a

história de constituição da psicologia, explicitando elementos importantes para a

superação de sua condição como conhecimento parcial, expresso nas teorias

psicológicas, na direção de sua constituição como teoria geral. Aqui a relação singular-

particular-universal tem, nas várias teorias psicológicas já constituídas, os elementos

mediadores entre o conhecimento em geral e a Psicologia Geral como o “Capital” da

Psicologia.

Tal investigação tem a finalidade de explicar como a Psicologia objetiva-se no

momento atual, propondo elementos que tornam possível entender em que ela deve se

constituir para responder ao seu lugar no processo de humanização dos indivíduos.

Para dar conta dessa tarefa, o autor propõe alguns princípios necessários à

investigação das funções psicológicas superiores. Um deles é a análise de processos

psicológicos e não apenas de produtos do desenvolvimento psicológico, tomados como

objetos ou situações isoladas. É preciso investigar e compreender como determinado

fenômeno desenvolve-se na história social dos indivíduos.

Outro princípio refere-se à explicação dos fenômenos para superar a mera

descrição e compreender os fenômenos em sua essência, buscando sua gênese e as bases

dinâmico-causais.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

7

A investigação do comportamento fossilizado é também um dos princípios

propostos por Vigotski para buscar aqueles comportamentos que por terem perdido sua

origem e aparência externa, por terem sido automatizados, não revelam a sua natureza

interna, dão a impressão de comportamentos naturais. Levantar a história, a gênese

desses comportamentos permite entender o processo de transformação dos mesmos.

Esses princípios que constituem o projeto de psicologia do autor tornaram

possível a redefinição do objeto de estudo da Psicologia, que passa a ser concebida

como a ciência que estuda a realidade objetiva (da arte, dos instrumentos de trabalho e

da indústria) enquanto mediadora na constituição dos indivíduos (Shuare, 1990); ou

seja, o objeto da Psicologia é o desenvolvimento histórico do psiquismo humano. Isso

só é possível graças à ênfase no caráter mediatizado do psiquismo humano proposto

pelo autor.

Esses princípios ainda tornam possível entender o psiquismo como reflexo

psíquico da realidade; delimitar as unidades de análise do psiquismo visando às

unidades mínimas que conservam as propriedades do todo complexo; explicitar o

método genético experimental para chegar à gênese de constituição das funções

estudadas; elaborar o conceito de Zona de Desenvolvimento Próximo; compreender a

gênese e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e entender a atividade

psicológica mediada como a base do movimento de apropriação da realidade objetiva,

sendo essa atividade mediada a unidade de construção da consciência.

Ao considerar a historicidade e a totalidade no estudo da constituição e do

desenvolvimento cultural da criança, a obra de Vigotski é a manifestação do método

Materialista Histórico Dialético na Psicologia. Ao mesmo tempo, é a produção teórica

que expressa a compreensão da constituição e desenvolvimento do homem como ser

social (universal) e não como indivíduo alienado, fruto das circunstâncias atuais e a ela

submetido. Nesse sentido, supera as explicações hegemônicas de psicologia,

comprometidas com a justificativa do status quo da psicologia, da educação e da

economia capitalista, porque pensa as ações humanas no contexto das possibilidades

universais de desenvolvimento (em relação a tudo o que a humanidade já elaborou no

nível do gênero humano) e não no contexto de possibilidades particulares.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

8

Esse é o compromisso do Materialismo Histórico Dialético com a emancipação

dos indivíduos, agora expresso como conteúdo da Psicologia.

Resta-nos explicitar/explicar a atividade de pesquisa como expressão dos

princípios e categorias do método Materialista Histórico Dialético, transformado em

conteúdo da psicologia, enfocando as respostas já elaboradas em nossos estudos sobre o

método.

No campo pessoal, tal compreensão traz consigo uma dimensão ética em relação

às atividades práticas em geral, uma vez que o conhecimento mediado pela Psicologia

Histórico-Cultural cria possibilidades para a transformação interna e externa do homem,

por meio da formação da consciência sobre a condição humana. Nestas condições,

colocamo-nos como sujeitos em movimento de autotransformação e que promovem

transformação na realidade.

No que diz respeito à produção do conhecimento, a dimensão ética exige

compromisso com a transformação da realidade da Psicologia para criar condições à

emancipação dos indivíduos. Ou seja, o conhecimento não é neutro e deve trazer, em

seu bojo, finalidades conscientes no que diz respeito à transformação no sentido da

humanização, o que só pode efetivar-se na prática se partir de fundamentos teórico-

metodológicos que, igualmente, correspondam a essas finalidades.

Tendo como referência esta concepção de ciência, entendemos que os

conhecimentos elaborados em nossas pesquisas e práticas profissionais não modificam

apenas nosso pensamento ou nossa atuação, mas nos mudam como sujeitos humanos

integrais, transformando nossa vida concreta. A coerência teórico-prática constitui-se,

assim, em elemento central da Psicologia Histórico-Cultural porque, além de ser uma

opção teórica, é um posicionamento que emerge da consciência de como a realidade

configura-se mediante as múltiplas determinações, assim como define o conjunto de

ações a serem realizadas nas nossas atividades particulares.

Portanto, a apropriação da teoria Histórico-Cultural exige a transformação no

pensamento e na ação. É necessário que as análises da realidade investigada constituam-

se como objeto e condição de nossa ação, de modo a nos libertar para o “uso” do

conhecimento nas atividades realizadas nos níveis pessoal e profissional.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

9

Vejamos que consequências essa concepção de Psicologia traz para a elaboração

e análise de teses2, aqui destacando a apresentação e a proposição das mesmas, a

aplicação direta do Materialismo Histórico Dialético às questões específicas a serem

investigadas e a alegada ausência de procedimentos metodológicos pertinentes ao

método para subsidiar a busca e explicação dos dados apreendidos pela pesquisa.

Tomemos, como ponto de partida, a apresentação e a proposição de uma tese.

Vigotski (1996) explicita o caminho que utilizou para a proposição de sua tese sobre a

constituição da Psicologia, apontando a relação entre um método de conhecimento (o

Materialismo Histórico Dialético) e um problema específico de investigação. De acordo

com o autor, o estudo científico abarca tanto o estudo de um fato como o procedimento

de cognição sobre este fato e, nesse sentido, a escolha das palavras e dos termos

utilizados já implica um processo teórico-metodológico. Assim, é importante

reconhecer o valor dos termos, das significações das palavras dentro de um determinado

sistema conceitual. A compreensão do uso adequado dos termos leva-nos a considerar

que não cabe o uso cotidiano da palavra, e concordamos com Vigotski (1996, p. 309)

quando afirma que “a escolha dos termos e dos conceitos predeterminam o resultado da

investigação”.

Nesse contexto, entendemos que a tese deve ser explicitada por meio da

apresentação e explicação dos objetivos, das finalidades, do objeto de estudo, do

método de investigação, dos procedimentos metodológicos de apreensão e análise dos

dados de pesquisa, sempre na relação com o referencial teórico em foco. Assim, cada

uma de suas etapas deve ser a expressão da tese diante dos conteúdos especificamente

tratados nos capítulos ou partes do texto. Ao final, a tese deve ser retomada como uma

rica contribuição ao conhecimento em geral e ao conhecimento específico já elaborado

sobre o tema.

Outro aspecto igualmente importante no âmbito da elaboração e análise de teses

como expressão de nossos estudos diz respeito à relação entre o método criado por

Marx para a análise da economia capitalista e as questões específicas investigadas na

2 Quando mencionamos a elaboração e análise de teses, estamos considerando que toda investigação realizada no contexto da Psicologia Histórico-Cultural deve conter, por princípio, a defesa de uma tese.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

10

tese. Para Vigotski (1996, p. 392, grifos do autor), “[...] a aplicação direta da teoria do

materialismo dialético às questões das ciências naturais, e em particular ao grupo das

ciências biológicas ou à psicologia, é impossível, como o é aplicá-lo diretamente à

história ou à sociologia”.

Nesse sentido, o autor analisa a relação entre a ciência geral e as ciências

particulares e a necessidade de constituição de teorias intermediárias. Exemplifica tal

relação a partir da obra de Marx:

Basta imaginar que Marx tivesse operado com os princípios gerais da dialética, como quantidade, qualidade, tríades, conexão universal, nó, salto etc., sem as categorias abstratas e históricas de custo, classe, mercadoria, renda, capital, força produtiva, base, superestrutura etc., para ver quão monstruoso, quão absurdo seria supor que fosse possível criar diretamente qualquer ciência marxista prescindindo de O Capital. (Vigotski, 1996, p. 393)

Daí a necessidade da criação do “materialismo psicológico” como ciência

intermediária que explique a aplicação concreta dos princípios abstratos do

materialismo histórico dialético ao grupo de fenômenos com os quais trabalha. Essa

teoria do marxismo psicológico ou dialética da Psicologia é o que Vigotski chama de

Psicologia Geral. Nesse sentido, não basta que o Materialismo Histórico Dialético seja

apresentado como a referência teórico-metodológica da tese. É preciso que ele se

constitua como método de investigação e explicação no processo de elaboração,

proposição e defesa da mesma, respondendo às suas especificidades.

Outra questão relacionada à elaboração e à análise de teses, que merece atenção

no contexto da teoria Histórico-Cultural e do método Materialista Histórico Dialético, é

a alegada ausência de procedimentos metodológicos (pertinentes ao método) para

subsidiar a busca e a explicação dos dados. Por método, aqui estamos entendendo, de

acordo com Vigotski (1996), uma forma de conhecimento que comporta os

procedimentos metodológicos, às vezes denominados de metodologia de pesquisa, e que

determina o objetivo da pesquisa, o caráter e a natureza da ciência. Muitas teorias da

Psicologia, segundo o autor, enfatizam os procedimentos metodológicos em detrimento

do método, priorizando apenas a dimensão epistemológica do conhecimento. Mas esta

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

11

ênfase nos procedimentos metodológicos, às vezes utilizados como método, não nos

conduz à elaboração de conhecimento, apenas à produção de dados e mais técnicas.

Para auxiliar no debate sobre que procedimentos metodológicos permitem à

investigação responder às finalidades postas pelo Materialismo Histórico Dialético

como método de conhecimento, destacamos que esse referencial oferece:

Um método que explica o desenvolvimento do pensamento como

expressão do materialismo histórico dialético, tendo, na relação dialética

do singular-particular-universal e em todas as demais categorias

apresentadas, aqueles elementos que permitem superar as condições

postas pelo método experimental e outros.

O método de análise por unidades que Vigotski utilizou para investigar

os problemas da Psicologia, o qual é uma decorrência da aplicação do

método proposto por Marx e que é compatível com o estudo do objeto da

Psicologia. Para Vigotski (2000), esse método requer a substituição do

método de análise dos elementos pelo método de análise por unidades.

Segundo Vigotski (2000, p.08), a unidade contém, de forma primária e simples,

as propriedades do todo: “Subentendemos por unidade um produto da análise que,

diferente dos elementos, possui todas as propriedades que são inerentes ao todo e,

concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa unidade”.

Esta é a via que permite, segundo Vigotski, a análise “genético-causal” dos

processos psicológicos. Lembramos, ainda, que uma particularidade da concepção

metodológica proposta pelo autor é que as unidades de análise não estão postas para

cada tema específico a ser trabalhado, nem mesmo para cada área do conhecimento.

Os instrumentos e técnicas, quando utilizados na pesquisa que se organiza a

partir do método Materialista Histórico Dialético, devem ser meios para apreender o

real (concreto caótico), ou seja, devem produzir dados de pesquisa que possam explicar

as bases dinâmico-causais do objeto investigado e as relações teórico-práticas

decorrentes da compreensão sobre a realidade que superam a anterior (concreto no

pensamento). Ao final desse processo, temos os procedimentos metodológicos que

respondem às especificidades do objeto investigado.

II Evento de Método e Metodologia em Materialismo Histórico Dialético e Psicologia Histórico-Cultural Universidade Estadual de Maringá - 21 a 23 de Novembro de 2013

12

Ainda, na dimensão da constituição de uma tese, Vigotski (1996, p. 252) discute

a elaboração das perguntas e explica que uma boa pergunta antecipa a resposta, porque

contém elementos ou a síntese desta. Nesse sentido, a pergunta avalia a pesquisa como

tese e revela as circunstâncias nas quais sua defesa é possível, porque é no processo de

elaboração da tese que surgem as possibilidades concretas para sua proposição e defesa.

Concluindo, defendemos que esse movimento peculiar ao método e às

investigações de Vigotski deve ser considerado quando anunciamos em nossas

pesquisas que a referência teórico-metodológica do trabalho é o Materialismo Histórico

Dialético e a Psicologia Histórico-Cultural.

REFERÊNCIAS

BOTTOMORE, Tom. (2001) Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 141-142.

OLIVEIRA, Betty. (1983). A dialética do singular-particular-universal. In: A. A. ABRANTES, N. R. da SILVA, S.T.F. MARTINS. (Orgs.) Método histórico-social na psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, cap. 2, p. 25-51.

SHUARE, Marta. (1990). La psicologia soviética tal como yo la veo. Moscú: Editorial Progreso.

VIGOTSKI, Lev Semenovitch. (1996) O significado histórico da crise da psicologia. In: S. L. VIGOTSKI. Teoria e método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, p. 203-417.

VIGOTSKI, Lev Semenovitch. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

TANAMACHI, Elenita de Rício; ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira & BERNARDES, Maria Eliza Mattosinho. Teoria, Método e Pesquisa na Psicologia Histórico-Cultural. In.: SOUZA, Marilene Proença Rebello de.; BEATÓN, Guillermo Arias & BRASILEIRO, Tânia (orgs.). Interfaces Brasil-Cuba em estudos sobre a psicologia histórico cultural. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013 (no prelo).