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14 Artigo Lizaine Edipo
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[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano IV - nmero 14 - teresina - piau - julho agosto setembro de 2012]
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dipo Rei: aproximaes do texto ao filme
Lizaine Weingrtner Machado1
Resumo: O objetivo deste trabalho analisar a obra dipo Rei, de Sfocles, tendo a verso flmica, de Pier Paolo Pasolini, como contraponto. Neste sentido, o foco central deste estudo analisar a atualizao da tragdia grega por meio da linguagem flmica dos anos 60. Palavras-chave: dipo Rei; Sfocles, Pasolini. Abstract: The aim of this paper is to analyse the work Oedipus the king of Sophocles as a counterpoint to its filmic version by Pier Paolo Pasolini. In this sense, the central focus of this study is to analyse the actualization of greek tragedy by means of cinematic language of The sixties. Keywords: Oedipus the king; Sophocles, Pasolini.
A adaptao de um livro em filme pode ser discutida sob muitos aspectos e
dimenses, no entanto, o debate maior tende a se centrar na questo da interpretao
realizada pelo cineasta em sua traduo intersemitica, transposio ou transcriao da
obra literria escolhida, ou seja, a tendncia que se verifique em que medida o posterior
texto flmico se aproxima, fiel ou no, ao texto base, o literrio, investigando se h ou
no traies por parte do cineasta. Entretanto, ideal que se diminua a ateno para
tais questes e centre-se na ideia de dilogo que possa haver entre obras de diferentes
meios semiticos, adaptados ou no, pois, como observa sabiamente Ismail Xavier, em
Do texto ao filme: a trama, a cena e a construo do olhar no cinema, que figura em
Literatura, Cinema e Televiso,
A fidelidade ao original deixa de ser o critrio maior de juzo crtico, valendo mais a apreciao do filme como nova experincia que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu prprio direito. Afinal, livro e filme esto distanciados no tempo; escritor e cineasta no tm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptao dialogue no s com o texto de origem, mas com o seu prprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo a identificao com os valores nele expressos. (XAVIER, 2003, p.62).
1 Mestranda em Literatura pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina); Bolsista do CNPq.
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Assim, a relao existente entre literatura e textos flmicos e os debates em torno da
materializao de um em outro, em outro meio, podem desanuviar-se com uma melhor
compreenso dessa relao, como aponta o crtico Jos Carlos Avellar, em O cho da
palavra: cinema e literatura no Brasil:
A relao dinmica que existe entre livros e filmes quase nem se percebe se estabelecemos uma hierarquia entre as formas de expresso e a partir da examinamos uma possvel fidelidade de traduo: uma perfeita obedincia aos fatos narrados ou uma inveno de solues visuais equivalentes aos recursos estilsticos do texto. O que tem levado o cinema literatura no a impresso de que possvel apanhar uma certa coisa que est num livro - uma histria, um dilogo, uma cena - e inseri-la num filme, mas, ao contrrio, uma quase certeza de que tal operao impossvel. A relao se d atravs de um desafio como o dos cantadores do Nordeste, onde cada poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que deve fazer. (AVELLAR, 1994, p.124).
Neste sentido, intento analisar a obra dipo Rei, de Sfocles (495 a.C. - 406 a.C.),
uma das mais perfeitas tragdias gregas, em contraponto ao filme homnimo de Pier
Paolo Pasolini (1922-1975), cineasta italiano que reatualiza a tragdia de Sfocles na
dcada de 60, e investigar como o diretor transcodifica o texto cinematograficamente por
meio de uma transcriao, traduo realizada livremente. Para tanto, lano mo de um
estudo interartes, ou intersemitico, para que se pense a relao (ou as relaes) entre o
texto verbal e o cinematogrfico, cdigo parcialmente verbal, assim, a comparao entre
literatura e outro meio, permitem, como observa Helena Carvalho Buescu, em
Interrogaes e fundamentos do Comparatismo, presente em Grande Angular:
Comparatismo e prticas de Comparao, [...] recolocar e por isso reconfigurar (a
insistncia aqui precisamente na transformao) as relaes entre os objetos
produzidos, por um lado, e por outro os vrios espaos e tempos dos humanos que
diversamente os vivem, e os vivem tambm de modos potencialmente (e de facto mesmo
realmente diferenciados.) (BUESCU, 2001, p.20).
Em funo disso e ponderando os apontamentos de Andr Lefevere, em Traduo,
Reescrita e Manipulao da Fama Literria, Pasolini considerado um intermedirio,
pois, segundo Lefevere, intermedirios, de certa forma, reescrevem literatura e esse papel
bastante importante, pois eles so, [...] no presente, co-responsveis, em igual ou
maior proporo que os escritores, pela recepo geral e pela sobrevivncia de obras
literrias entre leitores no-profissionais, que constituem a grande maioria dos leitores em
nossa cultura globalizada. (LEFEVERE, 2007, p.13), portanto, reescrevendo dipo Rei,
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mesmo que num meio distinto, o cineasta d um novo enfoque tragdia sofocleana.
Ademais, a reescritura (traduo, antologizao, historiografia, crtica, edio, etc.),
segundo Lefevere, influencia na recepo das obras literrias e tambm pode manipular
essas obras visando fins diversos, como o ideolgico, por exemplo, pois at mesmo as
pessoas que no fazem literatura, de alguma forma a reescrevem, e seus escritos, no
entanto, podem refletir ideologias, afinal, como salienta Lefevere, produzindo tradues,
histrias da literatura ou suas prprias compilaes mais compactas, obras de referncia,
antologias, crticas ou edies, reescritores adaptam, manipulam at um certo ponto os
originais com os quais eles trabalham, normalmente para adequ-los corrente, ou a uma
das correntes ideolgica ou poetolgica dominante de sua poca. (LEFEVERE, 2007,
p.23).
Neste contexto, o que Pasolini faz, nas palavras de Paul Ricouer, em Sobre a
traduo, colocar-se prova, como se diz, de um projeto, de um desejo, mesmo de
pulso: a pulso de traduzir. (RICOEUR, 2011, p.22), isto , traduzir imageticamente a
tragdia de dipo, pois a imagem tem seus cdigos prprios de interao com o
espectador, que, por ventura, so distintos daqueles que a palavra, o texto escrito,
estabelece com o leitor.
A narrativa flmica oferece narrativa literria uma forma neutra de ver as coisas,
pois, como observa Tnia Pellegrini, em Narrativa verbal e narrativa visual: possveis
aproximaes, [...] embora a cmera no reproduza exatamente o processo fisiolgico da
viso, ela captura realidades visuais que, at certo ponto, podem estar livres da
interpretao da mente humana. (PELLEGRINI, 2003, p.26). Desse modo, o filme, assim
como fora a fotografia, estaria isento de emoes e apresentaria uma perspectiva mais
objetiva e [...] captaria aspectos insuspeitos do movimento e da paisagem, 'invisveis a
olho nu'. (PELLEGRINI, 2003, p.27), como tambm observa Walter Benjamin em sua
Pequena histria da fotografia:
A natureza que fala cmara no a mesma que fala ao olhar; outra, especialmente porque substitui a um espao trabalhado conscientemente pelo homem, um espao que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traos, mas nada percebemos de sua atitude na exata frao de segundo em que ele d um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, atravs dos seus recursos auxiliares: cmara lenta, ampliao. (BENJAMIN, 2011, p.94).
E, em funo disso, a fotografia nos revela o inconsciente tico e a cmera no se
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faz totalmente neutra, pois, como alerta Pellegrini, sempre haver algum por trs da
cmera que [...] seleciona, recorta e combina, extraindo uma nova sntese do material
desordenado que o mundo visvel oferece. Portanto, 'a tcnica mais exata ainda pode
conferir s suas criaes um valor mgico' e, apesar de toda a percia do olho por trs da
cmera, como afirma Benjamin, cada um pode descortinar o acaso, 'a realidade [que]
chamuscou a imagem'. (PELLEGRINI, 2003, p.27).
Considerando o exposto e detendo-nos no que concerne ao filme de Pasolini, pode-
se considerar que a averso massificao da cultura, que o diretor declara em 1966,
segundo Maria Betnia Amoroso, em Pier Paolo Pasolini:
() nessa altura, conheceu-se na Itlia o que seria depois denominado cultura de massa, e seus instrumentos, os mass media; foi nesse momento que fiquei assustado e incomodado e no quis mais continuar fazendo filmes simples, populares, porque, caso contrrio, seriam de certo modo manipulados, mercantilizados e desfrutados pela civilizao de massa. E ento fiz filmes difceis, comeando com Gavies e passarinhos, dipo rei, Teorema, Pocilga, Medeia, filmes mais aristocrticos e difceis,que seriam portanto dificilmente desfrutveis. (PASOLINI apud AMOROSO, 2002, p.68)
e o trabalho de tradutor de tragdias gregas que teve em 1959, talvez, justifiquem a opo
temtica e as opes estticas que Pasolini empreendeu em dipo Rei, pois [...]
interessante observar que, j em 1959, quando o famosssimo ator italiano Vittorio
Gassman o contratara para verter as tragdias gregas de squilo, Pasolini destacava,
nessa experincia de tradutor, a importncia de reconhecer as foras irracionais que
habitam o homem, para poder ter a chance de 'domestic-las. (AMOROSO, 2002, p.56),
afinal, como salienta Maria Betnia, em A paixo pelo real: Pasolini e a crtica literria,
o diretor
[...] lana mo de inmeros meios de expresso: poesia, pintura, teatro, literatura, cinema, crtica literria e de arte. Ir da lngua para o dialeto, do dialeto para a lngua, em operaes simultneas, como as das tradues de seus poemas friulanos que, conforme dizia, nasciam juntas com a elaborao em dialeto. Por fim, ir do italiano para a linguagem cinematogrfica. Tudo nele se encontra profundamente mesclado. Entretanto, talvez o que mais se aproxime de uma definio do que foi Pasolini justamente sua acentuada qualidade de crtico. (AMOROSO, 1997, p.15).
Alm disso, filmar o mito de dipo era um desejo do mltiplo Pasolini, que alm de
diretor de cinema, como citado anteriormente, era poeta, romancista, tradutor, pintor,
jornalista, teatrlogo, editor e crtico de arte, pois, como explicita Amoroso,
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Danilo Donati, o figurinista preferido de Pasolini, tendo participado da maioria das filmagens do diretor, comenta: O mito de dipo, que ele tanto queria filmar, deveria se perder no tempo, na cultura mais distante possvel da nossa e da grega. Pensou, inicialmente, nos astecas e naquela civilizao. Pareciam-lhe suficientemente distantes, mas essa escolha dificultaria muito o filme, do ponto de vista da esttica e da produo. Fui eu quem lhe sugeriu a frica negra, que tinha acabado de conhecer. (AMOROSO, 2002, p.71-2).
Destarte, o dipo sofocleano , sem dvida, o mais conhecido nas artes, mas a saga
desse atormentado personagem no inicia com Sfocles, visto que a tragdia edipiana
baseia-se numa tradio mtica remota, que encontra em Homero a sua verso mais
antiga, como pode ser percebido neste trecho da Odisseia, em que Jocasta aparece
como o nome de Epicasta:
Epicasta eu vi bela, em cujo toro, Fatal engano! entrou seu filho dipo, Ignaro parricida. O fato horrvel Tendo o Cu revelado, ele, por dura Sentena divinal curtindo penas, Os Cadmeus regeu na amena Tebas; Ela em agro pesar, suspenso um lao De Celsa trave, do Orco s portas baixa, Ao cmplice legando quantas frias Sabe evocar do inferno a dor materna. (HOMERO, 2009, p.124).
Portanto, alm da obra de Homero, dipo encontra-se em Sete contra Tebas, de
squilo; em dipo em Colono, de Sfocles, e em Fencias, de Eurpedes, no entanto,
Sneca tambm versou sobre o famoso mito em dipo. Neste contexto, Aristteles em
sua Arte Potica, presente em A potica clssica, considera a tragdia do dipo de
Sfocles uma das mais belas histrias da cultura grega, pois O reconhecimento, como a
palavra mesma indica, a mudana do desconhecimento ao conhecimento, ou
amizade, ou ao dio, das pessoas marcadas para a ventura ou destida. O mais belo
reconhecimento o que se d ao mesmo tempo que uma peripcia, como aconteceu no
dipo. (ARISTTELES, 2003, p.30).
Assim sendo, ao analisar a tragdia de dipo Rei, pode-se levar em conta as duas
obras que compem a trilogia tebana, Antgona e dipo em Colono, porm, ressalva-se
que as trs obras so independentes, isto , compem uma trilogia ao nvel de
encadeamento do mito, apenas. Por conseguinte, diferentemente do proposto por Freud,
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verifica-se que o elo bsico entre as trs tragdias o conflito entre pai e filho e no a
relao incestuosa entre filho e me, porque, na obra sofocleana,
[...] dipo mata seu pai Laio, que lhe tentara tirar a vida. Em dipo em Colono expande seu dio terrvel contra os filhos, Etocles e Polinice, e, em Antgona aparece o mesmo dio entre pai e filho, entre Creonte e Hmon. O problema do incesto no existe em relao aos filhos de dipo e Jocasta e nem entre Hmon e sua me Eurdice. Se, portanto, analisarmos dipo Rei no conjunto da trilogia, chegaremos concluso de que o problema em dipo Rei o conflito entre pai e filho, entre dipo e Laio, Freud evidentemente interpreta o antagonismo entre dipo e Laio como uma rivalidade inconsciente provocada pelos anelos incestuosos de dipo para com sua me Jocasta. Se no aceitarmos essa interpretao, surgiria o problema de como explicar diversamente o conflito entre pai e filho, encontrado nas trs tragdias. (BRANDO, 2009, p.46-7).
Neste contexto, preciso considerar, mormente, que a tragdia nasceu juntamente
com o culto de Dioniso ou Baco, no entanto, at hoje, no possvel esclarecer a gnese
do trgico sem, ao menos, mencionar o satrico. Assim, a histria inicia com Zeus, que,
como aponta Junito de Souza Brando,
[...] mais uma vez apaixonou-se por uma simples mortal. Dessa feita, a vtima foi a princesa tebana Smele, que se tornou me do segundo Dioniso. que de Zeus e Persfone nasceu Zagreu, o primeiro Dioniso. Preferido do pai dos deuses e dos homens, estava destinado a suced-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o contrrio. Para proteger o filho dos cimes de sua esposa Hera, Zeus o confiou aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o criaram nas florestas do monte Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro do jovem deus e encarregou os Tits de rapt-lo. Apesar das vrias metamorfoses tentadas por Dioniso, os Tits surpreenderam-no sob a forma de touro e o devoraram. Palas Aten conseguiu salvar-lhe o corao, que ainda palpitava. Foi esse corao que Smele engoliu, tornando-se grvida do segundo Dioniso. O mito tem muitas variantes, principalmente aquela, segundo a qual fora Zeus quem engolira o corao do filho, antes de fecundar Smele. Nesse caso, o filho de ambos se chamava Iaco, nome mstico de Dioniso, Zagreu ou Baco, isto , o jovem deus que conduzia misticamente a procisso dos iniciados nos Mistrios de Elusis. (BRANDO, 2009, p.09).
Ademais, a histria prossegue com o nascimento do segundo Dioniso, que no teve
um nascimento normal, porque
[] Hera, ao saber dos amores de Zeus e Smele, resolveu elimin-la. Transformando-se na ama da princesa tebana, aconselhou-a a pedir ao amante que se apresentasse em todo o seu esplendor. O deus advertiu a Smele que semelhante pedido lhe seria funesto, mas, como havia jurado pelo rio Estige jamais contrariar-lhe os desejos, apresentou-se-lhe com
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seus raios e troves. O palcio da princesa incendiou-se e esta morreu carbonizada. Smele se esqueceu de que um mortal somente pode contemplar um deus com forma hierofnica e no epifnica. Na realidade, a princesa tebana no atentou para o mana de um deus! Zeus recolheu do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, at que se completasse a gestao normal. Nascido o filho, Zeus confiou-o aos cuidados das Ninfas e dos Stiros do monte Nisa. L, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetao, e em cujas paredes se entrelaavam galhos de viosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o filho de Smele. Certa vez, Dioniso colheu alguns desses cachos, espremeu-lhes as frutinhas em taas de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte. Todos ficaram ento conhecendo o novo nctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Stiros, Ninfas e Dioniso comearam a danar vertiginosamente, ao som dos cmbalos. Embriagados do delrio bquico, todos caram por terra semidesfalecidos. (BRANDO, 2009, p.10).
Portanto, historicamente, em funo da vindima, era celebrada em Atenas a festa do
vinho, em que os participantes, assim como faziam os partcipes das festas de Baco,
embriagavam-se e danavam disfarados como stiros, que eram [...] concebidos pela
imaginao popular como 'homens-bodes'. Teria nascido assim o vocbulo tragdia []
(BRANDO, 2009, p.10), que deriva de tragoida= trgos (bode) + oid (canto) + a
(ia), que resultou no latim tragoedia e tragdia em portugus. No entanto, h uma outra
corrente que acredita que tragdia foi assim denominada em funo de um bode sagrado
que se sacrificava a Dioniso, bode que, como explicita Brando, [...] era o prprio deus,
no incio de suas festas, pois, consoante uma lenda muito difundida, uma das ltimas
metamorfoses de Baco, para fugir dos Tits, teria sido em bode, que acabou tambm
devorado pelos filhos de rano e Gia. Devorado pelos Tits, o deus ressuscita na figura
de 'trgos theios', de um bode divino: o bode paciente, o pharmaks, que imolado
para purificao da plis. (BRANDO, 2009, p.10).
Na Grcia, como observa Brando, as correntes religiosas confluem para um ponto
em comum: [...] sede de conhecimento contemplativo (gnsis), purificao da vontade
para receber o divino (ktharsis) e libertao desta vida 'geradora', que se estiola em
nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasa). (BRANDO, 2009,
p.11), mas esses aspectos religiosos, bastante populares, chocavam-se brutalmente com
a aristocracia e religio oficial da plis, assim, os deuses olmpicos sentiam-se
ameaados pelo Estado e vice-versa. Em funo disso, os devotos de Dioniso ao carem
desfalecidos e embriagados nas celebraes, acreditavam sair de si mesmos em uma
espcie de xtase e o sair de si implicava na superao da condio humana, isto ,
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[...] implicava num mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do [] entusiasmo. O homem, simples mortal, [] em xtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se, [] 'anr', isto , um heri, um varo que ultrapassou o [] 'mtron', a medida de cada um. Tendo ultrapassado o mtron, o anr , ipso facto, um [] 'hypocrits', quer dizer, aquele que responde em xtase e entusiasmo, isto , o ATOR, um outro. (BRANDO, 2009, p.11).
Neste contexto, a ultrapassagem do mtron pelo hypocrits uma [...] 'dmesure',
uma [] 'hybris'; isto , uma violncia feita a si prprio e aos deuses imortais, o que
provoca a [] 'nmesis', o cime divino: o anr, o ator, o heri, torna-se mulo dos
deuses. (BRANDO, 2009, p.11). Assim, surgir uma punio, pois o que o hypocrits
fizer, estar fazendo contra si mesmo, como no caso de dipo, por exemplo, ou seja,
mais um passo e fechar-se-o sobre eles as garras da [] 'moira', o destino cego.
(BRANDO, 2009, p.11) e, dessa forma, d-se o enquadramento trgico, portanto, a
tragdia s ocorre quando ultrapassa-se o mtron, a medida de cada um.
Aristteles, em sua Arte Potica, distingue claramente a tragdia da epopeia, alm
disso, define a tragdia como a representao de uma ao grave de alguma extenso e
completa: [...] em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com
atores agindo, no narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse prpria
dessas emoes. Chamo linguagem exornada a que tem ritmo, melodia e canto; e atavio
adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificao e as outras,
cantadas. (ARISTTELES, 2003, p.24), alm disso, divide a arte da moral com a mimese
e a catarse, sendo a tragdia, definida por Brando, como [...] a imitao de realidades
dolorosas, porquanto sua matria-prima o mito, em sua forma bruta. Acontece, todavia,
que essa mesma tragdia nos proporciona deleite, prazer, entusiasmo. (BRANDO,
2009, p.13), que, quase sempre, apresentam desfechos trgicos e infelizes.
Desse modo, os desfechos dolorosos, trgicos, so mimese para Aristteles, pois a
imitao (mimese), que apresentada por via potica, no real, se constitui num plano
artificial, mimtico, que so [...] valores pegados realidade, pois arte uma realidade
artificial. (BRANDO, 2009, p.13), que no moral ou imoral, , simplesmente, arte.
Alm disso, Aristteles considera que, em funo do terror e da compaixo,
principalmente, a tragdia desperte uma catarse, que significa em linguagem mdica
grega, purgao ou purificao, bastante condizente com tais emoes, terror e piedade,
compaixo e no abrange todas as emoes humanas ou uma gama delas.
Assim sendo, a matria-prima da tragdia a mitologia, pois
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[...] todos os mitos so, em sua forma bruta, horrveis e, por isso mesmo, atrgicos. O poeta ter, pois, de introduzir, de aliviar essa matria bruta com o terror e a piedade, para torn-los esteticamente operantes. As paixes arrancadas assim de sua natureza bruta alcanam pureza artstica, tornando-se, na expresso do Estagirita, uma alegria sem tristeza. Destarte, os sentimentos em bruto da realidade passam por uma filtragem e a tragdia 'purificada' vai provocar no espectador sentimentos compatveis com a razo. Assim poder Aristteles afirmar que a tragdia, suscitando terror e piedade, opera a purgao prpria a tais emoes, por meio de um equilbrio que confere aos sentimentos um estado de pureza desvinculado do real vivido. (BRANDO, 2009, p.13-4).
Ademais, Aristteles delimita o carter do heri trgico e a causa de sua
transformao, pois, como ele aponta,
Como a estrutura da tragdia mais bela tem de ser complexa e no simples e ela deve consistir na imitao de fatos inspiradores de temor e pena caracterstica prpria de tal imitao em primeiro lugar claro que no cabe mostrar homens honestos passando de felizes a infortunados (isso no inspira temor nem pena, seno indignao); nem os refeces do infortnio felicidade (isso o que h de menos trgico; falta-lhe todo o necessrio, pois no inspira nem simpatia humana, nem pena, nem temor); tampouco o indivduo perverso em extremo tombando da felicidade no infortnio; semelhante composio, embora pudesse despertar simpatia humana, no pena, nem temor; de tais sentimentos, um experimentamos com relao ao infortnio no merecido; o outro, com relao a algum semelhante a ns; a pena, com relao a quem no merece o seu infortnio; o temor, com relao ao nosso semelhante; assim, o resultado no ser nem pena, nem temor. (ARISTTELES, 2003, p.31-2).
Neste contexto, a mudana de uma boa m fortuna no constitui,
necessariamente, um desfecho trgico, mas precisa distinguir o conflito trgico fechado,
que acontece, por exemplo, em dipo Rei e Antgona, e a situao trgica, presente
em Alceste, Filoctetes, on, Helena, Orstia etc., pois o trgico no necessita estar
presente no fecho da pea, mas no cerne da tragdia.
Em se tratando de dipo Rei, h uma crena em uma maldio familiar estabelecida
em um gunos, em um grupo de pessoas ligadas por laos de sangue em sagrado, pais,
filhos, netos, irmos, ou em profano, cunhados, sobrinhos e tios, onde uma falta cometida
por um membro do gunos recairia sobre a linhagem inteira, assim, no gunos de dipo,
haveria a maldio dos labdcias, pois, como explicita Brando, labdcida era uma
[] designao generalizante dos ancestrais de dipo, pelo fato de Laio, pai de dipo, ser filho de Lbdaco, rei de Tebas, e neto de Cadmo,
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fundador lendrio da cidade. Na realidade a maldio dos labdcidas se inicia com Laio. Consoante a lenda, quando Lbdaco morreu, Laio era muito jovem e, dessa maneira, a regncia foi entregue a um seu parente, Lico. Este foi assassinado por Zeto e Anfio, que se apoderaram do reino de Tebas. Laio fugiu para a corte de Plops, na lida. Observe-se de passagem, que tambm Plops um grande amaldioado dos deuses, por causa dos crimes de seu pai Tntalo, a que se somaram os cometidos pelo prprio Plops... Na corte de Plops, Laio, esquecendo a sacracidade da hospitalidade, deixou-se dominar por uma amizade 'contra naturam' por Crisipo, filho do rei. Raptou o jovem prncipe, inaugurando, destarte, na Grcia, ao menos mitologicamente, a [] pederastia. Amaldioado por Plops, Laio, aps a morte de Anfio e Zeto, foi feito rei de Tebas, casando-se com Epicasta, como lhe chama Homero, ou Jocasta, segundo os trgicos. (BRANDO, 2009, p.39).
Neste contexto, diante do casamento de Laio e Jocasta e da posterior ausncia de
filhos, que consistia em uma catstrofe religiosa, social e poltica, o casal consultou o
Orculo de Delfos, que sentenciou: se lhes nascesse um filho, este mataria o genitor e
desposaria a me, no entanto, um ano aps a revelao do orculo, nascia o filho de
Jocasta e Laio, porm, com o temor da profecia,
[...] os reis de Tebas entregaram-no a um pastor, para que o matasse. Este atou-o pelos tornozelos a uma rvore, no monte Citero. Apiedado, todavia, da criana, o pastor tebano acabou por entreg-la a um seu colega de Corinto, cujos reis Plibo e Mrope tambm no tinham filhos. Os soberanos de Corinto criaram e educaram o menino, como se fora seu filho, tendo-lhe dado o nome de dipo, que quer dizer ps inchados, em consequncia da inflamao provocada pelas cordas que o prendiam rvore. Com vinte e um anos, ouvindo dizer que no era filho legtimo dos reis de Corinto, foi consultar o Orculo de Delfos. A resposta do Orculo foi a mesma de vinte e dois anos atrs: 'matars teu pai e desposars tua me'. dipo no mais volta a Corinto, mas toma o caminho de Tebas... (BRANDO, 2009, p.39).
Posteriormente, Tebas encontrava-se assolada por uma esfinge, que ficava na
entrada da cidade, e devorava aqueles que no conseguiam responder-lhe um enigma,
alm disso, Laio deslocara-se de sua cidade para consultar-se com o Orculo de Delfos e
dipo seguia caminho para Tebas quando encontraram-se e, por motivos religiosos,
lutaram e dipo acabou por matar Laio, o pai que desconhecia, e a sua comitiva. Desse
modo, diante do posto vago no trono de Tebas, dipo teve o trono e, consequentemente,
a mo de Jocasta, a me que ele tambm desconhecia, unio da qual resultam quatro
filhos: Etocles, Polinice, Antgona e Ismene.
Assim, passado muitos anos, uma peste assola Tebas, pois [...] as sementes no
mais germinam no seio da terra. O povo vem splice pedir a dipo, que outrora livrara a
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cidade da Esfinge, que o salve tambm agora. (BRANDO, 2009, p.40) e, nesse ponto,
inicia-se a obra de Sfocles, dipo Rei, que Pasolini traduziria cinematograficamente em
1967.
O texto de Sfocles, como dito anteriormente, inicia com um grupo de pessoas
ajoelhadas em frente ao palcio de dipo, solicitando que o decifrador de enigmas, o
prprio dipo, que respondera ao enigma (o que que primeiro anda em quatro, depois
em dois e acaba por andar em trs?), proposto pela esfinge, consiga achar a causa das
iniquidades que assolam Tebas, no entanto, a busca da causa, maldio conseguida em
funo do assassinato de Laio, resultar na descoberta de sua identidade e na sua
repentina destruio, afinal, dipo se descobrir assassino de seu pai, marido de sua me
e irmo de seus filhos, aps atender ao suplcio do sacerdote de Zeus:
[] Nada tinhas ouvido da boca de nenhum de ns, no havias recebido nenhuma instruo: foi pela ajuda de um deus todos dizem, todos pensam assim que soubeste reerguer nossa fortuna. Pois bem! Ainda desta vez, poderoso dipo, amado por todos aqui, a teus ps imploramos. Descobre para ns um socorro. Que a voz de um deus te inspire ou que um mortal te instrua, no importa! (SFOCLES, 2010, p.07).
Basicamente, a obra de Sfocles se divide em 11 partes. Ainda no Prlogo, dipo
no sabe o motivo de tanta gente se reunir na porta do palcio real: a peste. Aps o
suplcio do povo, dipo promete tomar providncias, auge da ironia trgica na obra de
Sfocles, assim, no Prodo, o coro pede pelo fim do flagelo que assolara Tebas. Ademais,
no Primeiro Episdio, sabe-se que a peste inundara a cidade, pois ela abriga o
assassino de Laio e, assim, fora amaldioada, e a verdade revelada pelo adivinho
Tirsias: dipo o assassino do pai e o marido da prpria me!
Em funo do aparente absurdo, no Primeiro Estsimo, o coro fica indeciso, pois s
os deuses sabem de tudo. No Segundo Episdio, Jocasta revela a dipo que, no
passado, o orculo predissera que, se Laio e ela tivessem um filho, ele mataria o pai e se
casaria com a prpria me. Ento, no Segundo Estsimo, o coro lamenta e faz apologia
religio, to desacreditada entre os sofistas.
Alm disso, o Terceiro Episdio consiste na chegada do servo do rei de Corinto,
Plibo, e a revelao de que dipo no era filho natural de Plibo e Mrope, desse modo,
Jocasta entende o que ocorrera... O coro reafirma a f e a fidelidade aos orculos no
Terceiro Estsimo e no Quarto Episdio, dipo compreende tudo que ocorrera e descobre
sua origem, que, fatalmente, lhe revelar a tragdia, e, em funo disso, o coro, no
Quarto Estsimo, mostra como o destino foi caprichoso com dipo.
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Assim, tragdia consumada, o xodo anuncia o suicdio de Jocasta e o modo que
dipo se pune: cega os prprios olhos com um broche da me/esposa e, indiretamente, o
coro final indica a maldio familiar que arrebatou dipo e que esmagar seus
descendentes, afinal, como salienta Hlio Pellegrino, em dipo e a paixo, a personagem
escutara do orculo uma previso terrvel, [...] seria parricida e incestuoso e, de seu
matrimnio com a me, lhe nasceria uma prole nefanda. (PELLEGRINO, 2009, p.352).
Em linhas gerais, Pasolini transcodifica a obra de Sfocles para o cinema, mas o
tempo e o espao sofrem deslocamentos, dados importantes, pois a frequncia, o ritmo,
a ordem e a razo das mudanas espaciais garantem a unidade, o movimento e a
veracidade do narrado, ao mesmo tempo que 'tornam sensvel o escoar do tempo,
ritmando-o'. Alm de integrado ao tempo, o espao associa-se, pois, em maior ou menor
grau, s personagens e ao narrador, com seus pontos de vista, seu olhar, sua 'cmera',
que enfoca e recorta a realidade. (PELLEGRINI, 2003, p.25), alm disso, Pasolini inclui
duas sequncias, uma anterior ao prlogo e outra posterior ao eplogo, ambas com cenas
que se passam na Itlia, mas em perodos diferentes, com um intervalo de duas dcadas.
O filme de Pasolini inicia com uma msica marcial e a imagem de indicao para a
cidade de Tebas. Posteriormente, enfoca-se um casaro de estilo italiano onde sero
destacadas duas janelas e se espreitar um parto. Discretamente, a cmera focaliza o
momento ntimo, deixando transparecer a penumbra que assola o quarto e a contradio
efetua-se, afinal, no h luz quando se v uma mulher a dar luz, assim, como aponta
Tereza Barbosa, em Sfocles, Sneca e Pasolini, h a sugesto de paradoxo: [...] pela
luminosidade contraposta ao ato (entrar em um quarto escurecido e dar luz), pela
fixao do olhar que permanece no interior a ver uma me expelir do tero seu filho
(vemos o interior da casa atravs de uma janela e nesse interior se d o ato de trazer
para fora do tero a criana). (BARBOSA, 2001, p.100).
Portanto, a cena reveladora, pois, apesar do nascimento, da aparente satisfao
das parteiras, que auxiliam o parto, a me no toca seu filho e no esboa nenhuma
reao positiva, de alvio e/ou comoo, ou seja, tudo fica guardado no interior da casa.
O espectador, pela estratgia do poeta Pasolini, haver de ser cmplice sempre. Nem
Sfocles, nem Sneca privilegiou assim o nascer de dipo. (BARBOSA, 2001, p.100).
Ademais, a no fidelidade ao texto sofocleano continua com a cena seguinte, a de um
piquenique no bosque, aprazvel como a imagem que Sfocles descreve em dipo em
Colono:
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Neste lugar de bons corcis ters o paradeiro mais belo, estrangeiro, que existe na terra: Colono, a clara. Aqui o rouxinol, constante hspede, entoa sempre o canto harmonioso no fundo destes vales muito verdes; seu ninho feito na hera sombria, inviolvel ramagem do deus, compacta proteo ao mesmo tempo contra o calor do sol e contra o vento de todas as tempestades; aqui vagueia o prprio deus dos bacanais, Dioniso, quando ele vem prestar o culto s divindades que o nutriram. Aqui, graas ao orvalho do cu, florescem por incontveis manhs, em cachos muito belos, os narcisos, essas coroas desde priscas eras das Grandes Deusas, bem como o aafro de reflexos dourados. (SFOCLES, 1998, p.141).
Inicialmente, a me deixa seu filho sozinho na grama e vai se divertir com as demais
mulheres que a acompanham, assim, a atmosfera cnica prenuncia a frase final de dipo
no filme: A vida termina onde comea. Em seguida, vemos Jocasta amamentar seu filho,
no entanto, a cena significativa em funo da expresso enigmtica de Jocasta, pois
esse trecho anuncia a histria do mito, o prlogo da tragdia, por meio das feies da
me de dipo j que em seu rosto pode se ler: [...] a histria que vocs vero ser um
mito de prazer, angstia, perplexidade, tristeza e evaso. (BARBOSA, 2001, p.101). Alm
disso, por meio do olhar da cmera, a criana, do colo da me, percebe o cu, as rvores,
a paisagem e sem saber contempla em silncio o local de sua existncia e morte, algo
similar considerao de Francis Vanoye, em Ensaio sobre a anlise flmica, j que em
cinema, existe outra forma de focalizao mental, a voz interior: ouve-se o que o
personagem pensa, mas ou se v o personagem mudo, ou no se percebem as palavras
que saem de sua boca. (VANOYE, 1994, p.47).
Posteriormente, com dipo um pouco maior e diante do olhar ameaador do pai, so
impressas na tela os dizeres: Tu ests aqui para ocupar meu lugar no mundo, enviar-me
ao nada. E a primeira coisa que me roubars ser ela, a mulher que amo... Pois j me
roubas seu amor. Desse modo, os dizeres marcam a passagem das imagens modernas,
na cidade, na Itlia, que so abruptamente cortadas para o deserto, no Marrocos, por um
rpido movimento de cmera, [...] que percorre uma paisagem rida e agressiva,
conduzir-se- o olhar do expectante para um princpio mais remoto que o de Sfocles.
(BARBOSA, 2001, p.103).
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Em seguida, dipo surge amarrado pelas mos e pelos ps em uma vara como um
animal de caa, levado por um pastor que o abandona e, mais adiante, desamarrado e
entregue ao rei de Corinto, que o cria como filho. Entretanto, muitos anos depois, em uma
discusso em um jogo, um rapaz lhe diz que ele, dipo, filho falso, em funo disso e
de alguns sonhos que tivera, dipo diz ao rei de Corinto e sua mulher, os pais que lhe
criaram, que ir at o Santurio de Apolo falar com o Orculo.
Assim sendo, o Orculo diz a dipo que ele iria assassinar o pai e se deitar com a
me, dizeres que perturbam o juzo de dipo, que, em seguida, chora e se desespera no
caminho para Tebas, como observa Barbosa:
dipo, para que a histria se realize, ser salvo pelo pastor e levado para o rei Plibo. O jovem dipo, depois de um perodo em Corinto, ser ameaado com sonhos funestos, por isso sai em busca de uma resposta que lhe ser dada pela pitonisa. Pasolini enquadra a cena do orculo debaixo de uma oliveira. Riso e dor se misturam nas palavras da ptia, entram nos ouvidos de dipo e saem desesperados dos seus lbios. Perplexo, ele tambm ri. Andarilho angustiado e confuso, deita-se no colo da me terra, chora, retoma o caminho, faz crculos sobre si e segue, sempre na direo de Tebas. (BARBOSA, 2001, p.103).
No caminho para Tebas, dipo se desentende com a comitiva de Laio e os mata um
a um, com exceo do pastor/servo de Laio que o levara embora ainda criana e o
abandonara no deserto, e diante da morte dos acompanhantes do rei de Tebas, o servo
foge e se esconde. A cena bastante significativa, pois, alm de ser parte fundamental na
tragdia, adaptada de forma magnfica por Pasolini, como amplamente apontado por
Barbosa em trs tpicos, que evocam a lucidez e a cegueira da personagem central:
a) O encontro entre a comitiva de Laio e dipo tenso. O cineasta trabalha com o olhar e a inquietao dos cavalos. Sem uso de palavras, mas com a retrica dos gritos, Pasolini expressa a tentativa de dipo de afastar-se do outro/Laio, o dipo que grita, recusa. dipo traz consigo um galho de oliveira, o qual ele concretamente utiliza para se proteger do sol. Simbolicamente, o ramo da rvore sagrada a imagem do vaticnio que paira sobre sua cabea. O ramo realiza a ligao da cena do orculo com a do assassinato. As nervosas expresses de riso e de dor tambm estabelecero a ligao das duas cenas. Pelo riso de dipo h uma aceitao quase histrica do vaticnio. b) Na sequncia, aps um enfrentamento passageiro, v-se a fuga/grito de dipo. Toda ela construda com movimentos opostos; os seus distanciamentos do local onde se encontra Laio so entremeados de sucessivos retornos at a volta completa para o grande agon. Retiradas e regressos desesperados, gritos e risos sugerem a imposio paulatina da tragicidade oracular. As figuras retricas mximas, o grito e o movimento
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de correr, ficam claramente estabelecidas. c) Finalmente, temos em trs assassinatos, trs sucessivos ofuscamentos, os quais acabam por constituir o recurso mais fascinante da cena. Cria-se um jogo: luz excessiva contra claridade natural. Os antigos gregos chamavam essa imagem de ate. Assim, o excesso de iluminao conduz falta de clareza acerca do crime cometido. Os ofuscamentos no momento das mortes revelam a incapacidade de ver, tanto por parte do protagonista quanto por parte do espectador. O que temos revelado, a partir dessa tcnica, que o erro cometido (hamartia) o por falta de viso (ate). Pasolini aqui se faz de um didatismo exemplar. (BARBOSA, 2001, p.103-4).
Na sequncia, um mensageiro leva dipo ao encontro do profeta Tirsias, cego e
tocador de flauta, e eis que surge, novamente, os dizeres: Os outros, teus compatriotas e
irmos, sofrem, choram em busca da salvao, e tu, que ests cego e sozinho, cantas...
Como gostaria de ser tu! Tu cantas o que est mais alm do destino. tambm o mesmo
mensageiro que o leva em direo esfinge, que assolava a cidade, e dipo a liquida
com imensa facilidade sem, ao menos, responder ao enigma e, em funo disso, Barbosa
aponta que na obra de Pasolini a esfinge, monstro dos enigmas,
[...] mais parece brincadeira de criana. desconcertante a facilidade com que ele vence este desafio. A sua vitria se faz pelo avesso, visto que no h resposta para o enigma, pelo contrrio, a soluo um fechamento para a questo colocada. A esfinge afirma apenas: Tens um enigma na sua vida. O abismo est dentro de ti e, para no responder, dipo elimina a esfinge num abismo exterior a ele. No entanto, por um ato to insignificantizado o forasteiro h de se casar com a rainha. A cena uma banalizao do sucesso da ao. A mesma que veremos quando o mensageiro, no instante em que dipo acusa Tirsias, comea a tocar flauta. (BARBOSA, 2001, p.104).
Assim sendo, o mensageiro anuncia com felicidade e entusiasmo que a esfinge fora
liquidada e, como recompensa, dipo coroado rei de Tebas e, consequentemente,
esposo da rainha Jocasta. Anos depois, diante de uma peste que assolava Tebas, o povo
implora uma soluo para dipo, aquele que os salvara antes da esfinge, e dipo,
preocupado, conta que enviara Creonte, seu cunhado, para o Santurio de Apolo para
descobrir o que deveria ser feito, assim, Creonte retorna juntamente com os dizeres
impressos na tela: Deus, que traga um destino de salvao!. Alm disso, Creonte revela
que o orculo dissera que no mais deveria viver em Tebas um homem amaldioado e
sem remdio, isto , era preciso saber quem matara Laio para a cidade livrar-se da peste,
logo, dipo manda buscar a nica testemunha da morte de Laio, o pastor que, por
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piedade, salvara sua vida. No entanto, antes da vinda do pastor, Tirsias chamado e diz
que dipo o nico culpado por tudo, em funo do dito de Tirsias e com a posterior
revelao da histria de Laio e o filho, revelada por Jocasta, dipo concluiu o desfecho de
sua prpria histria. Porm, atordoado e corrodo pela incerteza, interroga o servo que lhe
levou criana ao Monte Citero e o criado lhe confessa que, por piedade, lhe poupou a
vida.
Neste contexto, Jocasta se enforca e dipo, na tentativa de se punir e de no mais
ver a realidade, cega seus dois olhos e pede que lhe exilem bem longe. Diante de sua
cegueira, o mensageiro lhe d uma flauta, como a de Tirsias, e, num corte sbito de
cena, reaparece em uma cidade moderna, em uma escadaria acompanhando dipo, que
cego, toca em uma praa movimentada, assim, ngelo, o mensageiro, serve de guia ao
andante dipo.
O fim de dipo, guiado por ngelo, proposto por Pasolini, em muito lembra o incio
de Antgona, quando o ancio dipo guiado pela filha Antgona, sua irm e um dos
frutos de sua impura unio com Jocasta:
Meu pai, desventurado dipo, j vejo as torres protetoras da cidade ao longe; este lugar certamente consagrado; h por aqui muitos loureiros, oliveiras e tambm parreiras, e sob essa folhagem os rouxinis de um coro alado esto cantando harmoniosamente. Senta logo aqui, repousa nesta pedra gasta; teu caminho foi muito longo para o ancio que s. (SFOCLES, 1998, p.103)
Com base nisso, ngelo aproxima-se da irm/filha de dipo, figura primordial na
obra sofocleana, pois, como analisa Pellegrino,
Cego, banido de Tebas, reduzido condio de mendigo, o velho rei, pelas mos de sua filha Antgona, vagou pelos campos gregos, condenado a assumir sua condio de nascido, embora dela quisesse fugir pela cegueira. Fora dos muros de Tebas, expulso da cidade-me, dipo afinal nasceu, na pobreza e na errncia. Seus passos no mundo escuro s eram possveis pelo amor de Antgona, sua filha, sua irm e, agora, sua me. Atravs da guia, que era sua luz, tambm nascida do ventre de Jocasta, pde dipo viver uma experincia que, por sua figurao materna, lhe permitiu o resgate final da rainha de Tebas. Sua relao simblica com Jocasta, passo a passo, foi construda e tornada possvel atravs de Antgona. dipo, pela escurido do tero, salvou-se da morte. Pela escurido da cegueira, tentou fazer do espao do mundo uma tumba uterina. O cuidado de Antgona, entretanto, puxou-o para a luz Antgona era a me que o queria nascido. Jocasta era a escurido da cegueira. Uma simbolizava a vida. Outra representava a morte. (PELLEGRINO, 2009,
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p.374-5).
Portanto, como vemos, Pasolini lana mo de uma narrao circular em sua
traduo do texto de Sfocles, utilizando-se de um prlogo e de um eplogo atual, em que
as cenas so trazidas para a atualidade dos anos 60, isto , Pasolini ambienta o mito
clssico em outro espao, contemporneo, mas sem diminuir a atemporalidade do mito
edipiano e nem a excepcionalidade da tragdia sofocleana ao evidenciar dipo
caminhando pela cidade, tocando uma msica triste e flagrando-o em frente ao casaro
onde nascera no incio do filme, agora j desgastado pelo tempo, e se dirigindo ao
bosque, em que a tragdia se anunciara, rememorando sua existncia em sua ltima e
significativa fala: A vida termina onde comea.
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