143-393-1-PB

18
Dossiê Revista Brasileira de Ciência, Tecnologia e Sociedade, v.1, n.2, p.5875, jan/dez 2010. 58 POR UMA DEFINIÇÃO DOS PROCESSOS TECNICAMENTE MEDIADOS DE ASSOCIAÇÃO Pedro Peixoto Ferreira 1 Resumo: Este texto é um exercício teórico em torno da definição de um recorte de pesquisa centrado naquilo que proponho denominar "processos tecnicamente mediados de associação" (ProTeMAs). O argumento central é que a "realidade objetiva dos fatos sociais" pode ser melhor investigada quando a sua base objetiva não é definida antecipadamente pelo pesquisador, mas sim inferida a partir dos rastros deixados pela propagação e reiteração de configurações relacionais. Para esboçar este argumento, autores diversos foram mobilizados em torno do conceito latouriano de mediação técnica. Palavraschave: Bruno Latour, teoria atorrede, etnometodologia, mediação técnica, tecnologia, processos de associação Towards a definition of technically mediated process of association Abstract: This paper is a theoretical exercise around the definition of a research frame centered on what is here called "technically mediated processes of association" (ProTeMAs). The main argument is that the "objective reality of social facts" is better investigated when its objective basis is not predefined by the researcher, but inferred from the traces left by the propagation and reiteration of relational configurations. To sketch this argument, diverse authors were mobilized around the latourian concept of technical mediation. Keywords: Bruno Latour, actornetwork theory, ethnomethodology, technical mediation, technology, processes of association 1 Doutor em Ciências Sociais (Unicamp). Professor do Depto. de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Integrante do grupo de pesquisa CTeMe. Email: [email protected].

description

artigo

Transcript of 143-393-1-PB

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 58

    PORUMADEFINIODOSPROCESSOSTECNICAMENTE

    MEDIADOSDEASSOCIAO

    PedroPeixotoFerreira1

    Resumo:Este textoumexerccio tericoem tornodadefiniodeumrecortedepesquisacentradonaquiloqueproponhodenominar"processostecnicamentemediadosdeassociao"(ProTeMAs).Oargumentocentralque a "realidadeobjetivados fatos sociais"pode sermelhor investigadaquando a sua base objetiva no definida antecipadamente pelopesquisador, mas sim inferida a partir dos rastros deixados pelapropagao e reiterao de configuraes relacionais. Para esboar esteargumento, autores diversos foram mobilizados em torno do conceitolatourianodemediaotcnica.

    Palavraschave: Bruno Latour, teoria atorrede, etnometodologia,mediaotcnica,tecnologia,processosdeassociao

    Towardsadefinitionoftechnicallymediatedprocessofassociation

    Abstract: This paper is a theoretical exercise around the definition of aresearch frame centered on what is here called "technically mediatedprocesses of association" (ProTeMAs). The main argument is that the"objective realityof social facts" isbetter investigatedwhen itsobjectivebasisisnotpredefinedbytheresearcher,butinferredfromthetracesleftby thepropagationand reiterationof relationalconfigurations.Tosketchthis argument, diverse authors were mobilized around the latourianconceptoftechnicalmediation.

    Keywords: Bruno Latour, actornetwork theory, ethnomethodology,technicalmediation,technology,processesofassociation

    1DoutoremCinciasSociais (Unicamp).ProfessordoDepto.deSociologiado InstitutodeFilosofiaeCinciasHumanas(IFCH)daUnicamp.IntegrantedogrupodepesquisaCTeMe.Email:[email protected].

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 59

    EmSociologia,oconceitode"associao"geralmenteusadoparasereferiraagrupamentos voluntrios de indivduos livres e autnomos, em oposio aagrupamentos ligadostradioouaafetosepaixes.MaxWeber(2004:25; itlicosnooriginal),porexemplo,distinguiu"relaoassociativa"um"ajusteou[...]uniodeinteresses racionalmentemotivados (com referncia a valores ou fins)" que, "comocasotpico,poderepousarespecialmente(masnounicamente)numacordoracional,por declarao recproca" de "relao comunitria" que "repousa no sentimentosubjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmogrupo" , uma distino que, segundo o prprio socilogo, "lembra a distinoestabelecidaporF.TnniesemsuaobrafundamentalGemeinschaftundGesellschaft,entre 'comunidade' e 'sociedade'", tendo sido o termoGesellschaft tambmmuitasvezestraduzidocomo"associao"(cf.TNNIES,2001,p.xlixlii).

    Noentanto,existemmuitasoutrasmaneirasdeconceberotermo"associao".Gabriel Tarde, por exemplo, ainda no final do sculo XIX, escreveu que "[u]masociedadesempre,emgrausdiversos,umaassociao"(TARDE,2004,p.63),eque"[s]e foi possvel comparar a associao humana a um organismo, isto se deveuprecisamenteaessafinalidadeinternaque,pelaassistnciamtuaouconvergnciadefunes, as solidariza ao ponto de serem alternativamente fim e meio umas comrelao s outras" (TARDE, 2002, p. 114)2. Esse tipo de concepo, que entende aassociao no como um tipo de relao social entre outros, mas sim como ofundamentoempricodequalquerconfiguraosocial,comeouaganharimportncianos estudos de ScioAntropologia da Cincia e da Tecnologia a partir do final dosculoXX,alcanandocertodestaquenosescritosdeBrunoLatour.emtornodestaconceporenovada(masnonova)de"associao"queestetextosedesenvolver,no esforo de contribuir para o delineamento de um recorte de pesquisa scioantropolgico centrado naquilo que aqui proponho chamar de "processostecnicamentemediadosdeassociao"(ProTeMAs)3.

    Fatossociais

    ...nossoprincpiofundamental:arealidadeobjetivadosfatossociais.

    (DURKHEIM,1950,p.XXIII)

    2Todasascitaesdeobraseminglsefrancsforamtraduzidaspeloautor. 3 Um primeiro esboo deste texto foi apresentado no seminrio "Antropologia da Cincia e daTecnologia", organizado pelo Programa de PsGraduao em Antropologia Social (PPGAS) daUniversidadeFederaldeSoCarlos(UFSCar)epeloProgramadePsGraduaoemCincia,TecnologiaeSociedade (PPGCTS)damesmauniversidade,e realizadoem26demaiode2010noDCSo/UFSCar.Agradeo imensamente os comentrios e crticas que recebi em virtude daquela apresentao, etambmaleituravaliosadestetextoporCeciliaDiazIsenrath.

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 60

    Como tornar inteligveis as novas formas encontradas pelas pessoas paraconvivereme levarem suas vidasem conjunto, semnecessariamenteprojetar sobreelasasformassociaisjconhecidasefamiliaresaoolharsociolgico?Comoconhecerprocessos sociaisaindadesconhecidos sem tomar comopontodepartidaprocessossociais jconhecidos?Comoencontraroquehdenovononovoenooquehdevelhononovo?Nodeveriaumcientistasocialencontrarmaneirasde levarasrioaexperincia das prprias pessoas envolvidas nos processos de associao quecompem a sociedade? E, fazendo isso, no estaria ele aprendendo a pensar juntocom esses processos, a fazer, da prpria produo de conhecimento sobre osprocessosdeassociao,umprocessodeassociaoelamesma?4

    Essetipodeesforoparatentaraprenderapensarjuntocomosprocessosdeassociao em lugardepretender saber,de incio,oque"a sociedade""" toantigoquantoprpriaSociologia,podendojserencontradoclaramente,comovemargumentandoLatour(2005a;2005b),nosescritospioneirosdeTarde5.Comefeito,osconflitosentreasidiasdeTardeeasdemileDurkheimsobreoqueasociedadeesobre comopesquisla ilustrammuitobem adiferena entre essaperspectivaquetomao socialcomocampoproblemticoa serconhecidoeoutraqueo tomacomodadoepressupostodesdeo incio.Essadiferena ficaparticularmenteclaraquando,em nota de rodap, Durkheim questiona explicitamente a idia tardeana de"imitao":

    Semdvida,todofatosocial imitadoe[...]tendeasegeneralizar,mas isso por ser social, quer dizer, obrigatrio. Seu poder deexpanso , no a causa, mas a consequncia de seu cartersociolgico.(DURKHEIM,1950,p.12,nota1)

    Tardeprope justamenteocontrrio:o fato socialno imitado,noalgoqueseimita;ofatosocialaprpriaimitao,sendoestaaoacausapropagadoraereiteradoradequalquerconfigurao relacionalentreoutras.6ComopdeDurkheimtrocar"arealidadeobjetivadosfatossociais"i.e.,amaneiracomoelesefetivamenteseconcretizamemaescompartilhadassemprerenovadasemoduladasporapenasumamaneirapossvel(entreoutras)pararepresentlai.e.,comoumcampojdadode fenmenos ao qual os socilogos tm acesso privilegiado?7 Encarada em sua 4ParafraseioaquiGilbertSimondon(2005,p.36)quandodisseque"a individuaodosseresspodeserapreendidapelaindividuaodoconhecimentodosujeito". 5EmentrevistaaNicholasGane(2004,p.834),porexemplo,Latourdeclarou:"Tardefoioinventordasociologia tantoquantoComte, Spencer eDurkheim [...].Basicamente, ele eraum associacionista latrs."OpapeldeTardenaconstituiodaSociologiafoibemtrabalhadoporEduardoV.Vargas(2000).Sobreasociologiatardeana,valeconferirtambmVargas(2007). 6Assim,porexemplo,quandoTarde(2004,p.121)tratadofundosocialdahesitao individual:"seahesitaoqueprecedeumatodeimitaoumfatosimplesmenteindividual,elatemcomocausafatossociais,isto,outrosatosdeimitaojefetuados". 7 Latour acredita que: "O queDurkheim tomou erroneamente pelo efeito de uma ordem social suigenerissimplesmenteoefeitodasobreposiodetantastcnicasemnossasrelaessociais"(Latour1994b,p.60).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 61

    positividadeepistemolgica,apropostadurkheimianade fundaraSociologiasobreaidia da realidade objetiva dos fatos sociais j vem sendo reinterpretada h pelomenosquarentaecincoanospelaetnometodologia,demaneiraadesviaroseufocotradicional e quase exclusivo no "princpio da objetividade dos fatos sociais" (asociedade como a priori) para o "fenmeno da objetivao dos fatos sociais" (asociedadecomoapraesenti).NoprefcioaseuclssicoStudiesinethnomethodology,HaroldGarfinkelescreveu:

    [E]mcontrastecomcertasversesdeDurkheimqueensinamquearealidade objetiva dos fatos sociais o princpio fundamental dasociologia,alioaprendidaeusadacomopolticainvestigativaquea realidade objetiva dos fatos sociais, como uma realizao emandamento das atividades orquestradas da vida cotidiana, com osprocedimentos ordinrios e engenhosos dessa realizao sendoconhecidospelosmembros,usadose tomadoscomodados,,paraossocilogos,um fenmeno fundamental. (GARFINKEL,1967,p.vii,itliconooriginal)

    Trintaecincoanosdepois,quandonovamentereuniualgunsartigosnaformade outro livro que deixa claro o "programa da etnometodologia" j no subttulo:"retrabalhandooaforismodeDurkheim",Garfinkelreiterou,emtermosanlogos,amesmareleituradeDurkheim,transformandoarealidadeobjetivadosfatossociais,de"princpio", em "fenmeno" sociolgico fundamental8. Mas o que muda com essatransformao?

    Logodeincio,cumprenotarquenoexistenessasinterpretaesalternativasdofatosocialnenhumaintenodecolocaremdvidaaprpriarealidadeobjetivadosfatos sociais, apenas de realocla. Tanto em Tarde quanto emGarfinkel existe umesforo para produzir algum conhecimento empiricamente fundamentado sobre aorganizao e o funcionamento da sociedade, e neste sentido ambos buscam darcontada realidadeobjetivados fatos sociais.Noentanto,enquantoa interpretaodominante deDurkheim (poderamos dizer: aquela que a sua obramais facilmenteautoriza) parte do princpio da existncia de uma objetividade coercitiva nos fatossociais, as alternativas aqui apontadas buscam entender como (por quais meios,prticas, tcnicas,mtodos) esses fatos adquirem emantm qualquer objetividadecoercitiva. A ordem social no surgiu de uma vez por todas no passado: ela oresultado sempre provisrio de um conjunto orquestrado de aes e expectativas

    8 "De acordo com o aforismo de Durkheim, 'A realidade objetiva dos fatos sociais o princpiofundamental da sociologia'. Princpio fundamental da sociologia? A est o problema. [...]Durkheimestava lindamente e originalmente correto, mas esta palavra 'princpio' em particular foi malaconselhada. [...]Aetnometodologiavem reespecificandooaforismodeDurkheimparaqueele sejalido diferentemente. Sim, seu aforismo diz 'A realidade objetiva dos fatos sociais o fenmenofundamentaldasociologia'"(GARFINKEL,2002,p.656,itliconooriginal).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 62

    mtuas9.Poderamosatmesmodizer,comoWeber(2004,p.16,itlicosnooriginal)esem contradio com o aforismo durkheimiano, que uma dada configuraoassociativa(eledisse"relaosocial")"consiste,portanto,completaeexclusivamentena probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicvel (pelo sentido)",desdequeestaprobabilidadesejaentendidaemsuaobjetividadecoercitiva10.

    Deleuze eGuattari (1997, p. 120) certa vez afirmaram, em tom provocativo,que "as cincias do homem, com seus esquemas materialistas, evolucionistas, oumesmodialticos,estoematrasoemrelaoriquezaecomplexidadedasrelaescausaistalcomoaparecememfsicaoumesmoembiologia".QuandoTarde(2007,p.81) disse que "[t]odas as cincias parecem destinadas a tornaremse ramos dasociologia", quandoGarfinkel (2002, p. 76) buscou "demonstrar a lei da queda doscorposenquanto fenmeno sociolgico",oumesmoquandoDurkheim (2008,p.33)demonstrou que "a noo de foras naturais muito provavelmente derivada danoodeforasreligiosas",muito longedeumanticientificismosubjetivista,elesnaverdade indicaram a direo para que o "atraso" apontado porDeleuze eGuattaripossa ser superado11. Seprecisoquestionar certospressupostosdurkheimianos,porque, transformandoemprincpioexplicativo justamenteo fenmenoqueprecisaser explicado, eles acabam nos distanciando, em lugar de nos aproximarem, darealidadeobjetivadosfatossociais.

    Notase,assim,quea leituradeDurkheimfeitaporGarfinkelrestituiaosfatossociais sua dimenso processual e performtica (i.e., aquela que compeempiricamente sua"realidadeobjetiva"), renovandonaSociologiaum interessepelacomplexidade relacional que esta parecia ter abandonado junto com o legado deTarde.Noexiste realidadeobjetivados fatos sociaissemagentespara realizaressaobjetividade na interao. Mas devolver os fatos sociais sua base interacional apenasoprimeiropasso.Umavezdeslocadaaatenodo"fato"parao"cofazer",preciso heterogeneizar esses prprios processos produtivos, restituindo multiplicidadeabertadeseusagentesa"cidadaniasociolgica"quetradicionalmentereservadaapenasaos"humanoscomons".

    9 Nas palavras de Latour (1986, p. 270): "simplesmente precisamos entender que as origens dasociedadeaindaestoconoscohojeequedebatessobrecomo tudocomeouaindaestomoldandonossocomportamentoaquieagora". 10 Sobre o ainda muito mal compreendido conflito entre as sociologias durkheimiana e weberiana,concordo comAnneW.Rawls (2002,p.49)quandodissequeWebereDurkheim "podem ser vistoscomofundandoadisciplinaessencialmentenomesmoconselho", i.e.,"acoletacuidadosadedetalhesempricosrelativosaoreconhecimentoinicialdeformassociais". 11raroveratualmentetamanhaconviconaimportnciadopapeldaSociologiacomonestetipodeexpresso:"Aextensodopontodevistasociolgico,nossopontodevista luminosoporexcelncia,universalidade dos fenmenos est destinada a transformar radicalmente a relao cientfica dascondiesaoresultado"(TARDE,2007,p.93).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 63

    Processosdeassociao

    Umamaneiraalternativadedefinirsociologiatornlaoestudodeassociaes.(Latour,1986,p.277,itliconooriginal)

    Como fazer, ento, dos processos de associao, o objeto emprico daSociologia? Emprimeiro lugar, apalavra "associao"deve ser entendida como umverbo, como "ao associativa" ou "ao que associa" (processo), e no comosubstantivoou"gruporesultantedeumaaocoletiva"(produto).Emsegundolugar,a definio do "agente associativo" i.e., aquele que realiza a ao associativa depende, ela prpria, do processo de associao sob investigao e, portanto, nopode ser realizadadeantemoenemdemaneiraabsoluta.MascomopodeaaoassociativaseraunidadeanalticadaSociologiasenopodemosatribulaclaramentea um agente? Deixando o trabalho de atribuio para os prprios agentes, queindicaroaoinvestigadoraspolarizaesrelevantesparacadaumemcadacaso.

    Arecusaemdefinirantecipadamenteo locusdeagncia,entretanto,nonosimpededeproporcertosprincpiosnorteadoresparaainterpretaodosprocessosdeassociao em cada caso particular. Neste sentido, a ao associativa pode serconcebida como podendo semanifestar tanto na forma de uma "linha associativa"quantona formadeum "meioassociativo".Uma linhadeaoassociativapode serentendida como uma propagao varivel, por diferentes meios, de uma certaconfiguraorelacional,sendoatrajetriadestapropagaoumndicedoprocessodeassociao como linha. J um meio associativo pode ser entendido como umareiterao variveldeuma certa configurao relacionalde linhasde ao, sendo aconsistnciafenomnicadestareiteraoum ndicedoprocessodeassociaocomomeio.Notase, imediatamente, que a definio de cada uma dasmanifestaes daaoassociativapressupeaoutra (a linhaatravessameiosque so compostosporlinhas),demaneiraquepodemosencarlascomoduasperspectivassobreomesmofenmeno,algocomoolharparaum tecido,oradaperspectivadecadaumdos fiosque o compem, ora da perspectiva da malha que eles compem e mantm emconjunto.Emambososcasos,tratasederastrearumprocessodeassociaoetornlo acessvel anlise, mas em um caso enquanto delineamento de uma aoassociativaenooutroenquantoespecificaodeummeioassociativo.

    Masoquemudaquandoosprocessosdeassociao(enomais,porexemplo,a"sociedade")passamaserencaradoscomooverdadeiroobjetodasCinciasSociais?Porumlado,poderamosdizerque"processosdeassociao"diferemde"sociedades"como "processos"diferemde seus "produtos".Passamosassim,deumaperspectivavoltada para realidades sociais j constitudas (e, portanto pressupostas peloinvestigador), para outra voltada para realidades sociais ainda em formao (e,portantoexigindoinvestigao).Comisso,aatenodeslocadadeproblemasgeraisdetipohobbesianoe.g.,"comoasociedadepossvel?",baseadosemdualismosentre estados j dados, para problemas contingenciais baseados nas tendncias evariaesdeprocessosaindaemandamentoe.g., "como funcionaestaouaquela

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 64

    associao em particular?" O clssico problema durkheimiano da anomia e dadissoluo do lao social se revela, com esse deslocamento, pouco mais que umailuso (no sentido bergsoniano de um "falso problema")12 gerada peloquestionvelpressupostoinicialdeumatotalidadesociolgicaideal.

    Poroutro lado,odeslocamentodo interessesociolgicode"sociedades"para"processosdeassociao"exigeasuspensocontrolada,porpartedopesquisador,dequalquerprivilgioontolgicoouepistemolgiconadefiniodosagentesenvolvidosnocampoemprico.Emsua"monadologiarenovada",Tarde (2007,p.578)partedaconstataodeque"esseselementosltimosaosquaischegatodacincia,oindivduosocial, a clula viva,o tomoqumico, s soltimosdaperspectivade sua cinciaparticular", e conclui que "de eliminao em eliminao" poderamos chegar ao"ncleocentraldeondeparecequeele[cadaumdesseselementos]aspiraaseirradiarindefinidamente".NumaperspectivagenticaanlogaquelaadotadaporSimondonparainvestigarosprocessosdeindividuao,Tardeatribuiassimestatutoontolgicoassociao (processo pelo qual o elemento, concebido em sua virtualidadeuniversalizante, se propaga), concluindo que "seriam ento os verdadeiros agentesessespequenosseresquedizemosserem infinitesimais,seriamasverdadeirasaesessas pequenas variaes que dizemos serem infinitesimais" (TARDE, 2007, p. 61;itlicosnooriginal).Para ilustrar a centralidadedessa concepode agnciaparaoestudo dos processos de associao, vale considerar a representao grfica queAlfred Gell (1998:38) forneceu da relao "agentepaciente" em sua teoriaantropolgicadaarte(cf.Figura1).

    12Deleuze(1966,p.6,itlicosnooriginal)apresentoudaseguinteformaanoobergsonianade"falsoproblema": "Os falsos problemas so de dois tipos: 'problemas inexistentes', que se definem pelaconfusodo'mais'edo'menos'nosprpriostermosdoproblema;e'problemasmalcolocados',quesedefinempelo fatodeque seus termos representammistosmalanalisados."Nocabedesdobraraquiestanoo,apenasindicarqueo"problemahobbesiano"parecefalharemambosospontos.

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 65

    Figura1.AdaptaodarepresentaooferecidaemGell(1998,p.38)paraarelaoentre

    agente[A]epaciente[P]nasuateoriaantropolgicadaarte.Maisdetalhesnotexto.

    AfiguradeGellapresentadoiscrculos[A]e[P]nosobrepostosedoiscrculos[A']e [P']parcialmentesobrepostosna regio [A'+P'],sendoque [A']contm [A]emseu interiore [P'] contm [P]em seu interior.Os crculosno sobrepostos [A]e [P]representam os "seres intencionais" distintos "agente" e "paciente", enquanto oscrculosparcialmente sobrepostos [A']e [P'] representamos "meios causais" (causalmilieu)atravsdosquaisumaaopodeserrealizadapeloagente[A](nocasode[A'])ou sofridapelopaciente [P] (no casode [P']), sendo a reade sobreposio [A'+P']aquelanaqualumaaorealizadapeloagente[A]podersersofridapelopaciente[P].nessareade sobreposio [A'+P']queGell localizaaobradearte,objetode suaAntropologiadaArte,definindoocomoumndicecapazdepermitiraopaciente[P]aabduodaagncia[A]sofrida.

    ParaqueafiguradeGellpossa ilustraraconcepoassociativadeagncia(cf.Figura2),preciso,emprimeiro lugar,substituira idiadeuma relaoassimtrica"agentepaciente"poroutranaqualexistemapenasagentes,eumamultiplicidadeaprincpio indefinida deles. Em outras palavras, da perspectiva dos processos deassociao,impossvelsofrerumaaosem,aomesmotempoagir,egrausvariadosde agncia e passividade convivem em qualquer agente13. Assim, substitumos oscrculos[P]e[P']porumamultiplicidadedecrculos[A]([A1],[A2],[A3],[A4]...),cadaum com seu crculo [A'] correspondente ([A1'], [A2'], [A3'], [A4'] . . .). Em segundo 13Gell,quedefiniuseuconceitodeagnciacomo"relacional""paraqualqueragente,humpaciente,einversamente,paraqualquerpaciente,humagente"(GELL,1998,p.22),deixoumargemparaestetipo de interpretao de seu esquema tambm quando disse: "O conceito de 'paciente' no [...]simples,vistoqueserum'paciente'podeserumaformadeagncia(derivada)"(GELL,1998,p.23).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 66

    lugar,precisonotarqueaquiloqueGellrepresentoucomooscrculos[A]e[A']so,da perspectiva de Tarde, um agente infinitesimal [A] e sua esfera de influncia oudomnio [A']. Com isso, poderamos chegar a conceber uma imagem na qual vriosagentes[A1],[A2],[A3],[A4]...seinfluenciammutuamenteatravsdasobreposiodeseusmeioscausais[A1'],[A2'],[A3'],[A4'] . . .,oprocessodeassociaorealizadoporcadaagentecorrespondendosobreposiodeseumeiocausalcomosdeoutrosagentes, e a realidadeobjetivados fatos sociais crescendo junto comonmerodesobreposies14.

    Figura2.Representaoarbitrriadeprocessosdeassociaoenvolvendoquatroagentes[A1],[A2],[A3]e[A4],cadaumcomseurespectivomeiocausal[A1'],[A2'],[A3']e[A4'].Nocasodestarepresentao,taismeioscausaissesobrepemnasseguintescombinaes:(a)

    [A1'+A2'];(b)[A1'+A2'+A3'];(c)[A2'+A3'];(d)[A2'+A3'+A4'];(e)[A3'+A4'];(f)[A3'+A4'+A1'];(g)[A4'+A1'];(h)[A4'+A1'+A2'];(i)[A1'+A2'+A3'+A4'].

    14 A variedade possvel de reas de sobreposio semultiplica a cada novo agente incorporado noesquema.Nocasobastantesimtricoeabstratodosquatroagentes[A1],[A2],[A3]e[A4]daFigura2,temos: quatro sobreposies duplas (a, c, e, g); quatro sobreposies triplas (b, d, f, h); e umasobreposioqudrupla(i).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 67

    A figura de Gell que aqui transformamos para ilustrar os processos deassociao , vale notar, bastante diferente daquela sugerida por Latour (2005a, p.177)paraoatorrede:"umaformadotipoestrela[astarlikeshape],comumcentrorodeado por muitas linhas irradiantes com todo tipo de pequenos canais queconduzem para dentro e para fora." Ao mesmo tempo em que demonstra certaautonomia do recorte aqui proposto, essa diferena refora que, como bem notouLatour(2005a,p.133),"omapanooterritrio",enenhumarepresentaogrficausada pelo pesquisador deveria ser confundida com os "ricos objetos" sobinvestigao.

    Pelomenosnohriscodeacreditarmosqueoprpriomundosejafeito de pontos e linhas [ou, no caso presente, de crculossobrepostos],aopassoquecientistassociaismuito frequentementeparecemacreditarqueomundofeitodegrupossociais,sociedades,culturas, regras, ou qualquer outra disposio grfica elesempregarampara fazer sentidode seusdados. (LATOUR,2005a,p.133)

    Mesmosem fazermenoalgumaaTardeousuamonadologia,oesquemadeGellcontribuiparaacompreensodanoodeagncianela implicadaportomarcomounidadedeanlisenoacomplexidadesubjetivadosseresintencionais,massimascaractersticas jconcretizadasdoobjetodeartecompartilhado, i.e.,o ndice.Emoutras palavras, no se trata aqui de penetrar na complexidade infinitesimal dequalqueragenteque seja,mas to somentedeacompanhar (e,portanto registrareinvestigar), atravs do rastro que deixam em um ambiente compartilhado (o meiocausal), alguns processos de associao. As mltiplas combinaes possveis desobreposiodosmeioscausaisdosagentesso(ouportam)os ndicesdeprocessosde associao e, nesta condio, tm um especial valor para o cientista social.Renunciando assim a qualquer saber tcito sobre os "verdadeiros agentes" dosprocessos associativos, ele poderia se dedicar a inferlos a partir dos rastros quedeixamemummeiocausalcompartilhado.

    Tarde (2007,p.77, itlicosnooriginal) transmitiuuma idiaanlogaquandoprops a imagem de uma nao com "quatrilhes ou quintilhes de homenshermeticamente fechados e inacessveis individualmente", sobre os quaissoubssemos apenas os "dados de seus estatsticos, cujos nmeros relativos aenormesmassassereproduziriamcomumaextremaregularidade":

    Quandoumarevoluopolticaousocial,quenosseriareveladaporumaumentoouumadiminuiobruscosdealgunsdessesnmeros,seproduzissenesseEstado,pormaisquetivssemoscertezadequese trata de um fato causado por idias e paixes individuais,evitaramos nos perder em conjeturas suprfluas sobre a natureza

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 68

    dessasnicascausasverdadeiras,apesarde impenetrveis,eomaissensato nos pareceria explicar, bem oumal, os nmeros anormaispor comparaesengenhosas comosnmerosnormaishabilmentemanejados. Atingiramos assim, pelo menos, resultados claros everdadessimblicas.Contudo,seria importantenos lembrarmos,detempos em tempos, do carter puramente simblico dessasverdades;eprecisamenteoservioquepoderiaprestarscinciasaafirmaodasmnadas.(TARDE,2007,p.778)

    "Resultados claros e verdades simblicas", seria pedir demais das CinciasSociais? Se a realidade objetiva dos fatos sociais o fenmeno cuja gnese emanuteno preciso investigar, ento ser preciso partir das manifestaesempricas e objetivas da prpria associao para, s depois, pretender alcanarqualquerconhecimentosobreosagentesenvolvidos.Oqueessetipodeesforobuscaacrescentaraofatoetnometodolgicodafundamentaointeracionaldaordemsocial a constatao de que, se por um lado tais prticas interacionais geralmenteenvolvemmuitos agentesquenormalmenteno seriam classificadospelo socilogocomo humanos, por outro justamente essa multiplicidade tpica dos processosclassificatriosqueprecisamosinvestigaremsuacomplexidade.

    AspropostassociolgicasdeTarde,GarfinkeleLatour,apesardetodasassuasdiferenas, compartilham um interesse pela dimenso interacional e contextual dasprticassociais,ouseja,pelasmaneirascomoconfiguraessociaissoconcretizadase vividas de diferentes maneiras nas prticas cotidianas dos agentes (mltiplos eherogneos) em diferentes contextos ou condies. Tratase de um enfoque maisinteressadonosprocessosdesociogneseeantropognesecomodevireindividuao,doque como coerode indivduos jdadosporum indivduo superior tambm jdado.Vimosqueoestudodosprocessosdeassociaoexigeacuidadosaconsideraodascategoriasedosconceitosusadospeloinvestigador/analista.Almdacontribuiode propostas metassociolgicas como a Etnometodologia e de metodologiasempricas e documentais como a etnografia nesta tarefa, o paradigma associativotambmtemsebeneficiadodetrabalhosligadosaalgumasvertentesfilosficasquesededicaram a pensar a diferena e a individuao, notadamente aquelas que algunsreuniram sob o rtulo de "tradiomenor" da filosofia do sculo XX15. Poderamosinclusive,comalgumafundamentaofactual,agruparautorescomoTarde,Garfinkele Latour (entre muitos outros) numa espcie de "tradio menor em Sociologia",muito frequentementeconfundidacomuma"microssociologia" (emoposioauma"macrossociologia"),masemverdademuitomaisprximadeuma"associologia" (cf.LATOUR,2005a,p.9).

    15 SegundoPhilipTuretzky (1998,p.11720), a tradiomenor (distaff tradition) se inicia comHenriBergsonedesembocaemGillesDeleuze,sendo"herdeira"deNietzsche,Leibniz,Espinosa,DunsScotusedosesticos.

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 69

    Mediaestcnicas

    Mquina, como o nome indica, , antes de tudo, maquinao,estratagema,umtipodeespertezaemqueasforasusadasmantmsemutuamentesobcontrole,detalmodoquenenhumadelaspossaescapardogrupo.(LATOUR,2000,p.212)

    QuandoWalterBenjamin(1994)quisdistinguirareprodutibilidadetcnicadasoutrasformasdereproduo,bastoulhemencionaralgunsexemplosqueilustrassemaespecificidadetcnicadomododereproduoaoqualsereferia:ofatodesebasearnasubstituioda intervenohumanadireta, intencional,potencialmentearbitrria,pelosprocessosautomticosdamecnicaedaqumica16.GregoryBateson (1985,p.1134)certamentecontribuiuparaoenriquecimentodenossacompreensosobreasmediaestcnicasquandoapontouparaadiferenaentreatransmissodeenergiaentredoissistemasealiberaodeenergiadeumsistemaporoutronestesegundocaso, correspondendo mediao tcnica, a diferena entre a energia liberada e aenergia usada para liberla pode ser gigantesca, como quando explodimos umabomba apertando um boto. Se quisermos, no entanto, considerar o conceito detecnicidadequeinformaessetipodeespecificidade,seremosconduzidosaosestudosdeGilbertSimondon(1969),queodefiniucomoaindividuaogradualdeumsistemarelativamenteautnomodecausalidadesrecprocas.

    ParaSimondon(1969,p.201,23,27),oobjetotcnico"noestaouaquelacoisa,dadahicetnunc,masaquilodequehgnese",ele "existeento como tipoespecfico obtido ao final de uma srie convergente" e, "oriundo de um trabalhoabstratodeorganizaode subconjuntos, [ele]o teatrodeum certonmero [ou"umamultido"]derelaesdecausalidaderecproca".Oobjetotcnico,inicialmenteabstrato i.e., dependente de uma ao direta por parte de um operador , seconcretiza gradualmente i.e., ganha autonomia, agncia prpria a partir dodesdobramentorelacionaldesuascausalidadesrecprocas,sendotaldesdobramentoorientadopeloprincpiogenticodatecnicidade.Nessesentido,quandodizemosqueuma mediao "tcnica", estamos destacando, sobretudo, a distino entre osistema relativamentedeterminadode causalidades recprocasdamediao tcnica(situada, assim,emuma regioespecialmentedensaem sobreposiesdaquiloqueGellchamoude"meiocausal")eanaturezarelativamenteindeterminadaeadhocdeoutros tipos de mediao. Misto de acaso e necessidade, a mediao tcnica, noscoloca,assim,entrea liberdadearbitrriadoespritoeasdeterminaes internasdamatria,alionde justamenteas fronteirasentreo sujeitoeoobjeto,ohumanoeonohumano,osocialeonatural,soconstantementerenegociadas17.

    16OsexemplosdereproduotcnicacitadosporBenjamin(1994)foram:xilogravura;imprensa;chapadecobre;guaforte;litografia;fonografia;fotografia;ecinema. 17Latour(1994b,p.41)faloudessemesmolocusquandodisse,emsuaanlisesociolgicado"quebramolas":"Estoulutandoparameaproximardazonaondealgumas,masnotodas,ascaractersticasdo

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 70

    Masalmde se constituirenquantoum sistema relativamenteautnomodecausalidades recprocas, o objeto tcnico cumpre funes especficas, serve realizao de certos fins. Toda mquina, por exemplo, possui funes, designveiscomofazerx,i.e.,comoumcertoempregodemeiosparaalcanarcertosfins.Todoobjeto tcnicoenvolve,portanto,algumapreocupao comaotimizaoda relaoentremeiosefins,etodamediaotcnicaseencontraintrinsecamentesubmetidaaalgumcritriodeeficciafuncional:precisoquehajaalgumarelaomensurvel,emtermosdemaioroumenorafinidade,entreoresultadodaoperao(entendidacomomediaotcnica)easuamotivaoinicial(ofimdesejado,afunodesignada).Issono reduz a mediao tcnica teleologia, uma vez que a autonomia relativa dosistema de causalidades recprocas que a caracteriza freqentemente supera oufrustraasexpectativasquemotivaramoseuacionamento.H,emoutraspalavras,umdescompasso entre o que se espera inicialmente dos meios e o que efetivamenteresultadeles,umaespciedeagnciainternaaosobjetostcnicosqueLatour(2002)chamoude"ofimdosmeios"quedenunciasuaautonomiarelativadequalquerfimparticular.Aconcretizaodeumobjetotcnicopodeserentendida,deumpontodevista sociolgico, como um processo de associao no qual diferentes agentesnegociam suas finalidadesentre si com crescentesautonomia relativa frenteaoindividual de cada associante, e eficcia funcional na reiterao e propagao daassociao. ProTeMAs, neste sentido, podem ser definidos como processos deassociao que tm, entre seus associantes, esses agentes especficos: os objetostcnicos.

    Adefinio latourianade"mediao tcnica" (queeleencaracomo sinnimode "ao tcnica"): "uma formadedelegaoquenospermitemobilizar,duranteinteraes,movimentosrealizadosalhures,antes,poroutrosactantes"(Latour1994b,p.52).FazendodopersonagemmticogregoDdaloumepnimoparatcnica,Latourpartedotermogregodaedalionparadefiniratcnicaeatecnologiacomodesviosnocurso da ao que, engenhosamente, colocam o agente mais prximo de seuobjetivo18. Reunindo, assim, elementos materiais provenientes de outros tempos elugares, as mediaes tcnicas envolvem um desvio calculado (geralmente spercebido quando osmeios falham) na realizao de qualquer fim ou funo.Mascomomediaotcnicafazparaadicionaraoseventospresentesestasdobrasespaotemporaisparaasquaisaesespecficaspodemserdelegadas?

    UmdosargumentosmaiselementaresempregadosporLatourparadestacaraespecificidade daquilo que chamou de "mediaes tcnicas" (cf. LATOUR, 1994b) aquele que deu ttulo a um de seus artigos: "a tecnologia a sociedade tornada

    concretosetornampoliciais,ealgumas,masnotodas,ascaractersticasdepoliciaissetornamquebramolas". 18UmadefinioanlogademediaotcnicafoioferecidaporGell(1988,p.6,itliconooriginal):"Oquedistingue'tcnica'denotcnicaumcertograudecircuitosidade[circuitousness]narealizaodequalquerobjetivodado.[...]Tcnicasformamumaponte[...]entreumconjuntodeelementos 'dados'[...] e um objetivoresultado que deve ser alcanado usando esses dados.Os elementos dados sorearranjadosinteligentemente,deformaquesuaspropriedadescausaissejamexploradasnaobtenodeum resultadoque improvvelexceto luzdesta intervenoparticular. [...]Meios tcnicos someiostergiversantesdegarantiralgumresultadodesejado".

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 71

    durvel" (LATOUR, 1991). Partindo de uma colaborao com a primatloga ShirleyStrum,LatourrenovouumaintuioantropotcnicaseminaldeAndrLeroiGourhan.Segundo essa intuio, a evoluo tecnolgica parte indissocivel da gnese eevoluo humanas e sociais (tecnognese, antropognese e sociognese, assim, sereferem mutuamente)19, sendo que o interessante a no arbitrar sobre aespecificidade humana enquanto homo faber, mas sim jogar luz sobre como essaespecificidade sempre reconstrudaa cadanovaassociaoentrehumanosenohumanos.Semantivermosemmenteoprincpioetnometodolgicodequearealidadeobjetiva dos fatos sociais o "fenmeno" fundamental da Sociologia, ento osProTeMAs poderiam at mesmo ser encarados como o fato social por excelncia:afinal, eles satisfazem as exigncias durkheimianas de externalidade, resistncia epodercoercitivo,semcom issosubstituiremascomplexidades interacionaisporumaentidade transcendente e distinta das interaes concretas. Objetos tcnicos soagentes ao lado de outros e, neste sentido, so exteriores aos outros agentes semexigiremaexistnciadeumcampojdadoesuigenerisdosfenmenossociais.Almdisso,uma vez concretizados,eles soefetivamente capazesdepropagare reiterarassociaes de outros tempos e espaos no aquiagora, potencializando certasassociaesemdetrimentodeoutras (cf.LATOUR,1986).Emoutraspalavras,o fatosocialpodeperfeitamenteexistirapenasnoseudesempenhointeracionalpresente(o que ocorre, conclui Latour a partir de sua colaborao com Strum, entre certosbabunos),masparaqueeleadquiraocarterdeumobjetodurvel (emoposioaumobjeto instvel) imprescindvel a intromissode agentes capazesde sustentar(i.e.,mediar,propagar,reiterar)essadurabilidade.

    A sociedade s se mantm estvel em meio s interaes que a atualizamquando incorpora "associaes que duram mais do que as interaes que asformaram"(CALLON;LATOUR,1981,p.283, itlicosnooriginal),ouseja,mediadoresdurveis e capazes de concretizar/materializar/objetificar essas mesmas interaesparaalmdoaquiagora.Dentretaismediadores,osobjetostcnicossedestacamnospelo seupoder reiteradorepropagadorde interaespassadas,muitomaiordoque o de outros tipos de objetos,mas tambm pela sua flexibilidade e abertura anovasinteraes.NaspalavrasdeLatour,osobjetostcnicos"resolvemacontradioentredurabilidadeeflexibilidade"(LATOUR,1994b,p.61),poispermanecemabertossvariaesinteracionaissemcomissoperderemseupoderobjetivador.

    Umatalconcepodetcnicatemavantagemdejogarluzsobredoisaspectoscentrais dos ProTeMAs: (1) a sua concretude, ou pelo menos tendncia concretizao, o que reconduz diretamente ao seu poder de concretizao deinteraes especficas; (2) e a sua heterogeneidade espaotemporal intrnseca,reiterandonopresenteinteraespassadasepropagandointeraesdeumlugarparaoutros.OsProTeMAscontribuem,assim,paraarealidadeobjetivadosfatossociais,namedidaemquepropagamereiteramaquiagora,contandoparaissocomasolidezdamatria, certas configuraes interacionais originalmente concebidas ou

    19Umatalconvergnciadeproblemticassociolgicas,antropolgicasetecnolgicaspodesernotada,porexemplo,nadefinio latourianadetcnica:"asocializaodenohumanos"(LATOUR,1994b,p.53).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 72

    desempenhadasemoutros tempose lugares.Almdisso, aoenvolver a agnciademeiosconsideravelmenteestveisparaarealizaode fins,osProTeMAspodemserentendidos como configuraes relacionais transumanas (pois conjugam relaeshumanas e nohumanas) tacitamente aceitas pelos agentes, ou seja, nocontroversas.Nessacondio (mesmoque instvelesemprerenegociada),podemosdizer que os objetos tcnicos envolvidos num ProTeMA se tornam portavozesvariavelmente autorizados do estado das interaes que elesmediam, e colocam opesquisador em uma perspectiva privilegiada no que se refere verificabilidade deseus dados e fundamentao emprica de suas anlises. Objetos tcnicosmaterializaminclusivenaformaderegistrosautomticos,comonocasodealgumasmquinas rastrosdosprocessosdeassociaodosquaisparticipam,objetivando (epossivelmente tornandomensurveisequantificveis)processosque, sem isso,noultrapassariamoaquiagora.

    Notase que, enquanto a interpretao dominante da concepo de fatostecnocientficos proposta pela teoria do atorrede a que insiste na "abertura decaixas pretas" (central na investigao do processo de construo de fatostecnocientficos),orecortedosProTeMAsenfatizajustamenteoprocessooposto(masigualmentefundamentaleclaramentecomplementar):ofechamentodecaixaspretas,processodecomposiodosocialpelasuaconcretizaoemobjetosdurveis.MesmoLatourjlamentouanfaseunilateralnadesconstruo:

    Ateoriadoatorredejfoiconfundidacomumanfasepsmodernanacrticadas 'Grandesnarrativas'edaperspectiva 'Eurocntrica'ou'hegemnica'. Disperso, destruio e desconstruo no soobjetivosaseremalcanados,masaquiloqueprecisasersuperado.muitomais importante conferiroque so asnovas instituies,osnovosprocedimentoseconceitoscapazesdecoletarereconectarosocial.(LATOUR,2005a,p.11)

    Oproblemanodeveriaseroatode fecharcaixaspretas (tratase,afinal,deumdosprincipaisatosfundadoresdecoletivos),massimoatodeseesquecer,como"osmodernos"(LATOUR,1994a),queesseatodefechamentoprecisaserreiteradoepropagado a cada nova interao, imperativo este favorecido notadamente pelosProTeMAs.

    Concluso

    Admitamos que os etnometodlogos esto certos, que apenasinteraes locais existem, produzindo ordem social aquiagora. Eadmitamosqueossocilogosdominantesestocertos,queaesdistnciapodem ser transportadas e se impor s interaes locais.

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 73

    Comoessasposiespodem ser reconciliadas? (LATOUR,1994b,p.51)

    Percorremosnestetextoumtrajetotericoexperimentalque,emmeioaumarriscadoecletismodisciplinar,tevecomoeixocondutoraproposta latourianaparaoestudo dos processos de associao. O problema da relao indivduo/sociedadesempre foi central para as Cincias Sociais, capaz de dividir seus praticantes entreaquelesqueprivilegiamo indivduo (correntesmicrossociolgicas,psicossociolgicas,interacionaisetc)eaquelesqueprivilegiamasociedade(correntesmacrossociolgicas,sistmicas, crticas etc.), ou ento aqueles que buscam algum tipo de compromissoentre essas duas perspectivas, reconhecendo tanto a estabilidade social quanto aautonomia individual.Aproposta latourianapoderiaatmesmosercolocadaao ladodessasltimasteoriasunificadoras,nofossepelofatodequeelanobuscanenhumcompromisso entre plos opostos prexistentes (como "indivduo e sociedade" ou"ao e estrutura"), antes voltandose para o ponto intermedirio a partir do qualestas (e muitas outras) entidades emergem, o campo relacional dos processos deassociao.

    A mnada de Tarde pode ser vista como uma possvel imagem para aconcepolatourianadoatorrede:umfocodeaoqueseespalhaporumarededeassociaes,demaneiraquecadaagentesetornaamanifestao localizadadaredequeelepropagae reitera, come contra inmerasoutras,em suaao20.Entre taisagentes, e como uma "traduo" da noo latouriana de mediao tcnica,propusemosdestacarum,quechamamosdeProTeMA,enfatizandosuaespecificidadenoquesereferetantoaopotencialobjetivadordosfatossociais,quantoaopotencialanalticodessesprpriosfatossociaisemregistroscomparveiseanalisveis.Esperasequepesquisasque tomemProTeMAs comounidadeanaltica21possam contribuircom os esforos j existentes de fazer da sociologizao da prpria objetividadecientficaopontodepartidaparaumanovaconcepodeCinciasSociais.

    Referncias

    BATESON,G.Mindandnature:anecessaryunity.London:Flamingo.1985.

    BENJAMIN,W.Aobradeartenaeradesuareprodutibilidadetcnica.In:Magiaetcnica,arteepoltica:ensaiossobreliteraturaeHistriadacultura.ObrasEscolhidas.V.1(Trad.SrgioP.Rouanet).SoPaulo:Brasiliense,1994.p.16596.

    20Istosetornamaisevidenteempassagenscomoaseguinte:"qualquerlugarserconsideradoumatorredeseele fora fontedaquiloqueagedistnciaemoutros lugares [...]eoponto finalde todasastransaesquelevamaele"(LATOUR,2005a,p.222,nota304). 21 Uma tentativa precoce de aplicao deste recorte a um caso emprico pode ser encontrada emFerreira(2008).

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 74

    CALLON,M.;LATOUR,B.UnscrewingthebigLeviathan:howactorsmacrostructurerealityandhowsociologistshelpthemtodoso.In:K.KnorrCetina;A.V.Cicourel(eds.).Advancesinsocialtheoryandmethodology:towardandintegrationofmicroandmacroSociologies.Boston:Routledge;KeganPaul,1981.p.277303.

    DELEUZE,G.Lebergsonisme.Paris:PUF.1966.

    DELEUZE,G.;GUATTARI,F.7000A.C.Aparelhodecaptura.In:Milplats:capitalismoeesquizofrenia.V.5(Trad.JaniceCaiafa).SoPaulo:Ed.34,1997.p.11177.

    DURKHEIM,.Lesrglesdelamthodesociologique.Paris:PUF.1950.

    DURKHEIM,.Lesformeselementairesdelaviereligieuse:lesystmetotmiqueenAustralie.LivreI:Questionsprliminaires.LesClassiquesdesCiencesSociales.Chicoutimi:UniversitduQubecChicoutimi.2008.

    FERREIRA,P.P.Parmetros,tendnciaselimiaresdefuncionamentonamsicaeletrnicadepista.In:32oEncontroAnualdaANPOCSGT26:Novosmodeloscomparativos:AntropologiaSimtricaeSociologiaPsSocial.CaxambuMG,27a31deoutubro,2008.

    GANE,N.BrunoLatour:thesocialasassociation.In:Thefutureofsocialtheory.London:Continuum,2004.p.7790.

    GARFINKEL,H.Studiesinethnomethodology.EnglewoodCliffs:PrenticeHall.1967.

    GARFINKEL,H.Ethnomethodology'sprogram:workingoutDurkheim'saphorism.Lanham:Rowman&LittlefieldPublishers.2002.

    GELL,A.Technologyandmagic.AnthropologyToday,v.4,n.2,p.69,1988.

    GELL,A.Artandagency:ananthropologicaltheory.Oxford:ClarendonPress.1998.

    LATOUR,B.Thepowersofassociation.In:JohnLaw(ed.).Power,actionandbelief:anewSociologyofKnowledge?London:Routledge;KeganPaul,1986.p.26480.

    LATOUR,B.Technologyissocietymadedurable.In:JohnLaw(ed.).ASociologyofMonsters?EssaysonPower,TechnologyandDomination.London:Routledge,1991.p.10331.

    LATOUR,B.Jamaisfomosmodernos:ensaiodeAntropologiasimtrica.(Trad.CarlosIrineudaCosta.RiodeJaneiro:Ed.34,1994a.

    LATOUR,B.Ontechnicalmediation:Philosophy,Sociology,Genealogy.CommonKnowledge,v.3,n,2,p.2964,1994b.

    LATOUR,B.Cinciaemao:comoseguircientistaseengenheirossociedadeafora.Trad.IvoneC.Benedetti.SoPaulo:EditoraUnesp.2000.

    LATOUR,B.Moralityandtechnology:theendofthemeans.Theory,Culture&Society,v.19,n.5/6,p.24760,2002.

    LATOUR,B.Reassemblingthesocial.Oxford:OxfordUniversityPress,2005a.

    LATOUR,B.GabrielTardeandtheendofthesocial.Multitudes,2005b.Disponvelem:.Acessoem:31ago.2011.

  • Dossi

    RevistaBrasileiradeCincia,TecnologiaeSociedade,v.1,n.2,p.5875,jan/dez2010. 75

    RAWLS,A.W.Editor'sintroduction.In:HaroldGarfinkel.Ethnomethodology'sprogram:workingoutDurkheim'saphorism.Lanham:Rowman&LittlefieldPublishers,2002.p.164.

    SIMONDON,G.Dumoded'existencedesobjetstechniques.Paris:AubierMontaigne.1969.

    SIMONDON,G.Lindividuationlalumiredesnotionsdeformeetdinformation.Grenoble:ditionsJrmeMillon,2005.

    TARDE,G.Lalogiquesociale.Premirepartie:Principes.LesClassiquesdesCiencesSociales.Chicoutimi:UniversitduQubecChicoutimi,2002.

    TARDE,G.Lesloisdel'imitation.ChapitresIV.LesClassiquesdesCiencesSociales.Chicoutimi:UniversitduQubecChicoutimi,2004.

    TARDE,G.MonadologiaeSociologiaeoutrosensaios.SoPaulo:Cosac&Naify,2007.

    TNNIES,F.Communityandcivilsociety.Trad.JoseHarriseMargaretHollis.Cambridge:CambridgeUniversityPress,2001.

    TURETZKY,P.Time.London:Routledge,1998.

    VARGAS,E.V.Antestardedoquenunca:GabrielTardeeaemergnciadasCinciasSociais.RiodeJaneiro:ContraCapa,2000.

    VARGAS,E.V.GabrielTardeeadiferenainfinitesimal.In:GabrielTarde.MonadologiaeSociologiaeoutrosensaios.SoPaulo:Cosac&Naify,2007.p.750.

    WEBER,M.Conceitossociolgicosfundamentais.In:Economiaesociedade:fundamentosdaSociologiacompreensiva.V.1(Trad.RegisBarbosaeKarenE.Barbosa).SoPaulo:EditoraUnB/ImprensaOficial,2004.p.335.