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Furacão Elis Regina Echeverria QUARTA EDIÇÃO Círculo do Livro Todos os direitos reservados sob a legislação em vigor. É proibido reproduzir este livro, no todo ou em parte, ou transmitir o seu texto sob qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, sendo especialmente interditada a sua reprodução em fotocópias (xerox), por gravação ou por qualquer outro sistema, em antologias, livros didáticos etc., a não ser após autorização específica e por escrito da Editorial Nórdica. Esta autorização só é desnecessária em caso de citação nos meios de comunicação com finalidade crítica. (c) Regina Echeverria, 1985 Capa: Hélio de Almeida Fotos: Crédito fornecido pela autora Produção: Círculo do Livro S.A. Direitos adquiridos para a língua portuguesa por Círculo do Livro S. A. para seus associados e em edição normal para livrarias por: EDITORIAL NÓRDICA LTDA. Av. N. S. de Copacabana, 1072, sala 1203 22060 - Rio de Janeiro - RJ. Fone: (021) 287-9898. Telegramas: Nórdica, Rio de Janeiro. Telex: (021) 31810 NOCA BR. Depto. comercial e depósito: Rua Pedro Alves, 233 e 237 20220 - Rio de Janeiro - RJ. Fone: (021) 253-9955. Composto na Linoarte Ltda., São Paulo, S.P. Impresso no Brasil - ref. 228/85 ISBN 85-7007-041-1. Para Félix, Hamilton e Rodrigo Furacão Elis (apresentação) "A vertigem do grego." Adolescente ainda, pequeno notável, aprendi de um velho repórter, Carlos Rangel, o Barbante, que só a loucura e a obstinação nos guiam na busca dos fatos e da verdade, nessa nossa profissão: o jornalismo. O estado de alerta se faz, com o tempo, rotina. A vertigem do grego é isso: viver cada segundo à flor da pele, à beira do abismo sempre, diante dos fatos, da notícia e dos personagens de

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Furacão Elis

Regina Echeverria

QUARTA EDIÇÃO

Círculo do Livro

Todos os direitos reservados sob a legislação em vigor. É proibidoreproduzir este livro, no todo ou em parte, ou transmitir o seu textosob qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, sendoespecialmente interditada a sua reprodução em fotocópias (xerox), porgravação ou por qualquer outro sistema, em antologias, livros didáticosetc., a não ser após autorização específica e por escrito da EditorialNórdica. Esta autorização só é desnecessária em caso de citação nosmeios de comunicação com finalidade crítica.

(c) Regina Echeverria, 1985

Capa: Hélio de Almeida

Fotos: Crédito fornecido pela autora

Produção: Círculo do Livro S.A.

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por Círculo do Livro S. A.para seus associados e em edição normal para livrarias por: EDITORIAL NÓRDICA LTDA. Av. N. S. de Copacabana, 1072, sala 1203 22060 - Rio de Janeiro - RJ. Fone: (021) 287-9898. Telegramas: Nórdica, Rio de Janeiro. Telex: (021) 31810 NOCA BR. Depto. comercial e depósito: Rua Pedro Alves, 233 e 237 20220 - Rio deJaneiro - RJ. Fone: (021) 253-9955. Composto na Linoarte Ltda., São Paulo, S.P. Impresso no Brasil - ref.228/85

ISBN 85-7007-041-1.

Para Félix, Hamilton e Rodrigo

Furacão Elis (apresentação)

"A vertigem do grego." Adolescente ainda, pequeno notável, aprendi de umvelho repórter, Carlos Rangel, o Barbante, que só a loucura e aobstinação nos guiam na busca dos fatos e da verdade, nessa nossaprofissão: o jornalismo. O estado de alerta se faz, com o tempo, rotina.A vertigem do grego é isso: viver cada segundo à flor da pele, à beirado abismo sempre, diante dos fatos, da notícia e dos personagens de

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nossas vidas. A vida se despeja enquanto a arte imita a vida. O espelho do jornalista é o papel em branco no rolo da máquina deescrever, à espera de uma história para contar. Por isso, hoje eu seique nossa tragédia será sempre do mesmo tamanho da nossa aventura.Fazemos parte da cena, e o repórter não é apenas um veículo. Por dentrodele - cabeça, tronco e membros -, passa o testemunho da história detodo santo dia, da sua época. Das tripas coração. O ato de escrever, quando feito com amor, nosdilacera a alma e o coração, nos embrulha o estômago. Nos enche de medo,nos toma de assalto e não nos deixa parar, como num mergulho, até oponto final. Furacão Elis é um livro reportagem. A memória nacional recém-parida, aovivo e com todas as cores do seu tempo. Essa Elis, mulher, que por muito tempo foi a voz que nos revelou oquanto morríamos de saudade do Brasil. "Toda geração tem, num curtoespaço de tempo, que descobrir a sua missão - cumpri-la ou traí-la."(Gradas Senor, Zé Celso, Oficina - Brasil.) Tempos de Elis, do qual somos todos, de uma certa maneira, apenassobreviventes. Arrastão, lunik-9, upa neguinho, travessia, romaria,madalena, águas de março, retrato em branco e preto, maria, maria, doispra lá, dois pra cá, nas asas da panair, tiro ao álvaro, cadeira vazia,aquarela do brasil, alô, alô, marciano, até depois da volta do irmão dohenfil. Abaixo a morte, viva a inteligência! O brilho e o génio da raça, juntos. Tempos de Elis, o Brasil dando risada. Tempos de Elis, o Brasil deMedici ou mude-se. Como também de lá pra cá, até 19 de janeiro de 1982. Essa, a reportagem desse livro de Regina Echeverria, trinta e quatroanos, de Leão, treze de profissão, dois casamentos, um filho e agora umlivro. Não somos apenas bons amigos. Há três anos acompanho de perto agestação dessa que é sua maior e melhor matéria como jornalista etestemunha de seu tempo, nas artes e nos espetáculos da cena brasileira.Uma obstinação e uma vertigem de uma mulher também Regina, minha mulher. O jornalismo como um ato puro de amor. Como ela mesmo diz, beijos enotícias. Um trabalho que a ocupou todos os dias dos últimos seis meses,desde que, tomada do impulso final dos editores, passou a terminá-lo compaciência, competência, dor e alegria. Um ofício feito com arte ao longode mais de cem entrevistas, momentos de explosões de personagens, até ovoltar pra casa em prantos. O papel e a máquina. E o resultado está aqui, depois de revisto em seutexto final por José Mareio Penido, fino editor e amigo. Ao longo dosmeses, a presença de Maria Luiza Kfouri, a Mana, construtora dacronologia, da discografia e da busca da exatidão dos fatos narrados porRegina. O artista gráfico Hélio de Almeida, dos mais sutis de toda a suageração, paginou as fotografias do livro, fez sua capa. Furacão Elis é isso: um competente trabalho de uma jornalista, cercadade jornalistas por todos os lados. Todos mergulhados na vertigem decontar a história de todos os dias, a sangue- quente, abordando os temasda sua geração e do tempo de seu país. A mim, restou-me essa tarefa. Convidá-los ao mergulho no furacão Elis,

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esse livro onde personagem, autora e colaboradores são todos lenha damesma fogueira. Hamilton Almeida Filho agosto/8 5 "Entre a parede e a espada, me atiro contra a espada." Elis Regina Capítulo 1 Num boteco de meio de quarteirão de São Paulo, bairro classe média, donaErcy Carvalho Costa atende fregueses até às oito da noite. Há quem gostede sentar no balcão e comer o almoço de dona Ercy, famoso nasredondezas. Dona Ercy caminha a pé pra casa, a meio quarteirão dali.Mora sozinha aos sessenta e três anos desde que morreu o marido, RomeuCosta, em dezembro de 84. Sempre que fala da filha Elis, ela chora.Mistura ódio e amor numa velocidade quase tão rápida quanto a quecostumava ter sua própria filha e me diz, chorando e apertando osdentes: - Eu não perdôo. Memória fabulosa para uma mulher que parece encontrar no instinto desobrevivência a força para continuar trabalhando no bar e pagar oaluguel. Talvez enlouquecesse também dentro de casa, sem nada pra fazer.Quando dona Ercy enxuga as lágrimas que correm por debaixo dos óculosgrossos, me dá uma sensação de paralisia de afeto. Parece impossívelacariciá-la e confortá-la. Uma altivez gaúcha envolve essa rochamatriarcal, a líder implacável da infância e adolescência de ElisRegina. Dona Ercy, filha de imigrantes portugueses, cristãos-novos, donos demercearia no extremo sul do Brasil. Encontrou um Romeu brasileiro, filhode brasileiros, com cara de índio, caladão, emprego seguro numa fábricade vidros. Foram morar no Bairro de Navegantes em Porto Alegre, numacasa de madeira, quintal de terra batida. A filha do casal nasceu estrábica e deve o nome Elis a uma amiga de donaErcy. O Regina vem de uma exigência legal. Na burocracia da época, ascrianças não podiam ser batizadas com nomes que tanto serviam parameninos como para meninas. Já prevendo que não pudesse batizar suamenina apenas Elis, dona Ercy mandou um Regina de reserva. Elis Regina Carvalho Costa, 17 de março de 1945, parto normal feito pelaparteira Conceição e pela enfermeira Marlene no Hospital BeneficênciaPortuguesa, Porto Alegre. Um sábado, às três e dez da tarde. Primeira filha, primeira neta de uma família numerosa. De duas famíliasnumerosas. Tinha uma saúde de ferro, e a mãe não se lembra de terperdido uma noite de sono - Elis dormia pontualmente às oito da noite.Sempre no escuro, tudo apagado. Dona Ercy transformou a primogênita dos Carvalho Costa numa bonequinhaestrábica. De pequena já se previa que ela não iria muito longe emaltura. Elis andava sempre bem arrumadinha, sempre bem vestida,laçarotes na cabeça e óculos de grau desde os quatro anos. Nasrecordações mais remotas de sua mãe, era uma criança obediente. Gostavade brincar sozinha, costumava andar pelo quintal com uma bolsa de palha,falando sozinha. Até perder o emprego de chefe do almoxarifado da Companhia Sulbrasileirade Vidros, Romeu Costa era um homem sensível. Gostava de ler Hemingway e

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ouvir Chico Alves e Carlos Gardel. Antes de se casar, ganhou o segundolugar num programa de calouros e, de vez em quando, num rompante, sevestia com os longos camisolões de dona Ercy e saía cantando e bailandopela casa. Devia ter uma forte ascendência na pequena cabeça de Elis,porque durante anos ela acreditou que ele era de fato um bailarino.Ficou decepcionada. Na casa dos Carvalho Costa, o rádio tocava a música do Brasil, pelaNacional do Rio, e a música da Argentina, pelas ondas da Rádio Belgrano.Aos domingos, quando se reunia toda na casa da avó Ana, mãe de donaErcy, a família costumava fazer barulho na mesa. Cantar alto,gargalhar. A pequena Elis cantava Adiós pampa mia do começo ao fim, semdesafinar, sem errar a letra. E foi num desses domingos que a avó Anateve um rompante: - Por que não levam essa guria ao Clube do Guri? Clube do Guri, programa infantil transmitido pela Rádio Farroupilha,sempre aos domingos. Elis tinha sete anos quando enfrentou seu primeiromicrofone. Foi um choque para a menina tímida, que costumava falarsozinha, encarar uma platéia estranha de auditório de rádio. O diretordo programa, Ary Rego, pediu que ela falasse alguma coisa. Nada, Elisficou rnuda. Pediu que cantasse. Silêncio no ar. Dona Ercy, jánervosíssima, ajudava a pressionar Elis: "Canta, minha filha". Ela,nada. Limitava-se a roer as unhas encobertas pelas luvas brancas.Voltou para casa calada, com dona Ercy nas orelhas. "Isso não é papelque se faça." Cinco anos se passaram até Elis Regina ter coragem depedir uma nova chance. Quando entrou para a escola primária, já sabia ler, escrever e fazercontas. Orgulhosa de sua menina, dona Ercy falava com ela como se fosseuma moça, sem dengos infantis, sem erros de português. E, quando Elischegava em casa com o boletim cheio de notas altas, também ouvia em bomportuguês: "Não fez mais do que a obrigação". Na vida, a gente tem quelutar. A família não era mesmo chegada a paparicos. Naquela casa gaúchapegar no colo só quando estivesse com sono e olhe lá. Assim foi criadaElis e, também, seu mano Rogério, o único irmão, cinco anos mais moço. Em 1952, a família deixou o Bairro de Navegantes. Como industriário, seuRomeu tinha direito a ocupar um apartamento na vila do IAPI (Institutode Aposentadoria e Pensão dos Industriários) - prédios e prédios deapartamentos construídos em dois andares, na horizontal. Era uma vilaoperária, mas ocupava local privilegiado em Porto Alegre. Uma bela áreaverde, muitas praças e um campo de futebol. O apartamento térreo onde seinstalaram tinha três lances de quintal, uma figueira na porta e ocampo de futebol bem em frente. Seu Romeu costumava dizer que queria umcantinho de terra pra pisar e pra plantar, muito embora nunca tenhaplantado nada. Foi morando nesse apartamento que a família sofreu o primeiro golpe. ASulbrasileira de Vidros faliu e seu Romeu perdeu o rumo. Rogério, jácom cinco ou seis anos, lembra-se de tempos bicudos. Dona Ercy eraobrigada a raspar os cofrinhos das crianças. Seu Romeu tomou umadecisão: não seria mais empregado de ninguém. Dito e feito. Passou oresto da vida aventurando-se em empregos variados - foi representantecomercial, caixeiro viajante, dono de açougue, feirante. À medida que o

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tempo passava, mais pessimista ele ficava. Dizia: "Se eu abrir umafábrica de chapéus, no dia seguinte as pessoas começam a nascer semcabeça". Aos nove anos, Elis foi aprender piano com a professora Waleska, umavizinha da vila do IAPI. Estudou dois anos. Aprendia rápido demais, tãorápido que, de repente, se viu diante do dilema: ou comprava um pianoou parava de estudar. Elis Regina começou a cantar porque não podiacomprar um piano. Diálogo entre mãe e filha na Porto Alegre de 1956: - Mãe, tu me leva ao Clube do Guri? - O que é que tu vai fazer lá? - Vou cantar. - Cantar? Tá louca, pensa que tenho tempo pra perder? No domingo seguinte, dona Ercy pegou Elis e mais duas amigas e lá seforam todas para a Rádio Farroupilha. Mesmo não conseguindo seinscrever nesse domingo, Elis voltou na semana seguinte e cantou. Pormais que se esforce, dona Ercy não consegue lembrar qual foi a músicade estréia de Elis. Sabe que era do repertório de Ângela Maria e nãoconfirma a versão contada por Elis, anos mais tarde, de que cantouLábios de mel. Foi uma sensação no Clube do Guri. Elis, de cara,desbancou a favorita do auditório. Cinco anos depois do desastre da primeira tentativa, Elis dava o troco.O primeiro de uma série. De uma longa série. Cantar no Clube do Guri virou hábito para Elis. Dos onze aos treze anose meio, ela cantou quase todos os domingos. Virou até secretária doapresentador Ary Rego. Na rádio, já não roía as unhas com tanta fúria,mas fazia coisa pior, muito pior. Soltava sangue pelo nariz. Uma coisade espantar. Dona Ercy não se esquece: um dos vestidos de domingo erabranco, com poazinho azul-marinho, gola redonda azul e uma gravatagrande caindo pela saia rodada. Para essas sérias brincadeirasdominicais, dona Ercy passava madrugadas em cima da máquina de costura.Nos bastidores, o nervoso foi tanto que o nariz jorrou quantidadesalarmantes de sangue. O vestido ficou manchado, e Elis entrou em cenadisfarçando, enrolando a saia na frente. Tinha acontecido o que viria aacontecer inúmeras outras vezes. Sempre na rádio. Só na hora de entrarno palco. Até o fim da vida, tímida e insegura, Elis ficavainsuportável antes de entrar em cena. A mesma insegurança, o mesmo medode errar, a mesma fobia de não ser perfeita. Aos treze anos e meio, Elis era a garota sensação de Porto Alegre. Nacapital do Brasil, Rio de Janeiro, já se conhecia João Gilberto e abossa-nova. Rapazes e moças se fechavam em apartamentos para cantar efazer música. Os jovens não queriam mais ouvir o que se tinha praouvir. Queriam algo diferente, mais sofisticado do que os sambas-cançõesde então. Queriam uma mistura do jeito cool do jazz com o samba quentedo Brasil. A quilômetros do Rio, na quase provinciana Porto Alegre,Elis Regina cantava sem sotaque os sucessos estrangeiros que aprendiaouvindo os discos da rádio. Um pouco crescidinha e com sucesso demais para o Clube do Guri, Elisdeixou a Farroupilha. E assinou seu primeiro contrato profissional coma Rádio Gaúcha. Passou a cantar por um cachê de cinqüenta cruzeiros por

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mês, no programa Maurício Sobrinho (Maurício Sirotsky, hoje dono daRede Brasil Sul de Comunicação, que engloba jornais e emissoras de rádioe tevê). Só pôde assinar esse contrato porque cumpriu as regras do jogo impostaspor dona Ercy: Elis só podia cantar se tirasse boas notas no colégio.Mais tarde, já famosa, Elis resumiu o drama para o amigo José EduardoHomem de Mello, o Zuza: - Era um drama: eu tinha que estudar e tirar notas excepcionais parapoder cantar, entende? Eu tinha que estudar mesmo pra valer, senãomamãe não me deixava cantar e eu já estava começando a gostar. Hoje, dona Ercy admite que Elis possa ter entendido sua exigência comouma imposição, mas argumenta a seu favor com um pressentimento de mãe:"Cantar, um dia você pára, minha filha". Ercy pensava que Elis podiase formar professora e, quem sabe, cursar a faculdade. O dinheiro de Elis veio a calhar, mas criou um conflito familiar queviria a se agravar com o passar dos anos e do volume de dinheiroarrecadado. Elis Regina ainda não tinha catorze anos e já ganhava maisque o pai. O mano Rogério se lembra como mudou a vida da família: - Elis começou a se impor porque pintava com a grana para solucionar osproblemas. Ela segurava numa boa, nunca cobrou. Nessa época, porque mais tarde ela viria a cobrar, como bem lembrouRogério. E, nessa época também, dona Ercy não tinha apenas os doisfilhos. Para ajudar um irmão, assumiu a responsabilidade de criarRosângela, sua sobrinha, ainda um bebê. Rosângela ficaria com a famíliaCarvalho Costa até completar catorze anos. Com o primeiro salário, Elis comprou três coisas para o seu quarto. Umsofá-cama, um tapete e uma vitrola hi-fi. Comprou tudo de segunda mãode uma tia rica da família, a tia Aida, madrinha de Rogério e aprimeira a despertar o gigante adormecido em Elis. Um dia, quando a tiaquis interferir na arrumação do quarto, Elis arrepiou: "É meu". Dona Ercy e Elis resolveram que o ginásio deveria ser feito no Institutode Educação, tradicional colégio de Porto Alegre, uma escola pública. Éum prédio imponente, estilo neoclássico, em frente ao ParqueFarroupilha, a maior área verde de Porto Alegre. Casto Instituto de Educação. Casta Porto Alegre. Maldita profissão deartista. Um dia, Elis chega em casa e diz à mãe: - A professora me chamou de mau elemento. Dona Ercy se queimou. Foi aoInstituto de Educação, pediu pra falar com a diretora. Quando soube que não podia seratendida, virou bicho. "Sabe o que ela disse pra mim? Que Elis nãopodia estudar porque era cantora. Chamou Elis de boi sonso." E soltou: - Se vocês estão pensando que minha filha não tem ninguém que olhe porela, vocês estão enganados. E outra coisa, eu arraso esse colégio, eutenho o rádio, o jornal, todos do meu lado. "Eu disse: "Olha, minha senhora, eu não vim aqui discutir a minha vidaparticular. Eu vim tratar de um problema da escola. Quero saber por queela é mau elemento". Quando virei as costas, ela disse: "Já vai tarde".Virei bicho de novo." Resultado da bronca: a professora de francês foi transferida e Elisterminou o ginásio em paz. Já no clássico, ela não conseguiu conciliar

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o estudo com o trabalho e sofreu um esgotamento nervoso. "Ela se deumal no latim", lembra dona Ercy. No meio desse ano, Elis transferiu-se,como queria de início toda a família, para o curso normal, que abandonoudepois do segundo ano. Elis tinha quinze anos quando dona Ercy permitiu que usasse sapatosaltos e pintasse as unhas. Foi também quando viajou de Porto Alegre aoRio para gravar o primeiro LP, "Viva a Brotolândia". A repercussão foiapenas local. Eu, que tinha na época dez anos, me lembro de ouvi-lo nacasa de uma prima mais velha, em São Paulo. Muito tempo depois dosucesso de Elis nos festivais é que associei uma à outra. Com abossa-nova surgindo, como é que eu poderia me ligar num repertóriocheio de versões de rocks calminhos e sambas-canções, a não ser pelavoz limpa da cantora? Os três primeiros LPS foram assim, e Porto Alegre não tinha mais nada aoferecer a Elis, já caminhando pela noite como crooner do conjuntoFlamboyant, à beira de botar a perna no mundo. 20 Decididamente, cantar ganhava espaço na vida da normalista. Sobrenamorados, jamais conversava com dona Ercy. O primeiro foi um homemligado à música, como seriam praticamente todos os que escolheu aolongo da vida. O nome dele era Marcos Amaral, locutor de rádio. O manoRogério tem vagas recordações do disc-jóquei. Lembra de ir com a irmãpara a rádio esperá-lo, e depois de acompanhar os dois até a pensãoonde ele morava. Sebastião Schlininger, o segundo, era bem mais velho do que Elis, unscinco, seis anos. Era descendente de alemães, mas moreno, brizolista,um funcionário petebista da Caixa Econômica. O que sobrou deste caso deamor juvenil foi uma briga decisiva: Elis terminou o namoro e foiembora para o Rio de Janeiro, mas nas primeiras entrevistas do sucessofalava em um grande amor secreto que havia deixado em Porto Alegre.Fala-se também que a família de Sebastião e o próprio se opunham àcarreira da cantora. Em março de 1964, depois de completar dezoito anos, Elis e seu Romeuembarcaram definitivamente para o Rio de Janeiro. Foram tentar a sorte.Elis contava com a promessa do produtor de discos Armando Pitigliani decontratá-la para a Philips, assim que ela rompesse o contrato que aindamantinha com a CBS. Elis chegou ao Rio com programas de televisão emvista e uma efervescência na noite carioca. O Beco das Garrafas, abossa-nova cantando um Brasil de amor e flor. Dona Ercy preparou a mala dos dois. Seu Romeu partia com uma carta derecomendação do velho PTB na esperança de desembarcar empregado no Riode Janeiro. Doce ilusão, a revolução de 64 afundou o PTB. Dona Ercy ficou em Porto Alegre cuidando de Rogério e de Rosângela.Tinha esperanças. Não podia imaginar que um ano mais tarde tudo estariamudado. O sonho de sucesso aconteceria, sim, mas sua menina nunca maisseria a mesma. Nem pequena, nem dócil. Ainda que seja fácil compreender que o universo de dona Ercy não sejacapaz de entender a amplitude de vôo de sua própria filha; ainda queseja claro entender que a rigidez da criação de Elis a tenha levado aestúpidas crises de insegurança; ainda assim, me corta o coração quando

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escuto dona Ercy dizer hoje: - Perdi minha filha aos dezenove anos. "A questão é saber se uma pessoa pode ser compreendida pelos fatos davida, e isto nem mesmo leva em consideração o abominável magnetismo dosfatos. Estes atraem sempre outros fatos polares. Rara é qualquerevidência de qualquer vida que não seja rapidamente contradita poroutras testemunhas." Norman Mailer, em Marilyn Capítulo 2 Elis costumava dizer que desembarcou no Rio de Janeiro em 31 de março de1964. Certamente não foi essa a data - alguns dias antes -, mas dizerisso era uma grande história. Elis, no Rio, no dia 31 de março, dia dogolpe militar e com a agravante histórica de seu pai ter chegado comuma carta de recomendação do PTB, partido do presidente deposto, JoãoGoulart. Os dois se instalaram num minúsculo apartamento mobiliado na RuaFigueiredo Magalhães, em Copacabana. Elis saía pela primeira vez dabarra da saia de dona Ercy. Abandonou a CBS, procurou ArmandoPittigliani na Philips, que cumpriu a promessa. Dois meses depoisassinava contrato com a TV Rio - foi para a televisão e participou devários programas Noites de Gala, célebres na época, um doscarros-chefes da emissora. Elis trabalhava muito, sim. Afinal, tinhaque sustentar a casa e o pai no Rio, e o resto da família em PortoAlegre. Na verdade tudo aconteceu muito rápido com ela. Todos ficavamimpressionados com Elis. Da TV Rio ia direto com o baterista Dom UmRomão para o Beco, o famoso Beco das Garrafas. Uma rua apertada -Rodolfo Dantas -, no meio dos prédios de Copacabana. Lá ficavam osbares do Beco. A fama do pedaço começou no fim da década de 50, quando oBrasil vivia um governo de afirmação nacionalista, progresso e expansãoeconômica, o governo de Juscelino Kubitschek, o "presidente bossa-nova". O Brasil não se olhava mais como um raquítico do litoral e sorria de simesmo. O futebol ganhou a Copa de 58, Maria Esther Bueno foi a primeiraem Wimbledon, Eder Jofre, campeão mundial dos pesosgalo. O Brasil,vivendo sua própria democracia, rasgava a Belém-Brasília e construíauma nova capital. O show business procurava novas fórmulas. Aloysio deOliveira testava os chamados pocket shows na boate Au Bon Gourmet eencenava o musical Pobre menina rica, com Carlos Lyra, Nara Leão eVinícius de Morais. Em 1962, toda a turma da bossa-nova se apresentavano afamado Carnegie Hall de Nova York. Em 1964, quando Elis Regina chegou ao Rio, estava no apogeu a geraçãoque se criou com Juscelino. A bossa-nova deixava o amor, o sorriso e aflor para cair no social. Cinema novo: uma câmara na mão, uma idéia nacabeça. Gláuber Rocha. Centro Popular de Cultura, CPC. Ligascamponesas, reforma agrária, Universidade de Brasília. Jânio Quadros, eleito com seis milhões de votos, era empossado emBrasília. Foto: Juscelino, sorridente, passa a faixa presidencial aJânio Quadros. Era a utopia do Brasil democrático, o Brasil descobria oBrasil de Pele, Garrincha, António Maria, Stanislaw Ponte Preta, Dolores

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Duran, Nelson Rodrigues. A União Nacional dos Estudantes parava o centrodo Rio porque a Light tinha aumentado a tarifa do bonde. Não se sabiabem disso de 64 a 68. Não se tinha a dimensão da ditadura que seriapreciso enfrentar. Não se imaginava que a explosão aconteceria com otropicalismo, o Rei da vela, com Terra em transe, com Roãa-viva, com occc (Comando de Caça aos Comunistas), com artistas espancados, com abriga Mackenzie-usp em São Paulo. Elis aos dezenove anos, diante do Brasil de 64, não ficava mais quieta etímida. Ou tomava as rédeas, ou seria o nada. Tirou a pele de cordeiroe botou as manguinhas de fora. Ela enfrentava o Brasil e o Rio deJaneiro de 1964, agressiva e desconfiada. Tinha a certeza de que estavajogada na arena e que os leões podiam trucidá-la a qualquer momento.Para quem vinha de cantar boleros e versões, o canto cool da bossa-novanão cabia direito em seu estilo. A bem da verdade, a voz de Elis Reginadestoava radicalmente do caráter intimista da bossa-nova, onde o verbocantar era conjugado com suavidade, no feminino. Bossa-nova, para alinguagem do jazz, era cool. A voz de Elis era hot. Diferente. Comoágua e vinho. "Era uma voz viril", na definição do compositor e jornalista NelsonMotta, o Nelsinho, que desde garoto freqüentava as sessões dabossa-nova através de seu "padrinho" Ronaldo Bôscoli. Nelsinho selembra de ter visto Elis na televisão. "Era uma mulher vestida com umaroupa horrível, peito grande, cantando em cima de uma escada. Uma figuraesquisita, mas cantando de chamar a atenção." Lá em Salvador, outroespectador atento, que na época escrevia críticas de cinema naimprensa, prestou atenção em Elis. Caetano Veloso também tomou umchoque quando viu Elis na TV: - Eu a achei muito talentosa e muito vulgar. Fiquei impressionado. "Essamulher é uma coisa incrível", eu disse. Mas ela fazia aqueles gestos,aquela dança marcadinha. E, como eu era bossa-novista - era muito JoãoGilberto, aquela coisa cool e de bom gosto e cores mais discretas -,Elis me pareceu cafona, mas cheia de talento. No final de 1964, Elis arranjou um namorado. Solano Ribeiro tinha vintee cinco anos - era um jovem produtor politizado à procura de umcaminho. Trabalhava na produção musical do Programa Bibi Ferreira, naTV Excelsior, em São Paulo, e estava no Rio para contratar algunsartistas para um espetáculo chamado Primavera Eduardo Festival deBossa-Nova. Solano foi o primeiro namorado desde que Elis deixou Porto Alegre. "Eume encantei com a cantora e queria me casar com a cantora", me contaSolano agora, aos quarenta e oito anos, instalado em sua produtora - aVPI - e trabalhando mais uma vez para um festival, Festival dosFestivais, da TV Globo, vinte anos depois da Excelsior e de Arrastão. - Existia um envolvimento político muito grande nessa época. Eu vinha doTeatro de Arena e era um radical nos meus vinte e cinco anos. Nãoadmitia que Elis cantasse Tom Jobim, pra você ver minha imbecilidadeonde chegava. Eu brigava muito com ela, e tenho a impressão que exerciauma influência grande, porque ela se deixava mesmo influenciar. E ficoumeio política. Um dia ela cantou uma música do Tom Jobim e eu escreviuma carta pra ela dizendo dá influência que aquilo ia exercer na cabeça

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das pessoas, quer dizer... Eu não admitia uma série de coisas. Nossasdiscussões eram sempre nesse sentido. Ela tinha uma cabeça aberta pracinema, literatura. Foi ela quem me levou para assistir Deus e o Diabona Terra do Sol, do Gláuber Rocha, no Cine Metrópole, em São Paulo. Quarenta dias depois de instalados no Rio, Elis e seu Romeu mandarambuscar dona Ercy e Rogério. Todos naquele apartamentinho da FigueiredoMagalhães. Foi nesse cenário que começou a desabar o namoro de Elis eSolano, que recorda: - Eu passei um carnaval no Rio com Elis nesse apartamento. Convivi com afamília dela, convivi com ela... Então aí a coisa ficou complicada. Arelação de Elis com os pais era maldosamente agressiva. Ela sabia dadependência econômica deles. Fiquei chocado com a agressividade com queela transava com as pessoas da família e com a própria agressividadedela, que me encantava, mas que me espantava. Às vezes eu estavasentado e ela vinha por trás e pum, batia com uma revista na minhacabeça. Com força. Não sei, ela tinha uma necessidade de botar algumacoisa pra fora. Às vezes íamos fazer uma visita e ela ficavasuperelétrica. De repente, encostava num canto e dormia. Era energia.Era vida. Mas não foi por isso que Solano Ribeiro e Elis Regina terminariam onamoro. Elis ficou grávida e fez um aborto. Segundo a versão de Solano,foi aí que tudo desandou: - Ela ficou grávida, fez o aborto e não me disse nada. Disse depois. Solano não suportava a idéia de assumir o papel de "marido da cantora".Segundo ele, Elis ocupava todos os espaços, e ele não admitia viver comuma pessoa que ocupasse todos os espaços. Ele queria também ocupar osseus: - Eu também tinha problemas, também era complicado. O fato é que Elis, rompida com o namorado, recém-saída de uma primeiragravidez e de um primeiro aborto, brigava mesmo em casa. Seu Romeu, sememprego, fez da carreira da filha um bico. Passou a cuidar dos cachês,acertar contratos para shows, receber, como se fosse um empresário. MasElis começava a perceber que tinha o controle econômico sobre a famíliae se sentia poderosa. Elis cobrava do pai - como cobrou do irmão, quese virasse, cuidasse de sua própria vida. Mas ao mesmo tempo alimentavaessa dependência dando dinheiro a ele, como se fosse impossível paraela suportar o complexo de culpa de estar bem de vida e os paispassando necessidade. Sobre o assunto, Elis disse, anos depois: "Sei que minha mãe nãosuportaria me ver chegar às três da manhã, cansada, sem horário para asrefeições, etc. Nem eu ia viver bem, constantemente observada, e nemela, gravitando em torno de mim. Certamente voltariam todos aquelesproblemas oriundos do carinho opressivo". Mas além da briga doméstica Elis tinha outros problemas, nas noitescariocas. De uma primeira apresentação na boate Little Club, ela passoua ser produzida pela dupla bambambã da época: Luís Carlos Mieli eRonaldo Bôscoli. Os dois trabalhavam com exclusividade para a AgênciaMidas, escritório de Abrahão Medina, conhecido como O Rei da Voz porcausa de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos. Mas não podiamresistir aos apelos do Beco das Garrafas. Eles iam lá para beber

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cuba-libre e trabalhavam praticamente escondidos na produção de pocketspara o Beco. Segundo Ronaldo Bôscoli, o Beco era uma esculhambação. Nemspot tinha. Os efeitos de luz eram feitos com canudos de cartolina. Oslogan da dupla, na época, era: "Dêem- nos um quarto e lhes daremos umespetáculo". Além do mais, Mieli e Bôscoli eram metidos a fazer superprodução. Sonhosde Broadway. Mas tinham que montar showzinhos em espaços minúsculos.Quando Mieli e Bôscoli encontraram Elis Regina num sábado à noite parao primeiro ensaio, ela estava de cara virada. Talvez achando um tantodemais ficar à disposição dos horários dos diretores. Quando RonaldoBôscoli conheceu Elis Regina, ela estava apaixonada por Edu Lobo, ocompositor que com ela iria dar a grande virada na música popular. Eletem uma boa memória: - Ela ia toda hora ao telefone e se exibia demais pra mim: posso falarum instantinho no telefone, seu diretor? E falava com o Edu. Foi lá no Beco que Elis conheceu Lennie Dale e com ele aprendeu a usarmais o corpo quando cantava. Aquele negócio dolaia-ladaia-sabatana-ave-maria certamente foi criação sua, masincentivada pelos ensinamentos do bailarino americano. Esse foi o motivode sua primeira desavença com Ronaldo Bôscoli. Ele achava aquelanatação um tanto ridícula. Foi falar com Mieli, e ele respondeu com umadeclaração que se tornaria histórica: - Deixa, Bôscoli, assim ela enterra a bossanova de vez. O show de Elis no Bottles, dirigido por Mieli e Bôscoli, tinha aparticipação do conjunto de Dom Um Romão, da bailarina Marly Tavares edo pandeirista Gaguinho. Foi um sucesso. E para a história queaconteceu em seguida há várias versões. Elis começou a faltar aos showsdo Beco. E sempre aos sábados. Segundo "Ronaldo Bôscoli, ela eraobrigada pelo pai Romeu a fazer shows por fora para ganhar maisdinheiro. Eu custo a acreditar que Elis Regina fizesse alguma coisapressionada, que fizesse alguma coisa com que não compactuasse. Mas temalgum fundamento. Segundo Elis, esses shows aconteceram sim, mas elagarante que faltou apenas uma vez ao Beco. Bôscoli rebate: "Foramvárias". Seu Romeu vinha sempre com a desculpa de que Elis "estavadoente". Na terceira falta, Bôscoli foi falar com ela: - Elis já veio falando: "Diz logo o que você quer!" E eu disse queaquilo não era uma zona, que não era a casa-da-mãe-joana e que exigiauma explicação. Ela insistiu na tese de que estava estressada, doente.Eu disse que sabia dos shows que ela fazia na mesma hora em outroslugares. E a discussão foi indo até um ponto em que ela já estava dandouma de Joana d"Arc, chorando e se dizendo injustiçada. O fato é que Elis Regina estava de olho em São Paulo. Mais precisamentenum movimento estimulado pelos estudantes de çentros acadêmicosuniversitários da época: levar a musica popular para os teatros. Fazershows ao vivo a gente nova. Horácio Berlink, Eduardo Muylae, AntônioCarlos Calil, João Evangelista Leão organizaram o primeiro, feito peloCentro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito de São Paulo, noTeatro Paramount. Nome do show: O Fino da Bossa. Elis Regina foi convidada a participar do segundo show dessa série, no

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dia 31 de agosto de 1964, o espetáculo Boa bossa. Foi um sucessoestrondoso, tanto que o jornalista Walter Silva, titular do famosoprograma O Pick-up do Pica-Pau, resolveu arrendar o Teatro Paramount efazer lá mais ou menos o que fazia Solano Ribeiro no pequeno palco doTeatro Opinião. Walter Silva pensava em shows de música popular paragrandes platéias, e grande platéia na época eram os dois mil lugares doTeatro Paramount. E Elis, já seduzida pelos cachês paulistas - ganhava,por show, mais do que recebia em um mês do Beco. A escolha era evidente. Mas, antes de abandonar e de certa forma enterrar o Beco das Garrafas,Elis armou uma briga feia com Ronaldo Bôscoli, porque ele tinha mandadopichar uma tarja preta em cima do seu nome no cartaz da porta doBottles. "Mandei pintar a tarja de maneira que se pudesse ver o nomedela embaixo." Pronto. Viraram inimigos mortais. Em São Paulo, WalterSilva e Solano Ribeiro apresentaram Elis a Marcos Lázaro, um argentinoque começava a subir como empresário. Em fevereiro de 1965, ela jámorava em São Paulo. Veio só e se hospedou na casa de Marcos Lázaro, umpequeno apartamento de dois quartos na Avenida Rio Branco, esquina coma Avenida Ipiranga, centrão de São Paulo. A família Lázaro - dona Elisae dois filhos - acomodou Elis no sofá da sala de visitas, protegida ànoite por uma cortina improvisada no meio da sala. Dona Ercy, seu Romeue Rogério ficaram no Rio e depois voltaram para Porto Alegre. Elis Regina, hóspede recatada da família Lázaro, empresariada pelopatriarca. Era a sua primeira artista brasileira exclusiva, ele, quetrabalhava com artistas de circo e cantores da noite. A troco de vintepor cento dos cachês pagos aos artistas, Marcos Lázaro começou acrescer. Elis, que saía e voltava pra casa escoltada pelo empresário,jogava baralho nas noites de folga. "Me lembro que às vezes ela jogavaas cartas para o alto, corria na janela e começava a cantar e acantar", me contou Elisa Lázaro. Recém-chegada na capital paulista, Elis declarou aos jornalistas tersido injustiçada no Rio de Janeiro. Disse que foi discriminada por sergaúcha e que enfrentou uma verdadeira guerra no Beco das Garrafas.Bôscoli desmente a versão, claro, mas é possível que Elis tenha sentidoas coisas mesmo assim. Uma guerra. Ela tinha necessidade de criarhistórias em que se sentisse no papel de heroína e era motivada pelacompetição. No seu próprio jeito de cantar, ela demonstrava um modoatlético e, se entrasse pra valer em qualquer disputa entre músicos,entraria com unhas e dentes afiados para abocanhar o primeiro lugar. Elis era assim quando foi convidada pelo exnamorado Solano Ribeiro paradefender duas músicas no I Festival de Música Popular Brasileira da TVExcelsior. Este festival coincidia com o ocaso da TV Record, quesustentava sua programação com artistas estrangeiros. Ela contratou eapresentou nomes como os de Ella Fitzgerald, Sammy Davis Jr., DizzieGillespie, Rita Pavone, Chubby Checker, Brenda Lee. Em crisefinanceira, era impossível manter o mesmo nível. Diante disso, aExcelsior entrou com tudo com o seu festival de música. Elis entrounesse festival com o pé atrás. Tinha pelo produtor Solano Ribeirodesconfiança, muita desconfiança depois de tudo o que tinham passadojuntos. Das duas músicas que recebeu - Por um amor maior, de FrancisHime e Ruy Guerra, e Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Morais -

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Solano recorda que Elis gostava mais da primeira. Quando a música foidesclassificada, ela achou que alguém estava sacaneando, maispropriamente, Solano Ribeiro estava sacaneando. "Ela não me olhava, eraum clima esquisito." Mas, segundo o depoimento do produtor desse importante festival, ahistória não era bem essa. Havia um complô articulado pelo empresárioLívio Rangan, já falecido, então dono da Rhodia. Solano conta: - Rangan queria que ganhasse a música do Vinhas e do Bôscoli defendidapelo Simonal. Ele argumentava que se a música não ganhasse nenhum outrovencedor trabalharia em seu show. Além disso, aliciava o júri compresentes. E havia uma parte do júri não politizada, alienada, quedesprezava as músicas com mensagens sociais que estavam inscritas. OEumir Deodato era um deles. E aquele momento era delicado. O golpe de64 em cima, a gente querendo uma saída. A censura. Tudo isso contribuiupara que Arrastão quase perdesse. Só não perdeu, segundo Solano, porque ele mesmo promoveu umcontra-ataque no júri, ajudado pelos artigos de Walter Silva na Folhade S. Paulo. Afinal, venceu Elis, venceu Arrastão e, para quem selembra, foi um momento inesquecível na televisão do Brasil. Elis Regina dava um adeus formal à bossa-nova. Um ciclo se encerravanaquele canto atlético com que defendeu a música. Sucesso nacional.Elis Regina vence o I Festival de Música Popular da Excelsior. Olha oarrastão entrando num mar sem fim/É, meu irmão, me traz lemanjá pra mim.Elis, peruca preta, vestido tubinho preto, braços abertos feito o CristoRedentor. Braços revoando feito helicóptero e a voz solta com força,gana, vontade de vencer. A primeira da competição. Medalha de ouro. Aboa menina encontra o sucesso. Rosto pra trás, lágrimas nos olhos. Pramim. . . olha o arrastão. . . Choro e riso no rosto consagrado. Demaispara um pobre coração. "Hoje em dia eu sei muito bem como é pra um artista grande assumir aimportância inteira de uma época na sua pessoa. Eu sei como é essetormento, essa dualidade profunda que se instala numa pessoa pública,famosa, que detém o poder de alguma ordem. É a luta entre o ímpeto deser importante e o ímpeto de ser feliz." Gilberto Gil Capítulo 3 Em abril de 65, Elis virou capa de revista. Subiu ao palco do TeatroAstória, no Rio, para receber o prêmio de melhor intérprete do IFestival de Música Popular Brasileira, defendendo a música tambémvencedora. Era a glória. Finalmente, oito anos depois de ter cantadopela primeira vez no Clube do Guri, seis depois da assinatura de seuprimeiro contrato profissional, três depois do primeiro LP, Elis Reginachegava onde queria. Não havia desejo maior na sua sonhadora PortoAlegre do que ser capa de revista. Isso significava celebridade, eraprova de reconhecimento e puro prazer. Sonho secreto escondido pelagargalhada escancarada. Vinícius de Morais não agüentou tanta vibraçãoe, sabiamente, a apelidou "Pimentinha". Quarenta e oito horas depois da entrega do prêmio, Elis já estava em SãoPaulo para estrear um show com o compositor e violonista Baden Powell.Mas no lugar dele estreou o sambista Jair Rodrigues, um cantor

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antibossa-nova também, que vinha de um grande sucesso nacional: deixemque digam, que pensem, que falem. . . Elis e Jair fizeram um únicoensaio juntos, horas antes da estréia. O Teatro Paramount, já arrendadopelo jornalista Walter Silva, que produziu esse espetáculo, começava ase transformar no templo da MPB em São Paulo. Quando começaram osmusicais da Record, usava-se um teatro menor, o Teatro Record, da Rua daConsolação. Depois, a Record arrendou ela mesma o Paramount e o transformou emTeatro Record-Centro. Os dois mil lugares do Paramount foraminsuficientes para o público que superlotou as três apresentações deElis, Jair e o Jongo Trio. Nascia ali a dupla que durou praticamentetrês anos e três LPS gravados ao vivo. O primeiro da série, "Dois naBossa", saiu desse primeiro espetáculo produzido por Walter Silva. Depois da estréia, Elis e Jair receberam o Roquete Pinto, tradicionalprémio oferecido pela TV Record aos melhores do ano. Na coxia, MarcosLázaro, encantado com sua estrela, foi abordado por Paulinho Machado deCarvalho: "Preciso falar com você". Naquele tempo, os empresários nãoeram bem-vistos pelas emissoras de tevê. Na verdade, eles eram barradosna portaria. A Excelsior e a Record não permitiam que empresáriosentrassem sem autorização em suas dependências. Marcos Lázaro estava emadiantadas negociações com a TV Tupi, que queria Elis para substituirWilson Simonal no programa Spot Light, dirigido por AbelardoFigueiredo. A Tupi oferecia uma soma fabulosa para a época: dois milhõese oitocentos mil cruzeiros ". Para conversar com Marcos Lázaro e tentartirá-lo da Tupi, Paulinho Machado de Carvalho mandou um homem deconfiança, Manoel Carlos. Nessa conversa, Marcos Lázaro disse a ManoelCarlos que já estava praticamente acertado com Cassiano Gabus Mendes, daTupi. Manoel Carlos insistiu e Marcos deu uma cartada: "Evidente que eudisse a ele que Elis ia ganhar muito mais do que a Tupi, de fato,oferecia". Mas, nesse momento, surgiu uma complicação na Tupi. Um dosdiretores do condomínio dos Diários e Emissoras Associados, queadministrava a Tupi, disse que não se podia pagar tanto dinheiro a umacantora. Principalmente porque, com esse salário, Elis ganharia no fimdo mês muito mais do que ele, diretor. Diante disso, Marcos Lázaro sesentiu liberado e imediatamente fechou com a Record por um contratomais fabuloso ainda: seis milhões de cruzeiros por mês. Era o saláriomais alto já pago a um artista na televisão brasileira. Quem ganhavamais, até então, na Record, era Agostinho dos Santos - oitocentos milcruzeiros. Com o primeiro dinheiro de Elis na Record, Marcos Lázaro comprou paraela um apartamento no mesmo edifício em que ele morava, na Avenida RioBranco. Ou seja, o salário de Elis Regina em 65 dava para comprar umapartamento por mês. Delírio. Em nove meses, seu salário pulava dostrinta mil da TV Rio para os seis milhões da Record. E ela tinha apenasvinte anos. Segundo me contou Marcos Lázaro, a compra desse apartamento foi oprimeiro e único investimento que ele fez, em nome de Elis, durante osdez anos em que a empresariou. A partir daí, ela exigia que ele lheentregasse o dinheiro e ponto final. Elis estava deslumbrada. Costumava me dizer que, de repente, se sentia

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como a Cinderela que calçou o sapato certo, com direito à fadamadrinha, a TV Record. Elis enlouqueceu com aquele dinheiro todo. Saiucomprando coisas que sempre quis ter, como uma absurda quantidade desapatos combinando com bolsas (ela me disse dezessete, há quem diga queeram cem), uma quantidade supervariada de perucas, ursos de pelúcia,jóias, vestidos e mais vestidos. Ela costumava ir às compras com donaElisa Lázaro, mulher de Marcos. Dona Elisa levou Elis à casa de MadameBoriska, conhecida estilista de São Paulo nos anos 60. Sua primeiratentativa de merchandising com Elis foi um fiasco. Dona Elisa recorda: - Falei que Madame Boriska podia oferecer as roupas para Elis usar noprograma em troca de um crédito. Sabe o que ela me disse? "Você pensaque eu vou usar vestido emprestado?" Inebriada com a quantidade de dinheiro que brotava de sua garganta, ecansada de conselhos do tipo "Minha filha, você devia guardar dinheirono banco, comprar dólares, imóveis, não desperdiçar. . .", Elisdispensou a companhia de dona Elisa para as compras: - Fomos uma vez a uma joalheria e o vendedor perguntou: "Você quer jóiaspara investir ou para se enfeitar?" Ela não sabia, era uma criança.Falei pra ela comprar um brilhante, um solitário, porque você sabe quea gente comprando jóia está comprando dinheiro. Ela quis brincos ecolares. E a gente via ela usar e,de repente não via mais. Nessa épocaela dava muitos presentes. A Record aproveitou o nome (O Fino da Bossa) e a fórmula dos shows doParamount para estrear no dia 17 de maio de 65 um programa comandadopor Elis Regina. Era gravado às segundas-feiras, no Teatro Record daRua da Consolação, e era um programa feito especialmente para atelevisão - o que era inovador para a tevê, para a música e para aépoca. Pelo Fino da Bossa passaram praticamente todos os artistas damúsica popular daqueles tempos. Elis era a representante de uma geraçãotalentosa, a primeira imediatamente após a bossa-nova, ocupando espaçosnum veículo de comunicação de alcance nacional. Era também um espaçoonde se produziam músicas de protesto velado contra o regime militarinstaurado um ano, antes. Elis já tinha sentido os ares da políticaatravés de Solano Ribeiro, e depois em contato com os estudantespensantes da época, como João Evangelista Leão, que recebeu Elis em suacasa para longas conversas, para ouvir discos e para definir orepertório do programa. A emissora de Paulo Machado de Carvalho havia recebido Elis Regina debraços abertos. Era uma emissora familiar. Paulinho, o filho maisvelho, cuidava da parte administrativa. Tuta, o mais novo, da produção.Era com Paulinho Machado de Carvalho que Elis gostava de se confessar.Tinha com ela uma relação paternal. O núcleo de criação da emissora, achamada Equipe A - Manoel Carlos, Tuta, Nilton Travesso, Raul Duarte -,precisava criar programas de auditório porque um incêndio violentohavia destruído estúdios, equipamentos e arquivos. Nessa equipe aprodução de O Fino da Bossa era tocada com mais dedicação por NiltonTravesso, até hoje um homem de tevê. "Naquela época, Elis entrava no palco à uma hora da tarde e ensaiavatrês, quatro arranjos para cantar à noite com o Zimbo Trio", me contouNilton Travesso. "Ninguém fazia isso. Elis era ativa, brigava, discutia

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comigo, discutia com as pessoas, com o Zimbo Trio. Levava a sério, nãobrincava em serviço. Parecia que estava prestando um serviço às pessoasque iam ao teatro." A única coisa que perturbava muito a Elis estrela era a presença do paiem alguns ensaios. Nilton Travesso conta: - Ele vinha para buscar dinheiro e Elis ficava transtornada. Ficavanervosa, rebelde, e de repente as pessoas sabiam que ela estavadescontrolada, porque normalmente ela não era daquele jeito. Ela achavaque estava sendo usada e abusada. Quando Elis entrou no Teatro Record para gravar o primeiro O Fino daBossa, quis logo saber quem ia comandar o som. Era José Eduardo Homemde Mello, o Zuza, que tinha dupla função na emissora: viajava para oexterior para contratar atrações internacionais e era o principaltécnico de som da Record. Zuza contou a Elis que era contrabaixista eeles logo se entenderam. Ele lembra: - Ela não estava muito nervosa, não, mas não se sabe como o programa foigravado naquela noite. Era uma balbúrdia, uma confusão. Quem pôs ordemna casa foi o Cyro Monteiro. Eu ficava louco com aquela quantidade demicrofones, mas a Elis nunca errou nada. O fã-clube de Elis começava a se formar: muita gente chegava àbilheteria do teatro às quatro, cinco da manhã. Na saída dos artistas,uma confusão de gritos e autógrafos. Muitas garotas dessa época seconhecem até hoje, e algumas fazem parte do grupo "Elis em Movimento".Sônia Dorothy Gomes assistiu a praticamente todos os shows e eventos dacarreira de Elis. Seu arquivo de recortes e fotos é fantástico. Elacomeçou se infiltrando nos camarins. Depois de um certo tempo, Elis jáa recebia. Dorothy resistiu a conversar comigo se eu a classificassecomo uma fã qualquer. Dorothy assistiu na época de O Fino da Bossa àrivalidade de Elis com a cantora Cláudia, uma novata levada ao Fino porum músico da orquestra. Logo começaram a comparar as duas. Uma rápidainimizade. Luís Loy, tecladista do famoso Quinteto de Luís Loy, que acompanhou Elisno Fino e fez com ela várias excursões, me disse que Elis começou a sechatear com os comentários e comparações. Muita gente dizia que aCláudia era melhor. Sônia Dorothy testemunhou um incidente: numadiscussão no palco, Cláudia empurrou Elis, que se desequilibrou e quasecaiu no poço. Luís Loy me contou que Elis foi a Paulinho Machado deCarvalho pedir que não escalasse Cláudia para o seu programa. Paulinhodiz que não consegue se lembrar dessa história e não a confirma. O fatoé que a cantora Cláudia foi parar no Rio de Janeiro, nas mãos de RonaldoBôscoli, que preparou para ela o espetáculo Quem tem medo de ElisRegina. Houve outra desavença, dessa vez musical, com o Zimbo Trio. No começoElis e o Zimbo eram quase uma coisa só. Um completava o outro. Com oZimbo (Luís Chaves, Amilton Godoy e Rubinho), Elis descobriu um outrouniverso na música: eram todos músicos da noite, e dos bons, adoravamjazz e improvisação. Normalmente, eles abriam o Fino: tocavam dois outrês números e esquentavam a platéia. Músicos de personalidade forte,usavam esses momentos para mostrar a música que faziam. Elis nãogostava quando eles terminavam a apresentação muito para cima,

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encobrindo a sua entrada. Além disso, passou a considerar o Zimbo Triocomo o seu conjunto. Não era bem isso que pensavam e queriam os trêsmúsicos. O contrabaixista Luís Chaves já conhecia Elis do programaPrimeira Audição, quando os dois dividiam a apresentação, e fez algunsarranjos de seu primeiro LP para a Philips. Ele conta: - Ela queria que seu conjunto fosse bem comportado. Ela pensava muitocomo músico. Sabia que conhecia menos de música que nós, mas nós tambémsabíamos que ela sabia o que queria. Ela não era apenas a solista, eramais um músico no grupo. Entra então na vida de Elis Regina um certo compositor recém-chegado daBahia. Contratado como administrador da Gessy-Lever, Gilberto Gilapareceu no apartamento de Elis na Avenida Rio Branco vestido de ternoe gravata, pasta 007 na mão. Elis achou engraçado. Mas ouviu Louvação,Lunik 9 e muitas outras. Além disso, impressionou muitíssimo o jovemcompositor: - Para mim, Elis era o símbolo daquilo tudo, daquela novidade toda.Inclusive ela legitimava muito a minha ambição. Achei que tinha chegadoo tempo da gente. Ela era diferente de todas as cantoras, a gestuáliatoda, tudo, a voz, o modo de cantar, o repertório. E eu fiquei logooprimido na primeira vez que a vi. Esses artistas todos me oprimem. ComMaria Bethânia tenho a mesma sensação, são todos meus pares, mas mesinto oprimido. Mas isso é coisa de deformação da minha personalidademesmo, coisa de inveja, de dificuldade. E eu tinha muito isso com ela.Então, vê-la ali, em casa, descontraída, a coisa ficava mais palpável.Eu ficava com tesão. Eu ficava louco por ela. Ela nunca soube disso,pode ter suspeitado, porque eu era muito terno com ela. Eu fui lançadopor ela, embora Gal tenha sido a primeira a gravar música minha, masela tinha um zelo em sempre incluir músicas minhas em seus discos. Elisme tratava com muita altivez, mas com muita calma. Isso porque eu eradoce e adocicava tudo, porque sou naturalmente assim com quase todomundo e com ela eu era inspirado pela opressão que sentia, pela coisatoda que ela me dava, uma coisa de apaixonado também. Eu ficava ali,servil e fragilizado, e então ela se aproveitava disso para instalar aaltivez dela. Mas eu tenho a impressão que ela era assim com osartistas em geral, deve ter sido assim com todos eles, músicosimportantes para ela, colegas importantes. Ela deve ter tido uma relaçãoonde o sentido de competição era muito na frente de tudo. Não é umacoisa que eu possa me referir a ela como algo de minha relação pessoal,acho que era uma coisa genérica. Mas com o tempo isso foi ficando maisdesenhado, como uma arquitetura, uma coisa construída. Foi ficando maiscomo um modelo armado por ela. Elis foi encontrando uma maneira desofisticar aquela altivez, estereotipar. Foi ficando mais estereotipadae sofisticada, pelos assuntos que ela escolhia para conversar, o tipode humor que escolhia pra fazer, o caráter picante da personalidade, queera muito na frente. Eu tenho a impressão que ela foi tendo critériosdiferentes para diferentes pessoas. Ela foi ficando muito civilizada.Foi tendo aquela coisa de finura, e o sonho dela de polimento de pessoamesmo. E, junto com isso, ela foi solidificando a crosta dadificuldade. Ela foi ficando mais difícil. Na época do tropicalismo foiuma barra. Ela ficou muito ressentida, eu acho. Deve ter ficado

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ressentida com o caráter todo surpreendente, imprevisível. Nessa épocaa gente não se via muito. "Eu estava com ela na famosa "passeata contra as guitarras", que saiu doTeatro Paramount até o Largo São Francisco. Não era bem contra aguitarra. Na verdade era um ressentimento todo do pessoal semanifestando, uma coisa meio xenófoba, meio nacionalóide: vamos a favorda música brasileira. Aquela passeata era contra um bocado de coisas,mas toda a retórica dos slogans era contra a música estrangeira, amúsica alienante. Era uma coisa meio Geraldo Vandré. Eu não sei direitotambém, mas fui pelo lado da solidariedade aos artistas. No fundo euera muito ingênuo por um lado, também resistia muito a criticá-los,entender qual é a crítica que eu deveria fazer àquilo tudo. Eu nãofazia. Eu me abstinha de aprofundar o meu grau de exigência - e ficavaachando um pouco que tudo bem, alguma coisa justa naquilo tudo que elesqueriam. Além disso, essa passeata também era uma coisa meio manipuladapela tietagem da época, inventada pelo Jacaré, pela Telé. Era uma coisade porta de teatro. Porque é preciso saber que o Teatro Record, naquelaépoca, era uma assembléia permanente. Todos os dias da semana tinhamusicais, e todos eles defendendo setores, tendências. "Na época de Domingo no parque Elis não falava comigo. Naquelesfestivais se faziam entrevistas nos bastidores e todo mundo ficava porali e ouvia. Elis estava defendendo O cantador, e quando foi darentrevista disse: "Gil é um compositor em deterioração, um artista queestá se deteriorando". Eu achava aquilo significativo do que ela achavaque estávamos fazendo. Eu fiquei mal. Mas na época era um abalo em todoo pessoal, imantado por ela, todo um círculo que ela magnetizava, assimas relações estavam abaladas com a gente. "Foram raríssimos os nossos encontros. Esporádicos. A gente seencontrava sempre depois de um abalo de relacionamento. Durante a coisatoda teve pelo menos uns três ou quatro estremecimentos. Corte de fluxoafetivo. A primeira vez foi durante o tropicalismo. Depois voltamos anos encontrar em 72, 73, quando ela gravou Oriente e Doente morena. Elanunca telefonava para mim. Sempre mandava recado: Elis quer falar comvocê. Ela devia perceber que eu era apaixonado por ela. Ficou esquisitooutra vez quando ela gravou Oriente, porque ela cantava uma frase, umapalavra errada na música, e depois eu me referi a isso. Não cheguei afalar com ela, mas ela ficou sabendo. É naquele pedaço que diz: "aranhavive do que tece". Ela gravou: "aranha duvido que tece". Ela deve terpegado a gravação e não entendeu a letra. Quando ouvi, fiquei abismadocom aquilo, era muito diferente e engraçado um equívoco dessa ordem,como duvidar de uma coisa daquelas? Que coisa estranha a Elis nãoconhecer esse ditado, "a aranha vive do que tece". E me lembro que elanão gostou de eu ter dito. "Daí veio um ano, dois anos, ela fez outro contato e eu mandei Ocompositor me disse. Essa música foi feita pra ela. É uma coisa que euqueria dizer por causa do excesso de tensão que eu estava percebendonos discos dela naquele período. Eu quis mandar um recado com a música.Tipo assim meio terapeuta que diz relaxe, como se ela estivesse vindo amim pra eu fazer uma massagem nela. Era uma época em que eu estavamuito em casa, muito macrobiótico, tinha nascido a Preta, e eu estava

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morando no Rio, bem recolhido, na caverna. Foi quando fiz Copo vazio próChico, Barato total pra Gal Costa. Eu estava com a cabeça naquele mundoda relação da unidade com a dualidade. Compus O compositor me disse praElis, sem violão, só cantando. E quando a gravação veio, me pareceu queela assumiu uma atitude exatamente oposta do que eu achei que estariacomunicando. Era como se eu estivesse dando a massagem e os músculosdela fossem ficando mais tensos, e, no final, ela tinha virado umapedra. Quando ouvi fiquei com essa sensação. Comentei com alguém, etudo chega aos ouvidos. Foi uma época em que Elis estava bemestremecida com todo mundo. Estava com dificuldades com o Tom, depoisdaquele disco que fizeram na América. Estava em dificuldades com oMilton. Qualquer lugar que a gente ia, tava sempre ocorrendo umprobleminha qualquer com a Elis. "O nosso próximo passo foi outra música. Mais uma vez não nos falamos.Aí eu fiz Rebento e ela não gravou. Mandou um recado: "Não entendi aharmonia". Só veio a cantar Rebento depois que eu gravei. Aí, em Se euquiser falar com Deus houve um problema de outra ordem. É incrível,minha vida com a Elis era uma coisa impressionante. Sem querer. Eu iagravar essa música e ela me pediu uma para o disco. Eu mandei Palco,que ela acabou não gravando. Mas eu estava no estúdio quando a Elisligou me dizendo: "Gravei Se eu quiser falar com Deus e vou lançar". Eudisse: "Mas eu estou lançando um compacto com essa música, como é que agente faz?" Aí ficou aquela situação. Ela gravou e não colocou no disco.A Odeon lançou depois de sua morte. Meu editor disse a ela que é praxequando você grava ter a exclusividade por um período de sessenta dias. "Hoje em dia eu sei muito bem como é pra um artista grande assumir aimportância inteira de uma época na sua pessoa. Eu sei como é essetormento, essa dualidade profunda que se instala numa pessoa públicafamosa, que detém o poder de alguma ordem. É a luta entre o ímpeto deser importante e o ímpeto de ser feliz. "Elis mudava de idéia de cinco em cinco minutos. Mas sempre com umaidéia - não era com uma idéia agora e sem nenhuma daqui a cincominutos. Era com uma idéia agora e outra daqui a pouco. Era sempre deum lado. Era como se fosse sempre para estar de um lado só. Ela tinhaum pouco de maniqueísmo. Quando ela adotava uma idéia oposta era paraironizar a que tinha adotado antes. Era assim, ela estava aqui e sóexistia isso. Tudo do lado de lá era um absurdo. Mas, de repente, elapassava pró lado de lá. É o chamado inconsciente verbal. Uma coisacomplicada. Especialmente por ser uma coisa de nunca se deixar vencerpela dúvida, ou vivenciar a dúvida. Elis identificava isso comfraqueza, não sei. Mas isso foi devido muito à formação dela. Ela foiformada muito com alguém sempre chegando e dizendo: decore, leia issoou aquilo. E ela lia tudo aquilo. Ela não se conformava com a dúvida.Nunca entrou, nunca foi profundo, essa coisa do resignante vazio. Querdizer, me parece assim, mas estamos especulando sobre essapersonalidade aparente, esse nível da consciência verbal dela." O programa O Fino da Bossa era imbatível em audiência, até que Elistirou férias. Passou dois meses viajando pela Europa, o que foi fatalpara seu programa. A saída de Elis do comando do Fino coincide com aascensão do programa Jovem Guarda e de Roberto Carlos. Paulinho Machado

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de Carvalho não queria que Elis viajasse. Acreditava na velha tese detevê: quem não aparece, o público se esquece. Querendo levantar oprograma, a Record sugeriu a Elis contratar novos produtores. E por quenão Mieli e Bôscoli? Elis estrilou, mas Paulinho convenceu-a de algumamaneira e ela concordou em receber apenas Mieli. De São Paulo, eleavisou o parceiro: tudo limpo. Era um reencontro mais sério do que se poderia imaginar. No final do anode 1967, Elis Regina e Ronaldo Bôscoli surpreenderam o mundo artísticocom a bomba: eles iam se casar. O Jornal da Tarde, em sua edição de 7/12/ 1967, em matéria não assinada,sob o título "Um compositor levou Elis Regina", descreveu assim ocasamento civil de Elis e Bôscoli: "O casamento civil de Elis Regina com Ronaldo Bôscoli foi muito simplese durou quatro minutos contados no relógio redondo da parede. O quedurou mais foi a impaciência dos noivos, porque um dos padrinhos - ocasal Paulo Machado de Carvalho Filho - só chegou às cinco e meia. Ojuiz já havia chegado, e o casamento estava marcado para as quatro emeia. A manequim Vera Barreto Leite, madrinha do noivo, não apareceuporque teve de filmar. Horas antes, foi substituída pela sra. Wan daSá. "Elis e Bôscoli casaram-se entre margaridas. O vestido dela eraestampado, cheio de margaridas. Em cima da mesa onde assinaram o livrode casamento havia um jarrão com margaridas artificiais. "Quando Elis assinou o livro BB4, folha 158, tinha os olhos cheiosd"água. Estava aparentemente calma. Momentos antes, ela tinha tomado umVagostesil. "Eram dezessete horas e dezenove minutos. "Não chovia mais. Dona Glória, a cozinheira, estava radiante. Pelamanhã, ela mandara o caçula da casa, Vicente, desenhar um sol noquintal, para espantar a chuva que caía desde a véspera. A mãe de Elisfoi a única que chorou quando abraçou o genro, que lhe disse no ouvido:"Como é, mamãe, está em prantos? Estamos aí". "Uma taça de champanha brindou o acontecimento. "Elis foi dormir às quatro da manhã. Depois do show no Golden Room, osnoivos "esticaram" na boate Sucata. "- Nunca vi um casal se despedir junto da vida de solteiro - comentava acantora, quando se pintava em casa para a cerimônia. "Ela dormiu mal - "Tive um sono muito pesado" -, acordando às oito. Viuque era muito cedo e cochilou mais um pouco. Uma hora depois, Elis saíapara o cabeleireiro Jambert, que fica em Ipanema. Foi penteada porSilvinho. Somente às quatro da tarde é que chegou em casa. Comeraapenas um sanduíche, chegando a passar mal no salão. Elis estava decalça comprida. "Bôscoli chegou ao meio-dia em sua casa. Já estava pronto para ocasamento, que seria quatro horas e meia depois. Trajava terno escurolistrado, camisa meio rosa, com punhos e colarinhos brancos. Gravata,meia e sapatos pretos. "A casa já estava cheia de jornalistas. Elis chegou apressada - nãocumprimentou ninguém - e foi implicando com Boboca, o cachorro queestava no meio da sala.

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"- Tá vendo? Ela é assim mesmo - comentou Bôscoli. "Vários repórteres ficaram espantados com a entrevista que Bôscoliconcedeu duas horas antes do casamento. Uma das primeiras coisas queinformou foi que se casava com separação de bens. Disse que Elis dera osinal de sessenta e cinco milhões da casa, "e que ele pagaria o resto,em prestações. Classificou-se como "um ex-aventureiro do amor",afirmando que só resolvera se casar com Elis "por causa de todos oselementos que a compõem". "Por várias vezes, Bôscoli fez questão de dizer que Elis era uma"pequena burguesa". Revelou que influía nos penteados e nos vestidosdela. "Bôscoli elogiou a inteligência da noiva. "- Não sou rico, masestou bem. Ela ganha quinze milhões por mês e eu dois e meio. O trivialda casa será mantido por mim. O luxo por ela. Quero ser o RonaldoBôscoli, e não o marido de Elis Regina. "Bôscoli disse, ainda, que se casou por amor, porque teve muitasoportunidades de aplicar o golpe do baú e não quis. "Bôscoli falou de seus planos com Elis. Vão passar três dias emlua-de-mel em Correias e, no domingo, voltarão para o Rio, paraassistir ao jogo Fluminense e Botafogo. Os dois são torcedores doFluminense. Dia 15, ela estará em São Paulo, para inaugurar a boateBlow-up. Dia 20, Elis fará um novo programa na Record, Elis Especial. "Faltam quinze minutos para o casamento. Elis está trancada no quarto,arrumando-se. Três horas antes chegara o" colchão de molas, que custoutrezentos e vinte e seis cruzeiros e cinqüenta centavos, conforme anota 3511, emitida em nome da sra. Elis Regina Bôscoli. Dona Laura,mulher de Abelardo Figueiredo, ajuda Elis, principalmente para acalmá-la. "O tempo vai passando, e Elis prefere não colocar os cílios postiçosporque teme que vá chorar. Seus lábios tremem e ela tem dificuldade emse pintar. Comenta a ausência do irmão Rogério, que não pôde sair doRio Grande do Sul porque está em provas. "- Mas ele virá para o religioso. "E cantarola: "- "Esse velho é meu, esse velho é meu. . ." - parodiando a música deSérgio Ricardo. "Velho" é o apelido de Bôscoli. "Eram quatro e vinte. Dona Laura traz um copo verde com água gelada eElis toma três goles, depois de engolir um comprimido. "Alguns presentes haviam chegado. O primeiro foi de Paulinho Machado -uma baixela de prata. A sogra de Elis mandou uns copos de pedra-sabãode Ouro Preto. De Denner chegaram dois candelabros. "Hebe Camargo mandou um copo de prata, banhado a ouro, com um cartão quedizia para o casal brindar no casamento e nas "bodas de prata". "Havia na "casa branca" de Elis e Bôscoli mais jornalistas do queparentes e amigos do casal. Os noivos estavam bastante impacientes,porque nem o juiz nem alguns padrinhos chegavam. Já passava das quatroe meia. As mães dos noivos conversavam, sentadas num sofá de couro.Dona Ângela, mãe de Bôscoli, queixava-se de que a empregada haviaestragado o vestido da recepção. Elis e Bôscoli posam para osfotógrafos e cinegrafistas. "Faltam cinco para as cinco.

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"Um Ford verde, chapa 43741, chega à ladeira onde mora o casal. Umsenhor de óculos desce, pelo lado direito, com uma capa preta na mão.Pela outra porta sai um homem forte, com uns livros debaixo do braço. "- É o juiz? - grita Elis. "Os amigos já cantavam "tá chegando a hora, tá chegando a hora". O juizsobe os degraus da casa branca do casal, lá na Avenida Niemeyer, einforma aos repórteres: "Ciro de Luna Dias, da 1.a Zona do RegistroCivil". E apresenta o escrivão, Antônio Carlos Faro, que, ao apertar amão de Elis, afirma ser seu fã. " "Bonito local. Gostei." É o primeiro comentário do juiz, olhando paraalgumas peças da casa. Cerca de dois anos antes, o dr. Luna Dias casaraEva Tudor, e também a irmã de Bôscoli. "Elis e Bôscoli estão impacientes. Os padrinhos não estavam todos lá.Paulo Garcez e Wanda Sá, os padrinhos de Bôscoli, já haviam chegado.Faltavam os casais Paulinho Machado de Carvalho e Marcos Lázaro, quechegariam depois. Elis chegou a pedir a Luiz Eça que se preparasse parasubstituir o "dr. Paulinho". "Já iam dois minutos de cerimônia quando o escrivão Faro percebeu quenão tinha vestido a capa preta. Veste-a depressa, nervoso, fazendo umolhar de desculpa ao juiz, que nada disse. "O juiz diz algumas palavras. Faz referência ao casamento da irmã deBôscoli e deseja felicidades ao casal. "- É com grande prazer que realizo este casamento. Sua figura, donaElis, traz juventude e alegria à casa da gente - conclui o juiz, antesde perguntar a Bôscoli se aceitava Elis como esposa. "Quando os padrinhos começaram a assinar, Elis e Bôscoli brincaram: "- Essa assinatura eu conheço. "- Eu dou os vales - respondia Paulinho Machado. "Alguns repórteres perguntaram ao juiz o número do casamento: "- 1241. Não é pra jogar no bicho, né? "- Enfim, nós - disse Bôscoli ao abraçar Paulinho. 73 "Uma taça de champanha é servida. Está terminada a cerimônia. "Faltava um minuto para as dezessete e vinte." Na edição do diaseguinte, o Jornal da Tarde publica a descrição da ceia de casamento.Vale a pena a transcrição pela riqueza de detalhes e a perfeitareconstituição de época do repórter, anônimo nessa cobertura. "Na grande casa branca de três andares da Avenida Niemeyer havia cento evinte convidados para a recepção. Foi uma festa em black-tie, onde só aceia, servida por Mirtes Paranhos, custou oito milhões de cruzeirosantigos. "Se não estivesse chovendo no Rio, a festa seria no solar. Mas o tempoestava ruim, tiveram que transferi-la para o varandão, de onde se vê omar. A luz era- de velas, os candelabros arranjados com motivos deNatal. "As dificuldades de estacionamento de automóveis na Avenida Niemeyerobrigaram alguns convidados a chegar antes das dez da noite paragarantir um lugar para o carro. "Três guardas, em traje de gala, deram serviço no local, para evitarcongestionamentos. Mesmo assim, um táxi velho ficou retido várias horas

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em frente à casa, porque não podia fazer manobras para voltar. "Os convidados foram chegando: Nelson Motta, Sílvio César, RobertoMenescal, Denner e a mulher, Marcos Lázaro, Paulinho Machado deCarvalho. Dori Caymmi chegou por último. Tuca, a cantora, cumprimentouDenner com um abraço que assustou muita gente. Quase que ela derrubou ocostureiro. "Elis estava triste pela ausência de Pelé, Roberto Carlos, ChicoBuarque, Vanderléia e Jair Rodrigues. Principalmente Jair Rodrigues: -Logo ele, que é meu amigo de todas as horas. "À meia-noite em ponto Elis Regina chamou o maítre Souza e mandou servira ceia. Tocou o sino duas ou três vezes, os convidados foram sesentando às mesas. "Veio primeiro o siri recheado, depois a carne assada com molhoferrugem, bolinhos de fruta e batatas-coradas. A sobremesa erapapo-de-anjo, ambrosia, doce de coco. O vinho era nacional, rose. "Dona Mirtes Paranhos, que tem alguns traços de dona lolanda Costa eSilva, comandava pessoalmente o serviço. Quinze garçons e quatrocozinheiras eram seu pessoal para servir as quinze mesas espalhadaspela casa, toda decorada com flores tropicais. "Antes da ceia foram servidos salgadinhos, muitos elogiaram o camarão. Osr. Hugo Delamare, amigo de Elis, quebrou o primeiro copo da noite. Ocomentário veio em coro: - Oba, dá sorte. "Dez minutos depois o caricaturista Ziraldo quebrava o segundo copo. "Elis e sua secretária Zoraide Aun, que é funcionária da Mercedes-Benzem São Bernardo do Campo, perguntavam a todo instante se os convidadosestavam gostando da festa. "- Sua festa foi a mais perfumada que eu vi até agora - foi o comentáriode um jornalista. "Antes de ir embora, dona Mirtes Paranhos ofereceu a Elis um livro dereceitas culinárias que ela mesma escreveu. São receitas de salgados,coquetéis e sobremesas, em trezentas e dezenove páginas. "Algumas dasreceitas: frango ao alho e óleo à Abelardo Jurema; salada à BibiFerreira; galantina de frango à Amaral Neto; miolos à José Tavares deMiranda; sonhos à general Anapio Gomes e até um caldo verde à CarlosLacerda." O casamento no religioso aconteceu no dia seguinte. Foi na CapelaMayrink, na Floresta da Tijuca, uma igrejinha de nove metros, pequenapara abrigar os dez metros de véu do vestido de Elis, assinado pelocostureiro Denner. Roberto Menescal conta que, a certa altura, Mieliroubou o sino do padre, que ficou passando de mão em mão pela igreja;Mieli conta que, na ausência do sacristão, ele tomou o seu lugar,ajudando na cerimônia. No dia seguinte, sai no jornal: "Elis casa-secom um padre católico e um rabino". Insinuaram que Ronaldo era judeu.Nelson Motta lembra que alguém pisou na cauda do vestido de Elis, quegritava: "Solta meu rabo, pó!" "Era uma relação perigosamente deliciosa. Voava tudo pelos ares e, derepente, estávamos nos agarrando de paixão, fazíamos coisas estranhas ebonitas." Ronaldo Bôscoli Capítulo 4

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Encontrei Ronaldo Bôscoli em maio de 1985, numa sala de visitas doapart-hotel Barramares, Rio, Barra da Tijuca, onde ele mora, aoscinqüenta e cinco anos. Estávamos nervosos, os dois. "Porque isso é umlivro, não uma reportagem", me disse. Ronaldo Bôscoli já era Ronaldo Bôscoli quando conheceu Elis Regina. Eleera uma espécie de cabeça da bossa-nova no Rio. Através de suasmatérias na revista Manchete, divulgou o grupo como um movimento. Alémde intelectual da bossa-nova, Ronaldo era charmoso, bonito, fama deconquistador, biriteiro, poeta, um homem da noite. Elis me falava muitomal de Ronaldo Bôscoli e sempre se comportou assim até mesmo na frentedo filho, João Marcelo. Ele sabia que eu era amiga de Elis edesconfiava disso. Muito antes do nosso encontro, aliás, Bôscolinoticiou este livro em sua coluna na Ultima Hora com uma advertência:"No que me diz respeito, recomendo prudência, muita prudência". Mas eunão estava armada de nenhum preconceito. Pelo contrário, estavainteressada na versão da história contada por Ronaldo Bôscoli, porqueum ódio tão feroz devia ter raízes mais profundas. Para se entender ElisRegina é preciso conhecer e entender Ronaldo Bôscoli. Pode ser que Elistenha visto nele muitas possibilidades para sua caminhada profissional.Mas não era tudo: ela deve ter se apaixonado pela sua inteligência,pelo seu charme, pela sua petulância, por sua conversa e pelo desejo deser protegida por um homem mais velho. Bôscoli tinha trinta e oito anosquando se casou com Elis. Ela, vinte e dois. A certa altura de nossa conversa, resolvemos ir para um bar. E por láficamos durante horas, quando percebi a louca aventura, a paixãofulminante e irreconciliável a que se entregaram Elis e Ronaldo. Naíntegra, o depoimento de Ronaldo Bôscoli a partir do momento em que osdois se reencontraram em 1967, para um trabalho na TV Record, no novo OFino. "A Elis neste dia estava me sacaneando o tempo todo, e eu fazendo o tipodo cara que foi procurar emprego. Fui meio de porre, barba por fazer, enão sabia que nesse dia comecei a me apaixonar por Elis, por essaatitude meio infantil dela, essa insegurança dela, essa desproteção.Tão bobinha, tão infantil, tão carente. Nesse dia, rompida a barreira,fui levar Elis pra casa e já comecei a reparar nas perninhas dela,naquele jeito de andar mal vestida. Eu já tinha sido gaso com quase umano, e meu caso com a era meio de morar não morar zzz80 junto. Na verdade, eu era mesmo um solteirão. Tinha muita prática demulher, mas achava que casando virava parente. Quando a Elis me pediupra levá-la em casa eu já estava com umas idéias de jerico na cabeça. Epensava: "Pó, que coisa maluca, vou comer a patroa, esse papo éescroto, to precisando de trabalho". E pensava mais: "Essa mulher éfogo". "Elis, na verdade, era uma grande ciclotímica, tinha uma arritmia decomportamento sem explicações maiores - num momento estava puta, nooutro rindo, no outro chorando. Parei o carro na porta da casa dela nobairro do Peixoto - ela morava com uma secretária que nem sei o nome,porque nunca entrei nesse apartamento -, e perguntei se ela não queriair comigo à noite ver um show. Ela pediu pra que eu telefonasse. Eudisse que não tinha telefone e que passaria mais tarde para pegá-la.

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Quando entramos no Rui Bar Bossa a reação foi a mesma que se tivessementrado ali, abraçados, o Maluf e o Tancredo. Ninguém entendeu nada. Eujá tinha tomado alguns copos, estava numa atitude mais amistosa comela. Me vesti, me produzi. Entramos, aquele espanto, todo mundo olhando,e Elis ali. Quando viu ex-namoradas minhas lá, comentou: "Puxa, comovocê tem namorada!" Pedi pra ela um coquetel de frutas que tinha detudo, até bebida. Elis foi ficando meio solta, chorou no meio do show,claro. Depois convidei Elis para ir a outro lugar, mas falei que nãotinha dinheiro. Ela disse: eu tenho. Eu disse: pra mim você não paga.Fomos ao El Cordobés, uma boatezinha onde eu tinha crédito. Quando ogarçom, que é irmão do Alberico Campana (ex-dono do Bottle"s e atualdono da Churrascaria Plataforma no Rio) nos viu, deixou literalmentecair a bandeja no chão. Fomos para uma mesa atrás da coluna. E eu já meassanhando. Aí ela admitiu que tinha um grande respeito por mim, e queera melhor eu trabalhar com ela em São Paulo. Conversamos várias vezesaté cinco horas da manhã, no meu apartamento no Rio ou no apartamentodela em São Paulo. E eu mantendo uma atitude à distância, afetivo, masnão transávamos. E ela não entendendo nada. Eu não sei, achava naquelaaltura que Elis tinha sido muito maltratada pela vida, e eu fuiexplicando as coisas: Elis não sabia comer, não sabia se vestir, nãosabia nada. E eu, que tinha nascido em berço esplêndido - depois minhafamília perdeu tudo, ficou na miséria -, tinha aprendido a falarfrancês antes do português, tive uma boa formação. Minha irmã sempre transou moda, e eu só não fui veado porque não tivetempo. "Mas Elis tinha esses problemas todos, principalmente de origem afetiva,e essa insegurança também foi me apaixonando. Eu tinha muita coisa pracompletar naquele espaço dela. Eu, que vinha de uma experiência deinfância amargurada. Fui muito rico e depois perdi tudo, sofri demaiscom minha mãe tomando porres incríveis. Eu vim de cima e caí. Fui fazershows, jornalismo. Eu tinha um perfil ideal para Elis, porque eu sabiade todas as deficiências dela, e ela sabia das minhas. Então essasimbiose faz amor. Não explica, mas pelo menos justifica. E eu sabedorde que Elis tinha sido explorada desde o berço pelo pai, pela mãe, pelafamília. Era uma espécie de galinha dos ovos de ouro. Todos eles,naturalmente, viram em mim uma ameaça enorme para ser mais um aexplorar Elis. "Namoramos no Rio, fomos para São Paulo, e eu demorei quase uns vintedias pra transar com ela, uma coisa de estratégia mesmo. Ela morava naAvenida Rio Branco e um dia não agüentou, me deu uma prensa: "Táachando que eu sou uma bosta?" Aí ficamos uns cinco dias trepando dia enoite. "Eu tinha visto a Mia Farrow com aquele cabelo curto e não sei se estavame achando meio Frank Sinatra quando sugeri à Elis que cortasse oscabelos. Nunca ninguém tinha usado esse cabelo curto por aqui, só a MiaFarrow, e há anos atrás a Ingrid Bergman, fazendo o papel de Maria emPor quem os sinos dobram. Na época também era moda aquelas roupasespaciais. E a Elis, pra espanto de todos, apareceu toda produzida pormim. Eu disse a ela: Tire o laquê do cabelo, isso não se usa; tire asobrancelha". Levamos Elis ao Denner - eu, o Abelardo e a Laura

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Figueiredo. Quando Elis apareceu para receber o Roquete Pinto daqueleano (67) foi um espanto: cabelinho curto, vestido mini, meia espacialprateada. Uma gracinha. "Elis tocava a vida de ouvido. A gente dizia uma coisa pra ela, ela davaa volta e, pouco depois, já começava a ensinar o que tinha aprendido. Eacho que as pessoas que não têm uma estrutura básica têm ódio dastestemunhas, e eu era uma testemunha de Elis. Isso criou ressentimento,ódio, como se ela dissesse: "Esse cara me viu na merda". As testemunhassão perigosas. "Mas ela não tinha o menor pudor comigo. Era como se fosse uma filhaminha, com direito a trepar com o pai. Quer dizer, uma colher de chá.Aprendeu a comer e depois passou a dar aulas de etiqueta. É com fórcepsque se come scargot! Ela aprendeu a falar francês melhor do que eu comuma semana em Paris. Tinha um ouvido brutal, pra vida e pra música.Muita gente se esquece que Elis nunca tocou uma nota de piano. Ela e eunão queríamos nos casar - por motivos óbvios - na Igreja. Mas depoismuitas pessoas me deram um toque: "Você é um cara muito mais velho,marcado como um cara escroto, que come as mulheres e vai embora", e eujá tinha superado meu problema com a Igreja e com o fato de terestudado em colégio de padres. E nos casamos na Igreja, a pedido daLaura Figueiredo e outras pessoas, que achavam, pelo bom senso, queElis deveria ter um marido. "Elis, seduzida pela Laura, pelo Denner, pela Maria Stela Splendore,começou a ficar meio inebriada. Cinderela. Foi aí que comecei a perdero controle sobre Elis e nossas pequenas briguinhas foram aumentando.Perdi o controle, ela já estava muito auto-suficiente, e eu, testemunhadaquilo tudo. Mas, mesmo assim, nos casamos. "Sou um garoto de Ipanema, mas sempre gostei de morar meio longe, equando viemos procurar casa no Rio fomos ver a da Niemeyer, 550, casa7. Era uma casa de construção marroquina, maravilhosa. Em frente aomar. Eu disse pra Elis: "Você quer saber de uma coisa? Se você compraressa casa eu me caso com você". Ela disse: "Jura?" Jurei. Nessabrincadeira, Elis acabou comprando a casa por cento e setenta milhõesde cruzeiros, era uma loucura de barata pra época. Ela pagou metade àvista e o resto em doze meses. Aí nos casamos mais rapidamente, e elanão sabia que eu ia exigir do juiz um casamento com regime de separaçãode bens e pacto nupcial. Quer dizer, tudo o que era dela era dela,antes, durante e depois do casamento. "Nos casamos, e Elis já sob a perigosa tutela e meio envolvida com essesgrã-finos. Eu não queria o Denner para padrinho de nosso casamento,pelo simples fato de só conhecê-lo de obas e olás. Também me neguei asair na capa da Manchete. E a cada atitude dessa que eu tomava fui meenraizando na coisa mais difícil do mundo, que era penetrar naintimidade da Elis, no seu escancaro. Todos diziam que eu era umtremendo pilantra. Mas a gente brigava toda hora, era feito criança.Aquela coisa que ela botou na cabeça no casamento, meu Deus, aquelaguirlanda ridícula, parecia uma índia com aquela trança. Ela chorava edizia: "Mas eu tenho direito a um casamento assim!" Pra ela foi umsonho de Cinderela. Mas, sei lá, eu ficava meio agressivo às vezes,porque já estava pressentindo que muita gente queria ser testemunha

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daquilo, participar ativamente, sair na foto. "Nossas brigas eram públicas porque nós éramos públicos. Nunca tevebriga física em público. Ela me levava à exaustão, era como se meenfiasse uma broca na cabeça até o ponto em que eu teria que dizer:"Vou te dar um tiro". Era uma relação perigosamente deliciosa. Voavatudo pelos ares e, de repente, estávamos nos agarrando de paixão.Fazíamos coisas estranhas e bonitas. "Elis não gostava que eu bebesse - ela não bebia rigorosamente nada - ecensurava minha bebida das seis horas, quando eu chegava em casa, eainda por cima usava minha mãe pra me esculhambar. O apelido de minhamãe era Bill, e ela dizia: "Vai ficar igual a BilP. Eu retrucava: "Senão posso beber na minha casa, se você quiser bebo escondido". Elis mecensurava até nisso. "Mas levávamos uma vida muito boa, uma delícia e muito apaixonadamenteagressiva. É inacreditável. A frustração dela era eu, e ela, a minha.Tudo que nos faltava tínhamos no outro. Era uma simbiose perfeita. Eutinha educação, base, informação, instrução. Foi a mulher que eu maisgostei totalmente. O máximo que eu pude gostar - meu reservatório é umbidê, comparado com a piscina de muita gente, esse bidê cheio sou eu,gosto muito mais de mim, gosto mais das coisas que não conheço. Atéhoje eu tinha que estar fazendo análise, mas fiz um ano e meio e caífora. Não há ninguém mais egoísta do que o neurótico. Então, o máximoque eu podia gostar intensamente, eu gostei de Elis. Mas depois elacomeçou a ser seduzida pelas pessoas de fora. As nossas grandesconfusões na vida foram resolvidas na porrada, na porrada físicararíssimas vezes, mas era resolvido, gritado, falado. A imprensa deumuito azar conosco. Quando nos separava, já estávamos juntos. Quandonos juntava, brigávamos. E a gente ria pra caralho. Quando íamos daruma entrevista séria, combinávamos uma coisa antes. Chegava na hora eladizia outra. Eu ficava com raiva e dizia outra. E assim ia, nessa coisainfantil, ilógica, irracional. Era um grande id. E esse deboche era umaatração. "Um dia a Cidinha Campos foi em casa e a Elis não queria recebê-la dejeito nenhum, e aí eu topei a parada, encarei. Cidinha ficou uma fera,tinha vindo de São Paulo, e, de repente, quando eu já tinha dito a elaque não teria a entrevista, Elis desce gritando: "Cidinha, Cidinha". Eaí a Cidinha ficou, tomou conta da casa e, de noite, a Elis sugeriu:"Por que você não dorme aqui? O papo tá tão bom!" "Elis era um id. Eu era outro, mas muito mais velho. Eu, um id idoso.Ela, um id menina. Essa bronca, esse ressentimento que ela tinha de euser testemunha dos fatos todos acabou com nosso casamento. Ao mesmotempo em que ficava orgulhosa de mim, tinha ódio de mim. "Ficamos um ano morando em meu apartamento, depois um ano na casa daNiemeyer, e mais um ano no Hotel Danúbio, em São Paulo. "Essa doce pessoa que deve estar nos ouvindo agora era mesmo uma pessoaassim. Eu não conheci ninguém mais inteligente que Elis. Ainteligência, a meu ver, tem vários escaninhos. Mas o imediatismo, acapacidade de adaptação e acuidade, a sensibilidade de Elis eram coisasque encantavam qualquer pessoa. As pessoas ficavam deslumbradas com ela,porque, de repente, cometia uns erros de português babacas, mas num

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texto que eu tenho a impressão que Fernando Pessoa assinaria.Maravilhosa. "Nós reservávamos o sexo para nossos momentos agudos. Ou de grande brigaou de grande amor. Era uma coisa meio ciclotímica com a qualconvivíamos muito bem. Eu era um cara razoavelmente ciumento, masconfiava muito no meu taco. Eu tinha toda uma chave da Elis - supunhaque tivesse, pelo menos. Quando me casei, aos trinta e oito anos, tendocomido o Brasil naquela época, o que estava a meu alcance, eu tinha umpassado enorme, e quando fui me casar, pensei: "Não vou me desfazer domeu passado". Juntei tudo num baú, trancafiei com sete chaves eguardei. Ela mandou arrombar, disse que tinha fotos comprometedoras, masera mentira. Ela queimou tudo. Meus boletins de colégio, minhas fotosde infância, minha história. Fiquei tão deprimido que chorei quandosoube disso, na madrugada. Eu fiquei mal. Ela ficou com medo que eufosse bater nela, ela tinha pavor de mim, às vezes. Ela disse depois:"Desculpe, não tinha o direito de apagar o seu passado". Ela ficou maltambém, mas aí ia se empolgando na discussão e acabava dizendo que euera o culpado de tudo. "Eu fiz parte da vida de Elis neste aspecto pessoal, emocional e atémusical. Se eu pude colaborar com alguma coisa é que a Elis, depois quese casou comigo, resolveu seu problema de dicção. Ela era um músico efazia malabarismos vocais que prejudicavam as letras. E eu era umletrista. Estranhamente, ela reconheceu. Quando ela se separou de mimcomeçou a cantar com um tom de deboche, pronunciando acentuadamente aspalavras. Exagerou na silabação pra me gozar. Me gozou com Últimaforma, música do Baden Powell que ela mandou fazer pra mim. Aquela Medeixa em paz também mandou dizer que era pra mim. E, quando cantavaQuaquaraquaquá, eu achava que era pra mim. "Nos separamos umas três vezes, sérias, e ela sempre mandou me buscar.Na última vez foi me buscar numa casa de saúde. Eu estava muitoestressado, com uma carga muito grande de emoção, e bebendo muito. Elisestava viajando, e eu despedaçado, achando que as viagens iam nosseparar. Na estréia do Olympia ela ligou pra mim umas dez vezes próHotel Danúbio: "Vou entrar, to entrando, pense em mim". Ela me davasatisfação de tudo. Mas a Alik Kostakis publicou que a Elis estava emParis com o Pierre Barouh, e eu também resolvi decretar guerra. Ela adorava uma guerrinha. A partir daí a coisa começou a ficar meioescrota. "Eu nunca quis ser empresário de Elis, um marido do métier, pense bem!Eu poderia viajar com ela, ganhar dinheiro mais que os outros. Masperaí, eu não ia segurar seu nécessaire de jeito nenhum. Imagine ela meapresentando: "Esse é o meu marido". O cara logo ia pensar: "Que caraescroto, comendo essa gatinha". Eu também não quis ser seu produtorexclusivo, produzia o Simonal, que estava no auge, e essa minhaindependência fascinava a Elis. Eu não viajava com ela porque ia pararminha carreira, e, depois, ela ia jogar uma porrada de coisas na minhacara e ia ser aquela briga gigantesca. Também nunca produzi um disco deElis, e ela gravou uma única música minha no Brasil, Carta ao mar,minha e do Menescal. Quando foi para a Europa e gravou em dois dias umdisco na Inglaterra é que cantou O barquinho e outras. Mas na minha

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gestão ela não gravou mais nada. Por que ela iria gravar, se detestavabossa-nova? Essa minha liberdade incomodava a Elis, ela queria que eudependesse dela. "Eu estou falando muita coisa porque você me pegou no contrapé. De noiteseria melhor. Então, eu tinha todas as ferramentas para explorar aElis. Daí minha putidão com o Jornal do Brasil, que teve o peito depublicar que eu recebia pensão da Elis depois de me separar dela. Euentrei no casamento com cinco malas e saí com três. Uma ela queimou e aoutra, cheia de discos do Frank Sinatra, ela jogou pela janela. Feitodisco voador. Foi depois de uma briga, e ela foi para a sacada, onde,com uma certa habilidade para arremessar, você acertava o mar. Foi umachuva de Sinatra pela Niemeyer. Ela tinha um ciúme doentio do Sinatra,porque eu me identificava com ele. Vai ver que eu achava mesmo que erao Sinatra. Quando ela resolveu ter um filho, eu achava que era umaloucura. Com tudo aquilo, como seria um filho? Ela disse pra muitagente depois que foi obrigada a trabalhar durante os nove meses degravidez. Para pagar o quê, pó? Em outra versão, para a Fatos e Fotos,Elis disse que gravidez não era doença. Ora, você acha que esperando meuprimeiro filho eu ia obrigar a Elis a trabalhar? Eu não ganhava umtostão com aquele espetáculo (Canecão, Rio, 1970). "Eu era um super-homem para Elis. Ela conhecia meu lado forte e meu ladofrágil, e manipulava a minha alquimia. Eu só conheço duas pessoas quemudam rigorosamente quando entram no palco: Elis Regina e RobertoCarlos. Aí nasceu João Marcelo. Ela resolveu chamar os pais, numadessas crises que tinha pra dizer na cama: "Você acha justo eu aquinesta casa lindona, de frente para o mar, e nós aqui nesta cama,enquanto meus pais. . ." Eu disse: "Você quer trazer eles pra cá? Achoque vai ser um rabo". Mas morar em casa não, eu não queria de jeitonenhum. Ela tinha um apartamento na Joatinga. Chamamos os pais, e elesforam morar lá. Elis mandava cheques e cheques pra lá. Não sei o que oRomeu fazia com os cheques, a mãe mandou uma carta desesperada. E aícomeçou a pintar todo mundo lá em casa. Era uma fofoca. Eu não queriade jeito nenhum a família lá em casa. Aí fomos nos separando. "Na última grande briga, ela foi com João Marcelo me pegar na ClínicaSão Vicente. Estávamos hospedados lá (internados) o Vinícius de Morais,o Baden Powell, o Grande Otelo. Era fantástico. Tomávamos porreshoméricos. Era uma esculhambação. De noite, fugíamos de carro, e omédico via que o fígado estava cada vez mais inchado. Ela foi me buscarcom o João Marcelo. Eu estava caidaço, estressado, bebendo demais.Precisava de uma limpeza física. Estava morrendo, inclusive. Ela pagou aconta do hospital, e quando perguntei, me disse: "Já paguei, você sabequem eu sou". E aí já começou a briga de novo, eu dizendo que ela jáestava me jogando na cara, uma loucura. Foi a última vez que estivemosjuntos. Depois, ela quis se separar, e aí eu percebi que gostava dela.Não queria me separar de jeito nenhum. E ela estava namorando o Nelson-Motta, uma cria minha. Nesse dia conheci Heloísa, com quem me casariadepois, e resolvi dar o último tiro. Eu sempre dei o último tiro legal.Estava morrendo de paixão por ela. Eu disse pra Elis: "Posso mandarminha mulher pegar as coisas?" Ela: "Sua mulher, seu filho da puta?" Eaí quis voltar pra não sair perdendo. Coisa de criança. Ela disse: "Eu

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quero ver ela vir aqui". Foi nesse dia que jogou os discos pela janela.Eu usei essa mulher (a Heloísa) como sparring mesmo, ela estava há umasemana comigo e topou casar. "Na época da doença do João Marcelo a Elis não tinha leite porque mandousecar o peito. Ela tinha feito uma operação plástica sem me consultar -essa foi uma de nossas brigas, também. Consta nas entrevistas de Elisque eu era tão irresponsável que no dia em que João Marcelo nasceu euestava vendo futebol com os meus amigos. Está lá nos anais - JoãoMarcelo nasceu às sete e quarenta e cinco, ou oito da manhã, ou dezpras oito, no dia em que o Brasil ganhou do Uruguai por 3 a 1 em 1970,e eu sou vidrado em futebol. O jogo foi à tarde. Eu ouvi o João Marcelonascer, a Elis voltar pró quarto, e de tarde fui ver o jogo. "Outro episódio importante foi a história do tiro. Falei pra Elis queela estava alimentando uma loucura. Porque ele bebia loucamente emandava buscar mais dinheiro e mais dinheiro. Um dia mandei o empregadodizer pró seu Romeu que não tinha dinheiro até o mês que vem. Eu estavano banheiro da minha casa quando ele apertou o gatilho. Me joguei nochão. Elis ficou rigorosamente doida, e eu saí pra acertar ele dequalquer jeito. A Elis se jogou na minha frente e pediu pra deixar elaresolver a parada. Tirou o revólver da minha mão e foi falar com o pai.Deu um tapa na cara dele e chamou o Rogério pra pegá-lo." (Peço licença neste instante do depoimento de Ronaldo Bôscoli paracontar a versão do episódio contada por dona Ercy e Rogério. Segundoeles, Elis telefonou para o apartamento da Joatinga dizendo que tinhalevado uma surra de Ronaldo. Eles disseram que seu Romeu saiu feitolouco com um revólver, dizendo que ia pegar o Ronaldo. Disseram aindaque Ronaldo Bôscoli se escondeu no banheiro. Os dois personagens destahistória - Elis e seu Romeu - estão mortos.) Nessa altura, Ronaldo Bôscoli perguntou a minha idade e o que mais eugostaria de saber. Eu quis saber sobre as Olimpíadas do Exército de1972, quando Elis Regina cantou o Hino Nacional comandando um grupo deartistas e me disse depois que tinha sido ameaçada pelos órgãos desegurança. Ronaldo conta: "Quando ela viajou com Menescal, em 69, o Menescal está vivo e podeconfirmar, aliás todo mundo está vivo. Então ela foi viajar, supondoingenuamente que estando na Holanda podia esculhambar o Brasil. Eladisse que o governo era formado por gorilas. Gorilas, saiu issopublicado em holandês.- O Menescal me disse depois que quase tinhaquebrado a canela dela por debaixo da mesa. No dia seguinte, aembaixada pegou o jornal e mandou para o Serviço Nacional deInformações, SNI. O Armando Nogueira ligou pra mim e disse que queriamprender a Elis. Ele e o general disseram na minha frente: "Elis foisalva rigorosamente pela ausência de comprometimentos no Brasil". Elesficaram putos da Elis ter chamado todo mundo de gorila. Ela desmentiu,se retratou. "A Elis não segurava, não. Ela partia pra cima de você de garfo e faca edepois se desmanchava. Ela quis fazer valer os direitos dela e quis memassacrar, e realmente me massacrou. Fui espoliado dos meus direitostodos. O processo da guarda de João Marcelo foi levado para São Paulo,para que eu não tivesse acesso e pudesse me defender. Perdi

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rigorosamente tudo. Fui obrigado a dar três salários mínimos, quedepositei um tempo e depois parei, já que não podia mais ver o JoãoMarcelo. "Comigo é simples: eu divido tudo, minhas roupas, meus amigos. Mas o meupalco, esse eu não divido." Elis Regina Capítulo 5 Nossas peças começam a se encaixar nesta nova personagem que botou véu egrinalda e amarrou um dos mais cobiçados galãs da época. Talvez Elistenha se desencantado com a própria briga que se instalou dentro delana convivência com Ronaldo. Ele me contou certa vez que acabou com aingenuidade dela. Mas que ingenuidade, é questão de perguntar, se ElisRegina àquela altura do campeonato já parecia saber muito bem ondeestava se metendo? Não posso acreditar que ela não fez o que quis aolongo da vida. E, mesmo que tenha sido induzida a certas atitudes, seuinstinto consentia. Elis não era mais do que um fogo ardendo dentro efora do palco. Ao vê-la cantando, não nos queimávamos. Ao chegar perto,era preciso amá-la e compreendê-la. Seu furacão incomodava e instigavaas pessoas. Seu pinguepongue de ódio e paixão enlouquecia quem buscavanela alguma coerência. A família Figueiredo - Abelardo e Laura, as filhas Mônica e Patrícia -acompanhou Elis desde essa época. Abelardo Figueiredo., dono do Beco ediretor do programa S pó i Light, da Tupi, foi o primeiro a conhecerElis. Pouco tempo depois, ela já fazia parte da família. Laura conta: - Eu não gostava muito da Elis, mas quando ela começou a namorar oRonaldo, que era meu amigo, as coisas mudaram. E ela muito tímida deestar namorando o Ronaldo, o grande gatão da época, um garanhão do Riode Janeiro. Ele vinha pra minha casa e ela vinha junto. Mas era incrívela relação. Os dois se odiavam, um falava mal do outro. Era um negóciomeio Virgínia Woolf, só que mais engraçado. Era demais a violência dosdois. "Foi aí que ela começou a sair comigo, ficar minha amiga. Era muitomenina e estava muito sozinha. E já com aquela carga de maior cantorado Brasil. E acabei mais amiga dela que do Ronaldo. Ela foi se mudandopra minha casa, fazíamos tudo juntas. Os dois me convidaram para sermadrinha de casamento. Nessa época eu achava que a Elis era difícil dese relacionar com as pessoas, mas não comigo. Virei uma espécie deadvogada de defesa dela. Eu ia prós jornais, chamava os jornalistas praexplicar o temperamento dela, porque eu não queria que vissem a Eliscomo ela se mostrava. Queria que conhecessem Elis como ela era. Mas eratudo em vão, e Elis estragava tudo na hora das entrevistas. Nocasamento dela, acho que fiz a maior besteira da minha vida. Eu aconvenci de que deveria ter um casamento maravilhoso e chamar o Denner,que era uma pessoa deslumbrante, tinha a mesma cabeça que eu naquelaépoca. Transformamos a Elis numa dondoca, e depois ela ficou puta com agente. Eu também acho hoje em dia que ela não podia ter sido induzida afazer um casamento com tanta pompa, aquilo não tinha nada a ver comela. Tinha a ver comigo. Nesse período, fomos a família de Elis - elatinha um génio terrível e um problema de educação, uma educaçãodiferente: era muito selvagem, não tinha freio."

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Nessa época, Elis escreveu uma carta a Laura Figueiredo: "Laura (anjo da guarda meu e de "muitos eu") Você sabe que é responsávelpela metade de bom que sou! Por isso eu te prometo, hoje, ser mais,muito mais do que eu sou ou pretendo. Muito obrigada, amo você. Adorotudo o que você é. E qualquer dia pretendo olhá-la como um espelho.Você sabe de tudo. Dá tudo. Por isso, deverá receber sempre e sempretudo. E quem disser o contrário será um grande filho da puta. te beijo.Tua Elis." Roberto Menescal é diretor da gravadora Polygram. É um dos mais suaveshomens do disco que conheço. Há dois tipos no ramo: os que vêm debaixo, geralmente do departamento de vendas, e sobem por seu marketingtupiniquim, e os que, intelectualizam, criam estratégias entre ocomércio e a arte. Roberto Menescal sabe caminhar nos dois mundos,embora mantenha a superioridade de ser também artista. - Quando Elis começou o namoro com Ronaldo, ele morava num apartamentode cobertura em Ipanema, perto de casa, e a gente sempre se encontrava.Da relação pessoal nasceu o lado profissional. Ela me convidou parafazer um grupo - eu não estava mais querendo montar um grupo, mas elareuniu um pessoal muito bom - e fizemos o show da boate Zum-Zum, doRicardo Amaral. Veio depois a oportunidade de viajar para o MIDEM. E aapresentação foi tão boa que um empresário nos chamou para excursionar,de lá mesmo. Topamos, arrumamos tudo e saímos por todos aqueles países,uma loucura, cada dia num país. "A Elis estava ótima durante toda a temporada. Teve dias que fazíamosdois shows - um em cada país. Fizemos programas de rádio, televisão, umdisco e um vídeo com o gaitista belga Toots Thielemans, inclusiveganhamos o prémio Euro visão com este vídeo, gravado na Suécia. Ela jáestava casada com o Ronaldo, mas ele não foi. Tinha medo de avião.Voltamos ao Brasil e viajamos em seguida para a Inglaterra, para gravaro LP "Elis in London", com o maestro Peter Knight. O interessante é queo método deles lá é totalmente diferente do do Brasil. Enquanto Elisgravava um disco no Brasil em um mês, lá gravou em um dia. Antes deviajarmos, nós fizemos aqui um ensaio de base e mandamos pra eles umafita gravada. Aí o maestro escreveu tudo em cima. Quando chegamos lá,tinha quarenta e seis músicos no estúdio, e a base da gente era decinco músicos. Matamos tudo numa manhã e numa tarde. Inclusive a Eliscantava junto, porque lá não se podia fazer play- back. o sindicato nãopermitia. Ela matou a pau, os caras ficaram impressionadíssimos. "Depois fizemos uma apresentação na tevê e voltamos para o Brasil, parauma longa temporada do show Elis, como e porquê - no Teatro da Praia eno Maria Delia Costa em São Paulo. Com o grupo, fizemos três discos, edepois disso parei de tocar com ela. Fui chamado pela Polygram, etambém não estava mesmo a fim de continuar. O negócio dela com o Ronaldoestava degringolando, a gente ficava muito perto, vendo aquelas brigastodas, e o astral não estava bom. Depois nos encontramos, eu como homemde sua gravadora e ela como artista. Produzi aquele disco dela que temÁguas de março e Atrás da porta. Inclusive aconteceu uma históriaengraçada. O Francis Hime mandou uma série de músicas para Elisescolher. Ouvimos a fita, mas nenhuma tinha batido. E no final da fita

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ele falava pra Elis escolher qualquer uma e logo depois começava umamúsica que ele cantava aos pedaços. É claro que a gente adorou essa.Quando ligamos, ele nos disse que aquela música tinha mais de um ano,mas o Chico Buarque ainda não terminara a letra. Gravamos assim mesmo e,quando parava a letra, a Elis só cantarolava. Levei a gravação próChico e ele ficou louco: terminou a letra ali mesmo, na hora: Atrás daporta. Também com Águas de março aconteceu outra história. Fui na casade Tom Jobim e ele estava escrevendo um livro, não uma letra de música,e me disse que não estava pronta. Parecia um telex daqueles bemgrandes. Para ele aquilo era só a introdução. Gravamos como estava. Foium disco muito bonito, a primeira vez que Elis gravou Fagner e SueliCosta. Acho que consegui trazer pra Elis uma turma que ela não ouvirianormalmente. Fiz uma pesquisa de repertório como nunca tinha feito.Quando fomos ouvir, ficamos só os dois, em silêncio. E ela olhou pramim com os olhos cheios de lágrimas e disse, sem plateia: "Eu sou fodapra escolher repertório". Quer dizer, a partir daquele dia tirei meunome dos discos e aprendi a lidar com um verdadeiro artista. Não erauma questão de mau-caratismo, não. Estávamos sozinhos, e percebi quenaquele momento ela acreditava mesmo que tinha escolhido aquelerepertório sozinha. Depois disso brigamos na Polygram. Acho que foi porcausa de alguma besteira, alguma coisa que ela falou comigo pelotelefone. E já tínhamos discutido muito sobre a gravadora, e ela estavadizendo coisas muito fortes sobre o lugar onde eu trabalhava, e elatambém. "Acho que o casamento foi uma grande modificação na vida dela, até mesmona carreira. Porque o Ronaldo entrou mesmo na vida dela. No primeirodia ele foi logo no guarda-roupa, achando que ela era cafona. E elefalava na frente de todo mundo. Eu mesmo várias vezes fui embora,porque não é nada agradável ficar presenciando briga de casal. . . "Quando estávamos no Olympia, tinha chegado uma carta do Ronaldo quandoencontrei Elis chorando no camarim. Ela me mostrou a carta e disse:"Olha aqui esse filho da puta". Eu li e não achei nada de mais. Disse aela: "Elis, não tem nada, não estou entendendo desse jeito, não". Elavira e diz: "É mesmo . . ." Leu de novo e entrou no show na maioralegria: "Ronaldo, Ronaldo, eu quero voltar pró Brasil". E era a mesmacarta. . . "Lembra aqueles cachorrinhos de louça que se usava antigamente? Um erapreto e o outro branco. Você nunca conseguia fazer com que os dois seacertassem. Eles viravam de um lado para o outro. Elis e Ronaldo eramassim. Um dia não agüentei. Eles tinham um cachorro boxer chamado Clay.E o Ronaldo dizia: "Elis, faz o Clay cantar". Elis tinha um jeito lá deassoviar que o cachorro começava a latir uh, uh, como se estivessecantando. E ela falava: "Não vou fazer nada, não enche o saco". E ele:"Pó, mas tudo o que eu peço você não faz". E ficaram assim até que eledisse: "Tudo bem, pode deixar". Aí ela pegou e começou a fazer ocachorro cantar. A briga recomeçou. Quer dizer, papo de maluco. Era otempo todo e, de preferência, na frente de todo mundo. Ele falava praElis: "Você está uma gracinha, parece um bolo". Elis era uma mulherbonita, embora a linguagem não fosse de uma mulher bonita." Luís Carlos Mieli, o maior amigo de Ronaldo, tenta explicar:

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"Comecei a fazer o papel de leão-de-chácara de reportagens para o casal.Um dia o pessoal da Claudia me ligou dizendo que queria uma entrevista,mas não queriam ir sozinhos porque sabiam que o pau podia comer. E aíeu ia e ficava mediando. Guarda-costas de entrevista. E, mesmo assim,quebrava o pau. Nesse dia, quando os jornalistas chegaram, Elis estavabem. Fez pessoalmente o almoço, mostrou o lugar de cada um na mesa. Aío Ronaldo disse: "Quer me passar o sal?" Elis: "Por quê? A comida tásem sal?" E foi aquele você quer me encher o saco e puta que pariu. Osdois jornalistas não levantavam os olhos do prato. E a coisa começandoa engrossar, de repente o Ronaldo fala: "Você viu aquele filme que estápassando no cinema tal?" E a Elis diz: "Qual é, vamos lá, vamos almoçare depois vamos lá. Toma o sal". Depois levantam da mesa e vão fazer asfotos, no quarto, na cama do casal. Tipo veja-como-somos-felizes. Não hárazões filosóficas que expliquem. . ." Sempre que se fala de André Midani entre especialistas em André Midanicostuma-se dizer: ele é fogo. E, realmente, esse libanês de nascimento,uma mistura genética de judeu com árabe, criado na França, é fogo.Pode-se discordar de seus métodos, mas não há quem não se impressionecom a velocidade e habilidade de seu raciocínio. André Midani dirigiu umcast de grandes artistas na Companhia Brasileira de Discos(ex-Polygram), e em especial as produções do selo Philips. Depois,saltou fora para representar uma nova companhia, a WEA, onde continuaaté hoje: - Quando voltei ao Brasil em abril de 68 para dirigir a Philips, ElisRegina estava casada com o meu maior amigo brasileiro na época, oRonaldo Bôscoli. Nós dois fomos muito íntimos na minha primeira estadano Brasil (57 a 62). Quando voltei, a dupla Elis e Jair tinha seseparado, e vim comandar um elenco de cento e oitenta e cinco artistas.A maioria deles não conseguia gravar porque os estúdios ficavam lotadose não havia vaga. Nessa época, Elis queria deixar a companhia. No meuprimeiro fim de semana no Brasil, fui à casa de Bôscoli, e ali, comomelhor amigo dele, eu disse à Elis: "A única coisa que temos em comum éo seu marido, pelo amor de Deus, não saia agora". E ela não saiu.Ficamos íntimos, os três. E eu posso dizer que já ali, em abril de1968, não existia paixão entre os dois. Já existia uma guerra aberta. Euma guerra em que demonstravam terem os dois uma completa insegurançafísica um do outro. Elis não podia falar com rapazes, não podia ficarcom meninas, porque o Ronaldo ficava louco. E ela remexia na carteiradele, procurando provas de infidelidade. A insegurança de Elis só temigual na própria definição que ela fez pra mim um dia: "Comigo ésimples: eu divido tudo, minhas roupas, meus amigos, mas o meu palco,esse eu não divido". Era talvez o único lugar onde ela se sentia donada situação. Elis Regina via um pai em Marcos Lázaro. Ele comandou, à sua maneira, aprimeira estrela que considerava "um Sílvio Caldas de saias", "umRoberto Carlos de saias", uma cantora para multidões, popular. - Comigo ela não discutia, não sei se tinha medo de mim pela diferençade idade. Comigo ela preferia conversar. Fazia um contrato, nuncareclamava, e tudo o que mandava fazer ela fazia. Depois ela foi mudandoum pouco, muito pelas influências que recebeu dos homens que gostou.

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Teve seu Bôscoli, seu César Mariano e alguns outros. Mas Elis sempre foimulher de um homem só. Quando fomos à França, o dono do Olympia ficoulouco por ela, assinei com ele seu primeiro contrato, e o segundotambém. E Elis seria logo depois a primeira estrela, se não tivessefalado numa entrevista que não gostava dos franceses. Bruno Cocquatrixnão gostou e criou problemas. Elis fez depois algumas turnês pelaEuropa - Suíça, Alemanha -, financiadas pela Philips. Foi comigo aoMéxico duas ou três vezes, foi a Portugal com Jair e o Zimbo Trio, edeixou de fazer muitas viagens porque o marido não gostava de andar deavião. Se tivesse feito uma carreira internacional, seria uma das cincomelhores cantoras do mundo. Mas ela preferia ficar no Brasil. Nelson Motta entrou no jornalismo pela música. Era compositor efreqüentava ainda menino as sessões da bossa-nova, muitas delasrealizadas em sua própria casa, já que a mãe e o pai, dr. Nelson Motta,conceituado advogado no Rio, gostavam de música e de reuniões. Nelsinhoé uma figura doce e corajosa. Vive com as antenas ligadas. Ele e Elistiveram uma história. Nelson Motta conta: - Eu era amicíssimo do Ronaldo Bôscoli. Ele era amigo do meu tio, do meupai, e quando o conheci tinha quinze anos. Quando apareceu a bossanova,fiquei encantado, e o Ronaldo levava muita gente lá em casa, a Nara, oMenescal, e o Ronaldo era repórter, comia todas as mulheres, eracarioca e tinha um humor fantástico - tem ainda. Então me agregueitotalmente ao Ronaldo e ia todas as noites ao Beco. Ele me ensinava, eeu ia à casa dele, e sempre foi carinhoso comigo. Eu adorava as letrasque ele fazia, suas letras eram padrão naquele tempo. Até meus dezoitoanos, Ronaldo Bôscoli era absoluto, e meu pai morria de ciúmes. Elefalava muito mal da Elis, debochava dela. Nesse tempo ele morava com aMila Moreira, na Visconde de Pirajá, uma cobertura. Sei que depois devárias peripécias o Ronaldo disse que ia pegar a Elis e transformar aElis. Foi aí que conheci mais ela. íamos sempre ao futebol no domingo,na torcida do Fluminense, eu, o Mieli, o Ronaldo, o Hugo Carvana e,quando o Ronaldo começou a namorar a Elis, naturalmente cheguei maisperto e, naturalmente, ela não gostava dos amigos do Ronaldo, e elesbrigavam à beça, era cada barraco, cada bate-boca. . . E a Elis começoumesmo a mudar, cortou o cabelo curtinho e parece que encontrou suaprópria cara. E parece também que, naquele momento, se operou umamudança. E ela queria partir para um esquema de casar direito, ter umacasa, o que você vê que já era uma temeridade. Sei que fui padrinho decasamento do Ronaldo e meus pais foram padrinhos de Elis. Eu era casadona época com a Helena Gastai, e, quando visitávamos o casal, nuncarealmente houve um bate- boca na nossa frente. Nessa época ela cantou Ocantador no Festival da Record e aí foi a nossa maior ligação. Era omaior trunfo pra mim e pró Dori Caymmi a Elis defender nossa música.Ela ganhou como melhor intérprete e, como tinha muita política, a músicaficou sem prémio. "Nesse tempo eu era produtor da Philips com o André Midani e fuiconvidado para produzir um disco da Elis. Foi em 1970, quando nasceuJoão Marcelo, e minha filha Joana, filha de Mônica Silveira, com quemme casei pouco antes. Elis e Ronaldo foram meus padrinhos de casamento.Elis cantou na reitoria com um quarteto de cordas regido pelo Luisinho

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Eça. Produzi dois LPS de Elis e um compacto ("Elis em Pleno Verão", 70;"Ela", 71; e o compacto de Madalena) e nunca tive o menor problemaartístico com ela, nunca. Acho que ela era agressiva com quem pedia queela fosse assim. E a época da produção dos discos era difícil, censura,terror total, alvo de repressão, tudo muito perigoso, um clima dedesconfiança. Nós dividíamos igualmente nesta parte de produção todosos erros e acertos, e Elis era de uma grande docilidade comigo. Pediuma música pró Caetano, que estava em Londres, e ele mandou Não tenhamedo, mas gravamos errado, não percebemos o espírito e ficou um arranjopesado. Elis na época era antagónica ao Caetano por influência doRonaldo, que era contra o tropicalismo. Podia ser até que ela gostasse.Mas depois que ele foi exilado ela fez questão de gravar. Nesse pontoacho que exerci alguma influência sobre ela na aproximação com osbaianos, com a guitarra, com o rock. Cinema Olímpia é um rocão, porqueaté então a música brasileira se dividia em MPB e MP do B. Os autênticose os dissidentes. "Eu já estava, a essa altura, completamente enlouquecido de paixão porela. Por causa da produção, estávamos sempre juntos. Eu era um produtorfull-time e aconteceu o inevitável, ao mesmo tempo em que o seucasamento com Ronaldo ia mal. Fiquei absolutamente apaixonado por ela.Como o Ronaldo ficou firme nas posições dele, eu acabei me desligando,já não tínhamos mais nada em comum. Eu gostava do Caetano e dosBeatles. Ele não. Foi uma situação. "Daí me desquitei, saindo daquela situação dúbia, mas ela não. E nessetempo todo que a gente namorou nunca houve um bate-boca. Agora, eu erao namorado clandestino, diferente de um casamento. Isso dá umaexcitação e não há tempo para brigas. A gente não pensava em casamento.Era um paraíso absoluto, escondido. Durou quase um ano, sempreviajávamos juntos com o Som Livre Exportação. Era um sonho muito bom.Até que um dia, de repente, Elis me ligou acabando tudo, desmentindotudo e descombinando nossa viagem a Londres, que era o que nos faltavana época para a modernização. Abruptamente veio o telefonema. Fiqueicatatônico. Em estado de choque. Tentei falar com ela de todos osjeitos, mandar recados, bilhetes, o Rogério e a dona Ercy me ajudavam.Fui pra Londres sozinho." "Elis enfiou um papel no meu bolso e disse que era pra eu ler nobanheiro..." César Camargo Mariano Capítulo 6 "A sua bolsa era um fenômeno à parte. Tinha de tudo: de alicate de unhaa estojo escolar com lápis, canetas. Tinha maquiagem, espelhos ecaderninhos e caderninhos, um pra cada coisa." Mônica Figueiredo No começo do sucesso, Elis dizia que não misturava a "pessoa" com a"cantora". Ao descobrir que era impossível não misturar as duas, paroude afirmar isso. E a ex-pacata garotinha de Porto Alegre virouPimentinha no Rio de Janeiro e dona do seu nariz. Ao mesmo tempo em quepregava a independência, mergulhava em sofridos momentos de angústia, emprofunda solidão. Artistas caminham na multidão à procura de seuspares. Há muito pouco para compartilhar da intimidade com as pessoas

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comuns. Há muito para se compartilhar em público. Talvez Elis não imaginasse quem seria o mano Rogério quando crescesse.Na infância, costumava protegê-lo, mas certa vez o protegido quasearrebentou a boca da irmã com um soco. Nesse dia, Rogério queria jogarbola e Elis não podia ir sozinha para a rádio. Ó impasse foi resolvidona porrada: Elis ficou de boca inchada e não cantou. Rogério, decastigo, não pôde jogar. Em 1965, Rogério Carvalho Costa tinha catorze para quinze anos. Queriajogar bola e estudava num colégio de gente rica em Porto Alegre, graçasà Elis, que conseguiu uma bolsa para que Rogério pudesse tocar na bandada escola. Mas, basicamente, Rogério queria jogar bola. Foi arrastadopelos pais daquela vidinha boa de Porto Alegre, da primeira namorada,para cair no circo de horrores que lhe pareceu o Rio de Janeiro. Lápassava dias e dias na frente da televisão e começava a ver asprimeiras brigas entre Elis e seus pais. Rogério voltou a Porto Alegre esó morou de novo no Rio atendendo a um apelo da irmã, na época emseparação com Bôscoli. A bem da verdade, Rogério não sabia fazer nada.Não conseguia estudar direito nessas andanças entre Rio e Porto Alegre.Foi trabalhar na livraria de Jacques e Lídia Libion, franceses amigosde Ronaldo Bôscoli. Elis chamou então Rogério para cuidar do som noshow É Elis, no Teatro da Praia, o mais conturbado de sua carreira.Rogério percebeu que o convite da irmã tinha segundas intenções. Ela,na verdade, queria o irmão por perto porque estava se separando deRonaldo Bôscoli e, aparentemente, tinha medo dele. De qualquer maneira,o trabalho foi definitivo para Rogério, que começava a ganhar umaprofissão. Ele conta: - Eu queria ser jogador de futebol ou músico. E, de repente, eu não eranem uma coisa nem outra. Ser técnico de som era uma maneira de estarentre os músicos e perto de Elis. Rogério recorda o primeiro trabalho: - Foi um fracasso de público. Eles inventaram um cenário mirabolante queacabou não funcionando. O cenário custou uma fábula. No final do show,Elis sentava na escada do palco e cantava Boa noite, amor, complay-back. Um dia faltou luz bem na hora, e Elis, sem microfone, e semorquestra, cantou iluminada pelo lanterninha. Essas são as boas recordações. Mas o ambiente familiar estava carregado.Tanto que Elis rompeu com Rogério, rompeu com dona Ercy e, porconseqüência, com Rosângela. Com a família, enfim. Não falava comninguém. E, nessa época, ela já tinha comprado outro apartamento naJoatinga, ao lado do dela. A família morava em um, ela no outro. Rogériolembra: - Ficou ruço porque meu pai tinha ido embora para Porto Alegre. Nósdependíamos financeiramente de Elis e ela nem falava com a gente. Dona Ercy conta que Elis a proibiu de usar o telefone de seu apartamentopara falar com Romeu em Porto Alegre. Lembra ainda que não tinhacoragem de pedir dinheiro e de que chegou a passar fome. Rogério resolveu então que era preciso tomar uma atitude. Mandou a mãe ea irmã postiça para Porto Alegre e foi à luta. Conseguiu emprego comotécnico de som do Quinteto Violado, que se preparava para uma excursãopelo norte-nordeste. Rogério deixou o apartamento de Elis vazio e foi

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morar com os integrantes do conjunto. Sumiu da vida de Elis durante seis meses. Seis longos meses. O fatídicoshow É Elis foi um fracasso de público e representou o enterrodefinitivo da dupla Mieli e Bôscoli na carreira dela. O casamento estava acabado. O caso com Nelson Motta também. Foi assimque Elis Regina começou a se interessar pelo pianista que a acompanhavatodas as noites no show É Elis. César Camargo Mariano era um homem completamente diferente de seu amigoRonaldo Bôscoli. Introspectivo, caladão, do tipo que parece mais tímidodo que realmente é. O tipo de pessoa que você olha e pensa: "Jamaisfará mal a uma mosca". Sensibilidade pura quando toca com os dedosmacios no piano. Conversei a primeira vez com César quando já estava íntima de Elis."Intimidade" é uma palavra perigosa em se tratando de Elis. Vocêpassava pela primeira peneira de sua curiosidade e, se despertasse nelaqualquer emoção, podia seguir em frente. Ela me achava uma meninaambiciosa, com garra e vontade de vencer na vida. Isso fez com que nosentendêssemos de cara. Com César foi diferente. Ele falava pouco, mas agente se olhava com respeito, de longe. Foi uma das últimas pessoas comquem falei antes de escrever este livro, dez anos depois. Ele pareciafugir de mim, não atendia aos telefonemas e não dava nenhum sinal devida. Quando nos encontramos em julho, me abraçou e disse: "Eu estavasem tempo". Eu sabia que tinha muito mais coisa aí, mas deixei pra lá.Como dizia nossa mutante Elis, o fato de você ter conhecido uma pessoaum dia não significa que ela e você sejam as mesmas anos depois. Tudoestá sujeito a chuvas e trovoadas. Nove anos de um casamento e decarreira tão compartilhados como o desses dois artistas decerto deixammarcas que talvez hoje César Mariano queira esquecer. César Mariano, jácasado novamente, cria hoje os três filhos de Elis: Pedro (dez anos) eMaria Rita (oito), seus filhos, e João Marcelo (quinze), filho deRonaldo Bôscoli. César Mariano há muito retomou sua carreiraindividual. Recorda com paixão os tempos vividos com Elis: - Em 1971 eu estava em Porto Alegre quando recebi um recado: a Elis estáa fim de você. Mas "estar a fim" podia significar muitas coisas, porqueeu curtia um amor platónico pela Elis desde os tempos da Record. Só queo "estava a fim" significava que Ronaldo Bôscoli queria falar comigo,porque precisava de músicos para montar um show de Elis. Montamos ogrupo e tocávamos na boate Monsieur Pujol. Elis, de vez em quando, ialá dar uma canja e ensaiar com a gente. Todos nós achávamos que elaestava ainda confusa com o processo de separação do Ronaldo, e quandoestreou o show, em março de 72, estava ficando legal, solta. Eu passavao show inteiro olhando pra ela, e meu grande barato era chegar de noitepra encontrar com ela. E eu só encontrava Elis no palco, até que um diarecebi um recado. Elis me chamava no camarim dela. Me chamou para umasessão de cinema em sua casa, no dia seguinte, uma segunda-feira. "Voupassar Morangos silvestres, do Bergman, você não quer ir?" Fui sozinho,eu era casado na época. Quando cheguei na casa da Niemeyer tinha maisdois casais e uma moça. Sentei num canto, timidíssimo, não conhecianinguém. Quando acabou o primeiro rolo, acenderam as luzes, e eu ali nocanto, tomando Coca-Cola. Apagou a luz de novo, Elis enfiou um papel no

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meu bolso e me disse que era pra eu ler no banheiro. Levantei, entreino banheiro e abri o bilhete; "Gosto de você pra caralho. Quero você pracaralho. Caguei pró mundo". Acabei de ler o bilhete e a única vontadeque tinha era voar dali. Saí pela janela do banheiro, pulei três metrosde altura, peguei o carro e sumi. Fui para o Recreio dos Bandeirantes efiquei lá até o dia seguinte. Na terça-feira, cheguei em casa e conteipra minha mulher. Só reapareci na quartafeira, quando estava marcado oinício das gravações do disco daquele ano. Às duas horas eu cheguei esenti logo o clima. A Elis andava de um lado pró outro, completamentevesga, não sabia se ria ou ficava brava. Eu estava desaparecido desdesegundafeira. Chamei o Menescal de lado e disse: "Dispense os músicosque eu vou gravar com ela Atrás da porta, só voz e piano". Às seishoras, quando terminou a gravação, ela me ofereceu carona e perguntou:"Você vai passar em casa ou vai pró teatro direto?" Eu disse: "Voupassar em casa pra pegar minha escova de dentes". Depois do show fomosdireto pra casa dela na Niemeyer. Toca o telefone num quarto de hotel do Recife. Rogério, gaúcho com carade índio, cabelo preto escorrido, atende: "Géio, você se lembra daquelaexcursão feito o filme do Joe Coker, que você queria fazer?" Rogériolargou o Quinteto Violado na hora e acompanhou Elis Regina e o grupoformado por César Mariano, Paulinho Braga, Luisão, Alemão, e ChiquinhoBatera. Foram trinta e nove shows em quarenta e cinco dias, um show emcada cidade. Era o primeiro circuito universitário de Elis, de ônibuspelo interior de São Paulo, do Paraná e de Santa Catarina. Os showseram organizados pelos centros acadêmicos das faculdades. Neste circuito universitário, Rogério Costa entrou definitivamente parao circuito profissional de Elis, com a grande vantagem de já não ser umgaroto irresponsável aos olhos da irmã: - Acho que ela pensou que eu não iria me virar, que ia mergulhar. E eufui à luta. Aí ganhei a cabeça dela. Era isso que ela queria, que eumexesse a bunda um pouco. Ela se achava muito importante porque aspessoas dependiam dela. Quando dona Ercy diz que perdeu uma filha, Rogério não contesta. "É bempossível que ela tenha perdido." Mas ele, ao contrário, nesse momentoganhava uma irmã. A residência de Elis, a essa altura, era o apartamento da Joatinga. Oromance com César Mariano já tinha virado casamento. Elis permitiu-seinterromper um pouco o ciclo das brigas frontais e viveu um pouco empaz. Era um momento de amor e um encontro musical que mudaria mais umavez os rumos da carreira dela e de César. A sensibilidade musical deCésar Mariano criaria para ela arranjos belíssimos e abririapossibilidade de uma harmonia perfeita e profunda entre a casa e otrabalho. Durante dois anos - de72a74 - o casal Walter Negrão e Orfila conviveucom Elis, César e João Marcelo no mesmo condomínio da Joatinga. WalterNegrão, jornalista, já conhecia Elis por profissão. Orfila resistiu oque pôde a conhecê-la. Ela conta: - Eu tinha um pouco de medo do temperamento dela, preferia me preservar.E acredito que nossa aproximação foi espiritual. Eu sou espírita, e Eliscomeçou a conversar muito comigo sobre espiritismo. Ela era muito

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curiosa, queria saber, e chegou a participar das reuniões da SociedadeBrasileira dos Espíritas, com sede lá em Curitiba. Elis passou depois ajasicograíar mensagens, zzz Orfila venceu a resistência inicial e passoua participar mais ativamente da vida de Elis. Nessa época, envolveu-setanto que foi nomeada pelo juiz da Vara de Família como a pessoa quedeveria entregar e receber o pequeno João Marcelo ao pai Ronaldo Bôscolinas visitas. Elis e Bôscoli não queriam sequer se encontrar nessa época.Na verdade, muito mais Elis do que Bôscoli. - Quantas vezes passei situações incríveis porque, quinze minutos antesdo Bôscoli chegar, Elis sumia com João Marcelo, desaparecia, inventavapiqueniques, coisas assim. Orfila, assim como Elis, mergulhou de cabeça nessa relação. - Eu estava sabendo em que terreno estava pisando. E a Elis era umapessoa muito possessiva, mas acho que eu fui uma das pessoas a quemElis de fato respeitou. Ela se calava para me ouvir. Dona Ercy ficoumeio com ciúmes de mim porque houve uma certa transferência. Eu eraquase uma mãe, embora nossa diferença de idade não levasse a isso. Essa transferência de Elis, ou essa vontade de criar sempre laços maisfortes, laços que não pudessem se romper, nem nas mais violentas horasde tempestade, fazia com que ela envolvesse os amigos com sua brilhantecapacidade de fascinar. Walter Negrão observou isso quando Elis quisdar a eles o status de "pais" e quando tentava dar títulos a amigos quenão podiam ser apenas amigos. Em troca dessa intimidade, Elisoferecia-se a si mesma em doses generosas. Era fantástico conviver como seu talento, como terrível era presenciar seus acessos de ira. Masquando ela estava bem, felizes os que estavam ao seu lado. Elis promoviafestas, encontros e delírios. Orfila. - Foi uma convivência muito rica com os dois, ela e César. Ela era muitoagitada, não era uma coisa normal. Era muito acelerada, não tinha o meuritmo, que também faço várias coisas ao mesmo tempo, mas sou maisacomodada diante da vida. Ela tinha uma ânsia, uma sede de viver tudocom intensidade assustadora. Todas as vezes em que nos afastamos foipara que eu não ficasse sufocada e nem fosse confundida com aqueleséquito que a cercava. Quando terminou a excursão pelo sul do Brasil,Rogério Costa ficou desempregado mais uma vez. Rogério não morava emlugar nenhum e acabou se abrigando na casa de Marli, secretária de Elisna época, ex-mulher de Alberto Rushell e Flávio Rangel. Tempos depois,ainda sem emprego, Rogério foi morar num sítio, arrumado por uma amigana época. Foi nesse sítio, que fica em São Bernardo do Campo, que Elise César Mariano se hospedaram quando começaram a procurar uma casa emSão Paulo, já decididos a deixar o Rio de Janeiro. Foi quando, atravésdo Quinteto Violado, Rogério soube que Roberto de Oliveira tinha umavaga em sua empresa de produções, a Clack. Roberto de Oliveira era umjovem produtor, criador dos circuitos universitários e com quem artistascomo Chico Buarque tinham trabalhado. A Clack era uma produtora dejinglês, tinha um pequeno estúdio e arrendava da TV Bandeirantes oTeatro Bandeirantes da Avenida Brigadeiro Luís António. Rogérioconseguiu o emprego. E foi de lá que assistiu e contribuiu para umagrande virada na carreira de Elis. Ano: 1973. Rogério:

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- A Clack comprou do Marcos Lázaro um show de Elis Regina. Esse showdeveria ser feito na casa de um membro da família Lutfala. Era umapartamento na Rua Mello Alves, e a festa era em homenagem ao fabricantede relógios Piaget. Logo na entrada a coisa ficou esquisita. A dona dacasa chamou Elis para entrar pela porta da frente e mandou os músicosentrarem pela cozinha. Elis não gostou e disse à mulher que preferiaentrar com os colegas. E foi isso. Ela ficou o tempo todo na cozinha,conversando com as empregadas, fez o show e saiu pela porta dos fundos.Depois do show, contei a Elis como o negócio tinha sido feito: MarcosLázaro vendeu o show por uma quantia, e nós revendemos pra dona da casapor outra. Quer dizer, por que ela deveria ganhar menos e osempresários mais? Elis e Marcos Lázaro, fim de um caso que durou dez anos. Marcos Lázarorecebeu uma carta de Elis rompendo o contrato. Ele conta: - Elis era a minha artista mais contratada, praticamente não tinhadescanso, todo fim de semana fazia show. E ela chegou a um momento emque queria ser uma artista de elite. Foi o momento em que nosseparamos. Ela não queria mais fazer shows no Círculo Militar, noPaulistano. Ela queria trabalhar para estudantes, fazer circuitosuniversitários. E eu achava que isso estava errado. Elis quando morreuteve o carinho do povo que gostava dela, que queria vê-la e nãoconseguia. Ela não ia cantar pra eles. E, para mim, Elis era a artistade prestígio mais popular no Brasil. Ela não queria isso, queria outracoisa. Ela começou a não querer fazer certos shows - estava muitoinfluenciada pelo marido - e um dia tomou a decisão. Esperou que euviajasse e me mandou uma carta. Não teria conseguido falar isso comigocara a cara. Ela me criticou muito. Na revista Veja ela disse que nãofez o show do 1 de Maio porque não ia aumentar o caviar de "seu" MarcosLázaro. Ela também estava com alguma mágoa comigo. Me disseram que noFalso brilhante, um dos personagens que abraçava ela, o boneco, era eu,representado. Um homem que apertava ela, deixava ela presa. E Roberto de Oliveira passa a ser o empresário de Elis Regina. Foi umamudança brusca. Roberto criou para ela uma nova imagem, maisinatingível, mais longe dos mexericos da imprensa sobre sua vidaparticular, mais comedida nas declarações sobre terceiros, mais fina eculta, mais preocupada com a política do Brasil, a política da música, apolítica da vida. Roberto de Oliveira tinha vinte e seis anos e nãoqueria ser empresário. Mas aceitou: - A Elis vinha de um esquema muito comercial do Marcos Lázaro, como elefaz com outros cantores. Mas ela era muito inteligente, "tivesse muitacultura ". E os contemporâneos dela começavam a exigir um outro tipo detratamento em esquemas empresariais, e ela sentiu isso. Ela era um poucodiscriminada pelos outros artistas. Bethânia tinha um status por si só,Gal porque o Caetano Veloso e o grupo baiano passavam pra ela. Alémdisso, Elis tinha sido casada com Bôscoli, que a levou para um mundoglobal, apolítico e reacionário. E de repente, os cantores ecompositores da geração dela estavam em franca oposição à situaçãopolítica na época. Elis tinha cantado nas Olimpíadas do Exército. E elasabia que o talento dela era maior do que , o mundo em que estavavivendo. Encontrei Elis nesse momento, no momento em que ela estava

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tomando consciência disso. Eu só tinha visto Elis uma vez naquela Phono73, quando cortaram o microfone do Chico Buarque. Eu estava com ele nocarro quando a Elis encostou, chorando e dizendo: "Como é que fizeramisso com você?" Era uma coisa meio circense, meio teatral e, ao mesmotempo, sincera, solidária, com o Chico. "Aí ela me convidou tempos depois para ser seu empresário. Disse que nãoqueria ser tratada como um saco de batatas pelo Marcos Lázaro, reclamoumuito dos shows do Di Mônaco e do Círculo Militar, quando jogou omicrofone na cara de um bêbado na plateia. No dia seguinte já estavatudo acertado: tínhamos uma disputa processual com o Marcos Lázaro, quefoi resolvida. "Ela tinha talento, sucesso, e não tinha prestígio. Pensei: ela tem queter os três. Comecei a fazer a cabeça dela porque achava que ela falavademais, e falava muita coisa, e se contradizia muito. Elis se envolviamuito com quem estava próximo, e no dia seguinte essa pessoa ficava forae ela mudava de opinião. Não sei se ela tinha um distúrbio neurológicoou tinha pique, mas ela me disse que sua cabeça girava muito maisdepressa do que a dos outros. E girava mesmo. "Aí aconselhei a ela que cantasse mais e falasse menos. Até fiz umacoisa ridícula numa de suas brigas com o César. A imprensa telefonando,e eu redigi uma nota dizendo que aquilo era um problema de casal e queninguém tinha que se meter. Depois fiquei com muita vergonha disso, masera uma maneira de tentar cuidar da privacidade dela. A primeira partedo trabalho foi criar um melhor relacionamento com a imprensa de altonível, e o primeiro resultado foi uma entrevista de páginas amarelaspara a revista Veja." O jornalista Sílvio Lancelotti iniciou nesse dia uma amizade com Elisque duraria anos. Sílvio lembra: - Esse encontro foi muito engraçado, porque a Elis parecia não querer medar a entrevista. Estava muito desconfiada. Fui à casa dela na RuaCalifórnia e ficamos umas três horas conversando, até que eu pudesseentrar no assunto da entrevista. E aconteceu um fato muito engraçado:ela estava ainda arrumando as coisas nessa casa, pois tinha acabado dese mudar. E estava com um problema com os tapetes, já que Marcos Lázarodevia a ela trinta mil cruzeiros, ficou de pagar os tapetes e nãopagou. Na entrevista, publicada em maio de 74, Elis falava de seu encontro comTom Jobim, na comemoração de seus dez anos de Philips. Os dois gravaramum disco juntos, em Los Angeles. Para Elis, era um passo definitivo. Oencontro com o grande criador musical da bossa-nova e da música deraízes cultas. Um grande artista a quem ela tinha que tirar o chapéu. Eeram poucos a quem Elis tinha que tirar o chapéu. Roberto Menescal, naépoca diretor artístico da Phonogram, fala sobre o disco de Elis e Tom: - Eu ligava todo dia pra saber como é que o Aloysio de Oliveira estavase virando com os dois. Ele dizia todo dia: é meio difícil, mas tudobem. Aí falei com a Elis no telefone e ela disse: "Está uma merda, nãotem nada bom, o Tom é um babaca, um chato, reage contra os aparelhoseletrônicos, diz que vão desafinando e afinando não sei o quê, fazendotipo, e a gravação está babaca, parecendo bossa-nova". E eu perguntei:

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"Mas, Elis, esse tempo todo não saiu nada?" "É", ela disse, "tem umamusiquinha boa", e aí começou a se animar na conversa, e a se animar, eno fim do papo o disco estava ótimo, maravilhoso. "Estou louca prachegar no Brasil e te mostrar. Todas as faixas estão lindas." O empresário Roberto de Oliveira seguiu para Los Angeles dias depois doembarque de Elis. Ele conta a história, doze anos depois: - A Elis estava meio esquisita. Acho que ela viu um pouco o RonaldoBôscoli em Tom Jobim. Ela me ligou dizendo que estava de malas prontaspara voltar. Fui correndo pra lá. Não sei, na minha presença elaparecia se sentir mais segura. Alguém tinha 140 me dado a idéia de registrar aquele encontro em filme e fiquei fazendoum especial para a TV Bandeirantes. Elis dizia que o Tom era velho, nãovelho, mas que ela tinha a preocupação de ser moderna e achava que sermoderno não era o Tom Jobim. Moderno era o piano elétrico do César, e oTom não queria o piano elétrico do César, que acabou entrando. O discoera um revival dos anos 50. Naquela época eu achava que o disco deveriaser mais aberto, eu queria que ela gravasse em inglês, queriatransformar Elis numa cantora internacional. E percebi que ali, parafazer sucesso, era preciso fazer um circuito universitário, fazercinqüenta, cem shows, e passar seis meses por ano morando nos EstadosUnidos. Elis não gostou nada da idéia e eu fiquei cabreiro. Achava queela devia entrar na faixa da Dionne Warwick, enfrentar o esquema deconsumo mesmo, entrar na briga. Ela não gostava, achava que jinha queser do Brasil, brasileira, aquelas histórias. Ficamos um mês gravando odisco e o especial, e Elis embarcou de volta para o Brasil no dia doseu aniversário: 17 de março. 17 de março de 1974, vinte e nove anos.Eu fiquei lá, e quando voltei ao Brasil, tudo estava diferente. Elisvivia uma fase feliz com César Mariano, e o episódio com o Tom viroumuito a cabeça dela. Acho que voltou dos Estados Unidos com mais moral,e seu público também mudou. Elis fez então seu primeiro show de teatronesta fase, no Maria Della Costa. Era um show de bom gosto. Não tinhacenário nenhum, só um fundo neutro. Era um concerto. Antes disso,tínhamos colocado no ar o especial da Bandeirantes e fizemos um show noTeatro Bandeirantes de um dia, com Tom, ela e orquestra, e cobramoscaríssimo, um ingresso de duzentos cruzeiros quando o ingresso de showestava custando trinta. Ela também fez uma apresentação na Globo que eunão queria. Mas eu pedi um absurdo de dinheiro pró Bôni e ele pagou.Encerrada a fase do Maria Della Costa, começamos a fazer um circuitouniversitário. A versão de César Camargo Mariano para o encontro Elis e Tom: - Chegamos em Los Angeles às oito da manhã, e, quando descemos do avião,lá estava o Tom Jobim, com uma florzínha na mão pra Elis. Fomos diretopra casa dele e começamos a conversar. De repente ele vira e perguntapró Aloysio: "Quem vai fazer os arranjos?" Já deu aquele branco. QuandoAloysio respondeu: "O César", Tom ficou louco. "Não", ele disse. Ecomeçou a ligar pró Klaus Ogerman, pra não sei quem, e nós só olhando. AElis ficou muda, bebendo uísque. Pra sair do impasse, sentei no piano ecomeçamos a preparar o repertório. Aí o Tom já não ligou pra maisninguém e fomos pró estúdio. Ele não queria piano elétrico, não queria

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uma série de coisas. Quando eu fui fazer os arranjos, a Elis levou oJoão Marcelo pra Disneylândia, mas o Tom ficou. Quando sentei no piano,o telefone tocou: "César, como é, já fez alguma coisa?" "Não, Tom, tocomeçando." E foi assim até que terminei. Ele não queria ir lá fazercomigo, mas ficava telefonando. Na hora que fui mixar o disco foi amesma coisa. Ele telefonava de cinco em cinco minutos. Mas, quandoterminou o trabalho, o Tom virou pra gente e disse: "O problema é quevocês estão acostumados a tomar banho de chuveiro e eu estou acostumadoa tomar banho de banheira. Me desculpem". O circuito universitário de Roberto de Oliveira mexeu com a cabeça deElis, que decidiu de vez sua mudança para São Paulo. Sem casa, Elis,César e João Marcelo foram hóspedes do casal Abelardo e LauraFigueiredo. - Elis me ligou e disse: "Laurinha, vou ficar aí, estou com um problema,vou me hospedar em sua casa". Eu retruquei: "Elis, só uma semana". Eela: "Tá, Laura, no máximo quinze dias". Elis, César e João Marcelo ficaram três meses. Laura conta: - Era fatal. Eu trabalhava, e quando voltava de noite ela já tinhaarmado o esquema, o circo todo dela. "Essa empregada não pode ficar,aquela pessoa não pode mais vir aqui!" Tomou conta da casa, até que umdia ela saiu brigada comigo. Foi por causa de uma coisa que eu disse lána Polygram e foram contar pra ela. Eu estava trabalhando com o MichelLegrand num dia de muitos problemas e falei: "Meu Deus, ídolo só nopalco mesmo!" Ela achou que era com ela, se ofendeu e foi embora. Essa foi a segunda vez que Elis se hospedou na casa dos Figueiredo. Ecom dois maridos diferentes. As duas filhas do casal, Mônica ePatrícia, tiveram, ao longo de suas vidas, contatos profundos com Elis.Com Mônica, a mais velha, Elis costumava sair às compras e mostrar suaintimidade como dona de-casa e mulher. Com Patrícia, queria exercer opapel de mãe e, a certa altura, tentou salvá-la de se transformar numadondoca. Quando Laura Figueiredo foi morar em Paris com as duas filhas,Elis escreveu duas cartas a Patrícia, que na época tinha quinze anos: "São Paulo, 3 de setembro de 1974. Alô, alô, dona Patrícia. Mil beijos e abraços. Recebi a sua carta com um certo atraso. Estávamos em excursão, sul doBrasil. Mais um circuito. Que começou na minha santa terrinha. Aliás,muito bonita. Já tem até túnel. Saca. Gente fina é outra coisa. Como é? Paris é uma festa? Bonito tudo, não? Já deu pra sair da transa?Me lembro que quando fui a Paris pela primeira vez foi um tal de andare andar que não houve sapato que resistisse. Se já não houve, daqui apouco vão começar as liquidações. Panos mil. Um baratão. Diz à Mônica que eu tenho uma amiga que está estudando violão com oJean. Ela disse que ele é uma pessoa maravilhosa. São Paulo continua aquela graça. Cada dia me apaixono mais pela cidade.Eta! Aqui tá bom. A minha casa acabou de ganhar cortinas de presente.Chique. Parece menina em véspera de baile de debutantes. . . Diz à Laura que eu vou fazer uma consulta com um médico amigo meu, praver esse negócio do braço dela. Que nós esperamos que ela fique legal.Vou ver um remédio pra gastrite, também. Esse médico é uma barra. Já

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fez até cego ver. Glória! Estamos trabalhando feito uns doidos. João desenvolvendo tudo que temdireito. Já cresceu quatro dedos desde que viemos pra cá. Incrível. No mais, poucas histórias. Tenho trabalhado e me divertido muito. Só.Além do mais, se alguém tem coisas a contar deve ser você. Casa nova,vida nova, mundo novo. Manda lenha. Dá um bei j ao na Mônica e um abraço enorme na sua mãe. Diga que nósesperamos que ela melhore. E que aproveite a sua vida nova. Vê se não deixa passar um segundo do que você vai ver e viver. Fiqueatenta. Qualquer descuido pode ser fatal. Aproveite essa chance. Vocêganhou ouro em pó de presente. Faça jóias com ele. Não pense muito emrobes, chaussures e coiffeurs. A vida não é isso. Muito menos Paris.Não seja provinciana. Aja como uma mulher desenvolvida, que é o que nãohá por aqui. Meta uma calça comprida, uma bota, caderno e lápis eequipe-se para a vida. Isso eu te garanto não sairá dos salões e dasmaisons Dior. Até eles, que inventaram essas coisas, já sacaram queisso não está com nada. Que é uma mentira e que é coisa de minoriaridícula, que está em franco processo de desaparecimento, felizmente,que não tem os pés no chão e que na hora do tombo é que mais vai semachucar, porque trepou mais alto que o coqueiro. Não sei se você vai gostar ou achar uma merda tudo isso que eu te disse.Mas saiu e agora já tá. . . Um beijo e saudades de todo mundo aqui de casa. Carinhos. Elis. Escrevi à máquina porque minha letra continua uma gracinha. Quisfacilitar. . ." "São Paulo, 9/10/74. Patrícia, Acabei de receber sua carta e respondo logo, antes que apareça umaviagem qualquer. Que agora as coisas andam assim. O que tiver que serfeito que o seja logo, senão não se sabe mais quando vai fazer. Estamos trabalhando feito uns mouros. Assim não vai dar certo. Teesconjuro! Temos, independente disso, tido tempo para um cineminha, um teatrinho ecoisas do gênero. Mas, cada dia mais, nos entocamos e vivemos nossavida, nós quatro. .Continuo não querendo conhecer gente que eu nãoconheço. Acabamos de gravar um disco que está uma barra muito pesada. Desde acapa até a mixagem. Sem oba oba, sem festa e coisas que tais. Disco pramacho! Pó! Sem sacanagem, tá legal. Arrisco mesmo a dizer que foi amelhor coisa que nós já fizemos até hoje. Disparado. João já cresceu mais. E está cada dia mais louco. Graças a Deus. Que eunão tenho saco pra filho organizado e careta. Já vi a Maria Laura. Ela está lindinha no tape. Mas muito bonita mesmo.Eu reconheci logo que vi. Esta semana fizemos o concerto ao vivo com o Tom. Gostei. E parece queas pessoas gostaram também. Ficamos felizes para. . . Li algumas coisas sobre o trabalho do teu pai. Mas muito pouco. E não otenho visto. Assim que não posso te mandar muitas notícias a respeitodo Velho. Desculpe, Electra!

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No mais, nossa vida continua incrivelmente legal. De dar até medo. Quenão estou muito acostumada a bons tratos, você sabe. E a única novidadeé que César tirou o bigode. Um barato. Tá a cara do pai dele. Que é umvelho muito bonito, en passant. Afinal, caiu o último reduto armadocontra a timidez. Um simples e singelo bigode. O moço está impossível.Bonito! Lamento, mas nossa vida está tão ridiculamente calma, tranqüila e felizque há pouco a ser contado. Quem sabe da próxima vez há mais outrasnovidades? Dê beijos em dona Mônica e dona Laura. E diga à Norma que Cida casou e que não está mais trabalhando. Agora elatem um senhor que a ajuda. Tipo fina. Um luxo! Procê, mil beijos e saudades. E escreva sempre que será uma honra tê-laem nosso programa. Pena que a televisão, digo, a carta, não seja acores. Todo carinho e mil beijos do pessoal daqui do Brooklin Novo. Maissaudades e mais carinho. Elis" Para a jornalista Mônica Figueiredo, as recordações de Elis têm um saborespecial. Mônica conviveu com o lado "tricô" de Elis, quer dizer,esteve com ela em situações muito íntimas. Como o fato de dividirem opróprio banheiro. Elis buscava sua companhia para programas que nãofazia sozinha. Exemplo: sair de manhã, ir para o Guarujá e voltar nofim do dia. Com Mônica, também saía para procurar coisas que queriacomprar - das miudezas à própria casa. Mônica fala: - Me lembro de uma bandeja de prata enorme, dessas que a gente ganha emcasamento, onde Elis guardava a sua maquiagem. Ela colocava tudodireitinho e arrumadinho: as sombras numa fila, os lápis na outra. Elatinha tudo. Ficou usando essa bandeja até que o acrílico entrasse namoda. Aí ela comprou uma bandeja de acrílico. Tinha uma enorme coleçãode sapatos, e me lembro que na casa da Niemeyer ela mandou fazer umarmário só para colocar os sapatos. Na coleção tinha de tudo - desdeaqueles tamancos do dr. Scholl (de todas as cores) até sapatosimportados. Me lembro de um em particular, porque o Ronaldo odiava:tinha uma borboleta imensa de ferro na frente. "No casamento civil, a Elis usou um vestido feito pelo Denner, todo depaetê que ia mudando de cor em ondas, até o chão. Com essa roupa elarecebeu os convidados para o jantar, chiquíssimo. Dois dias depois elesse casaram na Igreja e a festa aconteceu na casa de meus tios, Cícero eElza Leuenroth - pais de Olivia Hime -, num apartamento no morro daViúva, praia do Flamengo. O apartamento estava lindo, com laços de fitanos castiçais. Tinha até caviar. Ela e o Ronaldo passaram a lua-de-melno meu quarto na casa da Rua Atlântica, em São Paulo. Nessa casa tambémassisti grandes cenas de Elis. Certa vez, apaixonou-se pelo disco"Milagre dos Peixes", do Milton, e depois ficou louca pelo livro queconta a vida da Isadora Duncan. Cismou que era uma reencarnação daIsadora Duncan e andava com o livro pra cima e pra baixo. Elis gostavade ler e era muito interessada em todos os assuntos. Me ajudava a fazeros deveres da escola, e a melhor coisa era quando ela encapava os meuscadernos. Era uma perfeição. Eu ia pra casa dela todo começo de ano.

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"Os seus armários, em casa, eu nunca vi igual. Tudo limpinho earrumadinho. Adorava robes e penhoares. Tinha vários. Quando a gentesaía pra fazer compras, ela gostava de ir na Sears e ficar fuçando,procurando o que comprar. Às vezes, entrava numa loja de roupa chique egastava fortunas. "Quando Elis ficou grávida do Pedro, levei ela no dr. Cláudio Basbaum.Eu tinha lido uma matéria no Jornal da Tarde, e Elis comprou o livro etraduziu e já sabia tudo sobre o parto Leboyer quando foi ao médico.Depois do parto do Pedro ela voltou pró quarto sentada na maca, àsgargalhadas. "Ela também cismava com algumas coisas de vez em quando: o seu quarto,na casa da Rua Califórnia, era marrom. Um dia ela achou que aquilo eraa razão de andar deprimida. Achava que a vida estava péssima por causado marrom do quarto e mandou pintar tudo de branco. Mas as decisõeseram assim, de um dia pró outro, e a produção funcionava. Quando foimorar na Cantareira, resolveu usar roupas lânguidas. Estava sempre devestido comprido ou de jogging. Elis fazia as suas próprias unhas, equando morreu estava com as unhas feitas. Gostava muito de cremes delimpeza de pele e comprava um monte de produtos. "Sua bolsa era um fenômeno à parte. Tinha tudo: de alicate de unha aestojo escolar com lápis, canetas. Tinha maquiagem e espelhos ecaderninhos e caderninhos, um pra cada coisa. "Elis gostava de fazer tapetes, tricô, croché, e tinha uma máquina de costura. Fez o enxoval dos filhos, bordoucamisinha pagão. Certa época ela decretou o fim da empregada à noite: ela mesma fazia tudo, cozinhava pra todo mundo. "Desde pequena acompanhei Elis nos camarins. Às vezes a gente ficavasozinha lá dentro, jogando crapô. As pessoas batiam na porta e Elis nãodeixava entrar. Já era minha tarefa pendurar na parede os cartões ebilhetes que ela recebia durante os espetáculos. "Quando o João Marcelo ficou doente lá no Rio, eu fiquei na clínica comele e Elis. Ela fazia quilómetros de palavras cruzadas e tinha queacordar cedo pra ir buscar o leite humano que João Marcelo suportava.Ele era alérgico a leite em pó. No primeiro dia que consegui tirar Elisdo hospital para descansar um pouco - dormíamos as duas num sofá -,fomos pra casa de minha tia Elza, que preparou um banho de espuma paraElis. Quando ela entrou na banheira fez um escândalo: ria e ria echamava todo mundo pra ver. "Quando Elis foi para Nova York com o Fábio Junior. ela procurou umamigo comum, o Márcio Martins Moreira, um publicitário que mora lá. Ostrês se encontraram na Broadway para assistir Chorus Une e depois forampara um restaurante em frente. Ele me disse que Elis ficou brincando deimaginar como seria sair da Broadway e esperar a crítica do Times sair.Márcio levou Elis e Fábio ao hotel e, no dia seguinte, Elis telefonoudizendo que o Fábio tinha ido embora." Já em São Paulo, instalada na casa da Rua Califórnia, Elis achou que erahora de reunir de novo a família. Chamou o pai e a mãe para morar na casa em frente, que ela alugou. Omano Rogério preferiu viver com Elis, e depois casou-se com Biba.

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Na verdade, Elis pensava em montar uma estrutura familiar que segurassesua barra profissional. "Se alguém tiver que ganhar, que ganhem os meus", me disse certa vez.Rogério, funcionário de Roberto Oliveira na Clack, era um funcionáriofull-time de Elis Regina. - A situação me deixara bem mais à vontade, porque eu trabalhava paraela, mas não era ela quem pagava o meu salário. Já podia chegar nafrente dela e ter outro tipo de conversa, não era ela quem me pagava.Podia fugir da pressão econômica que ela sempre exerceu e ditou: eutenho, eu pago, eu faço. Fortalecido, Rogério percebeu, como já tinha percebido com MarcosLázaro, que alguém estava sobrando nessa ligação com Elis. Era ela quemfazia o trabalho todo, e a Clack de Roberto de Oliveira recebia a suaporcentagem. Além disso, Rogério começou a querer ganhar mais dinheiro."Por que dar essa grana para o Roberto, podemos rachar entre nós dois",disse ele a Elis. Ela topou e nasceu a Trama, o escritório de produçãode Elis Regina. Foi um bom período nas recordações de Rogério: - A Elis soltava a imaginação criando coisas, viajava, e eu botava ospés no chão. Começou a me ouvir mais. Às vezes até topava fazer um showcomercial pra conseguir dinheiro e fazer o que queria. Ela ia à luta dodinheiro. Em casa tudo corria bem nesse curto momento de felicidade plena, em queElis Regina decolou para a sua definitiva e arrebatadora experiência:trinta anos de idade, dois casamentos, dois filhos, já tendo passadopor poucas e boas na vida. Começou a nascer o espetáculo Falsobrilhante. Orfila, amiga dos tempos da Joatinga, foi chamada para a produção.Rogério Costa estava a postos. Na tentativa de buscar um diretor quetopasse uma empreitada do porte que Elis estava querendo, bateram emChico de Assis, Ademar Guerra e Silnei Siqueira, que recusaram ouestavam ocupados. Silnei indicou sua vizinha, a atriz Miriam Muniz,casada então com o ator Sílvio Zilber e no comando do Centro de EstudosMacunaíma, onde se tentava conciliar o trabalho de atores com asexperiências psicanalíticas de Roberto Freire. Miriam Muniz. Quando as duas trocaram os primeiros olhares, quem tinhasensibilidade percebeu. Isso aí ainda vai dar muito pano pra manga!Dois temperamentos fortes. Duas mulheres explosivas e talentosas. "Era uma relação que parecia uma dinamite. Eu dinamitando e elaacontecendo. Quando acabou, eu estava completamente enlouquecida." Míriam Muniz Capítulo 7 Conheci Elis Regina exatamente neste período. Eu tinha vinte e quatroanos e trabalhava há três, como repórter do Jornal da Tarde. Estavanervosa quando desci a Rua Xavier de Toledo para meu primeiro encontrocom Elis Regina. Ela ensaiava Falso brilhante debaixo do Viaduto doChá, sob os pés de milhares de paulistanos. O local - uma passarelasuspensa - pertence à Secretaria Municipal de Cultura e abrigava osensaios do Corpo de Baile. Fica na Praça Ramos de Azevedo e vive cheiade gente e de gatos. Ali, Elis, César, os músicos Natan, Crispim, Nené e Wilson trabalhavam

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incansavelmente sob as ordens de Miriam Muniz, diretora. José CarlosViola trabalhava com o corpo. Exercício, muito exercício. O psiquiatraRoberto Freire dava assistência. Quando a barra dos laboratóriospropostos por Miriam Muniz pesava, Roberto intervinha. Quando o génio etemperamento de Elis e Miriam se cruzavam como chispas, ele mediava. Naquele começo de noite descendo a Xavier de Toledo eu pensava, já meiodesnorteada: será que ela vai gostar de mim? Era um absurdo total, jáque eu tinha a estranha sensação de que algo de grave poderiaacontecer: tinha medo de ficar paralisada de timidez na frente dela. E ojornal? A matéria tinha que sair. Fiz uma péssima entrevista. Ela mepareceu tão segura, tão inteligente e tão interessante que fiqueipassada. Anos depois, na convivência mais íntima que tive com Elis, issoacabou: aquela pessoa do primeiro encontro não seria a mesma nopróximo, nem nos seguintes. Ela tinha uma conversa sempre nova egostava muito de discutir política comigo. Adorava meter o pau nogoverno, vociferar contra as injustiças. Nos sete anos em que fomosamigas, tivemos também grandes, longas, bobas e profundas conversassobre a vida, e eu pude ver e sentir de perto quem era Elis ReginaCarvalho Costa. Saí do primeiro encontro com a cabeça quente. Fui praredação e escrevi minha reportagem, publicada no Jornal da Tarde do dia10 de dezembro de 75, uma semana antes da estréia de Falso brilhante. Quando fiz essa matéria eu era cliente de Roberto Freire e faziasimultaneamente um curso que se chamou de "psicotransoterapia", comMiriam Muniz e Sílvio Zilber. Eram, na verdade, exercícios para liberaremoções escondidas, lá no Centro de Estudos Macunaíma. Eu tinha medo daprofessora Miriam Muniz. Ela me assustava com a sua força, audácia eobsessão pelo profundo. Era uma agressão, mas eu gostava dela. Dez anosdepois nos reencontramos para este depoimento e nossas vidas tinhamdado grandes reviravoltas. Eu não tinha mais vinte e quatro anos,Miriam não era mais casada com Sílvio Zilber e tinha brigadopublicamente com Elis por causa de dinheiro. Reencontrei a mesma eforte Miriam Muniz, brilhante em suas observações. Seu depoimento, naíntegra: - Fiquei curiosíssima com o convite de Elis para dirigir Falsobrilhante. Já gostava muito dela, porque, quando eu fazia o Teatro deArena, ela era espectadora. Ela era muito vibrante, estrábica, muitorisonha, faladeira. E ela era minha fã. E não sabia se virava cantora ouatriz, porque fazia as duas coisas. "Eu ficava prazerosa de ver aquelamenina ser minha fã. Ela era namorada do Solano Ribeiro, e depois eladesapareceu da minha frente. O Fauzi Arap me disse depois: "Sabe queaquela menina é uma cantorinha fantástica? Ela se mexe de um jeitoextraordinário". Aqueles penteados, aquela bomba atômica, a roupa cheiade babados. Ela não fazia economia, com tudo e em tudo. Um poucoperturbada, ela herdou da minha geração a perturbação, a ansiedade, omedo de não conseguir. E aquele medo dava aquele destrambelho. Elaficava a um fio do excepcional. Ela era excepcional. A sexualidadefortíssima, uma sensualidade, pequenos perfumes. Eu era bem apaixonadapor ela e ela virava a minha cabeça, por isso fui trabalhar com ela. "Sou de Escorpião e ela era de Peixes. Naquela época eu não era ligadaem astrologia, mas sentia que tinha uma energia que me atraía. Ela era

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toda deslumbrada comigo porque eu sou misteriosa. Reagia, me agredia,eu brigava demais com ela. Brigava pra valer. Falava tudo, e ela falavatudo pra mim. Era uma relação que parecia uma dinamite. Eu dinamitando eela acontecendo. Quando acabou, eu estava completamente enlouquecida.Até hoje isso fica emaranhado na minha cabeça, porque eu briguei porcausa de dinheiro. Nunca briguei com eles do lado artístico. Não sei oque me deu, porque eu era só azeda nessa época, eu era só agressiva. Etinha que ser porque eu era muito tímida. Igual a ela. Mas era bonitoisso. No meio do trabalho eu estava podre: me separando do primeiromarido, tomando comprimidos para dormir, pra ficar acordada, pra ficarmais contente, literalmente desmoronada. Meu lado artístico estava bem,estava quase morta, mas tinha conseguido. Eu penetrei na intimidade deElis, fui na casa dela, vi a relação dela com o marido, com os filhos.Muito parecida comigo. Uma mulher que adorava ser dona-de-casa. Nosensaios, lá no porão, ela organizou uma cozinha pra ficar mais barato euma cozinheira - ela é quem dava as ordens e, na hora do jantar, fritavabife. Tinha prazer de servir as pessoas, de dar de comer. Coisa degaúcho, de italiano, de português. "Fiquei quatro meses vendo ela cantar na minha frente, só pra mim.Imagine que prazer! Se eu começasse a botar defeito, a criticar mais ouquerer mais, ela sabia que podia. Mas às vezes chegava um dia qualquere ela vinha, dava tudo - e você tinha que ficar de quatro, senão elanão dava. Tinha que se render para ela. Aí, sim, ela te dava tudo. Eusabia que ela gostava de mim, e tivemos uma relação muito forte. Agente não sabia se aproximar, se fazer carinho, não sabia chegar maisperto, ser mais suave. Foi acontecendo o Falso brilhante, e eu senti,antes de começar, que ia ser muito bom, porque eu tinha muita admiraçãopor ela. Eu queria fazer uma história dela. Ela gostou da idéia, dogeral. Elis olhava tudo e via, tinha uma intuição finíssima. Parecia umbichinho que sente o cheiro, e sabe perfeitamente quando está ouvindo ounão está. E quando ouve, ouve muito bem, afinadíssimo. E afina tantoque dá desespero de tanto que afina. Ouve bem, enxerga muito bem, seuinstinto está inteirinho no pedaço. Nem precisa pensar muito, é sósentir. E o roteiro foi indo, ela foi sentindo, se interessando, seapaixonando, tendo prazer. Ela dizia no começo do trabalho que estavatravada, tinha tido problemas na separação do primeiro marido, tinha umfilho de cinco anos que o marido mandava buscar com a polícia em SãoPaulo. Ele sentava no meu colo no teatro, mas do lado da mãe era umtormento. E aquilo era ruim, mas ao mesmo tempo era bom, porque serviapara a interpretação, porque aí ela fazia um drama perfeito. Autêntica.Ninguém sabia cantar bolero melhor. Uma brasileira, uma pessoailuminada. "Depois de ser atriz durante um tempo, de ficar muito perturbada comessa atriz que tenho dentro de mim, entendi a Elis, porque eu sabia oque é estar num palco e ter que fazer o papel de mãe. Elis tinha umaluz: de vez em quando, nesses quatro meses de ensaio, pintava essa luz,e quando eu via a Elis toda iluminada me dava um prazer, me dava umavontade de ir lá, levantar, aplaudir, agradecer, beijar. "Essa artista foi fazendo e dando todo o seu colorido, e se divertiademais, porque gostava de dar risada. Tinha um lado assim que era uma

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perfeita bruxinha - uma bruxinha boa e má, que o artista precisa. AElis foi uma coisa bonita na minha vida. "O roteiro de Falso brilhante foi criado na mesa por todos. E eucoordenando, não sei explicar bem como, porque nunca tinha feito aquiloantes. Eu ia aprendendo junto com eles. Elis foi muito inteligente -fez um trabalho de mergulho nele, e é preciso ser corajosa. Geralmenteas pessoas ficam na superfície gozando o dinheiro que recebem econtinuam sempre iguais. O Naum fez o cenário, o Viola o corpo. Se oRoberto Freire não tivesse entrado também, eu não sei como ia ficar.Era difícil. Eu fiquei só até dez dias depois da estreia. Aí não fuimais, nunca mais. Como eu tinha ficado contente com o resultadoartístico e o problema do dinheiro foi uma briga, preferi não ir. Euganhei pouquíssimo, poderia ter ganho uma casa pra morar, que ainda nãotenho, aos cinqüenta e três anos. E poderia ter sentado a minha bundapra poder trabalhar sem pagar aluguel. Mas eu soube depois que elafalava assim toda noite: "Paguem a Miriam Muniz!" "Naturalmente não era ela quem cuidava do dinheiro. Era o pai, oadvogado. Eu ganhei pouquíssimo, mas não desisti. Eu não tinha ninguémque cuidasse das minhas coisas, não tinha advogado - acho que saí daIdade Média -, e eu era uma mulher independente e nem sabia do queestava falando. Independente nada, uma boba, uma idiota, não admitiapalpites na minha vida. Quando eu caía na real era uma imbecilperturbada. "A Elis devia sentir isso em maior grau, porque ela queria fazer a USP -imagine! - pra poder se colocar melhor, não fazer grossura, secomportar. Quem sabe arrumando o intelecto as outras coisas seassentassem. E eu resolvi fincar o pé, porque achava que o Naum, comocenógrafo, tinha direito a ganhar uma porcentagem. Eu queria dar umempurrão nisso e pensava no Flávio Império, que nunca tinha conseguido.Eu queria forçar essa barra. Eu acabei tendo que repartir com o Naum.Eu fui a coordenadora do espetáculo, de criação, o texto é assinado pormim, duas coisas das quais eu abri mão nos meus direitos pra eles. Euestava tão apaixonada por ela e não me preocupei com o que ia ganhar. Enaquele tempo eu era bem louca pra não pensar mesmo nisso. Eu sempretive umas coisas assim de sagrado na minha arte, coisa babaca da minhageração. Eu acreditava que não dava muito certo misturar dinheiro earte. Me estrepei. Porque ela tinha pessoas que cuidavam disso pra ela.Foi imbecilidade minha. "Quando acabei de montar o show, fui embora pra casa e dormi cinco dias.Desmaiei, fiquei doente. Eu ganhei quinhentos mil cruzeiros, acho queera um milhão que foi dividido com o Naum. Fui para o Macunaíma,coloquei um talão de cheque na minha frente e fui fazendo outros. OSílvio ditava até sobrar cinqüenta mil cruzeiros, que eu compreipresentes de Natal. Foi um trabalho de dia e noite, i.) assim como a doença do Tancredo. E saí do Macunaíma, e quando saí oSílvio me deu cem mil cruzeiros pela sociedade. Quer dizer, negócio dedinheiro eu nem posso começar a falar. Hoje, quando trato de negócios,tenho uma pessoa que negocia pra mim. "Quando Elis chegou no Macunaíma e começou o trabalho com a gente, disse

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que estava com um problema de trava na voz. Que não conseguia soltartudo o que podia. Na hora de cantar doía tanto que parecia que a vozestava desaparecendo. E foi uma mexida emocional muito forte nela. Elaera exagerada, exagerada... Se não fosse o Roberto Freire eu não teriasegurado. Ele estava sempre por perto, feito um fantasma. Teve muitapaciência. Não éramos só nós duas que tínhamos cabeças complicadas.Todos tinham. Teve um dia que pusemos setenta pessoas no palco. Coisasque passam da conta, excedem. E um dia estávamos ensaiando no Macunaímae ela dizia: "Não consigo cantar, não consigo, estou travada". E nessedia ela subiu numa mesinha e todo mundo ficou em volta, cantando ecantando cada vez mais alto, e ela dizia: "Não consigo". E todo mundodando força e pedindo pra ela cantar mais alto e ela foi. Eu saí lá nomeio da rua e gritava pra ela: "Mais alto que quero te ouvir daqui!" Eela gritava e gritava, e as pessoas da rua abriram as janelas e aí eladestravou. Caiu em cima da mesa, chorou, chorou, destravou. E depois euprecisava pedir pelo amor de Deus para ela parar. Eu acho que elaprecisava de alguém que gritasse mais forte do que ela e eu gritei. Eela gostava de uns gritos no ensaio. "No dia da estréia eu estava vestindo um casaco indiano que não tiravahá uma semana, e eu não tomava banho há uma semana. Fiquei de pé naplatéia, encostada, olhando o primeiro ato. Eu já não entendia maisnada, tinha bebido lá dentro e estava de pé. E gostei daquilo, porqueparecia um circão. Saiu tudo como eu queria. O público gostou de cara,no fim do primeiro ato já estava de pé, aplaudindo. "Com o César Mariano eu não tive queixas. Só no fim, quando ele quis daruma de machão e estrear de qualquer maneira. Aí eu dei uma de louca,subi as escadas do palco, sentei no piano e falei: "Eu fico aqui etoco, e você pode assumir o meu lugar de diretor". E fiquei batendofeito louca no piano. Eles ficaram todos me olhando. A Elis fazia ascenas dela, o César fazia as dele, mudo, e eu fazia as minhas. Dissetudo aos gritos, histérica mesmo. Elis devia achar fantástico aquilotudo, exorcizava os demônios. E eu parecia um general promovendo aabertura. Abrir picada feito bandeirante. Brasileiros. . . "Depois da briga nos reencontramos numa boate. E então o Plínio Marcos,muito fofoqueiro, quis fazer a nossa reconciliação, pelo microfone.Quando eu percebi o que estavam tramando, saí por debaixo das mesas.Quer dizer, a medrosa era eu. Ela ficou por lá. Acho que fiquei comvergonha dela, porque me comportei tão mal como mulher de negócios, tãodesequilibrada, tão descontrolada, tão insegura, completamenteignorante, que fiquei com vergonha. Fiquei insegura de me expor naquelemomento a isso tudo. Eu tinha passado coisas tão ótimas com ela, praque ser desagradável? Eu fiquei muito contente porque ela ganhou rios dedinheiro e tudo o que podia e merecia. E mudou. Se transformou numaoutra, entendeu que era maior." Seis meses depois da estréia e no auge de uma temporada retumbante, Elissentiu necessidade de injetar ânimo novo no espetáculo. Voltou aprocurar gente de teatro. O diretor Ademar Guerra, respeitado epremiado, foi o escolhido: - Recebi um chamado dramático de Elis. Aliás, ela sempre fazia essesapelos e, quando eu chegava, não era nada. Mas eu fui para uma reunião

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com ela na casa da Rua Califórnia. Eu não entendia. Estava um clima deenterro, um negócio estranhíssimo. Estava a mãe dela, a Lígia de Paula,atriz de Falso brilhante, e eu. Não conseguia entender o que ela queria.Ela não dizia. Aí eu soube que ela estava tendo problemas com o show. Enão era, na verdade, problema nenhum. Ela dizia que não tinha maisânimo. Se o diretor está perto, ele dá essa injeção. Senão, o ator nãosabe dar essa injeção sozinho. Sente falta de ânimo e não sabe localizarbem. Eu expliquei que num caso desses eu não podia interferir por umaquestão de ética, mas que poderíamos conversar. E fomos indo para oteatro, porque ela tinha que ensaiar uma música com o César. E aí eupercebi que o elenco estava dividido em grupos - a turma do canto, a damúsica, aquelas bobagens. Falei pra Elis que queria reunir todo o elencoe conversar, fazer uma conferência, colocando o trabalho da MíriamMuniz, o que ela tinha feito e a importância disso. Chega uma hora emque o ator quer mudar. Isso é corriqueiro em teatro. Eu disse nesse diaque a Joana d"Arc que a gente conhece do cinema não é a verdadeiraJoana d"Arc. Ela era um soldado, cortava a cabeça dos outros e nãotinha como missão ser padroeira da França. Disse pra Elis: "Se tuamissão é cantar, cante bem ou então não cante nunca mais. Se é por aí,pega fogo, mas não faz drama na hora de queimar porque é muito chato". O desejo de mudança durante a temporada de Falso brilhante era bem forteem Elis, tanto que ela resolveu ser radical até dentro de casa e seseparou de César Camargo Mariano. O show não parou. César conta: - Nessa fase, Elis estava sentindo uma necessidade de renovação total eeu não percebi. Eu também estava envolvido como os outros noespetáculo, mergulhei de cabeça. E, pra mim, não existia nenhumprocesso de separação da Elis, porque dentro da minha burrice - eraburrice mesmo, falta de entender melhor as coisas -, não entendi porque com aquele espetáculo, com os filhos bem, a saúde perfeita, Elisqueria renovar. Dentro dessa renovação, eu também tinha que sambar.Modestamente mesmo, apesar de tudo, me considero um bom entendedor demulheres, mas não percebi que a Elis queria se separar de mim. "Ela estava cansada daquela rotina geral. Aí fui embora, saí quatro diasde casa, e quando chegou no domingo ela veio me convidar pra umapeixada na segunda. Voltamos. Evidente que nas fantasias dela - quefaziam parte da insegurança dela - eu tinha outros casos. E tem umproblema mais sério, que nos perseguiu até o fim do casamento, quandocomeçaram a aparecer as primeiras notícias nos jornais: Elis estáótima, numa fase ótima, graças aos arranjos. Elis antes do César e Elisdepois do César. A partir dessa colocação, os pseudo-amigos, as pessoasque ficam na periferia, principalmente do sexo feminino, que devem meachar bonitinho até hoje, baseados nessas críticas, começaram a falarcoisas pra Elis. O César está brilhando, diziam na nossa frente. Eletem charme no palco. E Elis falou pra mim: "Será que é vantagem pra umamulher se casar com um homem bonitinho e charmoso? Será que isso étudo?" Essas coisas me magoavam profundamente e Elis começou a checar seera verdade que eu tinha outros casos. Não conseguiu. E tudo o que elatinha vivido na experiência do casamento anterior, apesar da distância,ela transferiu tudo, achando que os homens eram todos iguais." Com a mesma vontade com que se separou de César Mariano, Elis quis

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voltar pra ele. Ela era assim mesmo. Impossível fazer projeções decomportamento. Até mesmo Rita Lee se espantou quando saiu do tribunalem agosto de 76 e, condenada à prisão por porte de maconha, foi para acadeia. Lá, recebeu um bilhete de Elis. Era uma folha de cadernoespiral, uma cartinha: "Rita. Beijos. Beijos. Beijos. To aporrinhada. Gosto muito de você. Desde muito tempo. Não quero falarmuito. Que a gente nunca sabe. Mas, dentro do possível, queria que você continuasse pensando em altosníveis. Que você se mantivesse calma. Muito calma. Que ninguém é bobo etodo mundo saca tudo. Te vi ontem, de passagem. Cabelo vermelho. Olhos idem, de choro. Chorei junto porque te gosto. Porque te saco. E porque me lembrei doinverso. Você rindo, dançando, robertocarleando, dando tudo de si,amando. Tudo igual. Que nem nós todos. Amando. E nos danando porqueamamos. Somos de paz. Somos de risos. Somos de flores. Somos desossego. Vou te ver! Juro. Fui hoje e João, meu pequeno, se grilou. Por isso me mandei. Amanhã, depois, qualquer hora, a gente vai se encontrar. Dentro ou fora,sempre a gente vai se reencontrar! Até já! Nós todos te amamos. E estaremos com vocês todos. Beijos. Beijos. Beijos. Elis." Rita Lee conta hoje o que sentiu quando recebeu o bilhete: - Levei um susto. Eu nunca tinha falado com ela. Logo depois que eu saída cadeia, eu devia dinheiro para a Sigla e a Elis sabia. Ela sabia detudo. Me convidou para fazer parte de seu especial de fim de ano para aTV Bandeirantes. Eu fiquei tão comovida com isso que fizemos uma músicaespecial pra ela, Doce pimenta. Pimenta, porém doce. A primeira vez queeu conversei com Elis foi no dia da gravação desse especial. Ela foisuper simpática comigo, nem mencionou nada da prisão. Comentava demúsica, do lance do rock e que ela não era contra o rock. Comentouaquilo que o Henfil tinha dito sobre mim - que eu fazia mal pró Brasil,que o Brasil não precisava de mim. E eu disse pra ela que tinha ficadotriste com isso porque achava o Henfil um barato. Ela ficou louca,disse que ia nos reaproximar. E de certa forma ela acabou nosreaproximando. Me lembro que o César estava meio estranho nessagravação, acho que ele não gostou da idéia e se recusou a tocar junto.E nós fizemos o número com a banda da Elis, menos o César. Cantamos,ensaiamos pouquíssimo, e eu estava me cagando de medo diante da maiorcantora do Brasil. Me lembro que a gente foi ao banheiro pra fazer amaquiagem. Eu mexia nas coisas dela. Ela mexia nas minhas.Experimentamos batom uma da outra. Era uma coisa nova, que eu sentiaque não tinha a menor intenção de machucar, de me escorraçar porque eufazia rock, que até então era uma blasfêmia. O que eu sentia era umavontade grande dela saber como é que se fazia rock. Ela não tinhapreconceito nenhum. Ela de repente aparecia com o cabelo pintado devermelho e dizia: "Pintei igual o seu", sem o menor constrangimento,sem dizer nada. Ela sempre foi desse jeito comigo, a partir desse

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encontro no banheiro. "Me perdoem, os dias eram assim." Vítor Martins (Aos nossos filhos) Capítulo 8 No comecinho de 77, Elis ficou grávida pela terceira vez. Tirou Falsobrilhante de cartaz e comprou uma casa nova. Foi morar no alto daCantareira, São Paulo, longe da poluição, perto do mato, sem telefone,com o marido, os dois filhos e um cachorro são-bernardo. A paz nasmontanhas. Mas lá embaixo, na cidade, o outro lado da família de Elisestava em guerra. Elis tinha criado uma empresa, a Trama, para a produção de espetáculos.Tinha três sócios. Rogério era o diretor executivo. Seu Romeutrabalhava na firma, não era sócio. Ou seja: Elis e Rogério erampatrões do pai. Claro que não deu certo. Rogério: - Eu comecei a me atritar com ele. Aquela coisa do pai que é funcionáriodo filho. Eu era o patrão e ele não me obedecia, fazia as coisas dojeito que achava que era pra fazer. Não tinha o menor respeito por mim.Tive que despedi-lo. A Elis não conseguiu segurar a barra dele. Nuncamais se falaram. Nunca mais mesmo. Elis conseguia ser gelada quando queria. Quando semudou para a Cantareira, deixou de pagar o aluguel da casa dos pais eseu Romeu ficou desempregado. Com o dinheiro da venda de um apartamentode Elis, seu Romeu comprou um bar no bairro de Indianópolis, o mesmoonde viveu até morrer, em 84. O mesmo onde dona Ercy trabalha até hoje. Na Cantareira, Elis tinha o maior prazer em cozinhar para os amigos, emreceber bem, exibir seu pequeno latifúndio: três mil metros quadradoscom uma casa pré-fabricada abaixo do nível da rua. Elis gostava deplantar, de brincar com o cachorro, de nadar na piscina. Curtia agravidez de Maria Rita entre a casa e o trabalho. Com aquela barriga eo cansaço acumulado de Falso brilhante, nem pensar em subir no palco.Incentivou o marido a fazer um show só dele e os músicos. Elis queriatrabalhar como assistente de direção. O diretor escolhido foi OswaldoMendes, jornalista, ator e diretor de teatro. No fim da temporada deFalso brilhante, César Mariano tinha composto várias músicas e temasrelacionados com São Paulo. Elis convenceu César a usar esse materialno espetáculo. Queria que ele mostrasse o trabalho só dele. Não o dela.Oswaldo Mendes conta: - Ela respeitava muito a hierarquia. Como um músico respeita o maestro.Anotava tudo, ia a todos os ensaios. Era muito caxias. Certo dia, memandou um bilhete: "Me desculpa, mas em casa não tem nada e eu precisoir ao supermercado". No fim dos ensaios, de assistente Elis passou a diretora, já que OswaldoMendes viu-se obrigado a substituir a atriz Lígia de Paula nainterpretação dos textos que ele escreveu para o show São Paulo-Brasil.Pouca gente foi ao imenso Teatro Bandeirantes, o mesmo onde o casalhavia batido todos os recordes de bilheteria. Falso brilhante ficou umano e dois meses em cartaz. Grávida de sete meses, Elis fez um único show em São Paulo. Foi noAnhembi, uma promoção do programa O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan,

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programa comandado por José Eduardo Homem de Mello, o Zuza. Ele medisse que Elis dividiu seu cachê com os artistas novatos queparticiparam do espetáculo. Maria Rita nasceu em setembro de 1977. Dois meses depois Elis estreou umnovo espetáculo em Porto Alegre. Ela tinha um contrato com o TeatroLeopoldina e foi cumpri-lo. Não queria fazer apenas um recital, queriainventar alguma coisa. E, como sempre, escolheu parceiros para suasinvenções. Dessa vez não foi buscá-los no teatro, mas na música: osletristas Aldir Blanc e Maurício Tapajós. O espetáculo Transversal do tempo era pretensioso. Elis me contou ementrevista publicada na revista Veja, em outubro de 78 - quando oespetáculo finalmente estreou em São Paulo -, que a idéia do shownasceu dentro de um táxi, no vale do Anhangabaú, durante umamanifestação estudantil. Na confusão, os carros não andavam. E ela lá,grávida, trancada dentro do táxi, esperando: - Você imagina saídas, mas o sinal não abriu, o que podemos fazer?Ficamos sentados dentro de um táxi, numa transversal do tempo,esperando. Não te perguntam nada, não te pedem opinião... A angústia, aclaustrofobia e também as várias fugas estão dentro do repertório. Aalienação que pode vir através dos embalos de qualquer dia da semana. Narealidade, não é um espetáculo feito para dançar. Alerto que osbailantes se sentirão muito agredidos, portanto não me cobrem. Sequiserem assistir já estou avisando antes. Também não estou dizendo quetodo espetáculo deva ser assim, e também não quero dizer que todos osoutros farei desta forma. Mas eu peço desculpas, usando as palavras doVitor Martins: "Me perdoem, os dias eram assim". A partir do momento emque resolvi que minha arte deve ter ligação com a realidade em quevivo, mínima que seja, lamento imensamente a cara amarrada, a falta deespaço, a falta de amigos. Também não fui preparada para isso, é o queme está sendo dado para digerir. Gostaria que fosse diferente. Mastambém, como a maioria das pessoas, estou esperando o guarda acionar amudança de cor do sinal. Enquanto isso, eu canto um sinal de alerta. . .o partido político, o MDB - com o qual você conta para ser de oposição,arregla, e quarenta é um saem da sala, se escondem debaixo do tapete ouno banheiro. Isso é uma porcaria quando você está nas portas de 15 denovembro e tem que votar nesse partido de novo. Agora, vai votar nooutro? Não, vota nesse e continua tudo na mesma. Esse é o impasse, afalta de escolha, a falta de espaço, de ar, de confiança, de relaxo. Elis era muito articulada. Sabia propor e defender idéias. Às vezespassava por profunda conhecedora de assuntos sobre os quais apenas tinhaouvido falar. Mas parecia estar sempre com a antena ligada. No diaseguinte era capaz de ensinar ao mestre o que aprendera e com umdespudor desconcertante. A gente ficava pensando: será que ela estáacreditando mesmo nisso? Eu hoje tenho certeza que Elis acreditava emsuas próprias histórias e fantasias. A gente que transitava em tornodela reconhecia seu poder de sedução. Era desconcertante mesmo falandoverdades de cinco em cinco minutos. Essa nossa entrevista aconteceu na casa de Walter e Orfila Negrão, nobairro das Perdizes. Era uma espécie de segunda casa de Elis. Semtelefone na Cantareira, era na casa dos amigos que recebia recados e

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chamadas. Orfila, nessa época, mudara de atribuições, mas continuavatrabalhando com Elis. Agora era ela quem cuidava dos negócios pessoaisda amiga. Foi ela quem vendeu a casa do Brooklin, quem comprou oapartamento da Avenida Paulista - onde se instalou a Trama - e quemaplicava o dinheiro de Elis. E Elis ocupou tanto espaço nesta casa, que provocou o ciúme da filhamais velha do casal, além de perturbar a sua rotina. Promovia festas,churrascos, reuniões de gravadora, entrevistas coletivas, e se esqueciade avisar os donos da casa. Embora constrangido, já que precisavatrabalhar em casa, Walter Negrão se deliciava com a sua hóspede. Eleadorava conversar com ela e, de certo modo, se sentia gratificado com oprazer de estar no convívio com Elis. Na entrevista, eu perguntei a Elis uma coisa que me intrigava: quaiseram as imposições de cima pra baixo de que tanto reclamava. Ela disse: - Eu falo isso porque quando pintei tinha vinte anos e sequer mepermitiram, num determinado momento, fazer as estripulias normais de umaadolescente. Já começaram jogando uma sobrecarga violentíssima, quetalvez eu tivesse condições de arcar com ela agora, aos trinta e três.Foi uma violência, mas se foi cometida, eu permiti. No final das contas,uma mão lava a outra. E as diversas fases pelas quais fui passandodeterminaram-se, evidentemente, por um processo de amadurecimento etambém por sufocos momentâneos. Parti do princípio de que uma cabeçaconturbada não consegue organizar atos lúcidos. Então acho que corri aosabor do vento numa determinada época da minha vida. Mas agora, quandoestou agindo, agitando, sentindo capacidade para desenvolver, criar,retomar e iniciar uma série de coisas, não é possível fazer julgamentos.Eu ouvi pessoas dizendo que o Chico Buarque já era quando tinha vinte ecinco anos de idade. Uma das coisas mais interessantes que me disse nesse dia foi sobre afase em que se apaixonou pelo som da própria voz: - Quer dizer, uma pessoa estrábica, baixinha, gordinha, tudo aocontrário, e, de repente, vira a Cinderela. E Cinderela mesmo comabóbora à meia-noite e fada madrinha - que era a TV Record, O Fino daBossa. Mas as pessoas não dão tempo ao tempo, não desculpam ainfantilidade. Isso realmente é uma pobreza. Eu me vi, de uma hora paraoutra, na sala com o príncipe, e podia até ser que o sapatinho decristal coubesse no meu pé. E uma certa bronca que tenho é que não mederam um tempo para curtir esse barato. Começou uma polêmica em tornoda minha pessoa tão forte - sobre coisas que eu realmente tinha feito eoutras que diziam que eu havia feito. E embolou, confundiu, e atéorganizar tudo de novo demorou uns cinco, seis anos. Se a pressão nãofosse tão forte, talvez eu tivesse passado por essa fase não em cinco,mas em um ano e meio. As pessoas muito jovens, quando se sentempressionadas demais, parece que fazem questão de reincidir no erro paramostrar que elas é que estão certas. E foi assim não só com a minhacarreira, mas com minha vida pessoal também. Até que fiquei grande,virei mãe, cresci. Já não tinha mais mãe, eu era a mãe. Aí voltei a medar o direito de administrar minha vida e fazer dela o que bementendesse, desde dormir com quem quisesse até trabalhar com quemresolvesse. E até mais recentemente, a me mandar profissionalmente, eu

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ser meu próprio patrão. Acho que esse processo, mesmo lento, é umachance que deveria ser dada a toda e qualquer pessoa. Porque, afinal,quem não deu as suas mancadas? As mancadas de Elis. Em 1972, durante a Semana da Pátria, Elis foiconvidada - ou convocada - a cantar nas Olimpíadas do Exército. Cantou.Cantou o Hino Nacional. Ela foi esconjurada pela esquerda, mas só umapessoa se manifestou publicamente contra ela: o cartunista Henfil. NoPasquim, Henfil enterrou duas vezes Elis no cemitério dos mortos-vivosdo Caboco Mamado. Segundo o testemunho de Ronaldo Bôscoli, Elis foi obrigada a cantarnesta olimpíada sob ameaça de prisão. Ela havia dito em entrevista, naHolanda, que o Brasil era governado por "gorilas". A própria Elis mecontou essa história, aumentada, romanciada, onde ela assumia o papelde uma heroína dominada pelas forças armadas. Quando viu seu nome nocemitério dos mortos-vivos do Henfil, Elis ficou vesga. Numa entrevistaao Jornal do Brasil esculhambou Henfil e os cartunistas. Anos depois dabriga, Henfil conta a sua versão da história: - Foi igualzinho hoje. De repente, os artistas são arrebanhados pelogoverno, só que - eu não sabia - debaixo de vara, de ameaças, parafazerem uma campanha na Semana do Exército. O que eu vi, na realidade,foi o comercial de televisão. Me aparece o Roberto Carlos dizendo:"Vamos lá, pessoal, cantar o Hino Nacional". E, de repente, a Elis surgeregendo um monte de cantores, de fraque de maestro, regendo o HinoNacional. E nessa época nós estávamos no Pasquim, e eu, mais que osoutros, contraatacando todos aqueles que aderiram à ditadura, aoditador de plantão. E voltei duas vezes ao assunto, já que ela falousobre mim no Jornal do Brasil. Eu só me arrependo de ter enterrado duaspessoas - Clarice Lispector e Elis Regina. Tentaram me forçar adesenterrar o Carlos Drummond de Andrade. Não me arrependo. Prá mim, naépoca, as pessoas famosas eram figurinha de revista, retrato. E euestava criticando isso. Eu não percebi o peso da minha mão. Eu sei quetinha uma mão muito pesada, mas eu não percebia que o tipo de críticaque eu fazia era realmente enfiar o dedo no câncer. Quando nosencontramos anos depois, através de Lone Cirillo, fomos jantar numacantina perto do Teatro Bandeirantes e ela fez questão de sentar naminha frente. Estavam todos os músicos, e de repente ela começou afalar: "Pó, bicho, eu te amo tanto, bicho, te gosto tanto". E eu já nãogostando dessa história de bicho, porque eu não gostava do jeito comoela falava, nunca gostei. Daí me irritei e disse: "Elis, o que você estáquerendo dizer com isso?" Aí ela começou a chorar. As pessoas, na mesa,enfiaram a cara no prato, todos sabiam o que eu tinha feito, só eu nãosabia. Ela disse: "Pó, bicho, você me enterrou", e começou a meesculhambar dizendo que aquilo foi uma covardia, que ela estavaameaçada. Bom, tinha dois textos ali. Um deles era a explicação que elaestava me dando por estar chorando. O subtexto era: "Pó, eu gosto tantode você, me identifico tanto com suas coisas, com o Fradinho". Aliestava uma pessoa me declarando profunda amizade. Eu não falei nada.Nunca cheguei pra Elis pra dizer que eu não tenho que saber da vidaparticular dela pra justificar sua atitude naquele momento. Elis nuncame perguntou se eu estava atacando porque ela estava defendendo um

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regime militar que queria matar o meu irmão. Jornalista nenhum do mundotem que perguntar a Mengele se ele estava com dor de dente quandomandou matar milhões de judeus. Essa matéria pode sair no segundocaderno, depois. Resolvi engolir. Ela terminou de falar, entendeu o meusubtexto: "Tá, Elis, eu aceito". Na verdade, levei uma cantada afetivanuma linguagem complicada, mas ela entendeu e voltamos a conversar. Oresto da mesa, César Mariano, Lone Cirillo, os músicos, levantaram osolhos do prato e jantaram entre si. Ela ficou falando só comigo. Contavauma série de coisas e, de vez em quando, voltava ao assunto. Eu, então,olhava de cara feia e ela mudava. Eu sei que muitos personagens queviveram essa história das Olimpíadas do Exército faziam issoindependente de motivos e de pressão militar por trás. Evidente que osmilitares estavam pressionando o país inteiro. Eu sabia disso, osmilitares faziam censura prévia no meu jornal, presença física, tododia. Inclusive foram os militares que censuraram o cartum da Elis ondeestava escrito virundum, virundum, virundum. A referência à música nãopôde ser publicada. E era justamente isso que eu estava criticando: seas pessoas não estavam resistindo à pressão, como é que iríamos seguraresse país? Bom, eu era um dos que estavam enfrentando. Então tinha todoo direito de criticar uma pessoa que ia para a televisão se entregar.Eu não mudei em nada e ela percebeu isso. Mas me interessou a amizadedaí por diante. E, mesmo antes, por que é que eu vou deixar de gostar deuma pessoa porque ela fraquejou? Bem, reinauguramos a relação e euestava curioso. Tinha um jogo afetivo no meio disso tudo. E desdecriança eu desmonto relógios. A curiosidade é uma coisa brutal em mim.Fiquei curioso com ela, mas, ao mesmo tempo, com muito medo, porque eusabia que aquilo era um vulcão afetivo e que quem entrasse ia se afogar.Eu percebia que essas pessoas caíam no vulcão dela e que eram pessoasmuito fracas também. Passei a dançar com ela com a mão no ombro. Commuito cuidado. E ela começou a me chamar muito para ajudar a bolaralguma coisa no show, o programa dela na televisão, na Bandeirantes.Bolei uma porção de coisas, mas o Guga mandou tirar tudo. íamoscontracenar juntos falando das greves, tínhamos bolado um jeito de umpalanque pra falar de eleições e coisas assim. Enfim, comecei aparticipar e ela parecia querer uma relação maior do que eu queria. Elaqueria que eu pudesse raciocinar com ela sobre determinadas coisas.Inclusive, no dia em que o programa da Bandeirantes foi ao ar, ela foipra casa da minha irmã pra assistir lá. E a minha irmã, surpresa, metelefonou dizendo que Elis estava lá. Ela ficou timidíssima, encolhidana cadeira. Parecia um ratinho enfiado debaixo do cobertor. E aípassamos a, de vez em quando, ter uma relação quase profissional. Eudava palpites, mas nunca deu pra eu entrar com as minhas idéias. Epassamos então a essa vida dupla: conversar particularmente da formamais aberta e criativa possível e nos sentindo incapazes de colocarisso em andamento. E ela - eu notava, tinha a preocupação marcada aindapelo episódio do enterro - de me provar que ela tinha mudado. Quecontinuava uma pessoa de confiança ideologicamente. E me colocando isso,sem nunca ter chegado perto e dito: "Henfil, qual é a tua?" Como se eufosse o inspetor de quem não é de esquerda, ela ficava querendo provarpara mim que seu comportamento continuava de esquerda. Aí me mandava

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dinheiro: do show que fez no Canecão, inclusive, pra que eu entregasseprós grevistas em São Bernardo. Me fez isso duas vezes seguidas. Emuitas vezes eujinha que sair do Rio de Janeiro e arrumar um jeito dechegar em São Bernardo. Para evitar qualquer coisa, pedi um recibo. Elaouvia dizer que tinha um manifesto rolando, me pedia para arranjar praela assinar. E eu não gosto de manifestos. "Na realidade, eu percebo que Elis não queria me namorar. Ela queria umarelação afetiva real comigo. Havia a vontade dela de ter um irmão, damaior confiança, a quem ela pudesse contar o que contaria a uma amiga,mas como parece que não há muita fidelidade entre as mulheres. . .Quando a pessoa começa a te dar uma certa ascendência é porque realmentenão quer ter uma relação amorosa com você. E ela queria isso comigo:alguém com quem conversar sobre todos os assuntos. Eu tenho que falartanto de mim porque ela me elegeu pra ser uma coisa que ela queria. Elaqueria muitos irmãos. Namorar, ela namorava com a turma da zona norte.Namorava aquele cara que representava um certo risco, que não era doesquema dela. No mais, queria muitos irmãos que pudessem ajudá-la nahora em que a turma da zona norte estivesse exagerando. Segundo, quepudessem inventar com ela coisas que não inventaria com a turma da zonanorte. Vários homens tiveram uma relação muito paternal com ela. OAdemar Guerra era assim. Elis queria arrumar encrenca na rua e que nósfôssemos salvá-la depois. Tinha que ser bem mais velho, bem mais largadopara amparála em casa quando apanhava do namorado. "Ela telefonava todos os dias lá para casa, pra conversar sobre diversosassuntos. A partir de um determinado momento, eu não tinha maiscondições de atender. Eram três ou quatro horas no telefone. Eu passei afazer cartum com ela no telefone e começou a cair a qualidade. Aí passeia pular fora dos telefonemas. Um dia, ela ligou, eu peguei o telefone efalei: "Oh, que saudade, quero te ver, vamos se encontrar amanhã?" Elamarcou um almoço para o dia seguinte. Não foi. Dois meses depois,morreu." "O peixe é um animal que enxerga pra frente e pra trás. Anda na verticale na horizontal. Então ele pode se posicionar em relação a um ponto deene maneiras. Hoje está vendo pela direita. Amanhã pela esquerda, depoispor cima e por baixo. As pessoas do signo de Peixes se dão o direito demudar conforme estão sentindo a situação." Antônio Carlos Siqueira Harres, o Bola Capítulo 9 Em 1979, o gaúcho Antônio Carlos Siqueira Harres, o Bola, fez o mapaastral de Elis Regina, a pedidos. Um dedicado estudioso da astrologia,sério, Bola teve três encontros com Elis no Rio. Ela estava preocupadacom uma mudança de gravadora. Tinha uma proposta para assinar com aWarner e cantar no Festival de Jazz de Montreux. Com a interpretação domapa de Elis, Bola nos esclarece: - Nosso encontro foi em meio a um tumulto, e percebi que ela levava umavida muito agitada, tinha muita gente em torno dela. Ela estava com umaperspectiva de fazer um trabalho com um músico americano. E eu disseque ela tinha condições astrológicas favorecidas para coisas de longadistância. Mas o nosso trabalho foi muito interrompido devido aconstantes telefonemas. Me pareceu por aquele contato que era ela quem

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decidia tudo. Ao mesmo tempo em que eu ia observando o seu mapa,interpretando, ia olhando, vendo como ela reagia, como ela era naquelesmomentos. "Ela tinha o Plutão no signo de Leão, na primeira casa astrológica, e omeio do céu em Áries, que lhe davam características de liderança emtermos profissionais, e eu senti que em tudo ela queria botar a marcadela. Em todas as decisões, todos os detalhes, ela intervinha. Ela tantocomandava a empregada, como falava com o irmão no telefone sobreproblemas administrativos, como tratava com os músicos. Percebi porsuas conversas pelo telefone que ela tinha um espírito crítico muitoaguçado. Elis é de Peixes com Júpiter em Virgo. Então, essacaracterística astrológica é de uma pessoa que tem uma busca muitoansiosa pela perfeição. Sol em Peixes, ascendente em Câncer,caracterizava uma pessoa muito emotiva, sensível e muito perceptiva. Aspessoas de Peixes e Câncer têm uma casca grossa pelo lado de fora e umaparte mole pelo lado de dentro. Então, nos primeiros contatos você nãoconsegue ter muita intimidade com elas. São pessoas que falam pouco doseu íntimo. E é muito difícil você ter acesso à intimidade deles. É porisso que eles buscam a arte, o canto, a poesia, a pintura, outrasformas de expressão e comunicação para poderem traduzir esse sentimentointerno que têm. A palavra já é uma coisa difícil para eles. Acho queela devia se sentir contrariada de ser pressionada para se posicionar,para se colocar e explicar as suas posições. Essas situações sempreeram conseguidas à força. Naturalmente, não é pessoa de dar muitaabertura. "As pessoas do signo de Peixes e Câncer, dois signos de água, de grandeemotividade, sensibilidade, fantasia, imaginação e uma certa rigidez.Nos primeiros contatos são muito formais, mas você sente que elas estãocaptando tudo, filmando, sentindo. Essa é a dificuldade dos piscianos -Peixes e Câncer, eles dão a impressão de não estarem interessados e, naverdade, estão embebidos. Por dentro têm uma ótica hemisferiça queengloba tudo, mas se colocam meio numa posição de defesa até sentir quepodem confiar em você. Depois que ele sente isso é uma mistura, umenvolvimento muito grande e forte, onde às vezes não tem nem capacidadede discernir o que claramente é dele e o que é do outro. Para conseguirfazer isso, às vezes é preciso conquistar na base da porrada, daexplosão. Embora os piscianos sejam por natureza pacíficos,contemplativos, eles têm momentos de explosão. É a maneira que têm deretornar ao seu centro, de se desintoxicar dessa mistura que eles criamnas relações com os outros. "Peixes e Câncer têm outra característica: é o acúmulo de coisas que nãosão colocadas, não são ditas. De repente, tem a famosa gota de água.Então essa pessoa podia chegar em casa, não encontrar a cadeira quegosta de sentar no lugar e fazer um escândalo. Ninguém entende queaquilo é apenas o que transbordou. "A astrologia não caracteriza as pessoas por qualidades ou por defeitos.Ela descreve naturezas. A mentira, por exemplo, não é umacaracterística, é uma conseqüência de uma insegurança. O mapa de Elismostra que sua origem humilde, proletária, fazia com que ela carregasseum certo sentimento de inferioridade. Isso dava a ela uma necessidade de

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se expandir e de crescer e de mostrar para o mundo que ela realmentetinha valor. Acho que no íntimo mais profundo de seu psiquismo elasentia uma insegurança em relação aos méritos e ao valor dela. Elaprecisava constantemente de um reconhecimento dos outros e de umaafirmação dela mesma sobre os outros. Acredito que, no momento em queela caía em si, percebia suas limitações, entrava em processosprofundos de depressão. Era uma coisa talvez da qual ela fugisse,porque sabia o quão profundo podia ir. Acho que ninguém teve acesso aisso. Era uma maneira muito reservada de viver, muito privativa. "Ela tinha o Saturno na casa 12, um quarto dentro dela que só ela tinhaacesso e a chave para entrar. "Essa necessidade de crescer, de se projetar, fazia parte de Elis. Elatem também uma quadratura de Lua em Marte, em Aquário, que mostratambém uma natureza meio beligerante no sentido da discussão e dequerer competir em termos de idéias. Ela gostava de disputas e tinha atéuma espoleta curta pra isso. Ela gostava da discussão, e, nesse momento,jogava qualquer argumento que viesse à cabeça, não se importando seaquilo correspondia exatamente à realidade ou não. Ela fazia isso sópela necessidade da discussão e de não sair perdendo. "Quando você analisa o mapa astrológico de uma pessoa, às vezes você nãotem condições de abordar certos pontos. E Elis, naquela época, estavamuito preocupada com o momento que estava vivendo e menos em descriçõesda personalidade dela. E já pelo fato de ser uma pessoa assim, comodescrevi, não dava muita abertura para uma penetração. Ela foi primeirobastante reservada comigo, para ver realmente qual a minha capacidade.Ela não era uma pessoa que se deixasse levar na conversa. Tinha muitacapacidade para avaliar o talento de alguém. Tanto é que ela lançoumuita gente nova. Eu me senti imediatamente no raio X dela. Quando eufalei: em tal idade aconteceu isso, com detalhes minuciosos e coisasque eu não poderia ter lido em jornais, ela percebeu que eu estavalevando pra ela coisas com fundamentos reais. Mas no começo foi céticae cautelosa. Depois me pediu para fazer o mapa de todos os filhos e o doCésar, com quem falei uma vez. Nunca consegui entregar. Elis deixou tudopago. "Nas nossas conversas ela queria saber como se sair bem nessa troca degravadora, melhores datas para lançamentos de discos. "No nosso segundo encontro ela praticamente só escutava, não me davamuitos elementos. E anotava tudo o que eu dizia. A última vez que nosencontramos falei muito sobre os filhos, a questão da família. "Ela tinha uma quadratura de Saturno com Netuno, o que lhe dava umasensação de estar sendo enganada. Sempre houve muita confusão com essesnegócios de contratos, muitas coisas não esclarecidas. Uma certanebulosidade nessa área. Era uma pessoa que tinha uma atratividadematerial bastante grande e uma capacidade para atrair esses recursos eos meios para ganhar isso. "Como tinha Sol em oposição a Júpiter, a figura do pai não dava a ela asensação de uma pessoa para protegê-la como queria. E, com a mãe, umprotecionismo muito grande dela para com a mãe e da mãe pra ela. Mas,ao mesmo tempo, ela tinha uma necessidade de espaço, de liberdade, depoder respirar um ar diferente. Ela devia tratar a mãe meio hostilmente,

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no sentido de não ser possuída pela mãe. Quer dizer, a mãe tinha umaproteção muito grande sobre ela e uma certa possessividade. E ela,viceversa com a mãe e os filhos. Elis tinha um alto grau de apego atodas as pessoas que agregava em torno dela. Mas, ao mesmo tempo, tinhauma necessidade de não sentir essa simbiose da dependência. Era umacontradição, porque Marte em Aquário e Plutão na primeira casa indicamuma pessoa que quer ser independente. "Ela tinha uma insegurança quanto ao direito dela de dizer pró outro oque ela estava pensando. Por causa disso tinha que inventar umahistória que tornasse aceitável o que ela queria dizer. Tinha que daruma credibilidade ao que dizia se ancorando em argumentos, em pessoas eem circunstâncias. E de uma maneira que as pessoas não podiam checar.Quer dizer, num outro plano de imaginação e fantasia que não se tinhacomo contestar. Ela jogava as histórias com tanta veemência, com tantaconvicção, que qualquer dúvida ia levar a relação com ela a umconfronto pessoal. Havia também o perfeccionismo, uma obsessão. Faleipra ela da tendência que tinha de ser mal interpretada nas declaraçõesdela. Que ela tivesse sempre cuidado com isso, porque facilmente os argumentos que ela colocava eram mal entendidos. O peixe é um animalque enxerga pra frente e pra trás, anda na vertical e na horizontaldentro da água. Então ele pode se posicionar em relação a um ponto deene maneiras. Hoje está vendo pela direita, amanhã pela esquerda, depoispor cima e por baixo. As pessoas de Peixes se dão o direito de mudarconforme estão sentindo a situação. Os outros não entendem isso. É umacaracterística da pessoa, os piscianos são paradoxais. Esperar umalinearidade de pensamento deles é bobagem. São totalmente instáveis eimprevisíveis. Mas são extremamente férteis e ricos, e abrem horizontese te mostram coisas que você jamais imaginava ver. Como Elis gostava dochamado batequeixo, algumas pessoas certamente não a perdoaram. Quandoexplodia, ela falava tudo de uma só vez, e quem estivesse por perto queagüentasse o pato. Ela tinha um talento para apertar no ponto fraco daspessoas." Cá na Terra, a carreira de Elis tentou um novo vôo internacional. Seriaum dos cartazes da "Noite Brasileira" no tradicional e conceituadoFestival de Jazz de Montreux, que acontecia anualmente naquela cidadeda Suíça. Segundo o relato de César Mariano, ele, Elis e os músicosentraram no palco excessivamente nervosos. Tinham visto na platéiacelebridades como Chick Corea e Rick Wakeman. Tremeram. Quando a bandaentrou no palco e começou a aquecer para a entrada de Elis, maisnervosismo. Quando ela entrou fazendo um vocalzinho lá do fundo, aplatéia delirou. Todo mundo de pé, aplaudindo. Elis se desconcertou.Chorava e suava. Passou metade do show mexendo no olho, incomodada como rímel que escorria. Alguém via isso dos bastidores. O presidente daWarner, André Midani: - Aquele show, como música, foi uma tragédia. E, como tragédia, foi umagrande tragédia grega. No meio do show assisti a uma menina suando,branca, que não podia mais nem ficar em pé. Peguei um copo de água eestendi o braço. Ela pegou o copo tremendo, bebeu um pouquinho e seguiucantando. E melhor, e melhor, e apoteótico. No jantar, mais tarde, elame disse: "Eu me lembrei que era filha de uma lavadeira. Como é que eu

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estava naquele palco?" Como, eu pensei, depois de ter pisado em váriospalcos do mundo, Elis quase chega à beira do fracasso e, no meio,renasce? Na volta de Montreux, Elis mandou Rogério me ligar. Queria marcar umencontro: um jantar na casa do irmão. Queria conversar comigo. Quandocheguei, surpresa. Elis estava na cozinha, mexendo com colher de pau ospratos de um jantar chinês. Cortava os temperos direitinho, com métodoe organização. Elis sabia controlar uma casa com crianças. Quando nãotinha com quem deixá-las, levava junto. Jantamos, Elis, César, Rogério, Biba e eu. Pedro e Maria Rita estavamtambém. Nessa noite, Elis falou o tempo todo sobre músicos, sobre comotinham uma outra vida, como eram complicados. Dava muita risada. Depoisdo jantar, Elis pôs pra tocar a fita de sua apresentação em Montreux.Queria minha opinião. Estava cantando mal? A fita era uma consagração.Palmas no meio das músicas. A voz estava visivelmente trêmula, mas elanão cantava mal. Na verdade, anos depois, quando ouvi de novo a fitaque a Warner tinha decidido não lançar, percebi falhas na interpretaçãoe até cheguei a concordar com ela: não devia mesmo virar disco. Oencontro de Elis com Hermeto Paschoal em Montreux foi uma batalha, uminsano duelo musical. Elis parecia querer desafiá-lo e mostrar mais emais. Hermeto parecia querer domá-la ao piano. Encerrado Montreux, Elis começou a se preparar para o show de lançamentodo disco "Essa Mulher", seu primeiro trabalho para a Warner. LeonardoNetto, assistente de André Midani, uma cabeça jovem e inteligente nomundo do disco, criou para Elis uma nova imagem de mulher. Cabelos maiscompridos, Elis se vestia com discrição e classe. A maquiagem realçavauma beleza suave. Gravou também um disco suave. Para ajudá-la na direção deste show, Elis chamou Oswaldo Mendes, o mesmocom quem tinha trabalhado como assistente no show de César Mariano.Oswaldo conta: - No dia da estréia no Anhembi, estava aquela coisa nervosa, elabrigando com o César. Gritava: "Não deixem ele entrar no camarim!"Quando chegava no palco, tudo mudava. Ensaiamos no mesmo dia e só umacoisa não tinha sido marcada: como ela entrava em cena. Estranheiaquela preocupação de Elis, porque entrar em cena é entrar em cena. Masde noite, na hora de As aparências enganam, eu ia jogar uma contraluz euma outra luz na frente, para iluminá-la inteira, totalmente. Eu nãotinha visto ainda o vestido do Clodovil que ela ia usar. Na hora quejoguei as luzes, ela ficou literalmente pelada, o vestido eratransparente. O maior sucesso do disco e show "Essa Mulher" foi, sem dúvida, a músicaO bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, que setransformou no Hino da Anistia. Um personagem em especial acompanhou deperto o que foi para Elis ter gravado essa música e, mais ainda, o querepresentou pra ela a vitória política na anistia: Henfil, cantado naletra da canção por causa do seu irmão, Betinho, exilado. Seudepoimento: - Do jeito que ela estava percebi que era para largar tudo e ir. Quandocheguei, ela me mostrou uma fita do João Bosco cantando O bêbado e aequilibrista. Eu não me lembro de ter gostado ou não da música. Ela

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ficou chorando o tempo inteiro. O César estava perto e não sabia o quefazer, estava demais. Talvez ela tenha antevisto a importância que teriaessa música, coisa que eu não percebi. Talvez já soubesse que tipo devoz ia colocar, a repercussão que iria ter. Eu fiquei apenas feliz definalmente ter meu nome numa música. Quando ela me chamou a segunda vezpara mostrar o que tinha feito com a música, eu percebi muita coisa. OCésar percebeu mais do que ninguém o que aquela música significava paraElis, para mim. Ele percebeu que aquela música ia me jogar pró alto. Euestava mal, numa fase afetiva ruim, morando em São Paulo de cabeça parabaixo. E estava com um problema de estar na lista negra da televisão. OCésar fez um arranjo pra aquela música que começa com aquele acordeãoparecendo caixinha de tirar sorte. Eu olhei pra ele, que me devolveu oolhar como se dissesse: "É sua". Aquela introdução é do tipo "prepareseu coração pras coisas que eu vou contar". Eu desmontei ali. Quando elabotou a voz, e eu percebi principalmente que ela estava botando mais aemoção do que a técnica, aí eu desbundei. Quando acabou a música,percebi que a anistia ia sair. Estávamos no começo da campanha, que maljuntava quinhentas pessoas na rua. Eu tinha todo o cuidado de falar domeu irmão nas cartas da IstoÉ quando o Aldir Blanc fez a letra quefalava do meu irmão, ele nem sabia o nome dele. Eu percebi uma coisa: aditadura, o governo vai perceber que por trás dessa música não tem quemsegure o momento da anistia. Escrevi para o meu irmão Betinho para elese preparar. "Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz umarevolução." E de fato não deu outra, aquele negócio cresceu de talmaneira que tenho certeza que aquilo pesou para o comício passar dasquinhentas para as cinco mil pessoas. E aí nos comícios era só tocar amúsica e assistir. Acho que seis meses depois saiu a anistia, antesmesmo que a oposição tivesse condições de gerir aquilo, de propor outrasfórmulas. No dia em que meu irmão chegou, ainda havia um clima de saberse ele ia ser preso ou não. Todas as pessoas levaram um gravador com afita da música. E no Aeroporto de Congonhas foi aquela tocação de Obêbado e a equilibrista. Até os policiais ficaram tocados. A TV Globocolocou a música no ar. Betinho chegou, e no mesmo dia levei-o aoAnhembi para ver o show da Elis. Ela interrompeu o espetáculo paradizer que um dos motivos daquela música, graças a Deus, estava presente.Já tinha voltado o irmão do Henfil. Era como se Elis me dissesse:"Estamos quites". Já não me olhava com um jeito culpado. "Elis era a voz do estômago do Brasil inteiro. Eu me sinto agora maistranqüilo, porque passo a ser uma espoleta de uma grande explosão, deuma grande artista. E foi aí que aprendi uma coisa: arte e caráter nãotêm absolutamente uma coisa a ver com a outra, infelizmente. Oufelizmente." "Eu vi a Rita Lee lamber o microfone. Passei anos da minha vida comvontade de fazer isso e com medo de ser eletrocutada." Elis Regina Capítulo 10 Em 80, três dias depois de ter completado trinta e cinco anos, Elisestreou no Canecão do Rio um novo espetáculo: Saudade do Brasil. Era oresultado de um trabalho de meses. No palco, vinte e cinco pessoas:Elis, treze músicos e onze bailarinos. Márika Gidali comandou a dança.

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Marcos Flaksman, o cenário. E, na direção geral, Ademar Guerra, queconta: - Deram a Elis um camarim belíssimo. O Canecão acreditava em estrelas,não em astros. O camarim da estrela era ótimo, e os camarins do restoda equipe eram cubículos. A primeira coisa que Elis fez foi dizer:"Quero redecorar tudo isso aqui!" Chamei ela de lado e falei: "O que éisso? O camarim está ótimo!" E ela: "Fique quieto, tem que ser assim,senão eles não respeitam!" E arremaiou: "E, depois de quem esteve aquiantes, vou mandar benzer". Era a Bethânia. "Durante os ensaios, Elis era muito tímida. Fazia os exercícios com aMárika Gidali porque era solicitada a fazer. Queria fazer, mas morriade vergonha de não ser perfeita. Morria de vergonha de ser normal, denão ser excepcional também numa aula de dança. Ela fazia piada, falava,tentava bagunçar o coreto. E não conseguia. Primeiro, porque a Márika émuito firme e, depois, porque a molecada que estava junto já tinha umacerta prática e não tinha vergonha. Ninguém embarcava. Depois queestreou o show, Elis brigou comigo. Eu estava em São Paulo, elatelefonou e disse: "Você tem que vir de qualquer jeito". E eu,trabalhando num outro espetáculo, não podia ir. Elis ficou furiosa. Maseu sabia que não tinha acontecido nada com o show. Na verdade, só estivena temporada carioca de Saudade do Brasil uma vez. Foi quando oSindicato dos Atores do Rio de Janeiro queria demitir todo o elencopaulista para colocar atores do Rio. Aí eu fui correndo. Elis não dissenada, mas notei pela sua cara que ficou furiosa porque quando me chamoueu não fui. Não passava pela cabeça dela que eu tinha que intervir numproblema como aquele dos atores. Ela talvez não entendesse que sem osatores originais o espetáculo acabaria." Paulo Garfunkel, o Magrão, tocou em Saudade do Brasil. Saxofone eflauta: - Quando viajamos para o Rio, antes da estréia, eu fui com Elis decarro. E eu tinha uma certa tensão na minha relação com ela, que era ofato de eu ser compositor, e se a Elis gravasse uma música minha ia sera glória. Porque a Elis e o César, para nós, eram meio parâmetros dequalidade. E, logo de cara, eu falei pra ela: "Faço música e quero quevocê saiba disso". Quis falar logo e rápido. E ela achou ótimo, foisuperbacana. Ela nunca nos deu um toque profissional de maneira áspera,apesar de ser uma pessoa, algumas vezes, áspera. Mas eu sentia umapreocupação muito humana dela. Para mim, o que mais determinou a nossarelação foi o lado pessoal. Eu vi o humor dela e vi a ira também. Elatinha uma coisa que também tenho, que é o culto da ira. Ser uma pessoairada. Tem pessoas que começam a falar e se inebriam e sentem um putaprazer nisso. Eu gosto, acho superengraçado uma pessoa de mau humor,simpatizo com os mal-humorados. E ela também. Nessa viagem foi umbarato. No Rio ficamos num apartamento alugado pelo Canecão pra todomundo, em Copacabana. Virou um gueto, não no sentido de segregar, masno sentido de ser todo mundo jacu, de São Paulo, paulista. Aí no Rio éque ficamos superamigos. Na penúltima sessão de Saudade do Brasilfizemos uma reza. Ela cantou olhando pra todo mundo, e todo mundo meiochorando. Ela passou uma puta energia pra cada um de nós no olhar. Nãoconheço ninguém que se dê daquele jeito cantando. A gente se encontrava

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sempre para conversar abobrinha, fazer besteira, xingar os outros. ONatan também é um grão-mestre da abobrinha, e era só risada,inebriante. Elis deixou um presente para seu amigão Magrão. Um poema, escritodurante as gravações do disco feito para a Odeon, em 80. Nem ele nemela sabiam o que seria feito com isso. Tinham a vaga idéia detransformá-lo numa letra de música: "Barrica de milho Vidro do puxa-puxa Salame, azeite, pão Vitrina damaria-mole O Correio no balcão Cachaça com Underberger Balança de doispratos A venda do vovô Camiseta e suspensório Calça de pano riscado OPatec de corrente Sanduíche de lingüiça Cerveja com tremoços Caramanchãode chuchu Vinho, escopa, boliche As graças do meu avô Cheiro de café nossonhos Relógio embalando o sono As risadas dos guris O pigarro do juízoO baú verde no quarto O bandoneón do Jucá A Dinda e o Lencinho Branco Minha cama de sanfona A casa do meu avô O calor, o aconchego Cumplicidade no ar A perna esquerda mancando O óculo redondinho A cabecinha prateada De repente, um medo louco Um beijo num fim de tarde Uma ambulância, na maça Esse vazio, vovô..." Natan Marques tocava na boate La Licorne, famosa casa de prostituição dealto luxo em São Paulo, antes de entrar para o grupo e na vida de ElisRegina. À primeira vista, também parece uma pessoa desconfiada, mas ocódigo da sinceridade é o bastante para conquistar Natan. Ele jogaaberto. Natan, por meu testemunho, pelo testemunho de Rogério, e de suamulher, Biba, é seguramente uma das pessoas que mais entendiam Elis.Não há coisa que ele não saiba. Através dela, ou não. Ela geralmentelhe contava as coisas da vida em conversas que sempre acabavam emgalhofa. Para Natan, Elis era uma rainha, e ele era feliz por fazerparte do seu séquito. Além do mais, ele tinha a enorme vantagem de nãoser casado com a patroa. - Durante a temporada de Transversal do tempo em São Paulo, Elis estavanuma encrenca danada com o César, e isso estava começando a passar parao palco. Era o inferno. Eu passei por muita encrenca entre os dois. Àsvezes, sem querer, eu estava no meio. Fiquei muito íntimo. Nuncaconsegui ser aquilo que eu queria com o César. Não sei se, de repente,ele tinha que me aturar ou eu aturar ele. E a Elis vivia me chamando:"Vamos lá pra casa?" Muitas vezes eu ia sem querer, não sabia dizer não.Não sei se eu servia pra algum tipo de segurança pra ela. Ou, prabeber, porque a gente bebia muito, eu e ela. A gente se juntava prajogar conversa fora. De vez em quando, hospedado com os dois, euacordava no meio da madrugada com aquele barulho. Eles quebravam tudo.Um dia o César me acordou e disse: "Ela foi embora". Eu falei: "Vaidormir que ela volta, não me enche o saco, quero dormir, não agüento

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mais". Uma vez estávamos no Gurgel e eu falei brincando com eles: "Nãoagüento mais ver vocês brigando de noite e de manhã acordarem feitopombinhos. Vou comprar uma arma pra matar vocês!" Quando terminou oshow, ninguém mais se falou. Achei estranho, e mais estranho aindaquando eles foram pra Montreux e levaram outro guitarrista. A Elis tomouum porre lá com o Luisão e me mandou um cartão-postal, dizendo que foi amaior sacanagem que tinham feito comigo. Mas em 80 eu estava em casa etoca o telefone: era o César me chamando pra conversar. Fui. Eu estavalouco pra trabalhar de novo com eles, mas estava magoado. Quando oCésar me viu, disse: "Tá bom, pode me xingar". Eu fiquei quieto e volteiao grupo." Final da temporada de Saudade do Brasil, Rio, Churrascaria Plataforma,madrugada, mesa de oito: Elis e César, Natan e Odete, Rogério e Biba,Sérgio e Celina. Celina é filha de Walter Silva, o Pica-Pau, velhoconhecido de Elis. Celina não esquece o que aconteceu aquela noite nachurrascaria: - De repente chegou uma menina na mesa e Elis achou que a menina estavapaquerando o César. Ela começou a falar alto, dizendo que ia virar amesa. De repente, me chamou para ir ao banheiro. Chegou lá, levantou aroupa e me perguntou: "Você acha que eu sou horrível? Estou velha,gorda, feia?" E começou a chorar. Quando voltamos para a mesa, começoua infernizar o César de novo, e infernizou tanto que ele virou a mesa.O cabelo do Natan ficou cheio de arroz. Antes que terminasse o contrato de Elis Regina com a Warner ela fez umespecial de tevê para a Rede Globo. Elis Regina Carvalho Costa, direçãode Daniel Filho, exibido no fim do ano de 1980. Para esse especial foicriada uma camiseta com a bandeira do Brasil estampada no peito. Nolugar de "Ordem e Progresso", mandara escrever "Elis Regina". A censuranão gostou e a camiseta circulou apenas fora do vídeo. Poucas semanasdepois, no comecinho do ano de 1981, Elis virou a mesa. Seu nome entroupara as colunas de fofocas: Elis e Fábio Júnior viajam juntos para osEstados Unidos. De fato, Elis viajou com Fábio Júnior para Nova York, eele ficou lá apenas uma noite. Na manhã do dia seguinte, embarcou devolta para o Brasil. Elis pegou as malas e foi para Los Angeles.Hospedou-se na casa do saxofonista e arranjador Wayne Shorter e, de lá,telefonou para César Mariano: - Elis tinha me falado que precisava ir sozinha para Los Angeles, paraprovar pra ela mesma que independia de mim. Quando ela disse isso, noquarto das crianças na Joatinga, no dia em que a gente se separou, euentendi mais ainda tudo. Eu disse: "Vá para provar que Elis Regina éElis Regina, que sobrevive sozinha em qualquer parte do mundo". E elafoi e se deu bem. Estava com o Wayne, com o Quincy Jones, HerbieHancock. Era o início de um projeto de uma carreira internacional maisforte. Ela ia também gravar um disco lá. Aí voltou a insegurança deElis, e acho que alguma coisa além de insegurança. Lá, no meio dessagente toda, ela liga pra mim e diz pra eu ir pra lá porque todos estavamperguntando por mim. Todos diziam que precisavam de mim para gravar odisco. Eu mandei a Elis pra puta que pariu. Não fui, brigamos notelefone. Aí ela resolveu gravar o disco aqui no Brasil e trazer todomundo. Além disso, me convidou para fazer os arranjos. Quando ela

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voltou dos Estados Unidos, reatamos. O disco de Elis com Wayne Shorter não saiu. Existe uma estranha históriaenvolvendo mais essa tentativa de Elis de ser internacional, numtrabalho de qualidade. César Mariano conta: - Wayne Shorter ficou hospedado lá em casa, na Joatinga. Ele exigiu umabanda que tivesse o Natan, o Luisão, o Picolé. Exigiu essa banda vintee quatro horas por dia. E ficamos lá em casa mais de um mês, comteclados, bateria, baixo, tudo. Ele acordava de manhã de jogging, Elisfazia ovos com bacon pra ele e ele rezava três vezes por dia na religiãobudista. Elis aprendeu com ele. E o Shorter compondo, compondo. Atéesse momento, não se falava em letra, em Elis cantando, ele não tinhauma participação determinada pra Elis no disco, e o disco era dos dois.E ficamos perguntando entre nós: quando é que a Elis vai entrar? Uma vezinterrompi o trabalho e perguntei. Aí ele coçou a cabeça e disse: "Aquitem oito compassos em que ela pode fazer um vocalise". Bom, mas quem iafazer a letra, o que ela ia cantar? Em hipótese alguma conseguimosfalar com o empresário, Joe Rufflos, o cara que tinha armado tudo. E naCBS ninguém entendia o que estava acontecendo. Quando chegamos noestúdio da Som Livre (via CBS), tinha quatro temas prontos. Ecomplicadíssimos, tanto que eu tive que traduzir a escrita dele, que éde jazz clássico, tem códigos esquisitos. Quando chegamos ao estúdio, àsnove da noite, tinha um engenheiro de som e um técnico americanos,independente dos brasileiros que estavam de braços cruzados, mais outroauxiliar e uma quantidade fantástica de equipamentos. Tinha mesa degravação, uma outra mesa para acoplar na da Som Livre. É lá dentro umpiano elétrico, um amplificador de baixo, de guitarra e jumasuperbateria armada, toda microfonada com um baterista americano, quejá tinha passado o som. E o Picolé com sua bateria debaixo do braço.Ninguém entendeu nada. Tinham vinte canais disponíveis para a bateria.Elis foi ficando puta. Detalhe: ninguém falava com a gente, só com oWayne Shorter. Ficamos para ver o que acontecia. O Wayne distribuiu aspartituras, deu a do baterista e me disse: "Não precisa se preocuparmuito, só em fazer a sua parte, porque baixo e guitarra nós vamoscolocar nos Estados Unidos. Vocês vão servir de guia". Eu falei: "Comoé que é?" Minha cabeça começou a estalar e não tive reação na hora, soumeio retardado pra reações. Aí resolvemos passar, e o Wayne Shorterchegou perto de mim, pegou minhas duas mãos de cima do piano, tirou deum lado e passou pró outro: "Toca aqui", ele disse. Eu desliguei opiano, levantei e falei: "Não tem mais gravação, desculpa, nossoprodutor não está aqui, não estou sabendo o que está acontecendo. Elisnão sabe o que vai cantar e culmina com essa história do baterista". Eledisse então: "Thank you". Pegou seu saxofone, passou em casa, pegou suascoisas e foi embora. "Havia muita expectativa sobre esse disco. Falava-se muito da minhaprojeção internacional, pouco se falava do projeto que era na carreirade Elis. E acabou sobrando pra mim, que fui acusado de ter sido ocausador da dissolução do projeto. Paciência..." "Decifra-me ou devoro-te? Não vai me devorar, nem me decifrar, nunca. Eusou a esfinge, e daí? Nesse narcisismo generalizado, me dá licença de euser narciso um pouquinho comigo mesma? De fazer comigo o que bem

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entender, ser amiga de quem quiser, de levar pra minha casa as pessoasde quem eu gosto? Bem poucas pessoas vão conhecer a minha casa. Sou aElis Regina Carvalho Costa, que poucas pessoas vão morrer conhecendo." Elis Regina Capítulo 11 No começo de 1981, seu último ano de vida, Elis voltou dos EstadosUnidos e participou, como convidada especial, do programa especial daGal Costa para a TV Globo. Eu estava lá e não pude acreditar no quevia. Elis, pessimamente vestida num longo azul-nenê e com uma maquiagemcarregadíssima. Eu, que já tinha assistido Elis cantar em público milvezes, estranhei. Ela parecia mais tímida do que de costume. Cantava comos olhos fechados e mal conseguia encarar os olhares insistentes ecarinhosos de Gal Costa. Achei muito esquisito. Algumas outras pessoasacharam a apresentação fantástica pela verdade de Elis naquele momento:uma timidez absurda diante de uma grande cantora que a realçava em seupróprio programa. Caetano Veloso foi um deles: "Fiqueiimpressionadíssimo com a Elis. Achei ela fantástica. Era um músico". Tentando recuperar sua relação com César Mariano, Elis começa ospreparativos de um show no Canecão paulista. Elis chamou Fernando Faropara dirigir e Elifas Andreatto para fazer o cenário. O clima era dedesconfiança quando Elis foi apresentada a Elifas. Na verdade, os doisse odiavam. Conheciam-se muito de ouvir falar, e cada um tinha péssimosadjetivos para qualificar o outro. De qualquer maneira, Elifas resolveutentar: - Nossa primeira conversa foi interessante. E saí dali mais ou menosconvencido de que daria para trabalhar com ela. Levei uma maquete,fomos para o Canecão, e aí tudo aconteceu. Elis brigou com César Mariano. Elachegou um dia com hematomas, óculos escuros e disse: "Eu não quero maiso César aqui dentro". Ninguém sabia o que fazer. Ela disse que nãoqueria ele nem no show nem na vida dela. O Faro não sabia o que fazer.Elis não queria sequer que o nome do César fosse pronunciado lá dentro.Um dia ela chegou a mandar o Faro embora por causa de uma brincadeira:"Baixinha, sabe com quem estive hoje? Com o César". Ela estourou, ficoufuriosa. O Fernando Faro queria ir embora e passar a direção para mim. César Mariano certamente não esperava que a separação dessa vez fossedefinitiva. Não esperava que Elis fosse capaz de, às vésperas daestréia do novo show, três ou quatro dias antes, demitir o pianista e omarido ao mesmo tempo: - Sempre disse para Elis, e vou morrer dizendo que ela era a pessoa maisnormal que eu já conheci. Anormal sou eu. Quem soube entender agenialidade dela passou por cima de tudo. O problema da convivência erade saco, paciência. Se eu aceitava aquilo, se eu aturava seus ataques,até públicos, eu ficava muito puto por minha causa. Ficava puto com aminha impotência diante das situações. Eu nunca fiquei puto com ela.Aliás, só fiquei puto no dia em que ela rompeu comigo. E fiquei putopelo lado profissional, porque faltavam poucos dias para a estréia. Nãoentrou na minha cabeça que Elis pudesse tomar aquela decisão. Mas mesmoassim entendi que era um grande lance pra ela. Ela disse: "Sai fora queeu vou sozinha". Saí fora, fui pra um hotel e fiquei em contato pelo

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telefone com o Natan e o Faro. Não assisti ao show nunca. Sem César, Elis apelou para Natan. Deu a ele a missão de fazer osarranjos e cuidar da direção musical do show. Elis tentou convidar ovelho amigo Luís Loy para tocar piano no lugar de César Mariano. LuísLoy não pôde aceitar: no momento, convalescia de uma implantação decabelos. O pianista escolhido foi Paulinho Testa (Esteves), que dividiuos teclados com Sérgio Henriques. Natan tinha pouco tempo para essamissão, mas estava com Elis. Enquanto ela fez uma rápida viagem aoChile, para cumprir um contrato, Natan preparou e ensaiou Trem azul.Era um espetáculo revelador, e a primeira vez em que vi o público selevantar no meio de uma música, para aplaudir Elis. Eu não gostavaespecialmente da série de músicas que ela cantava em frente a umaparelho de televisão, apoiada por acordes do Fantástico. Sua roupatambém era muito parecida com o macacão que Rita Lee usou no seuespecial para a TV Globo. Mas isso era o de menos. Elis estava cantandocomo nunca. Samuel MacDowell era advogado de Elis Regina. Alguns dias antes daestréia prevista de Trem azul, ela procurou seu escritório no centro deSão Paulo. Queria adiar o show. Samuel conta: - Eu era uma pessoa idolatrada por ela, que me respeitava e me concediacerta ascendência. Tanto é que o César, depois de se separar da Elispela última vez, me procurou dizendo que eu era uma das pessoas que elamais respeitava. Nesse dia eu tinha chamado Elis à minha sala pra sabero que estava acontecendo. Ela queria adiar o show. Acho que tinha muitarelação com a separação do César e o fato de estar trabalhando sem ele.Fora isso, também parecia muito infeliz, a ponto que a levava a termedo de estrear o show. Aí dei um esporro nela. Foi uma conversa longa,de pelo menos uma hora. Ela chorou e não falou muito. Ouviu. Mas ela foie resolveu. Fui vê-la na estréia. Eu nunca tinha assistido a um showque tivesse me impressionado tanto. No dia da estréia fomos jantar comum bando de gente. E o que mais me impressionou em Elis foi a purezadela. As mentiras que ela inventava eram sempre ditas em defesa dealguma verdade. Era ingênua. Esse é um ponto fundamental, chave de suapersonalidade - considerar que uma pessoa mente para poder afirmar averdade. Poucas semanas depois da estréia de Trem azul, o compositor Roberto deCarvalho foi assistir Elis no Canecão Paulista. Sua mulher, Rita Lee,aos nove meses de gravidez, ficou em casa. Roberto viu o show e depoisfoi ao camarim. Assistiu a uma cena inesquecível: - Elis estava passando mal. Os olhos meio revirando, o corpo balançando.O camarim era meio apertado. Ela foi caindo, e fechamos a porta docamarim. Parecia que estava com falta de ar e desmaiou. Demorou unsdez, quinze minutos para voltar a si, e me lembro de ter desenroladosua língua. Quando acordou, Elis disse que isso era alguma coisa queestavam fazendo contra ela. Alguma coisa ruim que queriam fazer contraela. Certamente Elis já estava usando cocaína nessa época. Com certeza, ela ahavia experimentado seis meses antes, quando esteve nos Estados Unidos.No entanto, como em tantas outras coisas suas, Elis era reservadíssimanesse assunto. Roberto de Carvalho sequer suspeitou que ela estivesse,

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naquela noite, sob o efeito de pó. Mas tudo leva a admitir que, durantea temporada de Trem azul, o pique de Elis não era puramente natural.Vendo as fotos, percebe-se que seu corpo afinou. Pela voz e pela solturada voz, percebe-se que Elis ia até o fundo do poço, sem medo. Difícil de acreditar. Elis não gostava de drogas. Jamais gostou. Falavamal de quem gostava. A primeira vez que Elis me falou sobre maconha foiem 80, durante o show Lança perfume no Anhembi. Rita Lee me disse que uma vez Elis foi visitá-la e mostrou uma carteiracom vários cigarros, muito bem enroladinhos. Elis se dava muito bem como casal Rita e Roberto. Rita conta por quê: - A primeira vez que Elis nos pediu uma música, fizemos Alô, alô,marciano. Ela avisou que queria uma coisa nossa, e não uma coisa praela. Quando Elis nos mostrou a gravação, estava bem diferente do quetínhamos feito. Ritmo, tudo. Ficamos chapados, aonde ela foi naquilotudo. Foi aquela coisa de dar uma pincelada, fazer os comics dela, oshigh societies. Fiquei surpresa com o carinho que ela tinha com tudo oque fazia. Nós gostamos. Na nossa versão era uma coisa mais Jorge Ben,mais acelerada. Ela fez um jazz meio pró space, uma coisa meiosuingada, indolente. Claro, qual era a dela de fazer uma coisa igual aque a gente mandou? A dela era de co-autora mesmo. "Depois de Alô, alô, marciano, viramos amigas de telefone. Era todasemana, uma coisa assim meio de massagista. Se eu tinha visto não sei oquê na revista, o que eu achava, se eu tinha visto Fulano falar dela ouse eu estava a fim de fazer as pazes com o Chico Buarque, porque tinhaque acabar com esse negócio de uma vez por todas. Outras vezestelefonava perguntando se a gente não queria fazer uma excursão até oXingu, uma caravana cigana comandada por Tom Jobim, com Roberto Carlos,Chico Buarque, Milton Nascimento, todo mundo, e nós duas atrás, com osfilhos todos chegando lá e fazendo uma revolução, pra tomar o Brasil.Ela enfeitava bem mais a passeata dela, não era um processo em preto ebranco, era colorido, tinha rock, tinha tudo. Podia tudo. "Nosso outro encontro foi no Mulher 80. Ela ficou de braço dado comigo otempo todo e falava assim: "Eu não me dou com esta, não me dou comaquela, daquela não gosto, então vou ficar com você". Teve um climaestranho no final. O Daniel Filho propôs que todas as mulheres dessem asmãos e fizessem uma grande roda, aquela coisa pra fazer slow motiondepois. E depois ficávamos agachadas debaixo do palco, e quando oDaniel gritava "Saiam todas", subíamos os degraus. Aparecia todo mundolá no fundo do palco, e tinha de descer assim, toda jovial. Tinha muitotricô rolando. "A idéia da Elis era fazer uma cooperativa comigo e com o Roberto.Enquanto eu fazia show, ela fazia disco, e ela achava que podíamosrachar a produção, rachar os custos com equipamentos. E aconteceu umacdisa incrível quando o Rogério estava trabalhando com a gente. Noespecial Saúde estávamos gravando no Anhembi para a televisão e elespegaram uma bronca minha por causa do som, e na montagem da Globo, nahora da minha gritaria, aparecia a cara do Rogério. Eu não estavagritando com ele, mas com os técnicos do Poladian. A Elis ligou pra mimindignada, e eu expliquei que tinha sido um problema de edição. "Nos telefonemas, a gente conversava sobre o que estava rolando. Ela

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dizia assim: "Amiga, a gente mora aqui em São Paulo, não fica fazendogracinha pra revista Amiga, não faz topless em Ipanema". Me chamou prair pra Cantareira, tanto que acabei comprando um sítio lá. Teve umafase que Elis ligava todo dia, toda hora, enchia até. Tinha vezes em queeu tinha que cortar a conversa. "No primeiro especial do Lança perfume que fizemos na Globo, a Elisapareceu lá em casa. Eu estava nervosa, nunca tinha feito um programaassim para a tevê. Ela entrou e eu disse: "Pó, Elis, eu vou assistir aoespecial perto de você? Você vai ficar vendo todas as minhasdesafinadas, vou ficar péssima". E ela disse: "Que nada, não adianta,você não vai me expulsar da sua casa, e pára com esse negócio de dizerque não sabe cantar, que não sabe cantar". Fiquei nervosíssima de todojeito. Tapava o ouvido dela quando eu sabia que ia desafinar, conversavaalto. Eu morria de vergonha de cantar perto dela. Do João Gilberto não,mas da Elis sim. Ela era uma perfeição. Certa vez operei os calos dasminhas cordas vocais - eu tinha dois -, e o médico me disse que euteria que ficar um mês sem falar, era o segredo da operação. Depois eufalei com ela e perguntei: "Você ficou um mês sem falar quando operou ascordas vocais?" E ela me disse: "Imagine se eu vou ficar um mês semfalar!" "A Gal canta com a voz da cabeça. A Elis cantava com todas as partes docorpo. Para mim ela era um Jimi Hendrix. Quando, ela estava seseparando do César, me ligava pra dizer: "Nós duas temos maridosmúsicos, é foda, mas tudo bem, a gente segura". Era uma coisa decumplicidade. Às vezes, quando ela brigava com o César, achava que eutinha brigado com o Roberto também, de alguma maneira. Ela ligava praconferir. Às vezes batia, mas raramente, porque nós dois não somos deficar remoendo, fazemos as pazes logo. Ela virou meio filha depois quese separou do César. Me ligava pra dizer que tinha saído com não seiquem, uma menininha. E a última lembrança forte que tenho de Elis foiquando ela gravou Me deixas louca na Som Livre, Eu também ia entrar noestúdio, e fui mais cedo pra falar com ela. Ela disse: "Você vai escutarpela primeira vez". E estava tão emocionada que sentei na frente da mesade mixagem, ela se deitou no meu colo feito uma criança. E ouvimos amúsica assim. Ela enfiava o dedo na boca e eu batia na bunda dela edizia: "Sua danadinha"." Nesse período, Elis escreveu uma carta a Rita e assinou Elizabeth Maria,uma de suas personagens quando brincava com a amiga, uma especialistaem criar personagens: "Rita querida: Foi bom ter te conhecido mais um pouco. Obrigado por tudo. Conversei tanto com Henfil a teu respeito. E a respeito da música quevocê fez pró Vlado. Ele ficou surpreso, primeiro. Feliz, depois. E putopela impossibilidade de ela estar sendo cantada. Pede que você vá tentar mais uma vez. E que, se der, ele gostaria deincluir a música na peça. Dados os recados. Dois pra lá, dois pra cá. Manda (o Henfil, claro) esse "desenho" "como prova de afeto". Uma mãoestendida em sinal de à espera de reconciliação. Enviado o presente.

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No mais, um beijo do nené; um abraço no companheiro de fé responsa; um cheirinho no cangote, gostomuito de vocês. Outra carta de Elis. Uma carta de amor. Escrita a Samuel MacDowell deFigueiredo em 1981. Entregue por Samuel a Rogério Costa depois da mortede Elis: "Sam: Nos desencontramos, creio, nos elevadores. Você descia e eu subia. Issome disseram. Lamento. Dói te saber tão próximo e não ter te visto!!!Essa saudade! Essa vontade! Perdoe. Não te desprezei. Deixei de ir ter contigo porque estava nacaptura de velhas histórias, de velhos carinhos. Fiquei com Géio, meuprematuro filho. Me senti feliz vendo meu irmão alegre, com gestossuavizados, olhar doce, palavras cheias de carinho. Saí na busca dos nossos velhos laços. Que se desamarraram por iniciativae batalha pessoal de terceiros. Que contaram com nossa fragilidade,nossas ansiedades, nossa quase incompetência pra exercer a paixão quenos aproxima e faz quase sermos a mesma pessoa. Ainda que não te tenha visto, abraçado, sentido, creia, ainda assim mesinto feliz. Géio e eu não nos temos inteiros há dois anos. Não nos presenteávamosmomentos irmãos, confiantes e apaixonados, faz esse tempo. Por quê? Incompetência nossa. Ou excesso de competência dos outros. Hojefoi o dia. Abraço sem medo, mirabolantes programas futuros, mostrar quea gente se quer, dizer coisas guardadas por teimosia. Hoje foi o dia de se ré-ter, re-tomar e re-sentir, re-apertar. Hoje erao dia das velhas histórias, velhas conversas, velhas malícias. Históriavelha. Hoje era o dia de re-acender a chama da mútua fornalha que nos empurramundo afora, a vida adentro, na captura de um sonho e continuar, sempree sempre, próximos e aliados. Coniventes, se preciso. "Que vocês só têmos dois", dizia a fornalha. Mais velhos, com marcas, cobranças, nos revimos. Com certeza, porém, doafeto que temos um pelo outro. Com a consciência que esperamos um dooutro. Senhores da confiança que retomamos. Merecedores do ar idiotaque, de repente, nos tomou e empurra pra abraços, lágrimas, confissõese tudo a que tínhamos direito. Ou acreditávamos ter, graças ao vinho. Eà saudade também. . . Não te vi. Aumenta meu saldo negativo. Amanhã, como vai ser? Não queroimaginar. Sinto uma saudade enorme e que cava um buracão aqui dentro.Sei que você não vai desculpar essa ausência, sei que deve estarcompletamente doido de raiva de tudo. Sei que estou mal com você,perante você. Sei tudo. Nem precisa tocar no assunto. Entretanto, não consigo me sentir pesada, culpada, odiosa mesmo. Porquesinto, sinceramente, que fiz o que precisava e desejava fazer. Fiz oque minha ansiedade pedia, fiz o que meu universo precisava. Re-tomeiminha história com meu irmão e/ou filho.

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Ainda que você esteja me detestando, não consigo me sentir uma coisa quenão merece ser gostada. Eu estou me gostando mais que ontem. Estou maislegal com a minha bagagem. Quando nós nos reencontrarmos hoje, no fimda tarde, sei que vou estar melhor pra você. Porque estou bem comigo. Viva a Vida, que é feita de dias atrás de outros dias!!! Não deixei de lembrar de você o tempo inteiro. Você estava semprecomigo. Te amo mais cada dia. Te quero absurdamente muito. Preciso doseu carinho. Quero, careço e preciso de ver você e seu olhar cor decaramelo. Estou morrendo de saudade da sua boca e do seu gosto. Me queira bem. Me ame muito. Me ame bom. Te amo, sou tua. Elis." Durante a temporada de Trem azul, Elis também resolveria, por escrito,sua relação com um afeto que virou desafeto e que ela tentavarecuperar: Caetano Veloso. Os dois se conheciam desde a época da TVRecord. Na platéia do Trem azul do Canecão, São Paulo, Caetano Velosorecebeu um bilhete de Elis. A relação dos dois nunca foi muito íntimanem muito assídua. Mas era uma história forte. Caetano conta: "Ela foi a primeira artista sofisticada da música popular a se tornarconhecida através da televisão. Isso tem valor histórico que, mesmo queElis fosse uma péssima cantora, já seria uma coisa de grande porte. Oproblema de Elis era sem dúvida um problema de insegurança intelectual ede prestígio, no sentido de saber se o que estava fazendo era uma coisaséria. E o tropicalismo mexeu com tudo isso, o que era sério ou não, oque era respeitável ou não, o que era kitsch, o que era chique. Eu tenhoa impressão que o tropicalismo não deve ter parecido a ela uma coisaameaçadora ou má. Acho que ela ficou balançada, é isso - aquilo ia paratodos os lados e acho que ela ficou sem saber. "Conversamos algumas vezes. Ela conversava de uma maneira que variava detom. Ela estava falando assim de uma coisa meio genérica e, no meio,entrava uma rixa com alguma pessoa. Podia começar a rir no meio ouassobiava feito moleque, com os dois dedos. Era uma pessoa muitoengraçada. "Quando Elis foi gravar Boa palavra fiquei superfeliz porque fiqueiimaginando aquela voz. Quando ouvi, não adorei tanto porque o refrão damúsica tinha uma harmonia e uma coisa interessante na composição que oarranjo mudou. Para isso Elis mudava um pouco a melodia. Gostei mais deSamba em paz, e, quando ouvi No dia em que eu vim me embora, em Falsobrilhante, desbundei. O show era deslumbrante. Nós nos víamos algumasvezes, conversávamos e era bom. Ela era muito desconfiada, e tenho aimpressão que uma vez falou pra alguém: "Nunca sei se quando o Caetanofala de mim, se ele fala aquilo como realmente um elogio ou se temalguma ironia". Me lembro de uma premiação em São Paulo e depois de umcoquetel, quando ficamos conversando, eu, ela e o César. Era um lugarmuito careta e então sentamos no chão. Eu disse: "Elis, você cantoulindo Nega do cabelo duro". Ela ficou assim meio estrábica, olhou bempra mim e disse: "Por quê?" "Mas como, por quê?", eu falei, "eu gostei àbeça de você cantando". Aí o César ficou quieto, dando aquele sorriso. Edepois a Elis riu, nos abraçamos. Aí, quando estávamos sentados lá,

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chegou um senhor meio careca e falou pra mim: "Você há anos atrásescreveu um artigo contra o meu livro". Era o José Ramos Tinhorão. Aíele começou a falar comigo de uma maneira gentil, porque eu realmentetinha escrito aquele artigo e sabia que minhas opiniões sobre músicabrasileira não coincidem com as dele. E o Tinhorão começou a dizercoisas pra Elis, indiretamente. Falou que ia escrever um artigo sobre amentira do sucesso dos brasileiros no exterior, porque muita gentedizia que ia pró Olympia e abafava. Elis não falou nada. Ficou zarolhae quieta. "O show Transversal do tempo motivou a carta-bilhete que ela me escreveuquando fui assistir Trem azul em São Paulo. Eu não gostei daquela partedo show quando ela cantava Gente e descia aquele cartaz de Coca-Colaescrito "Beba gente". Eu considerei aquilo agressivo. No dia em que fuiassistir não falei com ela. Saí, cumprimentei o Aldir Blanc e o MaurícioTapajós, que estavam no hall, e fui embora. Achei uma bobagem. E o showtambém era esquisito, muito pra baixo. Foi na época em que eu estavafazendo o Bicho baile show. Foi na época em que o Henfil falava mal demim e que o Caca Diegues falou sobre as patrulhas ideológicas. O Henfilnos apelidou de patrulha odara. E essa música Gente era do Bicho baileshow, que eu queria que fosse um espetáculo de danceteria. Quando vi oque ela tinha feito no Transversal do tempo, não fiquei com raiva. Masaté que eu chegasse à plateia do Trem azul, último show de sua vida,não falamos sobre isso. Nesse dia estávamos eu e a Sônia Braga, o Gil ea Flora. Elis mandou um bilhete pró Gil e outro pra mim. O meu era enorme, parecia uma carta. Era pra dizer que me adorava e queno Transversal do tempo ela não queria me agredir, que foram osdiretores, que ela não concordava e que estava arrependida. Era umacarta explicativa. Depois fomos ao camarim e ela estava bebendoconhaque e rindo muito. Me contou que chamou meu pai de João e o nomedele é José: não adiantava, ela iria sempre chamá-lo de João. Elaestava bem louca aquele dia. E, no show, com uma voz incrível,explorando mais possibilidades. Quando a Elis morreu e a Veja publicouaquela matéria, considerei odioso. Falei na televisão, e dizia pra queos filhos de Elis não tivessem vergonha, que Billie Holiday tambémmorreu por causa de drogas. Ninguém tem o direito de medir anecessidade de uma pessoa chegar a isso. E não sabem como isso pode seruma coisa boa também. Quando vi Elis em Trem azul fiquei pensando que ocontato dela com a cocaína foi, artisticamente, muito positivo. E,depois, para uma pessoa com aquele tipo de insegurança intelectual, acocaína resolvia - em geral a droga dá esse tipo de segurança. Teriasido genial se ela tivesse conseguido equilibrar essas conquistas com acapacidade de continuar vivendo. Infelizmente, não conseguiu." Elis tinha uma relação muito particular com a cocaína. Quando voltou deuma viagem, fez algumas presenças a membros da produção da TV Cultura,onde gravou sua última entrevista, no programa Jogo da Verdade. Mas nãotocava no assunto nem com o irmão Rogério, nem com o namorado SamuelMacDowell, nem com os amigos íntimos. Alguns sabiam. Mas Elis não usavadrogas na frente deles. Ela morava num apartamento alugado na Rua Melo Alves, no bairro dosJardins, São Paulo. Era o seu primeiro apartamento sem marido. Colocou

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seus retratos na parede como nunca fizera. Pendurou os cartazes dosshows, os discos de ouro. Decorou-o como se fosse uma mulher solteiracom três filhos. Para esse apartamento, Elis chamou dona Ercy, que serecuperava de uma operação de hérnia. Quase não se viam mais, por causada briga com o pai. Elis queria uma reaproximação. Dona Ercy: - Ela passava noites em claro e chamava sempre alguém pra vir conversarcom ela. Eu não conhecia essas pessoas. Sempre tinha alguém. E eu lá.Eu não entendia. Ela também não ouvia ninguém. Elis, depois que subiuna carreira, mudou completamente. Até ela subir era tudo legal, masdepois ela ficou estranha, estranha mesmo. Não conversava comigo. Fiqueialgumas vezes com as crianças, quando ela não tinha babá. Mas nãoentendo por que ela não ia me ver. Não entendo muitas outras coisas.Não é porque ela morreu que eu vou dizer que ela era um doce de coco.Não era. Celina Silva tinha virado uma espécie de secretária de Elis. Não saía doapartamento: - Quando dona Ercy estava lá, Elis ficava mais forte. Elas ficavam emcasa, falando de costura. Com dona Ercy lá, algumas facetas de Elisestavam mudadas, e, também, perto da mãe, ela era ótima com as suascrianças. No Natal, Elis foi com Pedro e Maria Rita para Foz do Iguaçu. JoãoMarcelo não quis ir. Quando voltou, ela mandou Celina comprar um montede presentes. Cada músico recebeu uma jóia - uma plaquinha com umacorrente de ouro. Afinal, ela os chamava de "meus sete homens de ouro".As mulheres e os filhos também ganharam presentes. Com uma bolsavermelha na cabeça, Elis dizia, correndo pela sala: "Eu sou a MamãeNoela". Entre o Natal e o Ano-Novo, Elis chamou uma velha amiga para uma viagemcurta à praia do Juqueí, Estado de São Paulo. Uma velha amiga que elaviu crescer, Patrícia Figueiredo: - Fomos com as crianças e Elis estava ótima. Achei engraçado porque elafalava do César como falava do Ronaldo, parecia meio um vídeo-teipe.Mas a coisa que mais me incomodou foi que ela falava igual dos dois eficava vesga. A relação dela com as crianças também me chocou. Certahora, Elis deu um tapa na cara do Pedro e, em seguida, deu um beijo naboca dele. Nessa temporada de Juqueí percebi como Elis estava cheirandopó. Ela estava cheirando bastante. E me disse que nem o Rogério nem oSamuel sabiam. 1982 começou com mil projetos: o casamento com o advogado SamuelMacDowell, uma gravadora nova, a Som Livre, um disco novo - sem CésarMariano. Uma banda nova. Uma casa nova, que ela estava procurando. Trem azul ganhava da crítica paulista o título de melhor do ano. Nanoite em que soube disso, Elis estava com um casaco de peles, entrandono meu MP Lafer, quando gritou feito criança para Patrícia Figueiredo: - Consegui, consegui ganhar da Gal e da Bethânia. "As vezes só porque fico nervosa, eu rebento, Ou necessariamente sóporque estou viva." Elis Regina em Rebento, de Gilberto Gil Capítulo 12 Ano novo, vida nova:

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Elis estava cheia de planos para 1982. Por isso, para ela e Samuel anoite de 31 de dezembro de 1981 tinha um significado todo especial.Depois de seis meses de namoro, eles tinham resolvido se casar. Noaspecto profissional, Elis estava ansiosa para gravar seu primeiro discona Som Livre. Tinha certeza de que a nova gravadora haveria de batalharo disco, incluir uma das faixas em trilha de novela da Globo e, quemsabe, torná-la uma campeã de vendagem - o que em sua já longa carreirasó tinha ocorrido uma vez, e há muito tempo, com o primeiro LP "Dois naBossa", que ela gravou com Jair Rodrigues, em 1965.Amor-sucesso-dinheiro: com esse trinômio, 82 só poderia ser ótimo. Nada melhor para entrar bem no ano novo que uma festa de réveillon. Elise o namorado foram a duas. A primeira, na casa do músico e amigo Natan.Lá pelas duas da manhã, o casal seguiu para outra, na casa de um amigode Samuel. Ao ver Elis e Samuel juntos, o ator Gianfrancesco Guarnieri,um dos convidados, fez um discurso de saudação à nova dupla. Elisencostou a cabeça no ombro de Samuel, chorou um pouco e segredou para onoivo: "É a primeira vez que um amigo seu me introduz numa roda". Elis não teria um ano pela frente. Apenas dezenove dias. E foram diasagitados, ocupados e nervosos. Ela trabalhava sem parar, ouvindo fitas efitas, à procura de repertório para o disco novo. Ela tinha o hábito deouvir rigorosamente tudo o que lhe mandavam. Ao mesmo tempo, tratava deorganizar sua equipe, seu staff pessoal. Escolheu Lea Millon paraadministradora. Tia Lea, como era conhecida no meio artístico, jácuidava dos negócios particulares dos baianos - Gil, Caetano, Gal.Animada com a escolha, Elis anotou com todo o capricho em sua agenda asfunções que caberiam à nova colaboradora. (Veja a foto da agenda napágina 270.) A entrada em cena de Tia Lea não significava, em absoluto, que CelinaSilva não teria mais o que fazer. Até porque Lea morava no Rio e Elisprecisava de alguém ali, bem próximo. Todo dia, quando chegava à casade Elis, Celina já encontrava uma espécie de organograma do dia.Pisciana caprichosa, Elis anotava tudo o que a secretária tinha queresolver durante o dia. De uma coisa Elis fazia questão de se ocuparpessoalmente: encontrar uma casa para ir morar com os filhos e Samuel,assim que se casassem. Queria ficar com ele full time. Nesses seis mesesde namoro, Samuel raramente dormia no apartamento de Elis. Mãe zelosa,temia confundir a cabeça das crianças. Afinal, o rompimento com Césarainda era alguma coisa bem recente. Quem sabe, sabe: não existe transtorno maior do que mudança. Elis nãoqueria, de jeito nenhum, que esse transtorno ocorresse simultaneamenteà gravação do disco, que começaria dia 26. E já estava agoniada por nãoencontrar um imóvel que lhe agradasse. Finalmente, no dia 16 dejaneiro, depois de muitas idas e vindas, ela e Samuel encontraram o quequeriam e fecharam negócio: uma casa na Rua Chile, Jardim América, umbairro "perto de tudo", como definem os paulistanos. Elis delirava: iaderrubar aquela parede, mexer aqui, mexer ali, distribuiu mentalmenteos cômodos e decidiu: semana que vem, sem falta, transar a mudança.Queria entrar no estúdio inteiramente despreocupada desse assunto.Descarregado esse fardo, surgiu outro, e inesperado: Samuel vacilou. Paide três filhos, questionou com Elis a influência que poderia ter essa

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mudança nas suas crianças. E mais: ele próprio não sabia como ia ser aconvivência com as crianças dela. Os dois passaram o fim de semana - oúltimo de Elis - discutindo isso. Na segunda-feira, dia 18, logo de manhã, Elis foi ver de novo a casa.Foi sozinha e não demorou, tinha convidados para o almoço: Rogério, acunhada Biba e os sobrinhos Carolina e Rodrigo. O irmão e a famíliaestavam fora há vinte dias: tinham ido passar as festas de fim de anoem São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro. O almoço seria uma espécie decomemoração tardia do Natal, com direito a presentes e tudo. Foi muito divertido, lembra Rogério: - Foi ótimo. Elis já sabia que eu não estava mais a fim de empresariarela e, enfim, compreendia. Logo que cheguei, foi logo me dando umabronca porque viajei sem deixar telefone. No meio da tarde fui com aBiba levar a minha filha Carolina ao médico. A Maria Rita foi junto. Lápelas nove da noite voltei ao apartamento trazendo a Maria Rita devolta. A Biba nem subiu, ficou no carro. Eu fiquei alguns minutos e fuiembora. Estava tudo normal. Foi espantoso. No fim do almoço, toca o telefone. Era Ronaldo Bastos. Elis: "Quer queeu fique aqui o dia inteiro te esperando? Venha já pra cá!" Ronaldo Bastos nasceu em Niterói e sempre viveu no Rio. Mesmo assim,muita gente pensa que ele é mineiro, por causa de suas parcerias comMilton Nascimento, Beto Guedes e o grupo mineiro. Antes de conhecer Elis, morria de medo dela. Depois, ficaram amigos.Grandes amigos. - Quando cheguei, Rogério, Biba e as crianças estavam na sala. O Natan ea Celina também. Deixamos o pessoal lá e fomos, Natan e eu, para oquarto de Elis. Passamos a tarde inteira lá, ouvindo fitas. A genteestava ajudando Elis a escolher o repertório. Logo ela se juntou a nós eficamos lá, ouvindo um monte de músicas. Não vi a Elis cheirar pó. Eu eNatan tomamos duas cervejas, duas latinhas que o João Marcelo trouxe.Lá pelas sete da noite, Elis pediu que a gente saísse do quarto e fossepara a sala: queria tomar banho. Aí chegou Samuel. E ficamos por lá,papeando e ouvindo música, ambiente ótimo. Elis não queria de jeitonenhum que a gente fosse embora. Só consegui sair do apartamento lápelas dez da noite. Natan Marques, além de ajudar Elis na escolha do repertório, tambémsugeria nomes para a banda que ia gravar com ela. Entra Natan: - Na última semana, ela estava animada não só com o disco, mas com aformação do novo grupo, porque tínhamos conseguido armar um grupo emSão Paulo, com músicos daqui. No dia 18 fiquei lá no apartamentoouvindo fita. O repertório ainda não estava definido. Certo mesmo erasó Nos bailes da vida, do Milton e Fernando Brant, que ia ficarsensacional, íamos pegar a harmonia de Something, dos Beatles, e juntarcom a harmonia da música do Milton. Na noite do dia 18, Elis me deu umafita com músicas do Gonzaguinha, e a última coisa que me disse noelevador, antes das dez da noite, quando saí, foi: "Puxa, que pena que oestúdio só está marcado pra segunda-feira. Estou louca para entrar nissoaí amanhã ou depois de amanhã". Eu disse: "Por que você não arranjaisso? Você tem força". Elis terminou combinando o encontro para o dia

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seguinte às três da tarde. Elis e Samuel ficaram, então, e, finalmente, sós. As duas empregadas játinham se recolhido. As crianças já estavam dormindo. Abriram umagarrafa de vinho branco e sentaram-se para jantar. O assunto que mais ospreocupava não tardou a vir à tona: a mudança, o casamento, as crianças,o receio de Samuel, o receio de Elis. . . Mas ela já parecia enjoadadaquele assunto. A certa altura da conversa, para demonstrar o quantoaquele papo a aborrecia, pegou uma capa de disco, colocou-a bem nafrente do rosto e fingiu ler, enquanto Samuel falava. Ele não tevedúvidas: levantou-se e foi embora para sua casa. Eram onze e meia danoite. Antes de dormir, Samuel ainda esperou que Elis telefonasse ouaparecesse, para desfazer o malestar. Nada. Ela não ligava. À meia-noitee meia, então, ligou ele. A discussão do fim de semana e do jantarcontinuou por telefone. Elis, exaltada, reforçava suas frases eargumentos com palavrões. E declarou encerrada a conversa batendo otelefone na cara dele. Daí a cinco minutos arrependeu-se do gesto eligou para Samuel. Mais discussão, mais desentendimento, maispalavrões, e nova desligada abrupta. Samuel não se conformou e tornou aligar. Uma, duas, três vezes. . . ene vezes. Elis tinha ligado asecretária eletrônica. Samuel insistiu até as três da manhã. Aí cansoue foi dormir. Samuel MacDowell de Figueiredo guarda até hoje absoluta reserva sobreesses telefonemas. Recusa-se a falar sobre eles - como, de resto, sobreas últimas horas de vida de Elis Regina. Procurei-o diversas vezes, aolongo de muitos meses, para colher seu depoimento. Afinal, foi ele aúltima pessoa a conversar com ela. Ele consentiu, enfim, em me recebernuma noite de julho de 85. Quando cheguei à casa dele, no bairro doMorumbi, ele me esperava com um texto manuscrito, rabiscado. . . e ocode informações. Dizia logo no começo desse texto, na verdade uma carta amim dirigida: "Elis é uma pessoa pública, você dirá. Não eu; e nossarelação, do mesmo modo, também não é. Dela todos já sabem, você jásabe, sabem todos o suficiente sobre nós para que eu me sinta nodireito de proteger o pouco da nossa intimidade que não tenha sidodevorado nos jornais e revistas. Sempre fui muito cioso do que lhe digoagora. Não há razões para mudar". Li a carta inteira e ponderei: euqueria a reconstituição dos fatos e até suas considerações a respeito -mas não só estas. Ele era a única testemunha da derradeira noite deElis. Ele disse que conversaria comigo, responderia às minhas perguntas,mas só. Conversamos durante quatro horas. Saí da casa dele, ao fim daconversa, em prantos. Não sei como consegui dirigir meu carro doMorumbi até Higienópolis. Às nove e meia de terça-feira, 19 de janeiro, toca o telefone noescritório do advogado Samuel MacDowell Figueiredo. Era Elis. Recomeçavaa discussão sobre o casamento e a mudança. Ela contou que tinha passadoa noite em claro. O telefonema começou áspero e pouco a pouco os doisforam se entendendo. Samuel conseguiu fazer com que Elis o ouvisse.Claro que ele queria se casar com ela e morar com ela. Não se sentisseinsegura: a vacilação era natural, principalmente com crianças najogada. Depois de muitas explicações, ela enfim pareceu ceder. Suave,

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meiga, amorosa, dizia do outro lado da linha: Eu te amo, eu te amo, vocêé o homem da minha vida. Samuel notou que a voz dela passou a soar meiopastosa. As palavras saíam aos arrancos, incompletas. E de repente,silêncio. Alô, alô, ele gritava. Nada. Nem um som. Aflito, ele 262 desligou e discou para a casa dela. Ocupado. Ligou de novo. Ocupado. Denovo. Sempre ocupado. Não teve dúvida: saiu chispando do escritório, pegou um táxi e rumoupara a Rua Melo Alves. Encontrou a empregada e a babá com Pedro e MariaRita no playground do edifício. Disseram que estavam ali fazendo hora,esperando a patroa acordar para dar o dinheiro da feira. João Marceloestava na sala, ouvindo música bem alto para acordar a mãe. Samuel pegoua chave e subiu para o quinto andar. A porta do corredor que dava paraa suíte de Elis estava trancada. Samuel a esmurrou. Nenhuma resposta.Pediu então ao menino que pegasse as ferramentas e o ajudasse aarrombar a porta, pois Elis tinha deixado a chave na fechadura do ladode dentro, e quem estava de fora não conseguia abrir. Os doisarrebentaram a fechadura. E encontraram nova porta trancada, a doquarto. Outro arrombamento. Quando enfim a porta cedeu, Samuel e JoãoMarcelo viram Elis caída no chão, entre a cama e a estante. Do lado,fora do gancho, o telefone. Samuel afastou João Marcelo, entrou, fechoua porta, abaixou-se e sacudiu Elis. Ela não se mexia. Nenhum sinal devida. Samuel pegou o telefone e fez duas ligações: para o Hospital dasClínicas, pedindo uma ambulância, e para o sócio Marco António Barbosa,pedindo um médico. Sua camisa estava ensopada de suor quando CelinaSilva, a secretária, chegou: - A porta da cozinha estava aberta, o João Marcelo passou por mim esaiu. Aí veio o Samuel todo ensopado, nervoso, transfigurado. "Aambulância. . .", ele dizia, "não sei o que está acontecendo." Eletinha acabado de abrir a porta. Eu nem entrei no quarto, fui telefonar.Mas depois corri pró quarto e ela estava no chão. Deitada de frente,largada. Me chamaram a atenção seus pés, roxos. O Samuel dizia: "Estou tentando chamar a ambulância, mas eles não vêm,estão demorando". Eu não entendia nada. Ele só falava em ambulância,socorro, vamos rápido. Eu tentava, mas não conseguia ambulância. A Elisestava mole, sem qualquer reação. O lábio estava roxo, a metade de seurosto bem mais escura e uma olheira absurda. Samuel estava de pernabamba quando resolvemos enrolar Elis numa manta. Eu não sei se elaestava morta, mas não tinha sinal algum de retorno ou de respiração. Seucorpo estava quente, mas os pés e as mãos, frios. "Tudo isso durou, no máximo, dez minutos. De pânico. Levamos a Elis parao elevador. O Samuel voltou pra dentro pra pegar os documentos dela e eufiquei segurando ela sozinha, no hall. Eu falava pra ele me dizer o queestava acontecendo. Fiquei louca, eu chacoalhava ela, mexia. E nada,nenhum sinal de vida. Descemos pelo elevador, e o Samuel ficou segurandoela enquanto eu chamava um táxi. Quando estávamos colocando ela nocarro, chegou um outro carro com o médico da família (Álvaro MachadoJúnior) e o Marco Antônio Barbosa, sócio do Samuel. Aí eu fui com oMarco num carro e o médico e o Samuel com a Elis, no táxi. No Hospitaldas Clínicas levei os documentos da Elis para fazer a ficha enquanto uns

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cinco, dez médicos pulavam em cima dela, batendo. Foi tudo muitorápido. Deve ter demorado quinze, vinte minutos. O médico chegou pranós e disse: "Ela não agüentou"." Celina correu então para o telefone e ligou para os amigos maischegados. Desnorteados, foram chegando ao hospital. Ninguém sabia o quefazer. Como Elis não tinha morrido de causas naturais, tornava-seobrigatório fazer uma autópsia. Enquanto seu corpo era encaminhado aoInstituto MédicoLegal, a poucos metros do Hospital das Clínicas, chegavao irmão Rogério: ele acabara de ouvir a notícia no rádio do carro. A notícia que se espalhava por todo o Brasil não podia, infelizmente,ser desmentida. Às doze horas daquela trágica manhã de terça-feira, 19de janeiro, os médicos do Hospital das Clínicas declararam Elis ReginaCarvalho Costa oficialmente morta. Às quatro da tarde, Elis voltava aopalco do Teatro Bandeirantes, onde, seis anos antes, apresentara,durante catorze meses, o maior sucesso de sua carreira, o show Falsobrilhante. Nesse palco ela seria velada durante toda a noite e amadrugada por uma multidão que enchia o teatro e se derramava em longasfilas pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Era, principalmente, gentehumilde, gente do povo, pessoas que provavelmente nunca puderam vê-lade perto. Gostavam dela de longe. Na manhã seguinte, no longo trajetoentre o teatro e o cemitério do Morumbi, outras multidões comovidassaudaram Elis. Em toda a história do Brasil, só dois artistasconseguiram provocar tamanha comoção popular: Chico Alves e CarmemMiranda. Vinte e quatro horas depois de morta, tudo parecia acabado alinaquela cova. Mas não tinha acabado. No dia 21, quintafeira, era divulgado o laudo doInstituto MédicoLegal sobre a causa-mortis. O documento dizia que Elistinha morrido em conseqüência de uma intoxicação provocada por bebidaalcoólica e cocaína. Surpresa geral. Parentes e amigos chegadosinsistiam em dizer que ela não usava drogas. Imediatamente suspeitou-sedo laudo, assinado pelo diretor do IML, dr. Harry Shibata. O mesmoShibata que, em 1975, havia assinado o célebre laudo sobre a morte dojornalista Wladimir Herzog, declarando-o suicida sem ter examinado ocorpo a ele encaminhado pelo II Exército, sob cuja jurisdiçãofuncionava o temível DOI-CODI, onde Herzog morreu. Atuando como um dosadvogados da família Herzog, Samuel MacDowell de Figueiredo conseguiuprovar que a União era a responsável pela morte do jornalista. Agora,sete anos depois, o legista Shibata poderia estar indo à forra,complicando a vida do advogado Samuel. O caso rendeu muito na imprensa. Abriu-se um inquérito para apurar sehouve suicídio ou mesmo induzimento ao suicídio. No dia 26 de fevereirode 1982, o juiz Antônio Filardi Luiz determinou o arquivamento doinquérito com um belíssimo parecer, de cinco laudas, onde exalta apersonalidade de Elis Regina e conclui: "A prova colhida não demonstra,nem mesmo em tese, o delito de induzimento, instigação ou auxílio aosuicídio, mesmo porque não se pode falar, com segurança, em suicídio". Elis morreu, de fato, de uma dose letal de Cinzano e cocaína. Um erro dedose. Um acidente. Outros outubros virão. Elis morreu, e não há nada pior do que a suamorte. Na discussão sobre as causas que a mataram, o povo ficou de fora.

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Preferiu sentir a dor de sua perda e transformou seus funerais numacomoção nacional. O povo não cultua em vão seus mortos queridos. Elis,enterrada com a bandeira do Brasil no peito, cumpriu a sua missão. Umavida tão intensa e uma carreira tão intensa deixaram uma marcaindestrutível na cultura do país. As rádios tocam cada vez mais as suasmúsicas. Um grupo de jovens se encontra toda semana na Associação Elisem Movimento, para lembrá-la. Escolas, ruas e praças ganharam seu nome.No Festival dos festivais, da Rede Globo, quase cem compositoresinscreveram músicas louvando Elis. No mês de julho de 1985, quando seinaugurou o Auditório Elis Regina, em São Paulo, dona Ercy estava lá.Embaraçada com a quantidade de políticos municipais presentes e poucosconhecidos, ela reergueu o orgulho da família Carvalho Costa aodeclarar, diante das câmeras da TV Globo: "Ela merecia". Por seus erros, por se descontrolar, por se desentender com os outros econsigo própria, Elis descobriu ao longo da vida o direito de mudar deidéia. Lutou desesperadamente por isso em seus trinta e seis anos. Elatinha a força dos obstinados. Rompeu com a prudência e se atirou rápidae ágil em seus desejos. Fez e disse o que queria - superou acusações,rótulos, cobranças. Confundiu, anarquizou, gritou e esperneou. Nãolevou desaforo pra casa. Foi uma mutante especialíssima, uma mulhervalente, uma artista privilegiadamente talentosa. Era mesmo um furacão. Devastadora. Comigo, ela era assim. Nessa nervosaprocura de sua personalidade inteira, sem meias verdades, Elisarrebentou meus conceitos, abriu espaços para a compreensão e memostrou o universo sutil da alma de um artista. Finíssima lição de vida,embalada por um canto forte e brasileiro, que ainda me faz chorar quandoa escuto. Maria, Maria, uma mulher que merece viver e amar como outraqualquer do planeta. Uma dose mais forte, lenta. Oito ou oitenta.Nenhuma diferença. Elis não teve a unanimidade em vida, mas na morteconseguiu-a. No palco do Teatro Bandeirantes, onde foi velada, umaplatéia respeitosa pôde ver sua fisionomia serena, enfim pacificada. A música popular perdeu sua maior porta-bandeira. Os amigos, airrequieta mola propulsora, a que instigava, a que desnorteava. Linda elouca. Nervosa e doce pessoa, difícil de agarrar. Herdou de dona Ercy amesma altivez. Herdou de dona Ercy a mania de não dar o braço a torcer."Eu gosto de encher o saco dos outros", costumava me dizer. "Será que sou obrigada a aceitar quem passa pela minha frente?" Não, Elis, definitivamente não. Não é preciso aceitar nada. É precisoapenas viver.

Fim do Livro