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preço 10 Negócios Estrangeiros número 15 Dezembro 2009 publicação semestral do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros I nstituto dipl omático Anton Bebler Carlos Martins Branco Carlos Neves Ferreira Duarte Pinto da Rocha Duško Lopandic´ Filipe Ortigão Neves Gisela Guevara Hugo Sobral João Carlos Versteeg João Sabido Costa Jorge Azevedo Correia José Cutileiro José-Sigismundo de Saldanha Leonardo Mathias Manuela Franco Mateus Kowalski Paulo Marrecas Rafael Marcos Aranda Tiago dos Reis Miranda

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NegóciosEstrangeirosnúmero 15Dezembro 2009

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NegóciosEstrangeirosRevista N.º 15

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RevistaPublicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros

DirectorEmbaixador Carlos Neves Ferreira

(Presidente do Instituto Diplomático)

Directora ExecutivaMaria Madalena Requixa

Design GráficoRisco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.

Pré ‑impressão e ImpressãoEuropress

Tiragem400 exemplares

PeriodicidadeSemestral

Preço de capa10

Anotação/ICS

N.º de Depósito Legal176965/02

ISSN1645 ‑1244

EdiçãoInstituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)

Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350 ‑218 LisboaTel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e ‑mail: [email protected]

Número15 . Dezembro 2009

NegóciosEstrangeiros

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7 Nota do Director

9 A Europa ou o diálogo que nos falta? Hugo Sobral

31 A Carta das Nações Unidas como “Constituição” da comunidade internacional Mateus Kowalski

59 O funcionário internacional na UNESCO – evolução do paradigma João Carlos Versteeg

73 A protecção internacional dos Direitos Humanos e a sua influência nos ordenamentos jurídicos internos

Paulo Marrecas

83 La gestión de conflictos en la Comunidad Iberoamericana Rafael Marcos Aranda

89 Contributos para o Estudo da Política Externa Portuguesa no Contexto do Brasil Pombalino – O Directório dos Índios do Pará e Maranhão

Duarte Pinto da Rocha

141 África, perspectivas para el futuro Gisela Guevara

159 História e Diplomacia João Sabido Costa

NOTAS DE LEITURA

179 Retrovisor, um Álbum de Família, de Vera Futscher Pereira A thing of love is a joy forever, por José Cutileiro

182 Arquitectos da Paz – a diplomacia portuguesa de 1640 a 1815, de Ana Leal de Faria por Leonardo Mathias

185 Handbook of Intelligence Studies, de Loch K. Johnson Do estudo ao escrutínio parlamentar: uma introdução às Informações, por Filipe Ortigão Neves

190 Seeds of Terror. How Heroin is Bankrolling the Taliban and al Qaeda, de Gretchen Peters

por Carlos Martins Branco

196 The future of freedom: illiberal democracy at home and abroad, de Fareed Zakaria por Jorge Azevedo Correia

Índice

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202 Negotiating Change: The New Politics of the Middle East, de Jeremy Jones The Greater Middle East and the Cold War: U.S. Foreign Policy Under Eisenhower and Kennedy, de Roby C Barrett Churchill's Promised Land: Zionism and Statecraft, de Michael Makovsky

O Novo Médio Oriente ou De novo, o Médio Oriente? por Manuela Franco

219 NOVAS AQUISIÇÕES PARA A BIBLIOTECA DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS

DIÁLOGO

225 Comentário ao artigo de Anton Bebler publicado na Revista Negócios Estrangeiros n.º 14 Duško Lopandic

229 Comments on Ambassador Duško Lopandic’s letter concerning the Kosovo issue Anton Bebler

CADERNOS DE ARQUIVO

235 Journal des cérémonies de mon Ambassade au Portugal par le Presidente Rouillé José-Sigismundo de Saldanha

257 A embaixada de D. António de Saldanha da Gama à Corte de Paris: instrução secreta e cartas de crença (1756)

Tiago C. P. dos Reis Miranda

Linhas de Orientação

Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores. E em nenhumas circunstâncias poderão ser invocados como traduzindo posições da política externa portuguesa.

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5Nota do Director

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6

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7

Num muNdo digital, em que a alternativa 0.1 absorveu, simplificou ou atenuou as dicotomias

tradicionais, que davam colorido ao quotidiano e conteúdo ao pensamento dito

sério (o bem e o mal, o justo e o arbitrário, o razoável e o funesto, em suma, o

isto e o aquilo…), põe‑se ao editor de uma revista sobre questões internacionais

uma alternativa bem mais pedestre: fazer um número dedicado exclusivamente a

um assunto, com o risco inerente da irrelevância; ou publicar um número com

um pouco de tudo – que é, como quem diz, com o que houver disponível, e aí,

outra vez, para além da irrelevância, correr o risco da banalidade por dispersão

temática.

No número 15 da NE mantêm‑se as secções notas de leitura e cadernos de arquivo,

esta com a divulgação de documentos de interesse para a história diplomática

portuguesa.

Acrescenta‑se‑lhe uma secção de divulgação das recentes aquisições de livros

para a Biblioteca do Ministério. Para que estas sorumbáticas salas deixem de ser um

cemitério de livros e cumpram a sua função primeira de estimular a leitura, algu‑

ma coisa se comprou e bastante mais vem a caminho. Assim aquele espaço se

anime e as pessoas leiam! A primeira condição, que é haver livros – se possível

recentes e escolhidos a partir de criteriosas notas de leitura –, está a ser cumprida.

A segunda – que é haver leitores, já ultrapassa os responsáveis, que apenas contam,

como os economistas do século XIX e alguns do século XX, que a oferta crie a sua

própria procura.

No presente número o leitor encontrará, pois, alguma variedade. Para já, resul‑

tado de uma esperada divergência de opiniões, um sereno comentário do embaixa‑

dor da Sérvia em Lisboa que discorda – como seria de esperar – da forma como foi

apresentado pelo Professor Anton Bebler o problema do Kosovo, no n.º 14 da NE.

Bebler, que achou por bem, contudo, replicar e por aí se fica a controvérsia. Uma

outra divergência, suscitada por uma nota de leitura algo acerba, ficará inédita por

vontade de uma das partes. A semestralidade da revista não ajuda à vivacidade dos

debates.

NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 7-8

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8 Como é natural, há um “desvio” editorial a favor dos colegas diploma‑

tas e, penso, ninguém estranhará que um bom pedaço do espaço disponível

lhes tenha sido atribuído. Há também artigos em português, inglês e espa‑

nhol. Todos teremos de ser um pouco poliglotas, dentro dos limites da razo‑

abilidade, e de nos sabermos bater com textos originais, em detrimento da

visão tacanha dos nacionalismos condescendentes proclamados a pretexto

da grandeza putativa da língua materna. Acabou o tempo de se falar “patrio‑

ticamente mal” as línguas estrangeiras, frase, aliás, cunhada por um escritor

de imenso talento e exímio cultor do francês.

O Presidente do Instituto DiplomáticoCarlos Neves Ferreira

Embaixador

NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 7-8

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9A Europa ou o diálogo que nos falta?**

Hugo Sobral*

n Abstract:

A new cycle is about to begin in the European Union with a new Commission being

designated until the end of the year, a new Parliament in place as from July and a

more than likely new Treaty in force by the beginning of 2010. All these changes

present an appropriate opportunity to reflect upon and improve our participation in

the EU decision making process, particularly in the areas pertaining to the Permanent

Representatives Committee – part I (COREPER I), predominantly in charge of the leg‑

islative procedure. The fact that around 60% of the national legislation already stems

from transposition or application of laws decided at European level, on areas as relevant

as finance and economy, environment, social and employment, constitutes, on its own,

an incentive to revisit our positioning, strategy of alliances and negotiating techniques.

Furthermore the challenges put forward by a pluralistic and diverse Council, a steady

extension of the European Parliament’s co ‑decision power’s and an evolving European

Commission oblige Member States to increase their efficiency and sophistication if

they want their voices heard in EU affairs. In a scenario of ‘power dispersion’ between

the three main actors of the legislative process (Council, European Parliament and

Commission) one can only be effective in shaping European policies with well defined

roles in the national administration, a powerful and fully ‑functioning coordination

unit and a close inter ‑action between national officials in all European institutions.

ToNy BarBer, o chefe da representação em Bruxelas do Financial Times, comparava no seu

blogue a chegada dos Chefes de Estado e de Governo para o Conselho Europeu de 19

e 20 de Março, que deveria aprovar formalmente a componente comunitária do plano

* Agradeço as sugestões, comentários e críticas dos Senhores Embaixadores Vasco Valente e Pedro Nuno Bártolo, bem como (por ordem alfabética) do Domingos Fezas Vital, Duarte Bué Alves, Francisco Duarte Lopes, Lénia Real, Manuel Cansado de Carvalho e Mónica Marques Silva. Naturalmente que o conteúdo do artigo apenas vincula o autor.

** Título retirado do primeiro ensaio de Eduardo Lourenço sobre questões europeias, Heterodoxia I e II, Lisboa: Assírio e Alvim, 1987.

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10 de recuperação económica, às referências no Livro do Génesis à entrada dos animais

na Arca de Noé, procurando salvação para a inundação iminente.

A comparação é manifestamente exagerada, sobretudo se atentarmos na reduzida

dimensão da vertente comunitária do plano de recuperação económica (5 mil milhões

de euros), pouco salvífico para as finanças dos Estados ‑membros. No entanto, adequa‑

‑se perfeitamente se pensarmos nas limitações já abundantemente esmiuçadas com

que se deparam os Estados individualmente considerados perante a magnitude e o

carácter global da crise financeira, económica e social – que fazem da União Europeia

uma bóia de salvação para muitos – e se atendermos à grande influência que a União

Europeia tem na produção legislativa de cada um dos Estados ‑membros.

Num momento em que se completará um ciclo institucional na União Europeia,

esperando ‑se até ao final do ano um novo Parlamento Europeu, uma nova Comissão

Europeia e possivelmente um novo Tratado, assumirá também funções em Portugal um

novo Governo. Esta conjuntura revela ‑se particularmente apropriada para avaliar se

estaremos, em Portugal, aos mais diversos níveis, a participar no processo de constru‑

ção europeia de uma forma optimizada, em particular na sensível área da produção

legislativa que tanto condiciona a organização económico ‑social de cada Estado‑

‑membro. Estarão todos os agentes (na administração pública e na sociedade civil)

conscientes e mobilizados para esta importante, mas não raras vezes negligenciada,

dimensão da nossa participação na construção europeia?

Uma pequena história poderá ilustrar a resposta a esta questão. Quando, a 31 de

Dezembro de 2007, terminou a terceira presidência portuguesa do Conselho da União

Europeia, o balanço foi unanimemente considerado como positivo. Também se regis‑

tou unanimidade na identificação dos grandes resultados alcançados: a assinatura do

Tratado de Lisboa, a realização da primeira Cimeira com o Brasil e a realização da

segunda Cimeira União Europeia ‑África.

Alguma imprensa, mais atenta e informada, incluía ainda o acordo sobre o pro‑

jecto Galileo no inventário dos sucessos do segundo semestre de 2007. Escassas refe‑

rências, no entanto, se tivermos em conta o que foi alcançado. Se é justo enquadrar os

três momentos evocados no rol dos êxitos da nossa presidência, pelo trabalho e pela

negociação aturada que implicaram, não é menos justo reconhecer que a presidência

portuguesa do Conselho representou muito mais do que isso. Foram 57 os acordos

legislativos com o Parlamento Europeu em primeira, segunda e terceira leituras,

destacando ‑se o acordo sobre a integração da aviação no Comércio Europeu de

Licenças de Emissões, o acordo sobre o regulamento que cria o Instituto Europeu de

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11Inovação e Tecnologia, o acordo sobre a directiva que visa a liberalização final dos

Serviços Postais na União Europeia, as Directivas sobre a Qualidade do Meio Marinho

e a Qualidade do Ar.

Esta análise de conteúdo impressionista da maneira como foi tratada a nossa

Presidência ilustra a forma como a Europa é encarada em Portugal. Com efeito, o dia‑

‑a ‑dia da União Europeia vai muito para além dos grandes eventos internacionais ou

dos cada vez menos esporádicos e cada vez mais incertos momentos de revisão insti‑

tucional.

A ausência de informação sobre uma dimensão importante dos assuntos que são

discutidos e aprovados em Bruxelas, que tendem a coincidir justamente com a gene‑

ralidade das políticas que estão já comunitarizadas e onde é maior a produção legisla‑

tiva com impactos directos nos Estados ‑membros, é comum a todos os países mas

sente ‑se particularmente em Portugal.

Esta falta de informação alimenta, de resto, o desinteresse pelas questões comuni‑

tárias. Numa sondagem publicada no Eurobarómetro1, em Março de 2009, relativa às

expectativas e conhecimento dos cidadãos sobre as eleições europeias de Junho,

Portugal aparecia apenas à frente da Letónia, República Checa, Eslováquia e Reino

Unido, como o país onde os cidadãos revelam maior desinteresse por este acto eleito‑

ral (62% dos inquiridos, contra 54% da média comunitária). Ainda no mesmo inqué‑

rito, Portugal foi o país que registou menor percentagem de intenção de voto (14%,

contra 34% da média comunitária).

O problema no que respeita aos assuntos europeus é que, embora já tenham

decorrido 23 anos desde a nossa adesão, este alheamento, para além dos cidadãos e da

generalidade da imprensa, gera também alguma indiferença por parte da administra‑

ção.

O comité de representantes permanentes – Parte I – a incansável formiga Esta dimensão

‘desconhecida’ ou pelo menos indevidamente acompanhada da construção comunitária

tem o seu centro nevrálgico no Comité de Representantes Permanentes – parte I

(COREPER I)2 onde as questões abordadas coincidem em geral com as políticas

1 http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_303_fr.pdf2 O número 1 do artigo 207 do Tratado da União Europeia estabelece um “Comité, composto pelos

Representantes Permanentes dos Estados ‑membros, responsável pela preparação dos trabalhos do

Conselho e pela execução dos mandatos que este lhe confia”. Este COmité de REpresentantes PERmanentes

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12 que já estão comunitarizadas e que são comummente denominadas de políticas

internas. As características e o método de trabalho deste órgão têm ainda algumas

particularidades que lhe conferem uma dinâmica negocial muito própria:

é nestes domínios que o essencial da produção legislativa (regulamentos,

directivas e decisões) é negociado, com implicações directas na legislação

nacional e nos sectores económico e social;

o método comunitário assume particular preponderância, com a Comissão

a ter o poder de iniciativa legislativa e o Conselho e o Parlamento Europeu

a assumirem, em conjunto, a função de co ‑legisladores. Cerca de 80% das

questões discutidas pelo COREPER I são tratadas em co ‑decisão e exigem,

por isso, que para além de um acordo entre os membros do Conselho, um

entendimento seja igualmente alcançado com o Parlamento Europeu;

o COREPER I cobre igualmente as áreas em que, de acordo com os Tratados,

mais se recorre à maioria qualificada como meio de votação, o que obriga

a uma estratégia negocial mais trabalhada para reunir apoios suficientes que

permitam formar maiorias qualificadas ou minorias de bloqueio.

A relevância deste Comité confirma ‑se ainda pelo facto de as áreas por ele cober‑

tas serem responsáveis por mais de 60% da legislação adoptada a nível nacional, direc‑

tamente, via regulamentos, ou após transposição, no caso das directivas. Quer isto dizer

que enquanto se debate o primado do direito comunitário sobre o direito nacional,

mais de metade da legislação que está em vigor em Portugal resulta já do que é deci‑

dido em Bruxelas… facto que, por si só, deveria ser razão suficiente para contrariar o

alheamento acima constatado.

O impacto da legislação: casos recentes Mas para além do elemento quantitativo3, existe

também a dimensão qualitativa. Por vezes uma determinada proposta pode ter um

(COREPER) divide ‑se em dois, o COREPER I e o COREPER II, acompanhando diferentes matérias. Em

geral, o CORPER II (onde têm assento os Representantes Permanentes) acompanha os assuntos discutidos

nas formações Assuntos Gerais e Relações Externas; Economia e Finanças e Justiça e Assunto Internos.

O COREPER I (onde participam os Representantes Permanentes ‑Adjuntos) acompanha as questões tra‑

tadas nas formações Ambiente; Competitividade (Indústria, Mercado Interno e Investigação); Educação

Juventude e Cultura; Agricultura (no que releva dos assuntos fitossanitários, veterinários e pescas);

Emprego, Política Social, Saúde e Consumidores e Transportes, Telecomunicações e Energia.3 De 1999 a 2003 foi adoptada uma média de 195 propostas legislativas por ano; em 2004 este número foi de

240; em 2005 de 130 e em 2006 de 197.

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13impacto crucial na estrutura económico ‑social dos Estados ‑membros. Tomemos

como exemplo algumas propostas legislativas discutidas nos últimos anos pelo

COREPER I, em diferentes áreas, para melhor avaliar este alcance4.

Directiva Serviços

A Directiva relativa aos Serviços no Mercado Interno5, que ficou conhecida pela

“Directiva Serviços” – depois de uma primeira denominação de “Directiva Bolkestein”6

(“Frankenstein” para os seus detractores) –, tinha como objectivo “facilitar a liberdade

de estabelecimento dos prestadores de serviços noutros Estados ‑Membros e a liberda‑

de de prestação de serviços entre Estados ‑membros; aumentar as possibilidades de

escolha à disposição dos destinatários dos serviços e melhorar a qualidade dos serviços

prestados tanto aos consumidores como às empresas”. A intenção da Comissão era

completar o mercado interno na área dos serviços, responsáveis por 70% do PIB euro‑

peu e por mais de 50% do emprego, números não muito diferentes dos portugueses

(69,2% e 57,9% respectivamente)7.

Assim, na proposta original apresentada pela Comissão (onde os serviços eram

entendidos como as actividades prestadas mediante contrapartida económica)

concretizar ‑se ‑ia uma liberalização generalizada deste sector, passando toda a regula‑

mentação a ser feita de acordo com a regra do princípio do país de origem; ou seja,

todo e qualquer prestador que se quisesse estabelecer em Portugal teria apenas de

cumprir com a legislação do respectivo país de origem para o exercício da actividade.

No final da negociação, e depois de muita polémica entre os defensores da proposta

que valorizavam os potenciais 33 mil milhões de euros de ganhos8 e os seus detracto‑

res que alertavam para os riscos de dumping social inerentes9, foi restringido o âmbi‑

to de aplicação da proposta, aumentado o número de sectores excluídos e substituído

4 Nesta avaliação não se pretende fazer um juízo de mérito sobre o resultado negocial nem sobre o conteúdo

detalhado de cada uma das propostas, mas dar um enquadramento sobre a importância específica de cada

uma destas peças legislativas para o conjunto dos Estados ‑membros e, em particular, para Portugal.5 Proposta apresentada em Janeiro de 2004, tendo a negociação sido concluída em Dezembro de 2006. O prazo

para a sua transposição termina no final de 2009.6 A partir do nome do Comissário holandês responsável pelo Mercado Interno, Frits Bolkestein, que a apre‑

sentou.7 Dados AICEP/INE de 2008: http://www.investinportugal.pt/NR/rdonlyres/F74747D4 ‑D6A6 ‑40DC ‑A9AA‑

‑5D6CC60A549C/0/FichaPaisPortugues_Abril2009.pdf8 http://ec.europa.eu/internal_market/services/docs/services ‑dir/studies/2005 ‑01 ‑cph ‑study_en.pdf9 http://www.etuc.org/a/243

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14 o princípio do país de origem pela regra da liberdade de prestação de serviços (que

permite salvaguardar o princípio do livre acesso e exercício da actividade, possibili‑

tando no entanto aos Estados ‑membros apresentarem algumas restrições a essa acti‑

vidade desde que sejam não ‑discriminatórias, proporcionadas e justificadas por

razões relacionadas com a ordem, segurança e saúde públicas ou com a protecção do

ambiente).

Tratou ‑se de um processo negocial longo e atribulado, de grande significado polí‑

tico, que contribuiu com outros factores para a rejeição da Constituição Europeia

referendada em França10. No caso português, independentemente do juízo de mérito

sobre o resultado final da negociação, esta directiva terá repercussões sobre 70% do

valor acrescentado bruto nacional e mais de metade dos empregos.

REACH

O regulamento relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias

químicas, que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, ficou conhecido pela

sua abreviatura em inglês REACH11. Este regulamento tinha como objectivo criar um

sistema integrado único de registo, avaliação e autorização de substâncias químicas,

bem como uma Agência Europeia das Substâncias Químicas, passando assim a obrigar

as empresas que fabricam e importam estas substâncias a avaliar os riscos decorrentes

da utilização das mesmas e a tomar as medidas necessárias para gerir todos os riscos

que identificarem. O propósito é o de proteger o ambiente e a saúde humana, promo‑

vendo simultaneamente a inovação industrial.

Este regulamento, com mil páginas de texto, entre considerandos, articulado e

anexos, substituiu mais de 40 directivas e regulamentos, afectando assim de forma

directa a indústria química europeia, responsável pela produção de 31% dos químicos

a nível mundial e empregadora de 1,7 milhões de trabalhadores. Em Portugal, 850

empresas operam no sector químico, empregando 22 500 trabalhadores, responsáveis

por cerca de 3,7% do PIB. No entanto, as repercussões deste regulamento estendem ‑se

também, de forma indirecta, a todos os utilizadores downstream de produtos químicos

10 O famoso canalizador polaco evocado na campanha, mais não era do que uma sátira à directiva Serviços e

ao receio do dumping social (vide, por exemplo, a entrevista de Philippe de Villiers, ao Figaro, 15 Março

2003, “La grande triche du oui”)11 O regulamento foi apresentado pela Comissão Europeia em 2003. As negociações concluíram ‑se em finais

de 2006, a entrada em vigor aconteceu em Janeiro de 2007 e o prazo de transposição terminou em Junho

de 2008.

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15nas restantes indústrias, desde os cosméticos até ao automóvel, passando pelos têxteis,

na medida em que a utilização destes produtos está disseminada por toda a cadeia

industrial.

O estudo de impacto realizado pela Comissão antes de apresentar a proposta esti‑

mava os custos totais de aplicação do regulamento para os operadores europeus entre

2,8 e 5,2 mil milhões de euros num prazo de 11 e 15 anos respectivamente. Porém,

os ganhos em termos de saúde pública calculados em conjunto com o Banco Mundial

e a Organização Mundial de Saúde ascendiam a 50 mil milhões de euros num prazo

de 30 anos12.

Independentemente dos valores finais que só se conhecerão a médio ou longo

prazo, é inegável o impacto que este regulamento terá não só na indústria química

nacional, mas também em todos os sectores industriais associados que equivalem pra‑

ticamente a todo o sector secundário, responsável por 28,3% do valor acrescentado

bruto e por 30,5% do emprego13 em Portugal.

Directiva Tempo de Trabalho

A Directiva relativa à organização de determinados aspectos do tempo de trabalho14

estabelece as prescrições mínimas gerais de segurança e de saúde em matéria de orga‑

nização do tempo de trabalho e regula os períodos de descanso diário, as pausas, os

períodos de descanso semanal, as férias anuais e certos aspectos do trabalho nocturno

e do trabalho por turnos.

Esta directiva enquadra e regula assim qualquer período durante o qual o traba‑

lhador está a exercer a sua actividade ou se encontra à disposição da entidade patronal

no exercício das suas funções, ou seja, o tempo de trabalho, consagrando na legislação

comunitária a regra da semana laboral das 48 horas.

12 No entanto, um estudo encomendado pelo Comité ITRE (Indústria, Investigação e Energia) do Parlamento

Europeu à consultora Arthur D. Little apontava para um decréscimo do valor acrescentado bruto para a

indústria manufactureira na UE15 de 12,6% – i.e. 167 mil milhões de euros (valores contestados poste‑

riormente por exagerarem custos envolvidos e minimizarem os benefícios em termos de saúde pública).

13 Dados AICEP/INE de 2008: http://www.investinportugal.pt/NR/rdonlyres/F74747D4 ‑D6A6 ‑40DC‑

‑A9AA ‑5D6CC60A549C/0/FichaPaisPortugues_Abril2009.pdf14 Apresentada a 4 de Novembro de 2003, codifica a directiva de base de 1993 (adoptada no decurso da pri‑

meira Presidência Portuguesa da UE) e revê a redacção da Directiva de 2000 sobre a mesma matéria. A res‑

pectiva negociação entre o Conselho e o Parlamento Europeu falhou no final do mês de Abril de 2009, mas

prevê ‑se que a Comissão Europeia venha apresentar em breve uma nova proposta sobre esta matéria.

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16 Contudo, na directiva de base de 1993 foi admitida uma excepção à regra da

semana das 48 horas (o chamado opt -out) através de acordos ‘voluntários’ entre empre‑

gadores e trabalhadores que permitiam exceder o horário estipulado (outra excepção

era a possibilidade de anualizar o período de referência para cálculo das 48 horas

semanais). Esta cláusula de opt -out foi incluída a pedido do Reino Unido, que pretendia

manter a liberalização do seu mercado laboral.

A Confederação Patronal Britânica (CBI), principal opositora de um gradual desa‑

parecimento do opt -out (tal como pretendido por vários Estados ‑membros e pelo

Parlamento Europeu), afirmava que o fim deste regime de excepção poderia custar

entre 53 e 75 mil milhões de euros à economia britânica até 2020. Por seu turno, a

Confederação Europeia de Sindicatos (ETUC) recordava que já em 1919 a primeira

Convenção Internacional do Trabalho – predecessora da Organização Internacional do

Trabalho – consagrava o princípio das 8 horas diárias e das 48 horas semanais.

Resulta assim claro o alcance desta directiva, com implicações directas na organi‑

zação das relações laborais em todos os Estados ‑membros (no caso português a sua

adopção poderia implicar a revisão de aspectos pontuais do código de trabalho), fun‑

damental para um equilíbrio entre o objectivo principal de segurança e de saúde dos

trabalhadores e as necessidades de uma economia eficaz e competitiva.

Pacote Energia e Clima

O pacote legislativo Energia e Clima15 visa dar seguimento às decisões políticas do

Conselho Europeu da Primavera de 2007, em particular à meta dos 20/20/20, ou seja,

atingir em 2020 20% de redução das emissões de CO2 (podendo ir até aos 30% se

Estados terceiros se associarem a este esforço), 20% de utilização obrigatória de ener‑

gias renováveis (10% no sector dos transportes), e 20% adicionais de eficiência ener‑

gética (este último objectivo não teve uma proposta legislativa associada).

Os impactos destas propostas são extensos, na medida em que o modelo de fun‑

cionamento do Comércio Europeu de Licenças de Emissões (CELE) é totalmente revis‑

15 O pacote, apresentado no início de 2008 e concluído no final do mesmo ano, era constituí do pelas seguintes

quatro propostas legislativas: proposta de directiva que revê o regime de comércio de licenças de emissão

de gases com efeito de estufa da Comunidade; proposta de decisão relativa aos esforços a realizar pelos

Estados ‑membros para redução das suas emissões de gases com efeito de estufa (nos sectores não cobertos

pelo comércio de licenças de emissão); proposta de directiva relativa ao armazenamento geológico do

dióxido de carbono e proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à promoção da

utilização de energia proveniente de fontes renováveis.

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17to, passando a assentar no leilão das licenças de emissões de CO2 pelas unidades

industriais europeias, começando com uma percentagem de 20% em 2013 e atingindo

100% em 2027. Quer isto dizer que as emissões de CO2 industriais passarão a ter de

ser compradas no mercado europeu de carbono. No sector eléctrico o leilão será obri‑

gatoriamente de 100% a partir de 2013, com excepções previstas para os Estados‑

‑membros cujo sector energético continua a depender, em grande medida, do carvão.

Uma das questões mais longamente discutidas no âmbito deste pacote foi o risco

de ‘fugas de carbono’, associado às eventuais deslocalizações de empresas para outras

regiões do mundo, como reacção ao aumento dos custos de produção, decorrentes do

comércio de emissões. Face a um problema real, cuja verdadeira dimensão todavia só

se saberá após um eventual acordo internacional em Copenhaga sobre o regime pós‑

‑Quioto16, e face a uma preocupação generalizada por parte da indústria17 e sindicatos,

foi necessário introduzir disposições que salvaguardassem a economia europeia, per‑

mitindo assim às indústrias potencialmente afectadas (o cálculo far ‑se ‑á com uma

fórmula que combina o valor acrescentado bruto e a intensidade do comércio) rece‑

berem gratuitamente as licenças de emissão.

Para além disso, nos sectores não cobertos pelo Comércio de Licenças de Emissões

(agricultura, transportes, sector residencial) será necessário reduzir igualmente as

emissões segundo uma escala que, tendo por base o PIB per capita, obrigará os Estados‑

‑membros com um PIB mais elevado a fazerem reduções significativas para que aque‑

les com um menor PIB possam emitir um pouco mais18.

O objectivo de 20% de incorporação de renováveis, incluindo 10% obrigatórios

no sector dos transportes foi calculado com base no PIB per capita, bem como no poten‑

cial endógeno de cada Estado ‑membro. Neste contexto, Portugal terá o quinto objec‑

tivo mais ambicioso na UE para 2020 (31% de energia renovável)19.

Este conjunto de propostas a que já se chamou a ‘revolução verde’ ou a nova ‘revo‑

lução industrial’ obrigará a uma adaptação do sector industrial nacional no sentido de

16 Sendo que os potenciais destinatários das deslocalizações empresariais serão os países que não se associarem

a um acordo internacional para o pós ‑Quioto.17 Vide comunicado das indústrias com elevado consumo energético: http://www.eurometaux.org/files/

ETSBar11 ‑02 ‑08 ‑160127A.pdf18 A Portugal será permitido um crescimento de emissões de 1% comparado com o ano base de 2005 (único

Estado ‑membro com possibilidade de crescimento na UE15).19 Refira ‑se no entanto que em relação ao ano base de 2005 também éramos o 5º Estado Membro na UE com

maior utilização de renováveis (20,5%).

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18 limitar as suas emissões de gases com efeito de estufa. Terá ainda um efeito indutor de

incorporação de energias renováveis na produção de electricidade, nos transportes e

no aquecimento e arrefecimento (heating and cooling) e representará uma mudança no

próprio modo de vida das pessoas20.

Os custos serão naturalmente significativos. De acordo com o relatório produzido

pelo economista Nicholas Stern21 em Outubro de 2006, os custos globais poderão

atingir 1% do PIB mundial (face a algumas críticas quanto ao facto de o economista

ter subestimado estes custos, o valor foi actualizado para 2%22) num prazo de 50 anos.

No entanto, o mesmo relatório refere também que os custos de inacção poderiam

representar 20% desse mesmo PIB no mesmo prazo.

Quem é quem no triângulo institucional comunitário Os impactos evidentes destas questões

no nosso quotidiano aconselham uma preparação adequada na forma como

participamos no processo de decisão comunitário e nos trabalhos do COREPER I.

A complexidade das questões e dos métodos de decisão actualmente existentes em

Bruxelas obriga a que, para se garantir sucesso negocial, deva existir uma estrutura de

coordenação e rotinas de actuação bem interiorizadas por parte das administrações

nacionais, onde cada actor sabe o que fazer em cada momento do processo.

Esta organização é fundamental para Estados ‑membros como Portugal que têm

vindo a ser pressionados em várias frentes pelas sucessivas revisões institucionais. Por um

lado, através da alteração da ponderação dos votos e do aumento das matérias decididas

por maioria qualificada, que tem vindo a traduzir ‑se numa perda progressiva de poder

no Conselho. Por outro lado, pela diminuição do número de parlamentares, associada ao

aumento das matérias decididas por co ‑decisão com o Parlamento Europeu23.

20 Um estudo elaborado pela Cambridge Energy Research Associates referia que estas políticas poderiam, por exemplo,

permitir uma poupança de gás de 125 mil milhões de metros cúbicos por ano em toda a União Europeia,

fazendo com que o consumo de gás em 2030 se aproxime dos valores de 1990. 21 Disponível em http://www.hm ‑treasury.gov.uk/sternreview_index.htm22 “Cost of tackling global climate change has doubled, warns Stern”, in Guardian, http://www.guardian.

co.uk/environment/2008/jun/26/climatechange.scienceofclimatechange23 Com efeito, até Nice, o sistema de ponderação de votos no Conselho nas decisões por maioria qualificada era

mais equilibrado, não havendo um hiato tão grande entre o Estado ‑membro com menor número de votos

(Luxemburgo com 2) e os Estados ‑membros com maior número de votos (França, Alemanha e Reino

Unido com 10 votos). Neste sistema, Portugal dispunha de cinco votos. Embora o critério demográfico fosse importante, este era matizado com considerações de equilíbrio político através de um método de proporcionalidade regressiva (isto é, os mais pequenos eram beneficiados). Com os alargamentos suces‑

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19Segue ‑se uma análise mais atenta da actuação dos diferentes actores envolvidos no

processo negocial, essencial para se perceber a complexidade da tarefa e para se pode‑

rem tirar ilações para uma melhor actuação nacional.

A Comissão Europeia

A Comissão Europeia é um actor central na negociação comunitária, dado que tem o

monopólio da iniciativa legislativa (que partilha com o Conselho nalgumas áreas espe‑

cíficas da Justiça e Assuntos Internos). Assim, antes ainda das propostas serem subme‑

tidas aos dois co ‑legisladores (Conselho e Parlamento) já uma negociação intensa teve

sivos, os Estados maiores foram perdendo algum peso relativo (com o alargamento de 1995 o número mínimo de população para atingir a maioria qualificada descia de 63,21% para 58,73%), pelo que, pri‑meiro em Amesterdão (sem sucesso) e depois em Nice, procuraram (re)valorizar o elemento demográ‑fico, sobrepondo uma “União dos maiores Estados” à “União de Estados”. Assim, apesar de um aumento de votos generalizado para todos os Estados ‑membros, a reponderação ficou a favorecer os grandes países (França, Inglaterra e Itália e, em menor medida, a Alemanha) e os médio ‑grandes (Polónia e Espanha) que fizeram depender deste reforço aceitarem ‘perder’ o segundo Comissário de que dispunham. O hiato entre os Estados com maior número de votos (29) e o menor (3) aumentou e Portugal perdeu algum peso institucional ao ficar com 12 votos, num total de 237 (o limiar da maioria qualificada foi fixado em 169 votos). Mais tarde, com o alargamento a 10, e depois a mais 2, o número total de votos subiu para 321 e 345, passando o limiar da maioria qualificada para 232 e 255 respectivamente, não alterando no entanto a revalorização dos Estados de maior dimensão. Esta revalorização consolidou ‑se de resto com o aditamento da chamada cláusula demográfica: qualquer membro do Conselho pode pedir, por ocasião de uma tomada de decisão por maioria qualificada, que se verifique se essa maioria qualificada representa, pelo menos, 62 % da população da União. Esta disposição junta ‑se às outras condições necessárias para a adopção de uma decisão (a maioria qualificada dos votos e a maioria dos Estados ‑membros). Ou seja, o actual sistema prevê uma tripla maioria (votos ponderados; população; e número de Estados) – contudo, tendo em conta os limiares fixados, praticamente só os votos ponderados contam. No futuro Tratado de Lisboa passou ‑se para a dupla maioria, anulando ‑se os votos ponderados que garantiam o equilíbrio da decisão (e salvaguardavam a posição de Portugal), considerando ‑se aprovadas as decisões que sejam apoiadas por 55% dos Estados ‑membros que representem pelo menos 65% da população da UE. Ou seja, para se formarem maiorias qualificadas ou minorias de bloqueio, os Estados ‑membros de maior dimensão contam cada vez mais com as sucessivas revisões dos Tratados. Paralelamente o envolvimento do Parlamento Europeu enquanto co ‑decisor é uma tendência que se vem acentuando com as últimas revisões institucionais e que continuará com o Tratado de Lisboa, onde o procedimento de consulta será substituído pela co ‑decisão na Agricultura, nas Pescas e nalguns domínios da Justiça e Assuntos Internos (com o Tratado de Lisboa a co ‑decisão tornar ‑se ‑á o processo legislativo ordinário, passando de um total de 44 áreas para 85). Contudo, Portugal também tem vindo a perder representatividade neste órgão. Assim, se tomarmos como referência o Tratado de Amesterdão, a partir do qual se aceleram os poderes em co ‑decisão do Parlamento, Portugal dispunha então de 25 parlamentares num total de 626 (4%); com Nice, os parlamentares nacionais caíram para 24 num total de 732 (3,28%); posteriormente com a adesão da Bulgária e da Roménia, o número total passou para 785 (3,06%); com o (futuro) Tratado de Lisboa a nossa representação diminui para 22 parlamentares num total de 751 (2,92%).

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20 lugar no seio da Comissão, com a participação indirecta, e por vezes mesmo bastante

directa e explícita dos Estados ‑membros.

Daí que o trabalho do negociador comunitário deva começar na fase pré‑

‑legislativa, com o objectivo de influenciar e determinar desde logo a lista de priori‑

dades da própria Comissão24, e posteriormente o conteúdo das propostas que são

apresentadas. Esta influência pode ser exercida de várias formas, umas mais subtis,

outras mais explícitas:

– por intermédio dos funcionários nacionais na Comissão, naturalmente mais

próximos das sensibilidades portuguesas, incluindo os peritos nacionais

destacados que, não raras vezes, são determinantes na parte técnica de

sustentação das propostas25;

– através de uma participação activa nas consultas públicas que normalmente

antecedem a apresentação das propostas legislativas;

– e naturalmente pela pressão que as Representações Permanentes nacionais

(REPER’s) possam fazer em Bruxelas, assim que tomam conhecimento dos

ante ‑projectos de propostas.

Este último factor está directamente relacionado com outra questão mais estrutu‑

ral que se prende com o relacionamento da administração nacional, via REPER, com o

Comissário nacional.

Embora formalmente independente, o Comissário proposto pelo Estado ‑membro

é a ‘correia de transmissão’ entre a instituição Comissão Europeia e o seu órgão deci‑

sório – o colégio de comissários – e os respectivos Estados ‑membros.

A manutenção de um Comissário por país é muito importante para vários

Estados ‑membros (veja ‑se o caso irlandês) por ser um elemento simbólico de ‘repre‑

sentação nacional’ no órgão executivo da máquina comunitária – que ganha assim

uma legitimação acrescida aos olhos das opiniões públicas nacionais26 – mas tam‑

24 Para além do programa de trabalho para os cinco anos de mandato, a Comissão aprova anualmente um

documento de Estratégia Política (em Fevereiro do ano anterior) que é depois convertido num Programa

de trabalho legislativo (adoptado em Outubro do ano anterior).25 Para além da política activa de incremento dos seus nacionais como funcionários das diversas instituições os

principais Estados ‑membros ‘patrocinam’ a colocação de peritos nacionais destacados em diferentes sec‑

tores da Comissão, que são recebidos de ‘braços abertos’ pelos Directores ‑Gerais. Naturalmente que estes

‘peritos nacionais’ se apresentam com um ‘caderno de encargos’ muito preciso, fornecido pelas respectivas

administrações nacionais.26 A Comissão Europeia não escapa à tese de Max Weber “de que é necessário transformar o poder em auto‑

ridade legítima”.

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21bém pela influência efectiva que tem na defesa ou transmissão das sensibilidades

nacionais nas reuniões do Colégio.

De resto, como vimos atrás, quando os grandes países da UE (Alemanha, França,

Reino Unido, Espanha e Itália) prescindiram em Nice de um segundo Comissário da

sua nacionalidade, exigiram em troca um reforço do seu peso institucional no

Conselho. A lógica utilizada e o sinal então dado foram bastante claros: o poder e a

influência de que dispõem os grandes Estados ‑membros na preparação da legislação

(ou seja na Comissão) só podem ser trocados por igual (ou acrescido) poder e

in fluência aquando da adopção da legislação (ou seja nas instituições que funcionam

como co ‑decisores, Conselho e Parlamento).

Por outro lado, já no decurso do processo negocial no Conselho, é importante ter

a Comissão a apoiar as nossas posições, dado que os argumentos que apresenta, com

a autoridade de órgão proponente e de detentor de maior conhecimento técnico,

podem ser determinantes no decurso da negociação. É preciso não esquecer que a

Comissão tem os seus próprios interesses na negociação das propostas – regra geral, o

aprofundamento da construção comunitária –, mas, como qualquer outro actor do

processo negocial, pode por vezes inflectir a sua posição, por influência de pressões

externas (que são abundantes nos dias que correm), ou caso considere que tal é deter‑

minante para desbloquear os impasses existentes27.

O Conselho

As sucessivas revisões institucionais da União Europeia tornaram a negociação no

Conselho mais difícil, dado que a diminuição do peso relativo de Portugal em termos

institucionais obriga a uma maior exigência para construir maiorias qualificadas e

formar minorias de bloqueio. Para além disso os recentes alargamentos fizeram com

que seja muito difícil negociar em sala com 27 Estados ‑membros28.

27 Tomando como exemplo o pacote relativo ao Mercado Interno na área da Energia, a ‘medida ‑farol’ das

propostas apresentadas pela Comissão era a separação patrimonial – ownership unbundling – das empresas

produtoras e distribuidoras de gás e electricidade. Todavia, dada a oposição de 8 Estados ‑membros (entre

os quais a Alemanha e a França), a Comissão admitiu contornar esta exigência, aceitando um modelo

que permite a integração vertical das produtoras e distribuidoras [http://www.euractiv.com/en/energy/

commission ‑set ‑climb ‑ownership ‑unbundling/article ‑166335]. 28 Um colega do COREPER comentava a este respeito que “a 27 já nem as caras das pessoas se conseguem

ver”.

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22 Assim, hoje em dia, grande parte dos acordos e entendimentos forjam ‑se antes das

reuniões, em negociações bilaterais entre Estados ‑membros. Em regra, antes de apre‑

sentarem os assuntos a discussão no COREPER, as Presidências procuram assegurar ‑se,

através de contactos bilaterais, que as suas propostas dispõem já do apoio de uma

maioria qualificada de Estados ‑membros que viabilize um acordo. Os Estados ‑membros

têm por isso de começar a negociação no Conselho antes ainda das reuniões formais

onde os assuntos deveriam supostamente ser apreciados 29 e 30. Esta circunstância faz

também ressurgir a importância de complementar a actuação em Bruxelas com acções

de diplomacia bilateral nas capitais dos restantes 26 Estados ‑membros.

Ainda que, por norma, as Presidências procurem que todos os Estados ‑membros

se associem ao consenso, procurando por vezes fazer um esforço adicional para aco‑

modar algumas preocupações isoladas, mesmo quando já dispõem de maioria qualifi‑

cada, o facto de um Estado ‑membro se saber dispensável para a formação de uma

maioria condiciona a sua capacidade negocial. É evidente que um negociador pode ser

tanto mais assertivo na defesa das suas posições quanto sabe que os seus votos são

essenciais para a viabilização de um acordo31.

Neste jogo de bastidores é por isso fundamental assegurarmo ‑nos que as nossas

posições não estão isoladas e, idealmente, que reúnem um apoio que permite formar

uma maioria qualificada ou, no mínimo, uma minoria de bloqueio. Para este efeito é

essencial contar com o apoio de pelo menos 2 ou 3 dos Estados ‑membros com maior

peso institucional (Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha ou Polónia), não

só pela aritmética dos votos, mas também porque é mais difícil para uma Presidência,

seja ela qual for, isolar um ou dois grandes Estados ‑membros. Como escrevia Orwell:

“All animals are equal, but some animals are more equal than others”.

Por outro lado, com esta nova composição do Conselho, é importante constatar

que nunca como agora a expressão “geometria variável” foi tão apropriada, pois é

difícil destacar um grupo fixo de aliados tradicionais nas matérias em discussão no

29 Centre for European Policy Studies: “Decision -making in the Enlarged Council of Ministers: Evaluating the Facts”, Sara

Hagemann and Julia De Clerck ‑Sachsse, 200730 A este propósito saliento ainda a importância de poder dispor de cidadãos nacionais em cargos de chefia

no Secretariado ‑Geral do Conselho da União Europeia que funciona como ‘braço direito’ de todas as

Presidências do Conselho e, no caso de Presidências assumidas por Estados ‑membros mais permeáveis ou

com menos recursos, têm uma influência importante nos compromissos que se desenham. 31 Note ‑se que nas condições que o futuro Tratado de Lisboa prevê (vide nota de rodapé 25), Portugal dificil‑

mente será decisivo.

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23Conselho, não se confirmando qualquer divisão entre a “velha Europa” e a “nova

Europa”. Da mesma forma, também não se constata nenhuma ‘entente’ permanente,

sobre todas as questões, entre os grandes Estados ‑membros ou entre os médio/

pequenos.

Aliás, se alguma linha de força é possível identificar, é que as coligações tendem a

fazer ‑se mais em função do grau de desenvolvimento sócio ‑económico dos países do

que em função da respectiva dimensão. Sendo as questões discutidas no COREPER I

mais de carácter económico e social é natural que Estados ‑membros com graus de

desenvolvimento semelhante partilhem os mesmos pontos de vista. Havia assim a

expectativa, em 2004, de que os Estados do centro ‑leste se associassem, por regra, aos

Estados mediterrânicos (da coesão). No entanto, se por vezes tal acontece (por exem‑

plo na discussão das Perspectivas Financeiras em 2005), tal não é o caso noutras oca‑

siões em que os Estados do centro ‑leste alinham com os países nórdicos, nomeada‑

mente em questões de desregulamentação ou liberalização do mercado32.

A política e a ideologia não estão completamente mortas e as abordagens díspares

sobre diferentes modelos de organização da sociedade resultantes de passados mais ou

menos recentes e mais ou menos traumáticos ainda se fazem sentir33. A conclusão que

podemos tirar é de que a recomposição das coligações é permanente, sendo essencial

em cada tema, e em cada momento, saber identificar e mobilizar os nossos potenciais

aliados.

O Parlamento Europeu

Como referido anteriormente, a partilha com o Parlamento Europeu da autoridade

legislativa num crescente número de assuntos densifica a negociação comunitária no

COREPER I. A atenção do negociador não se pode circunscrever apenas aos restantes

Estados ‑membros e à Comissão, mas deve incluir também os parlamentares. Muitas

32 No entanto, também nestas matérias nem sempre se regista uniformidade de posições; assim, se na Directiva

Serviços os Estados do centro e do leste estavam maioritariamente a favor de uma liberalização total do

mercado, assumindo Portugal uma postura mais prudente, no Pacote legislativo sobre o Mercado Interno

da Energia, que pretendia precisamente a liberalização do mercado do gás e da electricidade, vários

Estados do centro e do leste (República Checa, Eslováquia, Hungria ou Polónia) alinharam com a França e

a Alemanha na manutenção dos seus monopólios nacionais, tendo então Portugal advogado um aprofun‑

damento mais rápido do Mercado Interno. 33 Um interessante relatório publicado pelo Open Society Institute de Sófia, por ocasião dos 5 anos do alargamen‑

to de 2004, revela bem a existências destas diferenças de abordagem: http://osi.bg/downloads/File/

ComparativePolicyReport_OSI ‑Sofia_EuPI_28April2009.pdf

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24 vezes, as negociações ganham ‑se no Conselho para se perderem na etapa complemen‑

tar de negociação com o Parlamento e, inversamente, por vezes a opinião do Parlamento

pode ser instrumental para reforçar (ou ‘ressuscitar’) uma posição nacional.

O trabalho legislativo no Parlamento Europeu encontra ‑se distribuído por

Comissões parlamentares permanentes34 que se ocupam das diferentes propostas em

razão das matérias específicas que acompanham. Os parlamentares dos vários Estados‑

‑membros distribuem ‑se assim pelas distintas Comissões em função dos seus interes‑

ses específicos e dos acordos dentro de cada grupo político.

Nestas comissões são apreciadas as propostas da Comissão e do Conselho e são

votados os relatórios parlamentares sobre as referidas propostas. O trabalho de um

parlamentar pode assim circunscrever ‑se ao voto, em Comissão e em plenária, dos

referidos relatórios, com uma participação mais ou menos activa na apresentação de

emendas aos relatórios votados; ou podem os próprios parlamentares propor ‑se para

redigir esses relatórios35, podendo mais facilmente influenciar o resultado final dos

trabalhos.

Assim, para um Estado ‑membro, é fundamental: i) dispor de parlamentares nas

Comissões mais importantes do ponto de vista do processo legislativo; ii) procurar que

os seus eurodeputados sejam autores de relatórios, preferencialmente de carácter legis‑

lativo.

Naturalmente que o pressuposto base no relacionamento com o Parlamento

Europeu é o do respeito pela independência da função e cargo parlamentar que têm

uma legitimidade eleitoral específica. Todavia, todos os Estados ‑membros, sem excep‑

ção, tentam fazer sentir as sensibilidades nacionais e dar informação que ajude a fixar

o sentido de voto dos eurodeputados da sua nacionalidade, procurando que o

Parlamento Europeu assuma como suas as visões e preocupações que são as dos res‑

pectivos Estados ‑membros.

Também aqui, como vimos, Portugal tem vindo a perder peso específico (ver dados

apresentados supra) pelo que seria crucial actuar de forma concertada para maximizar as

possibilidades de sucesso. No entanto, as tendências no Parlamento são contrárias,

dado que a crescente consolidação dos partidos políticos à escala europeia reforça o

34 Existem 20 comissões parlamentares que podem ser consultadas em: http://www.europarl.europa.eu/

activities/committees/committeesList.do?language=PT35 A distribuição dos relatórios pelos diferentes parlamentares obedece a regras específicas de divisão das maté‑

rias entre os vários grupos políticos em função da sua representatividade.

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25carácter ideológico das linhas de fractura, fazendo com que os parlamentares votem

cada vez mais de acordo com os respectivos grupos e menos numa base nacional36.

Esta tendência poderá não ser dramática para países como a Alemanha, que dispõe de

99 parlamentares contudo, para um país como Portugal, cujo número de parlamenta‑

res tem vindo a diminuir, a tendência para a fragmentação dos votos agudiza a dificul‑

dade em fazer passar posições específicas.

Acresce que, infelizmente, no decorrer da legislatura 2004 ‑2009, nas duas comis‑

sões com maior preponderância na produção legislativa comunitária (Comissão

Indústria, Investigação e Energia, e Comissão Mercado Interno e Protecção dos

Consumidores) não houve qualquer parlamentar português como membro efectivo,

limitando ainda mais a nossa influência no processo legislativo comunitário.

Assim, se queremos maximizar as nossas possibilidades de sucesso temos de refor‑

çar a articulação entre a Representação Permanente, a administração nacional e a dele‑

gação ao Parlamento Europeu, no respeito naturalmente da isenção, competências e

funções de cada um.

Contributos para melhorar a nossa participação negocial no processo de decisão

comunitário As propostas que se seguem não pretendem ser a solução definitiva

para os nossos problemas, surgindo antes como decorrência lógica de algumas das

insuficiências já relatadas. O objectivo é que possam ser um contributo, entre outros,

para uma reflexão maior e mais estruturada sobre a nossa participação na construção

comunitária.

Uma negociação começa quando a proposta ainda não foi apresentada (fase

pré ‑legislativa). Nesta fase o objectivo primordial deverá ser o de inserir as

nossas preocupações na pré ‑proposta. Normalmente a Comissão antecede a

apresentação das propostas de Livros Brancos, Livros Verdes, Comunicações

36 Esta constatação, assim como outras dinâmicas de votação no Parlamento Europeu estão bem desenvolvidas

num estudo editado pela Universidade de Cambridge: “Democratic Politics in the European Parliament”; Simon

Hix, Abdoul Noury e Gérard Roland (sinopse pode ser consultada em http://www.cambridge.org/cata‑

logue/catalogue.asp?isbn=052187288X).

Estes mesmos investigadores desenvolveram um site sobre as tendência de voto no PE – http://www.

votewatch.eu/index.php – onde é possível constatar que os deputados portugueses que integram o

Partido Socialista Europeu e o Partido Popular Europeu votaram em 98,19% e 97,04% das ocasiões,

respectivamente, de acordo com as orientações do grupo político a que pertencem (não há dados disponíveis

neste estudo para os restantes parlamentares nacionais).

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26 que são sujeitos a consulta pública. Os resultados desta consulta influenciam

o conteúdo final das propostas. É por isso fundamental que os serviços da

nossa administração pública participem sempre e activamente nesta fase,

enviando opiniões e contributos.

Igualmente útil para o desfecho positivo de uma negociação é a mobilização

dos respectivos stakeholders, operadores económicos, associações empresariais,

grupos de interesse, que estão normalmente agrupados a nível europeu e que

são muito activos junto das instituições europeias, em particular junto do

Parlamento Europeu que está mais predisposto para incorporar as posições

da sociedade civil. É por isso necessário incitar os interlocutores nacionais a

participarem activamente nas respectivas associações a nível europeu e a fazer

valer as suas opiniões nesta esfera.

As novas propostas legislativas saídas da Comissão Europeia devem ser objecto

de uma análise circunstanciada por parte da Direcção ‑Geral dos Assuntos

Europeus/REPER/ministério sectorial competente no sentido de identificar,

desde o início, os problemas e as sensibilidades que as referidas propostas

suscitam em relação aos interesses nacionais e fazendo uma primeira proposta

de posição nacional. Esta análise deve ser sancionada a nível político, numa

fase inicial, para que a negociação em Bruxelas possa decorrer com o devido

aval do executivo37. Estes documentos deveriam estar disponíveis numa

intranet informática do Ministério dos Negócios Estrangeiros, acessível aos

serviços centrais, à REPER e às nossas Embaixadas nos 26 Estados ‑membros.

A existência de uma central de coordenação e definição ou validação de

posições provenientes dos ministérios sectoriais é crucial para assegurar a

coerência das nossas posições. É fundamental que as posições assumidas por

Portugal na negociação dos diferentes dossiês sejam coerentes com a nossa

linha geral de participação na construção europeia. Embora, por vezes, seja

necessário ter em conta diferentes aspectos na consideração das posições

nacionais, deveríamos evitar grandes oscilações nas posições que defendemos

nas diferentes fileiras sectoriais. A coerência é uma vantagem pois, muitas

37 Sem prejudicar, naturalmente, a flexibilidade que deve ser acordada à REPER para ajustar e interpretar aquela

que deverá ser a posição nacional nas diferentes etapas negociais e que é uma condição sine qua non para o

sucesso negocial. Ajustar uma posição pré ‑definida é, no entanto, diferente de elaborar suposições sobre

aquela que será eventualmente a posição nacional.

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27vezes, a expectativa de uma posição num determinado sentido por parte de

uma delegação é desde logo incorporada/assumida nos compromissos que

são preparados antes mesmo das respectivas negociações.

Na fase legislativa, e sobretudo nos dossiês em co ‑decisão, é fundamental

envolver o Parlamento Europeu. Para tal, é essencial contactar os nossos

eurodeputados, mas também os parlamentares de outras nacionalidades, os

relatores das propostas e os presidentes das comissões parlamentares, assim

como os outros actores relevantes (consultores das comissões e grupos

políticos) e habilitá ‑los, em tempo útil, com informação sobre as nossas

posições.

Respeitando a independência e legitimidade próprias de quem foi sufragado

nas urnas, deveria haver reuniões mais assíduas entre o titular da Secretaria de

Estados dos Assuntos Europeus, o Representante ‑Permanente e o Representante

Permanente ‑Adjunto e os parlamentares europeus portugueses, para discutir

os dossiês mais sensíveis em negociação e para dar conta das posições

portuguesas.

De igual forma, respeitando também a independência dos funcionários

portugueses nas instituições comunitárias, deveriam ser organizadas com

mais assiduidade sessões regulares de informação que permitissem dar conta

das posições portuguesas sobre os dossiês em negociação.

Ainda num plano de actores externos cuja independência e isenção têm

de ser respeitadas mas que são elementos ‑chave na mecânica de decisão

comunitária, é essencial reforçar a ligação com o Comissário português (seja

ele o Presidente ou não), dado o seu peso na tomada de decisões por parte

da Comissão Europeia.

Um elemento central para um desfecho positivo do processo negocial é

dispormos de bons negociadores. Aliás, o talento negocial e o prestígio

pessoal dos negociadores nacionais tem vindo funcionar como ‘factor de

correcção’ e reequilíbrio face a um menor peso institucional em relação a

outros Estados ‑membros38. Nesta medida – e para que possamos continuar

a dispor de bons elementos a todos os níveis – devem ser previstas acções

38 Relevo a qualidade dos Representantes ‑Permanentes Adjuntos com quem trabalhei entre 2004 e 2009, que

souberam defender e interpretar o interesse nacional com assinalável sucesso assim como, durante a ter‑

ceira presidência portuguesa do Conselho, em 2007, presidir de forma exemplar aos destinos da União.

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28 de formação para os funcionários – diplomáticos e provenientes dos

ministérios sectoriais – colocados em Bruxelas.

A Direcção ‑Geral dos Assuntos Europeus (DGAE) tem de poder

exercer as suas funções de coordenação de forma capaz e completa,

devendo para tal ser dotada dos recursos humanos necessários,

inclusive a nível técnico, para fazer a síntese da posição nacional e

enviar instruções sobre a totalidade dos assuntos.

A DGAE tem também de ser percebida pelos restantes serviços da

administração pública como a ‘torre de controlo’ no que respeita aos

assuntos europeus e não como mera ‘caixa de correio’ das informações

da REPER para os ministérios sectoriais e vice ‑versa. Essa autoridade

deve não só ser claramente outorgada pelo poder executivo mas

também conquistada através da mais ‑valia das intervenções, algo

que só pode acontecer se os serviços não estiverem sistematicamente

desprovidos de funcionários.

A Comissão Interministerial para os Assuntos Europeus (CIAE) tem

de funcionar verdadeiramente como um espaço de coordenação

inter ‑ministerial, de antecipação, definição e acompanhamento

permanente das posições nacionais nos diferentes dossiês em

negociação. A periodicidade das reuniões tem de ser mais regular

e a representação tem de ser assegurada ao mais alto nível técnico

possível, facilitando para tal que seja presidida pelo membro do

governo titular da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus.

A discussão e a preparação dos assuntos europeus deveriam ser

objecto, com mais frequência, das reuniões do Conselho de Ministros.

Os assuntos são, como referido, suficientemente importantes para

merecerem a atenção e discussão nesta instância, para a qual

poderiam ser convidados, sempre que se justificasse, o Representante

Permanente e o Representante Permanente ‑Adjunto39.

A coordenação dos assuntos europeus pode, quando tal se justifique,

atendendo à especial sensibilidade de determinados assuntos, e sem

39 Ainda que para tal fosse necessário, numa próxima revisão constitucional, alterar o art.º 184 da

Constituição da República Portuguesa.

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29pôr em causa as estruturas de coordenação dos Negócios Estrangeiros, ser

assegurada a um nível superior, inspirando ‑se, nomeadamente, nos exemplos

de outros Estados ‑membros como a França, Finlândia ou a Estónia onde

(nestes três Estados de forma permanente) a coordenação é feita ao nível do

gabinete do Primeiro ‑Ministro.

Dadas as importantes implicações – já aludidas – na organização socio‑

económica do país, estas questões devem também subir com mais frequência

ao gabinete do Primeiro ‑Ministro para que este possa avaliar da oportunidade

de uma intervenção ao mais alto nível. A argumentação de que são questões

técnicas, e como tal devem ser mantidas ao nível dos ministérios sectoriais,

é falaciosa pois não há nada de mais político do que o futuro da economia

nacional, do seu sistema produtivo, da regulação das relações de trabalho,

e do desenvolvimento harmonioso e sustentável. De resto, são frequentes

as intervenções dos Chefes de Governo dos maiores países europeus nestas

questões40. Se tal atenção, ao mais alto nível, é devotada a estas questões por

parte de países que institucionalmente têm um grande peso no processo de

decisão europeu, maior atenção deveria ser devotada ainda nos países com

menor peso relativo na aprovação das decisões.

Epílogo Como nos recorda Tito Lívio na sua obra ‑prima, “Ab urbe condita”, que relata a

história do primeiro projecto de unificação do continente – o Império Romano:

“Nenhuma lei se adapta igualmente bem a todos”. Esta máxima, que continua de

grande actualidade, ilustra bem um dos desafios que temos pela frente no processo

decisório comunitário: assegurar que a legislação europeia contribui para o

progresso e desenvolvimento de Portugal, ao mesmo tempo que observa o interesse

geral europeu.

40 É sabido que da agenda de trabalho das Cimeiras e dos Conselhos de Ministros conjuntos franco ‑alemães

constam propostas legislativas europeias, sendo algumas delas discutidas directamente entre a Chanceler

e o Presidente (são disso exemplo o Pacote Energia e Clima, da Directiva sobre os solos, dos OGM's,

do Regulamento das emissões de CO2 em veículos ligeiros, do projecto Galileo, apenas para enumerar

alguns). Conhecido e frequente foi também o activismo do Primeiro ‑Ministro inglês durante as nego‑

ciações da Directiva Tempo de Trabalho (aliás particularmente intenso no decurso da última Presidência

Portuguesa da UE), ou do Presidente do Conselho italiano e do Primeiro ‑Ministro polaco sobre o Pacote

Energia e Clima.

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30 A forma mais evidente de o conseguir seria convergir económica e socialmente

com o resto da Europa de forma a que os nossos interesses e preocupações se situassem

naquela que é a ‘média ponderada’ do interesse geral europeu.

Enquanto não o conseguirmos, este desafio só será ultrapassado se traçarmos

objectivos e actuarmos de maneira concertada, entre a administração central e os nos‑

sos representantes nos diferentes órgãos e instituições comunitárias, única forma de

evitarmos o risco da ‘jangada de pedra’ económica e social e permanecermos timonei‑

ros, e não apenas meros tripulantes, deste navio chamado Europa.NE

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31A Carta das Nações Unidas como “Constituição”

da comunidade internacional

Mateus Kowalski*

n Abstract:

The Charter of the United Nations is frequently referred to as the “constitution of

the international community”. In fact, more than being just a constitutive treaty

of an international organization, it affirms itself as an international instrument of

reinforced value, which can be described as the fundamental legal statute of the

international community.

In this context, this article argues that the Charter plays a matrix role for the inter‑

national legal framework, establishing as well the foundation of the institutional

structure of the international community. Additionally, it may determine a path to

world governance based at the United Nations that eventually is worth exploring.

1. Introdução as orgaNizações iNterNacioNais têm como instrumento fundador um Tratado

multilateral. Não deixando de estar sujeito às regras do Direito dos Tratados, a sua

natureza específica justifica a designação particular de Tratado Constitutivo1: um

instrumento que não só traduz a vontade de outros sujeitos de Direito Internacional

(em regra, Estados) em criarem um novo sujeito de Direito Internacional, como

regula ainda a sua vida, estabelecendo as suas finalidades, a sua estrutura orgânica e

o seu funcionamento.

A Carta das Nações Unidas é, na sua génese, o Tratado Constitutivo das Nações

Unidas, adoptado em S. Francisco, a 26 de Junho de 1945. No entanto, mais do que

um tratado constitutivo, a Carta das Nações Unidas tem sido referida frequentemen‑

te como a “Constituição da comunidade internacional”2.

* Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra.

1 O artigo 5.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados, adoptada em Viena, a 23 de Maio de 1969, dispõe que «a presente Convenção aplica ‑se a todo o tratado que seja acto constitutivo de uma organização internacional».

2 Sobre o assunto vide, entre outros, FRANCK, Thomas, “The ‘powers of appreciation’: who is the ultimate guardian of UN

legality?” in American Journal of International Law, vol. 86, Julho de 1992, págs. 519 -523; REISMAN, W. Michael, “The

constitucional crisis in the United Nations” in Le développement du rôle du Conseil de Sécurité, Académie de Droit International de

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32 A possibilidade da Carta das Nações Unidas assumir o estatuto de “Constituição”

da comunidade internacional encerra uma enorme potencialidade no que respeita à

tentativa de ordenação, pelo Direito, do mundo actual. Uma eventual resposta afir‑

mativa à questão central colocada neste artigo, permitiria encarar a Carta não só

como matriz do ordenamento jurídico internacional, mas também como fundadora

da base institucional da comunidade internacional. Em última análise, trata ‑se de

saber se existe um caminho para a governação mundial com sede nas Nações Unidas

que valha a pena explorar. Este assunto deve ser contextualizado na discussão que

tem vindo a ser feita em redor do chamado constitucionalismo global enquanto

paradigma emergente numa época em que o conceito clássico de soberania e a ideia

de auto ‑suficiência das ordens constitucionais estaduais se mostram desadequados,

devendo ser repensados e actualizados.

Pretendendo ‑se saber se a Carta será de alguma forma uma “Constituição” da

comunidade internacional, importa, antes de mais, contextualizar a questão na deba‑

te sobre o chamado constitucionalismo global para, depois, estabelecer os parâme‑

tros pelos quais se procurará dar resposta à questão. No final do exercício, a medida

em que se possa concluir pela Carta como alicerce de uma ordem jurídica da comu‑

nidade internacional vai depender da maior ou menor presença desses fenómenos

constitucionais, lidos à luz do constitucionalismo global.

2. O Constitucionalismo global

2.1. A proposta no contexto da globalização

A emergência do chamado constitucionalismo global3 acontece num momento de

globalização dos fenómenos humanos e de aceleração da história. Trata ‑se de um

La Haye, Colloque – La Haye, 21 -23 Juillet 1992, págs. 399 -423, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1993;

CRAWFORD, James, “The Charter of the United Nations as a Constitution” in The changing Constitution of the United Nations,

organização de FOX, Hazel, págs. 3 -16, BIICL, s.l., 1997; DUPUY, Pierre ‑Marie, “The constitutional dimension of the

Charter of the United Nations revisited” in Max Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 1, 1997, págs. 1 -33; FASSBENDER,

Bardo, UN Securit Council reform and the right of veto – a constitucional perspective, Kluwer Law International, A Haia,

1998; BAPTISTA, Eduardo Correia, O poder público bélico em Direito Internacional: o uso da força pelas Nações Unidas em

especial, Livraria Almedina, Coimbra, 2003 – págs. 392 e ss. 3 Note ‑se que este fenómeno tem sido frequentemente apelidado de “constitucionalismo internacional”. Não

lhe querendo dar outro sentido, parece, no entanto, preferível utilizar, neste contexto, a expressão “cons‑

titucionalismo global”, uma vez que traduz de forma mais actualizada e adequada a realidade que lhe está

subjacente e que pretende conformar.

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33processo que tem como ponto de partida a observação do mundo, actualmente mar‑

cado pela globalização, e do ser humano dotado de dignidade. A meta é a criação de

um modelo que, pelo Direito, ordene a realidade global em que hoje o ser humano

se insere.

Tem ‑se assistido não só à globalização da economia, da política, da ciência, ou

da informação, mas também à desterritorialização de problemas relacionados com a

segurança, a saúde, o ambiente, ou mesmo as crises económico ‑financeiras. Tudo o

que tem contribuído para o reforço das interdependências globais.

O Estado, por si só, mostra ‑se insuficiente para lidar com a realidade globaliza‑

da que o compele a organizar ‑se com outros Estados. Funções que anteriormente

caíam na esfera governativa do Estado soberano acham ‑se agora transferidas para

níveis políticos que vão para além das fronteiras do clássico Estado ‑Nação, tais como

Organizações Internacionais ou outras formas de cooperação bilateral e multilateral.4

Por outro lado, os actores internacionais não ‑estatais têm vindo a ganhar crescente

participação na vida da comunidade internacional. É o caso das organizações não‑

‑governamentais, das empresas transnacionais ou do indivíduo.5 Enquanto a erosão

do Estado ‑Nação traz consigo a superação da ideia de soberania estadual como prin‑

cípio absoluto, o fortalecimento do conceito de comunidade internacional acarreta

a consideração de princípios como o interesse global ou a protecção dos direitos do

ser humano, onde quer que este se encontre.

Objectivos clássicos do constitucionalismo, tais como o respeito pelo primado

do Direito, a promoção e protecção dos direitos e liberdades dos membros da comu‑

nidade, a separação dos poderes, a solução pacífica de conflitos, ou a adequada cria‑

ção das normas necessárias à comunidade, são também agora encarados ao nível

internacional, se bem que, a este nível, não tenham, ainda, sido concretizados.

Observa ‑se, pois, que a governação é exercida para além dos limites constitucionais

do Estado. Tudo o que contribui para que, no momento actual da história, se reco‑

4 Vide SENGHASS, Dieter, “Global governance: how could it be conceived?” in Security Dialogue, vol. 24, n.º 3, 1993, págs. 247 -256 –

pág. 247; BOUTROS ‑GHALI, Boutros, “Global prospects for United Ntions” in Aussen Politik, volume 46, n.º 2, págs. 107-

-114 – pág. 108; MAKINDA, Samuel, “International society and global governance” in Cooperation and Conflict, vol. 36, n.º

3, 2001, págs. 334 -337 – pág. 334; RONIT, Karsten, “Institutions of private authority in global governance: linking territorial

forms of self -regulation” in Administration & Society, vol. 33, n.º 5, 2001, págs. 555 -578 – pág. 558; ESCARAMEIA, Paula,

O Direito Internacional Público nos princípios do século XXI, Livraria Almedina , Coimbra, 2003 – págs. 17 e ss.5 ESCARAMEIA, Paula, op. cit. – págs. 21 e ss.

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34 nheça às constituições estaduais uma insuficiência na ordenação da clássica “comu‑

nidade perfeita”, o Estado ‑Nação, que agora, e cada vez mais, deve ser considerada

no âmbito de uma comunidade mais abrangente.

É perante a necessidade de complementar o constitucionalismo nacional, numa

adequação à realidade globalizada, que surge a proposta do constitucionalismo glo‑

bal. A diluição do poder do Estado noutros níveis políticos para além dele, a exigên‑

cia cada mais forte da globalização da democracia, do desenvolvimento e do respei‑

to pelos direitos humanos, acorrentada à prática da “boa governação”, provocam

novas pulsões constituintes, complementado e fazendo inflectir as ordens constitu‑

cionais nacionais.

2.2. O constitucionalismo global em perspectiva

A ideia da existência de uma ordem constitucional universal tem sido encarada, de

diferentes perspectivas, por diversos autores.

Alfred Verdross, cultor do monismo com primado no Direito Internacional, foi

dos primeiros autores a levar a noção de Constituição para o contexto do Direito

Internacional. A Constituição da comunidade universal de Estados seria fundada nas

normas, entendidas como o conjunto dos princípios de Direito que organizam os

Estados num todo, aceites como válidas pelos Estados no momento em que o Direito

Internacional teria sido criado. Normas, essas, que teriam então sido desenvolvidas

pelo Direito Internacional costumeiro e por determinadas convenções multilaterais

formando uma Constituição em sentido substantivo. O autor, numa fase mais adian‑

tada do seu pensamento, e em conjunto com o seu discípulo Bruno Simma6 defen‑

deram que quando as Nações Unidas passaram a incluir como membros quase todos

os Estados, tendo aqueles que permaneceram como não ‑membros reconhecido os

seus princípios edificantes, a Carta passou a ser a Constituição da comunidade uni‑

versal de Estados.

A tese de Hermann Mosler7 assenta no conceito de comunidade internacional

de Direito, entendida como a dimensão jurídica da sociedade internacional. Num

6 VERDROSS, Alfred / SIMMA, Bruno, Universelles Völkerrecht, Duncker & Humblot, Berlim, 1984, apud FASSBENDER,

Bardo, op. cit. – pág. 41. 7 MOSLER, Hermann, “The international society as a legal community” in Recueil des cours de l’Académie de Droit International de

la Haye, Tomo 40 – 1974 (IV), A. W. Sijthoff, Leyde, 1976; MOSLER, Hermann, “International legal community” in

Encyclopedia of Public International Law, vol. 2 – págs. 1251 ‑1255, Elsevier, Amesterdão, 1992.

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35sentido amplo, a comunidade internacional de Direito compreenderia não só os

Estados mas também todas as «entidades organizadas dotadas com a capacidade para

participarem em relações jurídicas internacionais».8 A Constituição é apresentada

como a lei superior de uma sociedade, quer regule a vida no seio de um Estado, quer

regule a coexistência de um grupo de Estados. Qualquer sociedade necessitaria de

uma norma constitucional fundamental «sem a qual não seria uma comunidade,

mas apenas um conjunto de indivíduos».9 Esta norma serviria de critério para a

criação e desenvolvimento do Direito. De início, quando os Estados existiam sem

algum tipo de organização, haveria, ainda assim, um elemento constitucional: o

Direito Internacional era desenvolvido por consenso entre os membros da sociedade

internacional. No momento actual, embora reconhecendo que os tratados constitu‑

tivos das organizações internacionais, no seu globo, representam um elemento cons‑

titucional da vida da sociedade internacional, Hermann Mosler entende que é ainda

através do consenso dos membros da sociedade internacional que são criadas e alte‑

radas as normas de Direito Internacional. As Organizações Internacionais, em parti‑

cular as Nações Unidas, interviriam no processo articulando o consenso.

Christian Tomuschat10 apresenta um conceito de Constituição internacional mais

denso do que até aí tinha sido proposto. O autor começa por defender que a consti‑

tuição de qualquer sistema de governação é formada pelas regras respeitantes à atri‑

buição das funções executivas e judiciais, e pelas regras que asseguram a produção

normativa. Essas regras gozariam de precedência no ordenamento em que operassem,

reflectindo, ao mesmo tempo, a distribuição de poderes na comunidade. O autor con‑

clui a comunidade internacional pode ser concebida como uma entidade jurídica,

governada por uma constituição, um termo que serviria para denotar as funções bási‑

cas da governação no âmbito dessa entidade.11 Como consequência, nenhum Estado

poderia, por si só, rejeitar as regras que fizessem parte da ordem constitucional da

comunidade internacional. A constituição da comunidade internacional, não tendo

entrado em vigor como um todo num dado momento, seria modelada por um con‑

junto de forças político ‑históricas presentes na comunidade internacional.

8 MOSLER, Hermann, “International legal community”, cit. – págs. 1251 ‑1252.9 MOSLER, Hermann, “The international society as a legal community”, cit. – pág. 32. 10 TOMUSCHAT, Christian, “Obligations arising for States without or against their will” in Recueil des cours de l’Académie de Droit

International de la Haye, Tomo 241 – 1993 (IV), págs. 194 -374, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1994. 11 Ibidem – pág. 236.

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36 Já Bardo Fassbender12 defende que a reforma do Conselho de Segurança das

Nações Unidas deve ter por base o entendimento da Carta como a Constituição da

comunidade internacional. O autor começa por analisar o conceito de “Constituição”,

com origem no Estado moderno, transpondo ‑o para o espaço da comunidade inter‑

nacional. Tendo como ponto de partida o pensamento de outros autores, este autor

conclui que uma «comparação da Carta com o tipo ideal de constituição revela uma

semelhança suficientemente forte para atribuir qualidade constitucional ao

instrumento».13 A Carta seria o resultado de uma “revolução jurídica”, através da

qual o paradigma do Direito Internacional baseado na soberania estadual se viu

substituído pelo paradigma do constitucionalismo internacional.

Entre nós, também Gomes Canotilho14 se refere ao constitucionalismo global. Os

pontos de partida deste paradigma emergente seriam a democracia e o caminho para a

democracia enquanto «tópicos dotados de centralidade política interna e internacional»,15

a busca pela legitimação da autoridade e da soberania política noutros suportes sociais

e políticos diferentes do Estado ‑Nação, e a constatação de que novos fins do Estado

«podem e devem ser os da construção de “Estados de direito democráticos, sociais e

ambientais”, no plano interno, e Estados abertos e internacionalmente “amigos” e

“cooperantes” no plano externo».16 Neste contexto, o jus cogens e os direitos humanos,

articulados com o papel da Organização Internacional, porventura as Nações Unidas,

forneceriam «um enquadramento razoável para o constitucionalismo global».17

2.3. A comunidade internacional e a sua “Constituição”

É tarefa difícil, porventura irrealizável, encontrar uma definição perfeita e consensu‑

al para o termo “Constituição”.18 Sem querer experimentar preencher o seu conte‑

údo, de uma forma abrangente parece ser possível dizer que “Constituição” é o

estatuto jurídico fundamental ordenador de uma comunidade.

12 FASSBENDER, Bardo, op. cit.13 Ibidem – pág. 114.14 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, 2003 – págs. 1369‑

‑1372.15 Ibidem – pág. 1369.16 Ibidem – pág. 1369.17 Ibidem – pág. 1370.18 Para uma perspectiva sobre diversas abordagens à noção de “Constituição”, vide MIRANDA, Jorge, Manual de

Direito Constitucional, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2000 – págs. 52 e ss.

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37No seu sentido próprio, a expressão “Constituição” é referida ao Estado. Trata ‑se

de um conceito que, intimamente relacionado com o Estado moderno, ganhou con‑

teúdo no século XVIII procurando responder a preocupações, ainda actuais, de limi‑

tação do poder do Estado e de garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos. Ainda

hoje é frequentemente invocado o artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem

e do Cidadão, de 1789, segundo o qual «toda a sociedade na qual a garantia dos

direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes estabelecida, não tem

Constituição». É, pois, no seu sentido original, referido à comunidade estadual.

Utilizar a expressão “Constituição” para designar outra coisa que não o estatuto

jurídico fundamental da comunidade estadual incorre no risco óbvio da confusão

com a tentativa de comparar o estatuto de uma qualquer comunidade a uma

“Constituição” estadual e, por consequência, estabelecer um paralelo entre essa

comunidade e um Estado. No entanto, num sentido evoluído, é de admitir a utiliza‑

ção da expressão “Constituição” como símbolo da fundamentalidade de um estatuto

que comungue de alguns fenómenos constitucionais observáveis na realidade esta‑

dual. Mesmo que não se queira ou que não seja possível comparar essa realidade ao

Estado.

Pode até acontecer que, num sentido pouco rigoroso, “Constituição” queira

designar o estatuto de uma qualquer entidade colectiva, enquanto instrumento que

constitui essa entidade.19 Pese embora a importância do rigor terminológico, o que

importa é mais o conteúdo desse estatuto e a natureza da comunidade que ele orga‑

niza, e menos a expressão que é utilizada para o designar.

No caso em estudo, pergunta ‑se pelo estatuto fundamental organizador da

comunidade internacional. Uma comunidade que adquire dimensão universal.

A existência da comunidade internacional pressupõe, mais do que a soma dos

indivíduos em que prevalece a vontade de todos, a existência de um colectivo em

que prevalece a vontade geral. Uma comunidade ordenada pelo Direito que articula

a relação entre os seus membros, fazendo com que o colectivo seja mais do que a

mera justaposição das partes que o compõem.20

19 Vide MIRANDA, Jorge, “Constituição e Integração” in A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, organização de

CUNHA, Paul de Pitta e, págs. 173 -202, Livraria Almedina , Coimbra, 2005 – pág. 174. Recorde ‑se, designada‑

mente, que o estatuto da Organização Internacional do Trabalho se designa, em inglês, por “Constitution of

the International Labour Organization”. 20 TOMUSCHAT, Christian, op. cit. – pág. 219; FASSBENDER, Bardo, op. cit. – pág. 81.

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38 Num sentido estrito, a comunidade internacional é actualmente melhor definida

como uma colectividade humana que se distingue por os seus membros primários

serem entidades políticas e soberanas.21 Mas uma comunidade em que a ideia clássica

da soberania absoluta e indivisível do Estado se encontra superada. Uma comunidade

em que a dimensão da subordinação surge ao lado das dimensões de cooperação inter‑

governamental e de reciprocidade,22 assistindo ‑se à verticalização da vasta planície

interestadual.23

Nela se estabelecem e desenvolvem relações jurídicas complexas e diversificadas

entre sujeitos que não apenas os Estados. O indivíduo, dotado de dignidade humana e

sujeito dos direitos inerentes, assume na comunidade internacional um estatuto basi‑

lar, se bem que intervém na governação de uma forma indirecta, conferindo legitimi‑

dade às entidades estaduais (com a excepção única da eleição dos deputados ao

Parlamento Europeu, ou até, numa certa medida, da representação dos governos, dos

patrões e dos trabalhadores nacionais de cada Estado Membro na Conferência Geral da

Organização Internacional do Trabalho). Assim, num sentido amplo, a comunidade

internacional de Direito é constituída pelos sujeitos de Direito Internacional.24 E isto

sem esquecer o papel das organizações não ‑governamentais na defesa da comunidade

humana e dos seus interesses. Tudo contribuindo para o reforço da compreensão e da

representatividade dos valores e interesses da humanidade.

Mas quais, então, os fenómenos constitucionais que devem ser observados para

que se possa reconhecer um estatuto fundamental organizador da comunidade inter‑

nacional? Em primeiro lugar, um tal estatuto deverá incorporar um núcleo duro de

Direito imperativo que se imponha aos membros da comunidade. Só assim se poderá

garantir o mínimo de uniformidade necessário à manutenção da comunidade. Por

outro lado, tratando ‑se dum estatuto de natureza jurídica que se propõe ordenar a

comunidade internacional, esse estatuto deverá gozar de supremacia no seio do orde‑

namento jurídico internacional. Parece também evidente que deverá assegurar a garan‑

21 AGO, Robert, “Communauté international et organization internationale” in Manuel sur les organizations internationales, organização

de DUPUY, René -Jean, págs. 3 -12, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1998 – pág. 3. 22 PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, Manual de Direito Internacional Público, Livraria Almedina,

Coimbra, 1993 – págs. 37 e ss.23 Nguyen Quoc Dinh, Patrick Dailler e Alain Pellet falam num «reconhecimento progressivo, lento e prudente,

de uma certa personalidade jurídica da comunidade de Estados» – DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick

/ PELLET, Alain, Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003 – pág. 411. 24 MOSLER, Hermann, “International legal community”, cit. – pág. 1252.

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39tia dos direitos fundamentais da pessoa humana, enquanto padrão de conduta da

comunidade. Só assim se compreende uma comunidade que assenta num substrato

humano. Ainda, para que lhe possa ser reconhecida natureza de ordenador fundamen‑

tal, é necessário que o estatuto detenha a capacidade de permanecer vivo, sofrendo o

influxo da realidade que pretende conformar, traduzindo a vontade geral dos seus

membros. Acresce que o estatuto deverá prever uma base institucional, com inspiração

no princípio da separação de poderes, que sirva de garantia da ordem jurídica da

comunidade internacional.

O poder constituinte é elemento essencial de uma ordem constitucional. Como

escreve Jorge Miranda, «é cada povo, em cada momento, que faz as opções básicas da

sua vida colectiva – políticas, económicas e sociais – através do exercício do poder

constituinte».25 Ora, não é possível, ainda, vislumbrar no seio da comunidade interna‑

cional a manifestação de um poder constituinte exercido pelo povo.26 Pese embora esta

impossibilidade actual, não significa que não possa ser encontrado um estatuto funda‑

mental ordenador da comunidade internacional. O que não pode ser encontrado é

uma “Constituição” em sentido próprio. Não se pretendendo confundir a comunidade

internacional com um Estado, tal não pode constituir motivo de desânimo no caminho

que se ensaia percorrer.

Estes serão, pois, os elementos que servirão de referência para procurar a

“Constituição”, no seu sentido evoluído, da comunidade internacional. Uma realidade

jurídica que se insere no processo constitucional global, complementando a insuficien‑

te ordem constitucional nacional, sem que para tal se almeje a criação de um super‑

‑Estado. O que não significa, contudo, que, num futuro longínquo, o constitucionalis‑

mo global não possa evoluir ao encontro de uma ordem constitucional pós ‑moderna.

3. A Carta como Constituição da comunidade internacional

3.1. O núcleo duro de Direito imperativo

Uma Constituição é uma ordenação normativa fundamental dotada de supremacia.27

Ora, sendo a comunidade internacional uma comunidade de Direito, é indispensável

25 MIRANDA, Jorge, “Constituição e Integração”, cit. – pág. 174.26 Bardo Fassbender, no entanto, entende a redacção da Carta na Conferência de S. Francisco como se tratando

de um “momento constitucional” – FASSBENDER, Bardo, op. cit. – pág. 98.27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit. – pág. 246.

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40 a existência de um núcleo mínimo de princípios e de regras imperativas para os seus

membros que funcione como aglutinador da comunidade e garante da sua unifor‑

midade.

Neste âmbito, assume grande relevância a teorização do jus cogens enquanto

Direito imperativo que se impõe aos Estados e que só pode ser derrogado ou modi‑

ficado por uma norma da mesma natureza. Mesmo no espaço estadual, a conclusão

de que exista uma superioridade hierárquico ‑normativa das normas constitucionais

sobre as normas internacionais deve ser temperada pelo reconhecimento do jus cogens

cuja a observância se impõe como dever imperativo dos Estados.28

A existência do jus cogens foi pela primeira vez consagrada expressamente na

Convenção sobre o Direito dos Tratados, adoptada em Viena, a 23 de Maio de 1969.29

O artigo 53.º daquela Convenção estabelece que é nulo qualquer tratado30 que seja

incompatível com o jus cogens. O mesmo artigo identifica o jus cogens com as normas

de Direito Internacional geral aceites e reconhecidas pela comunidade internacional

dos Estados no seu conjunto como normas às quais nenhuma derrogação é permiti‑

da e que só pode ser modificada por uma nova norma de Direito Internacional geral

com a mesma natureza. Nos termos do artigo 64.º da mesma Convenção, o tratado

é nulo quer seja posterior ou anterior ao surgimento de uma dessas normas impe‑

rativas. O conteúdo do jus cogens pode, pois, variar no tempo.

É, assim, reconhecido a este Direito imperativo um dinamismo que se justifica

pela necessidade de adaptação do Direito à realidade em que se desenvolve e que,

simultaneamente, pretende organizar. Um dinamismo observável nas ordens consti‑

tucionais estaduais. Tal é a fundamentalidade do jus cogens.

Se bem que o seu reconhecimento expresso se dá no contexto do Direito dos

Tratados, este Direito imperativo existe no âmbito de todo o Direito Internacional. A

Comissão de Direito Internacional, no seio da qual se desenvolveu o projecto da

Convenção sobre o Direito dos Tratados, mais não fez do que constatar uma situação

preexistente e recomendar que fossem sancionados com a nulidade os tratados

incompatíveis com o jus cogens.31 Note ‑se, por exemplo, que no projecto de Convenção

28 Ibidem – pág. 695.29 Para uma perspectiva histórica da teorização do jus cogens vide PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto

de, op. cit. – págs. 278 e ss.30 “Convenção internacional”, na terminologia constitucional portuguesa. 31 DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick / PELLET, Alain, op. cit. – pág. 206.

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41sobre a Responsabilidade dos Estados por Actos Internacionalmente Ilícitos elabora‑

do pela Comissão de Direito Internacional,32 o capítulo III da parte II versa sobre a

responsabilidade internacional com origem na violação de uma obrigação que

decorra de uma “norma peremptória de Direito Internacional geral”.

Hermann Mosler utiliza a expressão “ordem pública internacional” para desig‑

nar o mínimo de princípios e regras sem as quais a comunidade internacional dei‑

xaria de existir.33 Jus cogens seria a parte da “ordem pública internacional” aplicável às

convenções internacionais.34 Parece, no entanto, ser possível identificar o jus cogens

com todo o mínimo de princípios e regras que compõem a ordem pública da comu‑

nidade internacional, cuja aplicação ao Direito dos Tratados é regulada pelos artigos

53.º, 64.º e 66.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados. Assim, qualquer norma

incompatível com o jus cogens é nula.35

Pese embora o reconhecimento expresso da existência do jus cogens pela

Convenção sobre o Direito dos Tratados ser um «evento jurídico notável (…) na

edificação das bases constitucionais escritas da comunidade internacional»36 fica

ainda muito por concretizar, designadamente, no que respeita ao seu conteúdo.

Quais são, então, as regras que conformam o jus cogens?

Quando o artigo 53.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados dispõe que uma

norma, para que seja jus cogens, deve ser reconhecida como tal pela «comunidade inter‑

nacional dos Estados no seu conjunto», não deve ser interpretado no sentido de se

exigir o reconhecimento por todos os Estados que compõem a comunidade interna‑

cional, correndo o risco de se cair num voluntarismo contrário à própria natureza do

jus cogens. O critério será o da existência de um interesse da comunidade internacional

assim aceite pelos Estados em geral. A justificação para a existência de um Direito

imperativo que ocupe o topo da hierarquia da ordem jurídica internacional deve ser

procurada no seu conteúdo, na medida em que reflicta os valores fundamentais da

comunidade internacional e procure prosseguir os interesses comuns.

32 Resolução A/RES/59/35, de 16 de Dezembro de 2004 O texto do projecto pode ser consultado em http://

untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/draft%20articles/9_6_2001.pdf.33 MOSLER, Hermann, “International society as a legal community”, cit. – pág. 33.34 Ibidem – pág. 35.35 Neste sentido, PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, op. cit. – pág. 284; MIRANDA, Jorge,

“Constituição e Integração”, cit. – pág. 175.36 DINH, Nguyen Quoc / DAILLER, Patrick / PELLET, Alain, op. cit. – pág. 211.

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42 A Comissão de Direito Internacional, sem, no entanto, se querer comprometer,

apontou o caminho para o que deveria ser o conteúdo do jus cogens enunciando alguns

exemplos no seu relatório, tais como tratados que visem o emprego da força, trata‑

dos que prevejam a execução de um crime de Direito Internacional, tratados que

organizem o tráfico de escravos, a pirataria ou o genocídio, tratados que violem

direitos humanos, tratados que violem a igualdade dos Estados, ou tratados que vio‑

lem o princípio da autodeterminação.37

O artigo 66.º da Convenção sobre o Direito dos Tratados prevê que, no caso de

diferendo que surja no âmbito de um processo para arguição da nulidade por

incompatibilidade de um tratado com o jus cogens e que não seja resolvido nos doze

meses posteriores à data em que a objecção for formulada, qualquer das Partes a

pode submeter à decisão do Tribunal. No caso Barcelona Traction,38 o Tribunal enunciou

o respeito pelas regras aplicáveis aos actos de agressão, ao genocídio e aos direitos

humanos como sendo obrigações dos Estados para com a comunidade internacional

no seu conjunto.39

O artigo 19.º do projecto sobre a Responsabilidade dos Estados, elaborado no

seio da Comissão de Direito Internacional, na sua redacção anterior à nomeação, em

1997, de James Crawford como relator especial, definia crime internacional como

um acto ilícito resultante da violação por um Estado de uma obrigação internacional

essencial para a protecção dos interesses fundamentais da comunidade internacio‑

nal.40 Como exemplos de interesses fundamentais para a comunidade internacional,

o projecto refere a manutenção da paz e segurança internacionais, a protecção do

direito à autodeterminação dos povos, a protecção do ser humano e a preservação

do “ambiente humano”.

A doutrina tem, igualmente, procurado concretizar o conteúdo do jus cogens.

Assim, e citando apenas alguns autores, André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros,

afirmam que o jus cogens abrange: o costume internacional geral (exemplificando com

os princípios da liberdade dos mares, da coexistência pacífica, da autodeterminação

37 Annuaire de la Commission du Droit International, 1966, vol. II – pág. 270.38 Caso respeitante à Barcelona Traction, Empresa de Água e Luz, Limitada (Bélgica c. Espanha), registo de 19 de Junho de

1962.39 International Court of Justice Reports, 1970 – pág. 32.40 Para consulta deste texto, vide www.un.org/law/ilc/reports/1996/chap03.htm

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43dos povos, da proibição da escravatura, da pirataria, do genocídio e da discriminação

racial, a qualificação dos crimes internacionais e o Direito Humanitário Internacional);

as normas convencionais pertencentes ao Direito Internacional geral, dando como

exemplo os princípios constantes na Carta; o Direito Internacional geral, de fonte

unilateral ou convencional, sobre direitos humanos, como seja a Declaração Universal

dos Direitos do Homem ou os Pactos de 1966.41

Por seu lado, Jorge Miranda enuncia um vasto conjunto de princípios como

integrando o acervo de jus cogens: os princípios da cooperação, da resolução pacífica

de conflitos, de acesso aos benefícios do património comum da humanidade, do

livre consentimento, da reciprocidade de interesses e da equivalência das relações

contratuais, pacta sunt servanda, da boa fé, da responsabilidade por actos ilícitos, da

igualdade jurídica dos Estados, do respeito da integridade territorial, da não‑

‑interferência nos assuntos internos dos Estados, da legítima defesa contra a agressão,

da continuidade do Estado, da igual dignidade de todos os homens e mulheres, da

proibição da escravatura, do tráfico de seres humanos e de práticas semelhantes, da

proibição do racismo, da protecção das vítimas de guerra e conflitos, da garantia dos

direitos “inderrogáveis” enunciados no artigo 4.º do Pacto Internacional de Direitos

Civis e Políticos.42

Sem querer empreender o difícil exercício de delimitar o conteúdo do jus cogens,

parece, no entanto, possível identificar algumas linhas gerais comuns aos exemplos

supra referidos. Todos eles têm por fundamento a dignidade humana, a paz, a igual‑

dade ou a liberdade enquanto valores comuns da comunidade internacional, e o

reconhecimento de que a protecção das suas iminentes expressões é seu interesse

fundamental.

Não parece difícil estabelecer um paralelo entre aquelas linhas gerais e o dispos‑

to na Carta. Nos seus dois primeiros artigos, a Carta consagra um conjunto de regras

fundamentais conformadoras da comunidade internacional:43 a manutenção a paz e

41 PEREIRA, André Gonçalves / QUADROS, Fausto de, op. cit. – págs. 282 ‑283.42 MIRANDA, Jorge, Curso de Direito Internacional Público, Principia, Cascais, 2004 – págs. 127 ‑128. 43 Sobre o assunto, vide os comentários, não só aos artigos 1.º e 2.º da Carta, mas também ao seu preâmbulo,

em GOODRICH, Leland / HAMBRO, Edvard, Charter of the United Nations – commentary and documents, World

Peace Foundation, Boston, 1946 – págs. 53 e ss.; BENTWICH, Norman / MARTIN, Andrew, A commentary

on the Charter of the United Nations, Routledge & Kegan Paul Ltd., Londres, 1950 – págs. 1 e ss.; COT, Jean‑

‑Pierre / PELLET, Alain “Préambule” in La Charte des Nations Unies – commentaire article par article, organização de COT,

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44 da segurança internacionais, a proibição do recurso à força e a inerente obrigação da

resolução pacífica de conflitos, a autodeterminação dos povos, a cooperação inter‑

nacional nas áreas económica, social, cultural e humanitária, a promoção do respei‑

to pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a boa fé nas relações

internacionais, ou a igualdade soberana entre os Estados. A Carta das Nações Unidas

assimila os valores comuns da comunidade internacional e prossegue os interesses

da comunidade internacional.

Se é verdade que a Carta não consagra expressamente todas as regras imperativas

conformadoras da comunidade internacional, também é verdade que todas elas

beneficiam de uma ligação substancial com a Carta, ou que, pelo menos, são uma

implicação lógica das regras consagradas na Carta das Nações Unidas. É, pois, possí‑

vel concluir pela Carta como constituindo a matriz ética e jurídica do jus cogens

enquanto ordem pública da comunidade internacional.44

3.2. A hierarquização normativa

Um outro fenómeno constitucional característico é o estabelecimento pela

Constituição da hierarquia das normas da comunidade que organiza.

Ora, o artigo 103.º da Carta estabelece a hierarquização das obrigações conven‑

cionais, colocando a Carta das Nações Unidas no topo dessa hierarquia. Nos termos

daquela disposição, em caso de conflito entre as obrigações de um dos Estados

Membros em virtude da Carta e obrigações que para ele decorram em virtude de

uma outra convenção internacional, prevalecem as primeiras. Como observa Thiébaut

Flory, o artigo 103.º traduz o «carácter “constitucional”», a «natureza de “supra‑

legalidade” em relação aos restantes tratados internacionais» que os negociadores na

Conferência S. Francisco relacionavam com a Carta.45

O Tribunal Internacional de Justiça teve já ocasião de aplicar o artigo 103.º da

Carta. Assim no caso Actividades militares e paramilitares,46 o Tribunal afirmou que «todos

os acordos regionais, bilaterais e mesmo multilaterais que as Partes no presente caso

Jean ‑Pierre / PELLET, Alain, Economica, Paris, 1991 – págs. 1 e ss.; WOLFRUM, Rüdiger “Preamble” in The

Charter of the United Nations – a commentary – volume I, organização de SIMMA, Bruno, págs. 33 -37, Oxford University

Press, Oxford, 2002. 44 Neste sentido, DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág 11.45 FLORY, Thiébaut “Article 103” in La Charte des Nations Unies – commentaire article par article, cit., pág. 1381.46 Caso Actividades militares e paramilitares dos Estados Unidos na Nicarágua (Nicarágua c. Estados Unidos da América), registo de

9 de Abril de 1984.

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45possam ter concluído sobre a solução de controvérsias ou da jurisdição do Tribunal

Internacional de Justiça, deverão ser sempre submetidas as disposições do artigo

103.º».47

No caso Lockerbie,48 o Tribunal invocou mais uma vez o artigo 103.º. Em 1988,

uma bomba explodiu num avião da Pan Am que se despenhou em Lockerbie, na

Escócia. Tendo as investigações indicado que teriam sido dois agentes líbios os auto‑

res do atentado, o Conselho de Segurança solicitou à Líbia que cumprisse com as

exigências dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, nomeadamente, que

entregasse os dois presumíveis responsáveis.49 Perante aquela recomendação, a Líbia

submeteu o caso ao Tribunal arguindo que tinha cumprido com as suas obrigações

ao abrigo da Convenção para a Eliminação de Actos Ilícitos Contra a Segurança da

Aviação Civil, adoptada em Montreal, a 23 de Setembro de 1971, de julgar os res‑

ponsáveis pelo atentado, e que os Estados Unidos da América e o Reino Unido não

estavam a cumprir com as suas obrigações ao abrigo daquela Convenção, não poden‑

do tomar quaisquer medidas para forçar a Líbia a cumprir as suas exigências.

Entretanto, o Conselho de Segurança, ao abrigo do capítulo VII da Carta, determinou

que o não cumprimento da resolução 731 (1992) constituía uma ameaça à paz.50

Nessa medida, o não cumprimento daria lugar à imposição de medidas coercivas.

Face à argumentação da Líbia, o Tribunal afirmou que «de acordo com o artigo

103.º da Carta, as obrigações das Partes a esse respeito [referindo ‑se ao artigo 25.º

da Carta e à resolução 748 (1992), de 31 e Março de 1992, do Conselho de

Segurança] prevalecem sobre as suas obrigações decorrentes de qualquer outro acor‑

do internacional, incluindo a Convenção de Montreal».51 Mais adiante, o Tribunal

conclui que «a indicação das medidas requeridas pela Líbia seriam incompatíveis

com os direitos que os Estados Unidos parecem gozar prima facie em virtude da reso‑

lução 748 (1992) do Conselho de Segurança».52

47 International Court of Justice Reports, 1984 – pág. 440. 48 Caso Questões sobre a interpretação e aplicação da Convenção de Montreal resultantes do incidente aéreo em Lockerbie (Jamahiriya Árabe

Líbia c. Estados Unidos da América / Jamahiriya Árabe Líbia c. Reino Unido), registos de 3 de Março de 1992.49 Resolução 731 (1992), de 21 de Janeiro de 1992. Note ‑se que esta resolução tinha natureza meramente

recomendatória. 50 Resolução 748 (1992), de 31 de Março de 1992.51 International Court of Justice Reports, 1992 – pág. 126.52 Ibidem – pág. 127.

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46 Igualmente relevante parece ser a questão quanto à relação, a este nível, entre as

obrigações que decorram da Carta e as normas costumeiras, situação em relação à

qual a Carta nada refere. Na Conferência de S. Francisco chegou mesmo a ser discu‑

tida uma proposta de redacção que explicitava que as obrigações decorrentes da

Carta prevaleceriam sobre todas as outras, incluindo as de Direito costumeiro.53

Apesar daquela fórmula não ter sido adoptada, é de admitir que os redactores da

Carta procurassem integrar na sua obra o Direito costumeiro então em vigor, acre‑

ditando ao mesmo tempo que as futuras regras costumeiras nunca seriam incompa‑

tíveis em termos substanciais com o disposto na Carta.54

Entendimento que sai reforçado se se reconhecer à Carta o estatuto de matriz

ética e jurídica do jus cogens. Rudolf Bernhardt refere mesmo que as «ideias que estão

na base do artigo 103.º são também válidas no caso de conflito entre obrigações da

Carta e outras obrigações para além daquelas que resultam de tratados».55

O que parece certo é que o âmbito do artigo 103.º não inclui apenas as obriga‑

ções que se encontrem consagradas directa e imediatamente na Carta das Nações

Unidas, mas todas as obrigações que resultem em virtude da Carta, incluindo, pois,

as deliberações dos órgãos das Nações Unidas que tenham força vinculativa.56 Por

outro lado, e seguindo a mesma linha de raciocínio, as obrigações em virtude da

Carta prevalecerão também sobre as deliberações vinculativas dos órgãos de outras

organizações internacionais.

O relacionamento da hierarquia das obrigações convencionais estabelecida pela

Carta pode parecer incompatível com a teoria do jus cogens. Se nem todo o jus cogens

está na Carta, admitindo que possa ser encontrado noutras convenções internacio‑

nais, designadamente sobre direitos humanos, é de questionar a possibilidade das

obrigações em virtude da Carta poderem prevalecer sobre aquele Direito inderrogá‑

vel. Ora, admitindo que a Carta é matriz ética e jurídica do jus cogens, existe uma

impossibilidade lógica de conflito entre a Carta das Nações Unidas e o Direito de que

é matriz. A verificação de um conflito entre a Carta e uma regra de Direito obrigaria

à conclusão imediata de que não se estaria perante jus cogens.

53 Vide BERNHARDT, Rudolf “Article 103” in The Charter of the United Nations – a commentary – volume II, cit. – pág. 1293.54 Assim DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág. 13. 55 BERNHARDT, Rudolf, op. cit. – pág. 1299.56 O Tribunal Internacional de Justiça pronunciou ‑se neste sentido no âmbito do caso Lockerbie – International

Court of Justice Reports, 1992 (Jamahiriya Árabe Líbia c. Estados Unidos da América) – pág. 126.

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47O jus cogens e o artigo 103.º são, antes, instrumentos poderosos, compatíveis, que

contribuem para a afirmação da fundamentalidade da Carta, reconhecendo ‑a como

ocupando um lugar de topo na ordem jurídica internacional hierarquizada. Não se

pode esconder, no entanto, que quer a teoria do jus cogens, quer a sua relação com o

artigo 103.º da Carta carecem de elaboração. Elaboração que, no estádio actual de

desenvolvimento do Direito Internacional, se reveste de grande importância.

Não havendo espaço neste estudo para aquele aprofundamento, o que importa

aqui realçar é a afirmação da Carta das Nações Unidas como primaz da ordem jurí‑

dica da comunidade internacional. Rudolf Bernhardt vai mesmo ao ponto de dizer

que «a própria paz mundial pode depender do respeito pela elevada posição e força

vinculativa da Carta tal como sublinhado pelo artigo 103.º. Os desenvolvimentos

ocorridos no mundo desde 1988 podem ser considerados como tendo fortalecido o

papel das Nações Unidas e da Carta, que pode tornar ‑se numa real e efectiva consti‑

tuição para a comunidade internacional».57

3.3. A garantia dos direitos fundamentais do ser humano

O local de positivação dos direitos fundamentais é a Constituição. Como refere

Gomes Canotilho, «a positivação de direitos fundamentais significa a incorporação

na ordem jurídica positiva dos direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do

indivíduo. Não basta qualquer positivação. É necessário assinalar ‑lhes a dimensão de

Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas

constitucionais».58

Na comunidade internacional, enquanto comunidade de substrato humano, a

dignidade humana deve ser assumida como valor central, e o reconhecimento e

protecção dos direitos humanos deve constituir uma preocupação fundamental. O

estatuto da comunidade internacional deve, pois, reflectir esse seu factor humano.

A Carta das Nações Unidas não incorpora um catálogo de direitos fundamen‑

tais.59 No entanto, os direitos humanos são reconhecidos como fundamentais pela

Carta. O preâmbulo da Carta dá o mote manifestando a decisão dos “povos das

57 BERNHARDT, Rudolf, op. cit. – pág. 1302.58 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit. – pág. 377.59 Na Conferência de S. Francisco o Panamá chegou a propor a introdução na Carta de uma “Declaração dos

Direitos Essenciais do Homem”.

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48 Nações Unidas” em reafirmar a sua «fé nos direitos fundamentais do homem, na

dignidade e no valor da pessoa humana». No caso Sudoeste Africano60, o Tribunal afir‑

mou que «considerações humanitárias podem inspirar regras de direito: assim o

preâmbulo da Carta das Nações Unidas constitui a base moral e política das disposi‑

ções que são enunciadas em seguida».61 Rüdiger Wolfrum, referindo ‑se àquela dis‑

posição do preâmbulo, fala numa «mini carta dos direitos humanos».62

Também o artigo 1.º, n.º 3 da Carta faz referência à promoção e estímulo do

«respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos».

Desenvolvendo o disposto no preâmbulo e concretizando o objectivo enunciado no

artigo 1.º, n.º 3 da Carta, o artigo 55.º dispõe que «com o fim de criar condições de

estabilidade e bem ‑estar (…) as Nações Unidas promoverão (…) o respeito univer‑

sal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos». Para

além destas disposições estruturantes, são feitas na Carta diversas outras referências

aos direitos humanos.

Estas referências na Carta constituem, ao tempo da Conferência de S. Francisco,

um avanço sem precedentes no que respeita à afirmação dos direitos fundamentais

do ser humano. São estas disposições de carácter geral que conferem competência

aos órgãos das Nações Unidas para se debruçarem sobre questões de direitos huma‑

nos e para consolidar a obrigação geral da Organização e dos Estados Membros para

respeitarem os direitos humanos.63 A acção em favor do respeito dos direitos huma‑

nos tornou ‑se uma responsabilidade da comunidade internacional. A prática foi ‑se

encarregando de, lentamente, ir materializando e solidificando aquele que é um dos

pilares fundamentais da actuação das Nações Unidas.

Em 1948, a Assembleia Geral adoptou a Declaração Universal dos Direitos do

Homem.64 Em 1966, foram adoptados o Pacto Internacional sobre Direitos Eco‑

nómicos, Sociais e Culturais, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.65

Actualmente são Parte em cada um dos Pactos cento e sessenta, e cento e sessenta e

60 Casos do Sudoeste Africano (Etiópia c. África do Sul / Libéria c. África do Sul), registo de 4 de Novembro de 1960.61 International Court of Justice Reports, 1966 – pág. 34.62 WOLFRUM, Rüdiger, op. cit. – pág. 35. 63 RIEDEL, Eibe “Article 55 (c)” in The Charter of the United Nations – a commentary – volume II, cit. págs. 917 ‑941.64 Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948.65 No preâmbulo de ambos os Pactos pode ler ‑se que «em conformidade com os princípios enunciados na Carta

das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos

seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e a paz no mundo».

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49quatro Estados, respectivamente. Em conjunto estes três instrumentos são frequente‑

mente designados por Carta Internacional dos Direitos do Homem, uma vez que

apresentam unidade de inspiração e de conteúdo.66 Foram ainda adoptadas no âmbi‑

to das Nações Unidas um conjunto de outras convenções em matéria de direitos

humanos, de índole específica.

Também no âmbito das Nações Unidas, foram sendo criados mecanismos com

vista à promoção e à protecção dos direitos humanos.67 São os casos do Conselho

dos Direitos Humanos e da subcomissão para a Promoção e Protecção dos Direitos

Humanos, ou do Gabinete do Alto ‑Comissário para os Direitos Humanos. O acervo

de instrumentos de direitos humanos fundados no sistema da Carta é vasto e de

conteúdo abrangente. A insuficiência reside mais ao nível dos mecanismos de imple‑

mentação, que são ainda frágeis quando comparados com outros ao nível regional.

Apesar de tudo, parece ser possível, também nesta matéria, afirmar que a Carta das

Nações Unidas é matriz ética e jurídica do sistema de promoção e protecção de

direitos humanos no contexto da comunidade internacional.

3.4. A modificação da Carta

Um outro fenómeno constitucional observável na Carta das Nações Unidas é o seu

processo de modificação. Um processo que alimenta as ideias de fundamentalidade

da Carta e de coesão da comunidade internacional.

Uma Constituição regula a sua revisão.68 No entanto, as convenções internacio‑

nais, frequentemente, também o fazem. Porém, o processo de modificação consagra‑

do na Carta regista algumas especificidades que, em certa medida, se aproximam

mais das Constituições estaduais do que das convenções internacionais.

O processo de modificação da Carta das Nações Unidas encontra ‑se previsto no

capítulo XVIII, nos artigos 108.º e 109.º. O artigo 108.º distingue de forma clara três

fases: a adopção, a manifestação do consentimento em estar vinculado e a entrada

em vigor. Em relação à primeira fase, aquele artigo dispõe que as emendas são adop‑

tadas «pelos votos de dois ‑terços dos membros da Assembleia Geral». O que signi‑

66 SUDRE, Fréderic, Droit International et Européen des droits de l’homme, PUF, Paris, 1989 – pág. 90. 67 Para uma descrição do vasto sistema das Nações Unidas relativo aos direitos humanos, vide www.ohchr.org/

EN/HRBodies/Pages/HumanRightsBodies.aspx68 MIRANDA Jorge, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, cit. – pág. 150.

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50 fica que as emendas são adoptadas, pelo voto positivo de dois ‑terços dos Estados

Membros das Nações Unidas, por resolução da Assembleia Geral. O artigo 18.º, n.º 2,

refere que as «decisões da Assembleia Geral sobre questões importantes serão toma‑

das por maioria de dois ‑terços dos membros presentes e votantes». No caso do

artigo 108.º, o facto de os dois ‑terços serem aferidos em relação à totalidade dos

membros, e não apenas em relação aos membros presentes e votantes, traduz a espe‑

cial importância que o processo de modificação representa na vida das Nações

Unidas. A manifestação do consentimento em estar vinculado acontece de acordo

com os “métodos constitucionais” dos Estados Membros. As emendas entram em

vigor quando dois ‑terços dos membros das Nações Unidas, incluindo os cinco

membros permanentes do Conselho de Segurança, manifestarem o seu consenti‑

mento em estar vinculados. Pese embora a entrada em vigor se encontrar na dispo‑

nibilidade da vontade geral de apenas dois ‑terços dos membros, após aquele

momento, as emendas vinculam todos os Estados, mesmo aqueles que tenham vota‑

do contra a adopção do texto e que não tenham manifestado o seu consentimento

em estar vinculados, não querendo vincular ‑se às emendas.

Ora, o significado desta possibilidade é profundo. Assemelha ‑se ao exercício de

um poder constituinte em que é manifestada a vontade geral dos membros da comu‑

nidade em relação ao seu estatuto organizador fundamental, vinculando todos. No

entanto, o entusiasmo pela constatação do fenómeno constitucional esmorece um

pouco pelo facto de, também aqui, os membros permanentes do Conselho de

Segurança gozarem de direito de veto. Se assim não fosse, seria possível retirar pri‑

vilégios aos cinco membros permanentes, tais como o direito de veto ou a perma‑

nência no Conselho de Segurança, mesmo contra sua vontade.

O processo de emenda previsto no artigo 108.º e o processo de revisão previsto

no artigo 109.º não diferem muito. A maior diferença reside no seu âmbito: o artigo

109.º foi redigido com o intuito de permitir uma revisão geral da Carta. Tarefa que,

devido à sua dimensão, não poderia ser levada a cabo no âmbito da Assembleia Geral.

Por outro lado, a inclusão deste artigo na Carta, contribuiu, na Conferência de S.

Francisco, para a superação da resistência dos pequenos e médios Estados à conces‑

são do direito de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurança. A

redacção do artigo 109.º acalentava alguma esperança na revisão do direito de veto

num futuro próximo.

A Carta prevê, então, um procedimento especial para o efeito, determinando

que a revisão geral da Carta se proceda no âmbito de uma “Conferência Geral dos

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51membros das Nações Unidas”, a convocar pela Assembleia Geral, pelo voto de dois‑

‑terços dos membros da Assembleia e por nove votos de quaisquer membros do

Conselho de Segurança. Apesar de o artigo 109.º não se pronunciar expressamente

nesse sentido, deve ser entendido que, tal como o previsto no artigo 108.º, a mani‑

festação do consentimento em estar vinculado por dois ‑terços dos Estados Membros,

incluindo todos os membros permanentes, determina que o recomendado pela

Conferência Geral “tenha efeito” para todos os Estados Membros. Curioso é o facto

de no artigo 109.º se utilizar a expressão “ter efeito”, enquanto no artigo 108.º se

emprega a expressão “entrada em vigor”. Ora, como se sabe, a eficácia e a validade

obedecem a regimes diferentes.

É ainda de notar que o n.º 3 do artigo 109.º se encontra obsoleto. Este número

3 refere que se a Conferência Geral não se realizar até à décima sessão anual da

Assembleia Geral a proposta da sua convocação deveria figurar na agenda dessa ses‑

são. Na realidade, nunca aconteceu uma reunião de uma Conferência Geral com o

objectivo de rever a Carta.

O regime de modificação da Carta distingue ‑se do regime geral previsto na

Convenção sobre o Direito dos Tratados. Nos termos do artigo 40.º, n.º 4 daquela

Convenção, só se encontram vinculados pelas emendas os Estados que assim consenti‑

rem. O que permite reconhecer no capítulo XVIII um regime de características espe‑

ciais, em que o consentimento de um Estado que é Parte não é relevante para a sua

vinculação, a não ser que se trate de um dos cinco membros permanentes do Conselho

de Segurança. Por outro lado, a Carta nada diz quanto à hipótese de um Estado Membro

praticar o recesso em relação à Carta, no caso, por exemplo, de não querer vincular ‑se

a uma emenda em relação à qual não manifestou o seu consentimento.

Ainda neste contexto, há que observar que a possibilidade da vontade geral de

dois ‑terços vincular todos confere vida à Carta, permitindo ‑lhe, pelo menos em teoria,

uma constante adaptação à realidade que deve organizar. Característica fundamental

que um estatuto organizador da comunidade internacional não pode dispensar.

3.5. A base institucional

A noção de “Constituição” pode ser perspectivada numa dupla dimensão: a substan‑

tiva e a institucional.69 A dimensão substantiva realça os preceitos atinentes à base

69 DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág 3.

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52 ideológica e política da comunidade, os princípios básicos que fundamentam os

direitos e as liberdades fundamentais do homem e do cidadão, e os fins das institui‑

ções políticas, afirmando ‑se como matriz conformadora da comunidade, implican‑

do, pois, uma hierarquização normativa. Já a dimensão institucional faz sobressair a

existência de uma estrutura orgânica, assente no princípio da separação de poderes,

em que cada instituição tem competências próprias no seio do sistema. A dimensão

institucional é instrumento necessário para a articulação e promoção da dimensão

substantiva.

Encarando, agora, a Carta das Nações Unidas numa perspectiva institucional,

importa saber se estabelece uma estrutura orgânica dirigida à organização da comu‑

nidade internacional de acordo com o Direito de que a Carta será fonte e matriz. No

artigo 7.º, a Carta estabelece os órgãos principais da Organização Internacional

Nações Unidas. Ao lado dos órgãos característicos da estrutura clássica das organiza‑

ções internacionais, como o são a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança e o

Secretariado, a Carta prevê ainda a existência de um órgão judicial, o Tribunal

Internacional de Justiça. São estabelecidos também como órgãos principais o

Conselho Económico e Social e o Conselho de Tutela que, sem constituírem uma

inovação ao modelo clássico, respondem a uma necessidade de especialização fun‑

cional e de descongestionamento dos outros órgãos.70

A Carta prevê, ainda, no seu artigo 57.º a criação de Organizações Internacionais

especializadas vinculadas às Nações Unidas, mas com amplo grau de autonomia, cuja

actividade é dirigida à prossecução dos objectivos enunciados no artigo 55.º, no

âmbito da cooperação económica e social internacional. A Carta estabelece, pois, um

sistema institucional vasto e complexo, dirigido à prossecução dos seus objectivos

que se concretizam num amplo âmbito de actuação.

A institucionalização da comunidade internacional e a criação de unidades polí‑

ticas para além do Estado, explicam ‑se não só por factores endógenos como também

exógenos. As Organizações Internacionais não só servem apenas como base para a

realização de funções que os Estados já não conseguem realizar por si sós, ou que

realizam melhor em cooperação com outros sujeitos internacionais, mas funcionam

igualmente como resposta para as questões que, desconhecendo fronteiras, não são

70 DUPUY, René ‑Jean, “État et organisation international” in Manuel sur les organizations internationales, organização de DUPUY,

René -Jean, págs. 13 -30, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, 1998 – pág. 19.

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53estaduais, mas globais. Assim se compreende a cada vez maior transferência de pode‑

res dos Estados para as organizações internacionais.

Não só as Organizações Internacionais vão sendo modeladas de acordo com as

funções que vão sendo chamadas a cumprir, como elas próprias, frequentemente vão

fomentando a sua autonomia e o reforço dos seus poderes. Os seus órgãos, designa‑

damente os integrados como o Secretariado das Nações Unidas, o Tribunal

Internacional de Justiça, a Comissão Europeia ou o Tribunal de Justiça, com mais ou

menos vigor e em níveis distintos, vão procurando reforçar a autoridade da organi‑

zação no seio da comunidade.

Por outro lado, a existência de Organizações Internacionais para as quais os

Estados transferem algum poder, prepara o terreno para a transferência de mais

poder. É que é mais fácil a aceitação de um processo de integração suave do que um

big bang supranacional. As Organizações Internacionais não só recebem do constitu‑

cionalismo global, como também o estimulam.

Quanto mais universal for a Organização Internacional e quanto maior for o

leque de funções e os níveis a que actua, maior a potencialidade para servir de base

institucional à comunidade internacional no quadro do constitucionalismo global.

Postas assim as coisas, nenhuma outra Organização Internacional se apresenta com

esta potencialidade como as Nações Unidas.

A estrutura institucional prevista pela Carta apresenta insuficiências que se

reflectem na sua capacidade para governar a comunidade que a Carta organiza. Esta

temática será desenvolvida ao longo do presente estudo, designadamente no capítu‑

lo II, onde se abordará o sistema do poder das Nações Unidas. Por ora é suficiente a

verificação da existência de uma estrutura institucional que articula e promove a

dimensão substantiva da ordem estabelecida pela Carta.

4. Conclusão Apesar de se tratar de um tratado constitutivo, são observáveis na Carta das

Nações Unidas fenómenos normalmente só observáveis nas ordens constitucionais

estaduais. A Carta assume ‑se como matriz do Direito Internacional imperativo,

estabelecendo uma hierarquia das obrigações convencionais, cujo topo ocupa. A

Carta fornece alicerces ao sistema de promoção e protecção de direitos humanos no

contexto da comunidade internacional, em concretização de uma sua preocupação

fundamental. Até o regime de modificação da Carta, que procura traduzir a vontade

geral dos membros da comunidade, é mais próximo do observável nas constituições

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54 estaduais, do que nos tratados em geral, onde prevalece o clássico princípio do

consentimento. Tudo articulado pelo sistema institucional das Nações Unidas.

Reconhecendo ‑lhe a fundamentalidade, é preciso também reconhecer ‑lhe a uni‑

versalidade que a liga à comunidade internacional no seu todo. Em 1945, eram

membros das Nações Unidas cinquenta e um Estados. Actualmente esse número é de

cento e noventa e dois. Tudo o que contribui para que actualmente se possa falar nas

Nações Unidas enquanto organização verdadeiramente universal, onde a grande

maioria dos membros da comunidade internacional está representada.

Será porventura excessivo chamar “Constituição” à Carta procurando estabelecer

um paralelo com a lei fundamental de um Estado. As Nações Unidas não são um

Super ‑Estado71. Não é possível equiparar a estrutura do poder de um Estado à das

Nações Unidas. A comunidade internacional é, ainda, mais caracterizada pela sobe‑

rania igual dos Estados do que pela sua subordinação a um ente superior estabeleci‑

do pela Carta, que funcione como uma autoridade central encarregue de fazer valer

a “ordem constitucional” estabelecida.

Todavia, é também verdade que a Carta, mais do que um mero tratado consti‑

tutivo de uma Organização Internacional, se afirma como um instrumento interna‑

cional de valor reforçado. Apelidá ‑la ou não de “Constituição” será porventura uma

questão do termo a empregar, com o qual uns concordarão e outros não.72 Porém,

adjectivá ‑la de estatuto jurídico fundamental organizador da comunidade interna‑

cional é algo que poucos recusarão fazer. Neste sentido evoluído não será incorrecto

dizer que a Carta das Nações Unidas é a Constituição da comunidade internacional.

A Constituição é um processo e não um acontecimento único. Espera ‑se da Carta

uma adequação ao tempo e ao espaço em que se move e que se lhe pede para organi‑

zar. A necessidade de complementar o constitucionalismo nacional vai sendo cada vez

maior na actualidade globalizada. A Carta assume ‑se como uma resposta a essa neces‑

sidade de complementarização constitucional ao nível global. O facto da Carta ser

Constituição da comunidade internacional significa que ocupa um lugar cimeiro no

71 Tal como lembrou o Tribunal no parecer Reparação por danos sofridos ao serviço das Nações Unidas – parecer consultivo

de 11 de Abril de 1949, solicitado pela Assembleia Geral (resolução 258 (III), de 3 de Dezembro de 1948)

– International Court of Justice Reports, 1949 – pág. 174. 72 Pierre ‑Marie Dupuy, por exemplo, refere que a expressão “constituição da comunidade internacional” encer‑

ra, em parte, uma dimensão metafórica – DUPUY, Pierre ‑Marie, op. cit. – pág. 30.

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55ordenamento jurídico internacional. As relações jurídicas entre os membros da comu‑

nidade internacional devem ter, assim, a Carta como referência máxima. Por outro

lado, tendo a capacidade fundamental de organizar a comunidade, confere às Nações

Unidas uma posição central na governação da comunidade internacional.NE

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59O funcionário internacional na UNESCO – evolução do

paradigma

João Carlos Versteeg*

n Abstract:

A criação de um aparelho burocrático progressivamente complexo para dar resposta à

evolução da Comunidade Internacional e das suas instituições levantou um problema

de importância crescente relativamente à lealdade possível dos funcionários interna‑

cionais que as servem, mesmo quando por indicação dos seus governos.

Neste quadro, o paradigma do funcionário internacional, ao apelar para a neutrali‑

dade dessa burocracia internacional, representa um poder de facto indesmentível no

paronama geral dos intervenientes nas relações internacionais, como assistimos na

UNESCO.

I – Numa liNguagem, tão irónica quanto sugestiva, um antigo juiz do Tribunal Internacional

de Justiça recorda que o Funcionário Internacional é um produto do século XX

e, como espécie do genus homo, ele não podia ter sido identificado por um Darwin

político, senão a partir de 19151.

Se, até então, a Administração Internacional não oferecia senão alguns postos oca‑

sionais e precários, em poucos anos passou a dispôr, ao seu serviço, de um numeroso

pessoal permanente e qualificado.

Ao mesmo tempo aperfeiçoam ‑se os processos de recrutamento, concedem ‑se

garantias de estabilidade, reconhecem ‑se imunidades e surge, timidamente, a figura da

carreira profissional.

As Organizações Internacionais, apesar da sua diversidade, defrontam ‑se, contudo,

com problemas análogos de gestão e de dificuldades administrativas e financeiras da

mesma ordem. Isso explica que para a sua administração se tenham inspirado por

princípios comuns e encontrado soluções mais ou menos semelhantes.

* Ministro Plenipotenciário.1 Phillip Jessup “The International Civil Servant and his loyalties”, Columbia Journal of International Affairs

vol. IX, n.º 2, 1955, pg. 55

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60 Como veremos relativamente à UNESCO – que é o quadro de referência deste

trabalho – também ela goza de autonomia para seleccionar e gerir o seu pessoal, de

acordo com os seus objectivos estratégicos. É a sua específica finalidade que explica as

significativas diferenças de estipulações contratuais e das suas disposições estatuárias.

Nestas circunstâncias, é necessário precisar a condição jurídica externa e o esta‑

tuto interno dos seus funcionários para a definição dos direitos e deveres que decor‑

rem do vínculo de serviço à UNESCO2.

II – Até ao século XIX a Sociedade Internacional apresentava ‑se como uma Sociedade Inter‑

‑Estadual, onde as relações se desenvolviam principalmente no plano político e as

manifestações de conflito de interesses e hostilidade eram bem mais numerosas do

que as de solidariedade.

A transformação desse relacionamento em laços mais frequentes e intensos de

cooperação, em domínios que abrangem desde o económico e social ao cultural e

científico, deve ‑se, sobretudo, aos progressos técnicos da área industrial e ao desenvol‑

vimento das comunicações2.

Assiste ‑se à criação de Organizações de carácter permanente que iniciam uma

cooperação inter ‑estadual de onde se excluem as questões de índole política e no seio

das quais se promove a colaboração internacional, em domínios que tradicionalmente

eram da esfera das administrações nacionais3.

Através de Acordos, vários Estados criam então Organizações Internacionais que

vão servir de plataforma de discussão, negociação e resolução de problemas comuns,

a exigirem soluções globais.

Recordamos aqui, que surgiu, em 1865, a primeira das chamadas Uniões

Internacionais Administrativas – a União Telegráfica Universal – antecessora da actual

União Internacional de Telecomunicações, a que se seguiu a União Postal Universal,

criada em Berna, em 1874, e que hoje funciona com a mesma designação.

Estabeleceram ‑se também os primeiros Organismos Internacionais de âmbito

regional, como aconteceu na América, com a União Internacional das Repúblicas

Americanas que foi criada em 1891 e depois se transformou na União Pan ‑Americana.

2 Cfr. Claude ‑Albert Colliart, Instituitions Internationales ed. Dalloz, Paris, 1970 – 5 ed., pg. 575.3 Crf. Paulo de Pitta e Cunha, Dos Funcionários Internacionais, ed. Coimbra, 1964, pg. 8

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61Na Europa surgiram as Comissões do Reno e do Danúbio para a administração inter‑

nacional desses dois rios.

Tratava ‑se porém, em rigor, de uma mera cooperação organizada entre as admi‑

nistrações dos Estados ‑Membros. Por isso, à excepção de um escasso pessoal afecto aos

trabalhos de índole interna, não existiam agentes administrativos internacionais. Eram

os representantes dos Estados ‑Membros que preparavam os temas a discutir e delibe‑

ravam por unamidade. A aplicação efectiva das medidas cabia aos funcionários das

respectivas administrações nacionais que eram cedidos à Organização ou aos funcio‑

nários nacionais do Estado onde esta se sediava.

À medida que as Organizações Internacionais foram ganhando importância e

dimensão crescente, surgiu a necessidade da criação de órgãos próprios para se dedi‑

carem, em exclusivo, à administração destas. Assim apareceram os Secretariados e

autonomizou ‑se a categoria do Agente Internacional, distinto do Representante dos

Estados com estatuto diplomático.

É com a criação da Sociedade das Nações, após a convulsão política da Guerra de

1914, que se plasma a figura do funcionário internacional, compaginada com o perfil

da função pública internacional.

O carácter para ‑universal da Sociedade das Nações e a natureza predominante‑

mente política das questões a tratar no quadro do ambicioso objectivo de assegurar a

manutenção da paz, levou a que os Estados, receando que surgisse uma posição hege‑

mónica no seio da SdN, se prontificassem a aceitar ou mesmo a favorecer a internacio‑

nalização do Secretariado.

Para tanto, contribuiu extraordinariamente a personalidade arguta de Sir Eric

Drummond, que foi o primeiro Secretário ‑Geral da Sociedade das Nacões. Ele defen‑

deu a criação de um serviço público internacional e a necessidade de nomear funcio‑

nários internacionais, de reconhecido mérito para o Secretariado4.

A original concepção de Drummond inspirava ‑se nos princípios de indepen‑

dência política e de probidade moral do civil service britânico e defendia que cada

funcionário do Secretariado só actuava por instruções do Secretário ‑Geral e no inte‑

resse da Sociedade das Nações, sem ter em conta a política do seu próprio governo

nacional.

4 Veja ‑se, F.P. Walters, A History of the League of Nations, ed. Oxford University Press, Londres, 19650, pg. 76.

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62 Esta orientação pretendia contrariar o risco das posições defendidas pelos delega‑

dos à Conferência de Paz em Paris que pretendiam institucionalizar os interesses dos

seus países, de acordo com o seu respectivo papel desempenhado na Grande Guerra,

numa tentativa de administrar a Sociedade das Nações, beneficiando ‑se das lealdades

nacionais dos seus funcionários.

As características fundamentais do conceito de Funcionário Internacional fixaram‑

‑se na revisão do Art. 1 do Estatuto do Pessoal da Sociedade das Nações5, após a firme

recusa das posições defendidas nos anos 30 pela Itália e Alemanha nazi que afectaram

a desejável independência do Secretariado.

O primeiro dos textos que desenvolve o conceito de lealdade internacional ao

abordar a questão da dimensão de um Secretariado Internacional é o Relatório Balfour,

de 1920. Aí sustentava ‑se o propósito de se distribuirem os lugares pelo maior núme‑

ro de Estados a fim de se assegurar “a prática do Internacionalismo”.

Pouco tempo depois, o Relatório Noblemaire veio contemplar não apenas a difícil

questão da lealdade, mas também os salários e as orientações para o recrutamento de

funcionários de elevada competência.

Nesse Relatório reclamava ‑se como indispensável que o pessoal, para defesa da sua

imagem internacional, fosse seleccionado numa ampla base de distribuição geográfica.

Neste processo de definição da figura do funcionário internacional assistimos, em

1927, a um marco especialmente importante:

– A Assembleia da Sociedade das Nações cria, a título provisório, o Tribunal

Administrativo cuja jurisprudência irá contribuir de maneira decisiva para

a formação de um direito próprio do serviço público internacional, em

particular para a protecção jurídica do funcionário international.

Este Tribunal, em 1946, passará a ser o Tribunal Administrativo da Organização

Internacional de Trabalho, tendo o seu Estatuto sido modificado em 1949. É ele que

tem competência para resolver os litígios entre os funcionários e as diversas

Organizações, nomeadamente a UNESCO.

5 Art. 1 das Staff Regulations: Os Funcionários do Secretariado da Sociedade das Nações são exclusivamente

Funcionários Internacionais e os seus deveres não são nacionais mas internacionais. Ao aceitar a sua

nomeação comprometem ‑se a cumprir as suas obrigações e pautar a sua conduta tendo somente em conta

o interesse da Sociedade das Nações. Estão sujeitos à autoridade do Secretário ‑Geral e são responsáveis

perante ele no exercício das suas funções. (…) Não devem solicitar nem receber instruções de nenhum

Governo ou de outra autoridade exterior ao Secretariado.

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63Alain Plantey cita, na sua obra Droit et Pratique de la Fonction Publique Internationale, Paris

1977, na perspectiva de evolução da noção de função pública internacional, os seguin‑

tes três pareceres do Tribunal Internacional de Justiça:

– O parecer de 11 de Abril de 1949 acerca do pagamento de prejuízos sofridos,

reiterando o princípio de que o vínculo de serviço entre a Organização e um

dos seus agentes é superior ao da nacionalidade;

– O parecer de 13 de Julho de 1954 em que se sublinha a responsabilidade da

Organização Internacional em relação ao seu pessoal;

– O parecer de 23 de Outubro de 1956 em que se reconhecem efeitos jurídicos

às práticas constantes da Administração Internacional, em particular para a

interpretação dos contratos de recrutamento.

É no final da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das Nações

Unidas que assistimos a uma organização mais complexa de toda a Administração

Internacional que ganha uma dimensão inesperada.

Só no sistema da ONU aponta ‑se a existência de 40.000 pessoas sujeitas ao regime

comum do funcionário. É nesta sede que a figura do funcionário internacional ganha

um novo e superior enquadramento.

Assim, na Carta especifica ‑se no Art. 100 § 1 que “no desempenho dos seus deve‑

res, o Secretário ‑Geral e o pessoal do Secretariado não solicitarão nem receberão ins‑

truções de qualquer Governo ou de qualquer autoridade estranha à Organização e

abster ‑se ‑ão de qualquer acção que seja incompatível com a sua posição de Funcionários

Internacionais, responsáveis somente perante a Organização”.

Mas a obrigação e responsabilidade exigidas ao Funcionários Internacionais são

na Carta também imputadas aos Estados, nos termos do § 2 do mesmo Art. 100: “Cada

um dos membros das Nações Unidas compromete ‑se a respeitar o carácter exclusiva‑

mente internacional das funções do Secretário ‑Geral e do pessoal do Secretariado e a

não procurar influir sobre estes no desempenho das suas funções.”

Pretendeu ‑se ainda que fosse garantida a segurança de emprego através de contra‑

tos permanentes que evitassem aos funcionários internacionais ficar sujeitos a pressões

dos seus respectivos países. Apontava ‑se que o recrutamento e a promoção na carreira

se devia fundar no mérito e não na protecção nacional ou política, sendo desejável que

o nível dos salários fosse superior “ao da Administração nacional mais bem remunera‑

da do Mundo”.

É também na Carta que encontramos, pela primeira vez, um Secretariado elevado

à categoria de órgão da própria Organização (vide o Art. 7.º, onde se lê: “São estabele‑

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64 cidos como órgãos especiais das Nações Unidas uma Assembleia ‑Geral, um Conselho

de Segurança, um Conselho Económico e Social, um Conselho de Tutela, um Tribunal

Internacional de Justiça e um Secretariado”.

Recorde ‑se que a concepção de um Secretariado internacionalizado foi contestada,

em 1961, pela URSS. Moscovo pretendeu, sem o conseguir, que a todos os níveis do

Secretariado existisse uma Troika de funcionários pertencentes a três grupos – Países de

Leste – do Ocidente e dos Não ‑Alinhados.

O caso mais emblemático na Carta, do progresso das suas disposições relativamen‑

te ao estipulado no Pacto da Sociedade das Nações, é o do tratamento dado à figura do

Secretário ‑Geral, a quem se reconhece o poder político de “chamar a atenção do

Conselho de Segurança para qualquer assunto que, em sua opinião, possa pôr em peri‑

go a manutenção da paz e da segurança internacionais” (Art. 99).

É o primeiro reconhecimento de poderes, não estritamente de natureza adminis‑

trativa, ao Secretário ‑Geral da ONU.

A partir dos anos 60, a conjuntura económica leva os países industrializados a

controlar mais rigidamente as despesas de funcionamento das Organizações

Internacionais. Ao mesmo tempo, numerosos governos convergem para procurar uma

maior centralização e coerência nas condições de serviço e gestão do Sistema das

Nações Unidas.

Nesta perspectiva, a Assembleia ‑Geral da ONU, pela Resolução 3042, em 19 de

Dezembro de 1972, decide criar a importante Comissão da Função Pública

Internacional, tentando evitar a multiplicidade de regimes nas Organizações da “famí‑

lia” das Nações Unidas, e tendo em vista harmonizar, entre outros, os problemas de

carreiras, condições de emprego nomeadamente salariais.6

Curiosamente, na Carta da ONU não se definiu um conceito restrito de Funcionário

Internacional. Com efeito, no seu Art. 100, § 1 e 2, lê ‑se apenas que o Secretário ‑Geral

e os membros do Secretariado são Funcionários Internacionais.

Na ONU, o estatuto dos funcionários foi adoptado pela Assembleia ‑Geral. O texto

fundamental é a Resolução 590 (VI), de 2 ‑2 ‑1952.

6 Cfr. O Acordo entre as Nações Unidas e a UNESCO de 1946 onde se lê, sob o título Personal Arrangements no

Art. XII, “They agree to: consult together concerning the establishment of an International Civil Service

Commission to advice on the means by which common standarts of recruitment in the secretariats of

the United Nations and of the specialized agencies may be endured; consult together concerning other

matters relating to the employment of their officers and staff, including conditions of service, duration of

appointments, classification, salary scales and allowances, retirement and pension rights …/…”

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65É a Convenção Geral sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, aprovada

pela Assembleia ‑Geral em 13 de Fevereiro de 1976, que vem reiterar a imunidade

diplomática ao Secretário ‑Geral e aos seus Adjuntos, beneficiando o restante pessoal de

imunidades menos extensas.

De resto, já o Art. 105 § 2 da Carta, que é retomado em quase todos os textos

constitutivos de outras Organizações, atribuía aos funcionários o gozo dos privilégios

e imunidades que são necessários para exercer com independência as suas funções.

Paralelamente, o aparecimento do fenómeno da supranacionalidade através da

experiência das Comunidades Europeias, a partir de 1955, voltou de novo a chamar a

atenção para a figura do Funcionário Internacional. Foram vários os autores a defender

que, dadas as características inéditas das Organizações Supranacionais, o seu pessoal

não se enquadrava nessa figura.

Esta é, de resto, uma questão em aberto para outra sede.

III – Cada Organização ao criar um específico corpo de regras jurídicas que fica na

dependência da sua Carta Constitutiva, suscita uma questão jurídica, ainda não

resolvida, que é a de saber se estas normas pertencem ao Direito Internacional ou

deverão ser tidas como de Direito Interno.

De qualquer forma, a UNESCO é referida geralmente como Organização

Internacional mas o facto é que ela permanece, intrinsecamente, intergovernamental,

pelo que não é surpreendente que se constitua numa plataforma de negociações e de

enfrentamento de natureza política.

Na miríade de funcionários da UNESCO distinguem ‑se aqueles para quem perten‑

cer à Organização é razão de uma militância. Bem mais do que uma profissão, uma

vocação. E mesmo para alguns trata ‑se de uma missão.

É de apontar que face às diversas ideologias e credos, o princípio que alguns defen‑

diam de se encontrar uma filosofia comum, que seria a da UNESCO não vingou.

Os debates entre os defensores de uma concepção ética e filosófica e os partidários

de uma acção eminentemente prática continuam, como no passado, a entrechocar ‑se.

A ambivalência, fonte da contradição entre a sua vocação universalista e a inevitável

parcialidade das pressões nacionais, pesa sobre o funcionário da UNESCO, pondo em

risco o seu estatuto, nomeadamente o princípio da independência que é fundamento

da sua deontologia.

É surpreendente a multiplicidade de formulações jurídicas que os Estados entre si

acordaram para a enumeração das condições de atribuição do Estatuto de Funcionário

ou de Agente Internacional.

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66 No caso da UNESCO, o poder de nomeação dos funcionários do Secretariado não

pertence aos Estados ‑Membros mas à Organização e é exercido pelo seu Director ‑Geral

(solução já prevista no Art. 101 § 1 da Carta da ONU). A situação do funcionário é

determinada pela referência à fórmula contratual ou à fórmula estatutária, prevalecen‑

do, em regra, a primeira nas Instituições especializadas.

Acresce que, o Art. 12 da Constituição da UNESCO estipula: “As disposições dos

Arts. 104 e 105 da Carta da ONU respeitantes ao estatuto legal da Organização, os seus

privilégios e imunidades, aplicam ‑se da mesma forma a esta Organização”.

Conforme se depreende do Art. VI §5, as responsabilidades do Director ‑Geral e

do pessoal do Secretariado são de carácter exclusivamente internacionais. Por seu

lado, os funcionários devem respeitar os princípios da função pública inter‑

nacional:

– a Independência e segurança; imparcialidade; autonomia; responsabilidade; lealdade, tolerância e

integridade.

Da mesma forma que nas Instituições se tem de reconhecer um desfasamento

entre o idealismo dos textos fundadores e o pragmatismo que preside à sua interpre‑

tação e aplicação, também no processo histórico da UNESCO assistimos a desvios

entre os princípios que regem o Estatuto dos seus funcionários e a sua aplicação

concreta.

Como aponta Suzanne Bastid7, são quatro os elementos que caracterizam o

Funcionário Internacional:

1.º O lugar do Funcionário estar previsto no Acordo interestadual;

2.º O Funcionário agir, de modo contínuo e exclusivo, no interesse da

Comunidade dos Estados participantes no Acordo;

3.º O Funcionário não se integrar nos quadros administrativos de qualquer

Estado;

4.º O Funcionário encontrar ‑se submetido a um regime jurídico particular.

Também na UNESCO só se consideram Funcionários Internacionais em sentido

estrito, o pessoal do seu Secretariado – órgão executivo que assegura a realização e a

continuidade do Programa de Acção.

7 Cfr. S.Bastid – La condition juridique des fonctionnaires internationaux, Paris 1953.

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67Para se ter uma ordem de grandeza do Secretariado, bastará mencionar que este

conta com mais do que 2100 funcionários divididos em dois grandes grupos:

Categorias profissionais e Serviços Centrais:

Mapa de evolução dos efectivos do pessoal:

Total Sede Fora da Sede

1950 855 807 48

1960 1593 1005 588

1970 3197 1852 1345

1980 3390 2377 1013

1984 3244 2432 812

1995 2483 1856 627

2005 1946 1365 581

Não estão abrangidos nestes dados os agentes que realizam tarefas sem qualquer

relação directa com a missão própria da UNESCO, como motoristas, jardineiros, con‑

tínuos, etc.

Após a crise de 84 e obedecendo à uma política de descentralização, mais de 700

funcionários deixaram de se basear em Paris, sede da Organização, e foram colocados

em 58 escritórios à volta do mundo.

O Secretariado abrange, para além do Gabinete do Director ‑Geral, que é o respon‑

sável máximo da Organização, eleito pela Conferência ‑Geral sob recomendação do

Conselho Executivo o seguinte organigrama:

– Programas Sectoriais: Educação, Ciências Naturais, Ciências Sociais e Humanas,

Cultura, Comunicação e Informação;

– Sectores de Apoio: Relações Externas e Cooperação e Administração;

– Serviços Centrais: Secretariado da Conferência Geral, Secretariado do Conselho

Executivo, Serviço de Assuntos Legais, Serviço de Inspecção Interna, Serviço

de Ética, Serviço de Planeamento Estratégico, Serviço do Orçamento,

Serviço de Recursos Humanos, Serviço de Coordenação no Terreno, Serviço

de Informação Pública, Serviço do Controlador, Departamento de África,

Secretariado do Prémio da Paz F. H. Boigny, Serviço de Previsão;

– Escritórios no Terreno;

– Institutos e Centros UNESCO.

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68 Recordamos, por seu turno, que o Conselho Executivo é responsável pelo acom‑

panhamento da execução dos programas da Organização e é composto por 58 mem‑

bros, eleitos pela Conferência ‑Geral por um mandato de 4 anos. A escolha destes

representantes tem em conta a diversidade das Culturas e a sua base geográfica,

exigindo ‑se um equilíbrio entre as diferentes regiões do globo, de forma a reflectir a

universalidade da UNESCO, (cfr. Art. V, § 3). Até 1954, os membros do Conselho não

representavam, contudo, os seus Governos. Foi só durante a Conferência ‑Geral de

Montevideu que se alterou o Estatuto, transformando o Conselho Executivo num órgão

intergovernamental, pondo ‑se fim ao figurino de um colégio de personalidades que

tinham ali assento devido às suas próprias qualidades pessoais.

Enquanto a estrutura da Sociedade Internacional continuar a ser marcada pelo

interestatismo que permite um regime jurídico que beneficia as grandes potências e

lhes possibilita desfrutarem de posições de domínio em certas Organizações

Internacionais, a questão da desejável independência dos Funcionários Internacionais

permanece por resolver no seio do Sistema das Nações Unidas.

Registe ‑se porém, que na UNESCO, de resto como em outras Organizações de

carácter técnico ou de âmbito regional, este problema é menos agudo.

Contudo, a história da UNESCO deu ‑nos, em várias épocas, testemunho de

Estados, que ao definirem a sua posição em relação à função pública internacional, se

inspiraram, antes do mais, nas orientações da sua política externa, como aconteceu

com Portugal em 1972, com a saída da Organização até 1974. Esta situação explica,

também, os lentos progressos que os países revelaram para a compreensão do seu

interesse próprio em contribuir para uma administração eficaz.

Por outro lado, também na UNESCO se reflectiram concepções e práticas, por

vezes conflituantes, de diversas funções públicas nacionais. Foi o caso de muitos desen‑

tendimentos na defesa de supostos interesses internacionais.

Paradoxalmente, os Governos dos países mais industrializados mostraram ‑se os

mais reticentes a atribuir aos funcionários internacionais da UNESCO uma mais ade‑

quada protecção jurisdicional, fazendo tábua ‑rasa da independência necessária à fun‑

ção pública internacional.

Para além das características próprias da lenta e difícil carreira de funcionário inter‑

nacional na UNESCO – vg. expatriação, falta de poder de decisão – que explicam, em

parte, os por vezes medíocres resultados da Organização, verificamos, hoje, a existência

de outros factores que contribuem para manter o ambiente de crise que ali se continua

a viver: dificuldades financeiras e orçamentais que implicam uma diminuição dos ren‑

dimentos dos funcionários e uma maior precariedade do emprego.

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69Tudo isto tem, como pano de fundo, a crítica incompreensão de várias opiniões

públicas nacionais relativamente aos funcionários internacionais, tidos como grupo

particularmente privilegiado, material e socialmente.

O mal ‑estar dos funcionários internacionais da UNESCO tem assim levado ao

recurso frequente à greve, situação que não pode deixar de afectar consideravelmente

a qualidade dos seus trabalhos.

Em resumo, verificamos, no tocante à UNESCO, a influência negativa de três

ordens de problemas específicos:

1.º Controlo financeiro nacional que ameaça a autonomia da Organização

– o caso mais flagrante é o do regresso à UNESCO da Grã ‑Bretanha, dos Estados

Unidos da América e de Singapura, após vários anos de ausência, que só foi

viável depois de ter sido aceite um muito mais apertado condicionalismo da sua

programação e dos seus encargos;

2.º Paralisia do Secretariado

– este é o resultado de posições nacionais contrárias, apoiadas na própria

burocracia internacional, vg quanto à contratação;

3.º Hipertrofia e heterogeneidade da Administração

– a proclamada vocação para ‑universal da UNESCO, se acarretou aspectos franca‑

mente meritórios, passou a reflectir, com o passar dos anos, cada vez mais

diversas perspectivas nacionais, ideológicas, culturais, religiosas e raciais nos

processos de decisão.

Esta situação explica alguns desvios que podemos apontar ao paradigma do

Funcionário Internacional, nomeadamente a persistência de situações em que este,

apesar do juramento a que está submetido, continuar a considerar ‑se mais funcionário

do seu próprio país do que da Comunidade Internacional.

Para esse facto, contribuiu também o sistema de quotas nacionais no recrutamen‑

to, permitindo que ganhassem corpo, de forma mais ou menos encapotada, certos

interesses nacionais ou de grupos de países, nomeadamente no Secretariado e no

Conselho Executivo.

Nota final Da mesma forma que nas Instituições se reconhece um desfasamento entre o

idealismo dos textos fundadores e o pragmatismo que preside à sua interpretação e

aplicação, também assistimos ao longo dos anos a desvios entre os princípios que

regem o estatuto dos seus funcionários e a sua aplicação.

Estamos conscientes de que é uma ficção criar ‑se uma função pública internacio‑

nal neutra, mas tal não deve impedir que se prossigam as reformas para contrariar a

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70 perda de objectividade na acção dos funcionários. Estas considerações não devem con‑

tudo fazer esquecer a advertência feita no famoso discurso pronunciado na Universidade

de Oxford, em 1961, do S.G. Dag Hammarskjoeld:

“O Funcionário Internacional deve manter ‑se a si próprio sob atenta observação.

Não se lhe pede para ser neutro no sentido de que não tenha simpatias ou antipatias,

que não existam interesses que lhe sejam próximos na sua capacidade pessoal e que

não tenha ideias ou ideais que preserve. Contudo, exige ‑se ‑lhe que esteja bem cons‑

ciente destas situações humanas e que as controle para que não influam sobre as suas

acções. Isto não é caso único. Não estão profissionalmente os juízes debaixo da mesma

obrigação?”8

A nossa visão sobre a UNESCO poderá parecer de índole sobretudo crítica e nega‑

tivista. Contudo o que se pretendeu apontar foi a necessidade de se empreenderem

novas e mais corajosas medidas estruturais na sua Administração.

Face aos efeitos perversos que se apontam, com mais ou menos ligeireza ao pro‑

cesso em curso de mundialização, vulgo globalização, convém recordar que é a sua

natureza intergovernamental que confere à UNESCO legitimidade.

A UNESCO deve comportar ‑se como uma administração pública internacional

que é responsável pelas contribuições financeiras dos Estados‑membros. Estes têm, por

seu lado a obrigação de viabilizar os objectivos estratégicos da Instituição.

Neste contexto, é de referir os esforços do actual Director ‑Geral K. Matsuura advo‑

gando a necessidade de um aumento significativo de investimentos em prol da univer‑

salização da cidadania, de modo a eliminar, até ao ano 2015, “as vastas zonas de

sombras que marcam no planeta uma geografia da ignorância”.

As virtualidade inerentes ao processo de globalização e os gigantescos passos que,

paralelamente, estão sendo dados na Ciência a na Tecnologia salientam a concepção da

própria universalidade, cerne do sistema das Nações Unidas e, por maioria de razão,

da UNESCO.

A globalização é antes de mais e principalmente, um processo económico e finan‑

ceiro. Mas constitui também, um processo científico e técnico, cujas novas tecnologias

de informação e comunicação formatizam o mundo numa rede mundial de vínculos.

Ao ser, ao mesmo tempo, um processo cultural tal facto coloca a globalização no cen‑

tro das iniciativas e reflexões da UNESCO.

8 Cfr. D. Hammarskjoeld, The Servant of Peace, London, 1962.

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71Com efeito, “a globalização envolve muito mais do que meras questões económi‑

cas. Ela não só afecta estilos de vida e padrões de comportamento, como subverte

hábitos de tomada de decisão e de governação e até formas de expressão artística”.9

Será, pois, preciso actuar com espírito interdisciplinar e intercultural, com novas

estratégias e políticas apoiadas numa reformulada estrutura administrativa de forma a

servir particularmente os que se encontram excluídos da globalização.

Como escreve o sociólogo chinês Ping Huang, na obra colectiva sobre o futuro da

UNESCO: “Créer une plate ‑forme ouverte d’échange et de dialogue entre les civilisa‑

tions, partager équitablement l’information et la connaissance: voilà la vraie valeur

ajoutée de l’UNESCO, dans le passé, dans le présent et – plus important encore – dans

le futur”.10NE

BIBLIOGRAFIA

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9 Cfr. K. Matsuura, UNESCO e os desafios do novo século, Paris 2002.10 Cfr. Quelle UNESCO pour l’avenir, Paris 2006.

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72 Moreira, Adriano, Teoria das Relações Internacionais, Almedina Coimbra, 6.ª edição, 2008.

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73A protecção internacional dos Direitos Humanos e a sua

influência nos ordenamentos jurídicos internos

Paulo Marrecas Ferreira*

n Abstract:

The international human rights approach, namely by international organizations leads

sometimes to differences between national human rights conceptions and those of the

international organs. This is true for Portugal, where some examples happen namely in

the fields of torture, racism, economic, social and cultural rights, etc…

Although these differences ought to be resolved in the sense of the adoption of, name‑

ly, the legal solutions existing at the international level , the Portuguese Constitutional

programme of improvement of the living conditions of the citizens must not be

waived, and the more so as we face a challenging and hard period of the Worlds

History in which what will be waived will probably not be rebuilt.

a evolução receNte dos Direitos Humanos na produção legislativa das organizações

internacionais e na sua interpretação pelos órgãos destes, conduz a que se verifiquem

por vezes discrepâncias entre o modo da sua afirmação e da sua interpretação

nos instrumentos, e pelos intérpretes – aplicadores, internos e os organismos

internacionais.

Em Portugal conhecemos alguns exemplos destas discrepâncias que, sem preten‑

são de exaustividade e sem a presunção de resolver verdadeiramente algum problema

ou de trazer uma solução inovadora, podem ser observadas. Estas notas poderão talvez

servir apenas como pista para um possível trabalho, a empreender se se verificar con‑

senso entre o povo português no sentido de o empreender1.

* Mestre em Direito pela FDUL, Assessor do Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria‑

‑Geral da República.1 É necessário o consenso das várias camadas da população num trabalho desta natureza, o qual – trabalho –

não pode ser arbitrário e se integra numa tarefa maior do que a simples explanação de regras de Direito:

a melhoria das condições de vida das pessoas que residem em Portugal. Sobre a questão do consenso,

veja ‑se, do Signatário, “Sustentabilidade, integração e independência de Portugal”, trabalho elaborado

no quadro do Curso de Política Externa Nacional, do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios

Estrangeiros, 2005 ‑2006 e publicado na Revista Negócios Estrangeiros, n.º 13 de Outubro de 2008.

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74 Os exemplos que conhecemos colocam ‑se no plano da articulação entre Portugal

e as Nações Unidas, no exame por estas organizações internacionais, da situação rela‑

tiva aos Direitos do Homem no nosso País, a qual é geralmente feita por áreas temáti‑

cas, vg., tortura, racismo, direitos económicos, sociais e culturais, etc…

Podendo guardar ‑se este esquema temático, abordaremos, numa ordem perfei‑

tamente arbitrária, mas orientada para a prática, as questões ligadas à Tortura, ao

combate ao racismo e à discriminação racial e aos direitos económicos, sociais e

culturais.

Tortura

Prisão preventiva

No plano dos instrumentos internacionais contra a tortura, a área melindrosa, em que

tanto as Nações Unidas e o Conselho da Europa, por via do seu Alto Comissário para

os Direitos Humanos insistem, é na noção de prisão preventiva. Em Portugal, mercê do

n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), a prisão preven‑

tiva corre da constituição como arguido e da decisão de colocação deste em detenção

preventiva até ao trânsito em julgado da decisão, por força do princípio da presunção

de inocência2.

Verificam ‑se prazos de prisão preventiva consignados na lei de processo penal3

que vão até à acusação, à decisão em primeira instância, à decisão da Relação, à decisão

do Supremo. A estatística altera ‑se por este facto, e Portugal apresenta números de

preventivos próximos do 30% da população prisional. Isto não se deve apenas ao facto

de que muitos magistrados optam pelo recurso a este instrumento4, mas da derivação

que o legislador ordinário tem feito da regra constitucional da presunção de inocência,

levando a prisão preventiva até ao trânsito da decisão em julgado.

A regra da presunção de inocência é sem dúvida correcta, a integração das conse‑

quências do raciocínio que implica na legislação, o C.P.P., é excessiva. Com efeito, nada

ganha o arguido em ser preventivo até ao fim do seu processo condenatório ou abso‑

2 O qual vem influir nos prazos da prisão preventiva, veja ‑se o artigo 28.º, n.º 4 da C.R.P.3 E é interessante notar, em abono do que se diz no texto que, embora conhecendo os exactos termos do pro‑

cesso, o legislador ordinário que reviu recentemente o Código de Processo Penal (C.P.P.), reduzindo os

prazos nas várias fases do processo não limitou a prisão preventiva ao tempo que vai até à condenação em

primeira instância, mas levou ‑os às várias fases do processo.4 O qual pode ser combatido por formação constante no plano do Centro de Estudos Judiciários e indicação de

medidas alternativas à prisão preventiva.

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75lutório, antes, é gravemente prejudicado nos seus direitos enquanto detido5. No domí‑

nio da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), este

Tribunal, para o efeito da aplicação do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos

do Homem (CEDH), considera condenado o arguido que mereceu decisão desfavorá‑

vel em 1.ª instância, ainda que esta não seja definitiva6.

O Alto Comissário do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, então o Dr.

Álvaro Gil Robles, entendeu, em 2003 e em 2004, nos Relatórios que elaborou sobre

a situação das prisões e a prisão preventiva em Portugal7; que as regras relativas a esta

são prejudiciais aos arguidos e recomendou uma modificação da legislação. Esta modi‑

ficação da legislação será ela uma modificação da C.R.P.? Entendemos que sim por uma

razão muito prática. O legislador do C.P.P. português, nas suas várias intervenções no

Código aplicou sempre a regra constitucional da presunção de inocência no sentido de

a prisão preventiva cessar com o trânsito em julgado da decisão – um juiz nunca dei‑

xará de aplicar o C.P.P. como está. Uma revisão do C.P.P. é, pelo menos, necessária. Mas

o próprio legislador poder ‑se ‑á ver em dificuldades se não possuir um texto constitu‑

cional para justificar e balizar a sua intervenção8.

Racismo e combate à discriminação Verificamos aqui dois pontos de possível dificuldade, de

resolução possível no plano da legislação ordinária. Além destes, deparamos com um

pequeno ponto, de ordem formal, que não é desprovido de importância.

5 Os nossos Deputados, que são hábeis no manuseamento dos textos e das ideias constitucionais, ao ponto

de já termos sete revisões constitucionais para trás, poderiam modificar esta situação, encontrando uma

fórmula que garantisse a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da decisão, o que faz pleno

sentido, mas dispondo que a aplicação do regime da prisão preventiva cessa a partir da decisão em pri‑

meira instância.6 Podem consultar ‑se os arrestos do TEDH sobre o artigo 5.º, n.º 1, c, e n.º 3 da CEDH na base de jurisprudência

HUDOC, em www.echr.coe.int. 7 Dois documentos são aqui de grande importância, o Doc. CommDH(2004)8, de 15 de Março de 2004 –

Opinion of the Commissioner for Human Rights, Mr. Alvaro Gil Robles, on the procedural safeguards

surrounding the authorisation of pre ‑trial detention in Portugal e o Doc. CommDH(2003)14, de 19 de

Dezembro de 2003 – Report by Mr. Alvaro Gil Robles , Commissioner for Human Rights, on his visit to

Portugal in the 27th ‑30th May 2003.8 As mesmas insistências na mudança de noção de prisão preventiva foram feitas pelo Comité contra a Tortura

das Nações Unidas (CAT), no exame do IV Relatório de Portugal de aplicação da CAT, cujo debate teve

lugar em 14 e 15 de Novembro de 2007. Diga ‑se que, nem sempre, na área da Justiça é necessária inter‑

venção constitucional para realizar a adaptação do nosso Direito interno ao desenvolvimento do Direito

internacional. É exemplo disto a feliz introdução do recurso de revisão da sentença por decisão de um

órgão internacional de julgamento, agora, na recente reforma do sistema de recursos em Processo Civil e

do C.P.P. Cfr. Artigos 771, f, do Código de Processo Civil e art.º 449 n.º 1, g) do C.P.P.

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76 Estatísticas

O primeiro ponto resume ‑se à questão da proibição de estatísticas relativas à raça ou à

etnia que teve consagração constitucional em termos absolutos até à revisão constitu‑

cional de 20059. Com base nesta proibição, Portugal não apresentou estatísticas relati‑

vas à composição demográfica da sua população, não sabendo, nomeadamente, se os

portugueses de etnia cigana ascendem a 40 mil ou a 60 mil pessoas, ou seja, admitindo‑

‑se uma flutuação de 20 mil pessoas…10

Nos relatórios de aplicação da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial (CERD) o Comité competente, das Nações Unidas, em Genebra,

emite constantes recomendações no sentido de se produzirem dados relativos à com‑

posição demográfica da população, a que as Delegações portuguesas sempre opuseram

a proibição constitucional11. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância

(ECRI), do Conselho da Europa produziu ultimamente uma recomendação no sentido

de se produzirem estas estatísticas e de como o fazer12.

Aqui, como se vê, já não é necessária, desde a revisão de 2005, uma modificação

do n.º 3 do artigo 35.º da C.R.P. Mas a lei pode ter de ser mudada13. O que se deve

exigir em qualquer modificação do Direito que se efectue nestes domínios, além do

consenso sobre a necessidade da reforma que se referiu acima, é que, em todos os

casos, se sigam as recomendações internacionais e os critérios que produzem, o modus

faciendi que indicam, de modo a evitar a arbitrariedade que possa resultar do simples

jogo de força dos partidos políticos14.

9 Hoje, reza o n.º 3 do art.º 35 da C.R.P.: “A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, auto-rização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para o processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”. Tal como está e para o efeito da ainda necessária adaptação do nosso Direito interno ao desenvolvimento do Direito internacional, não é necessária qualquer alteração deste preceito constitucional.

10 Pode ter importância e grande, ao nível dos direitos económicos e sociais e ao nível orçamental. Na previsão da despesa pública, pode haver, não se sabe, até 20 mil pessoas excluídas dos benefícios públicos. Depois, como exigir o pagamento dos impostos e como combater, nomeadamente a economia paralela, além de, muito mais importante, prever programas mais abrangentes de vacinação, por exemplo?

11 O último Relatório CERD apresentado foi discutido em Agosto de 2004.12 Já o CERD vem dando pistas ao Governo português como a da confidencialidade das pessoas inquiridas e

o carácter voluntário da produção das informações pelos interessados, sentido em que terá ido a revisão constitucional de 2005 quanto ao artigo 35, n.º 3 da C.R.P. Existindo embora sempre uns possíveis não cooperantes nos inquéritos – com toda a legitimidade – o resultado obtido sempre seria mais preciso que um total desconhecimento dos dados.

13 Lei n.º 67/98 de 26 de Outubro, transpondo a Directiva CE n.º 95/46 do PE e do Conselho.14 O modus faciendi e os critérios podem ser encontrados em “Ethnic statistics and data protection in the Council of

Europe countries – study report” de Patrick Simon, do Institut National d’Etudes Démographiques, publicado

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77Um exemplo virtuoso da estatística pode ser dado com o “Registo de menores em

situação irregular” introduzido em 2004 pelo Decreto ‑Lei n.º 67/2004, de 25 de

Março e a Portaria n.º 995/2004 de 9 de Agosto. Com este registo fica a conhecer ‑se

o número de menores irregulares, fica a saber ‑se quem são e equiparam ‑se estes

menores, enquanto durar a sua situação de irregularidade, aos menores regulares com

as vantagens da sua inserção no sistema educativo e todos os direitos económicos,

sociais e culturais que daí derivam15.

Agravante geral pela possível motivação racista nos vários tipos penais

Além deste importante aspecto das relações CERD/ECRI//Portugal, temos ainda um

aspecto de dimensão legislativa, apenas, que é o da introdução da necessária agravante

geral pedida pela ECRI e pelo CERD quanto aos vários tipos de crimes, na sua concre‑

tização, quando à perpetração destes tenha presidido uma motivação racista. Nas reco‑

mendações do CERD e nos Relatórios da ECRI esta agravante geral, como necessidade,

é uma constante. Portugal não a possui mas sublinha o ACIDI (Alto Comissariado para

a Imigração e o Diálogo Intercultural) com acuidade que ela já existe, pelo menos em

potência, no artigo 71.º do Código Penal, na elencação dos critérios para a determina‑

ção da medida da pena que este fornece. Talvez aqui fosse ainda possível introduzir o

motivo racial do crime, embora tal só deva ser feito se a economia do artigo 71.º do

Código Penal não ficar desequilibrada ou de algum modo prejudicada16.

Mecanismo de queixa do artigo 14.º da CERD e emenda ao artigo 8.º da CERD

Outro ponto importante, de natureza formal e que não implica alteração da C.R.P. nem

da Lei ordinária, mas que implica a modificação da Ordem jurídica interna pela sua

introdução, é o formado pelo mecanismo de queixa do artigo 14.º da CERD.

no site da ECRI do Conselho da Europa. Não quer isto dizer que o próprio modus faciendi não possa ser estudado com uma perspectiva crítica – existe uma tradição de grande exigência no sentido da defesa dos Direitos Humanos em Portugal que importa preservar seguindo as traves mestras do Direito Internacional.

15 Em Portugal pode falar ‑se em Direitos Económicos, Sociais e Culturais, na medida em que embora exista uma importante minoria, não existem oposições de cariz cultural entre a maioria e a minoria que sejam de índole a produzir um conflito. Sobre este aspecto, importante para alguns países europeus, dos direitos culturais, foi de grande interesse a intervenção da Senhora Rina Kionka no 9.º Fórum das ONG’s sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no Palácio Foz em Lisboa, em 6 e 7 de Dezembro de 2007.

16 É sempre bom proceder à redacção de textos que possam ficar, pelo que a introdução da consideração do elemento racial do crime como agravante geral seria bem vinda. Ponto é que em termos de técnica legis‑lativa e de economia do artigo 71.º do Código Penal a introdução seja bem feita. Uma formação adequada dos Magistrados, inserida na formação permanente do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) pode ajudar para compensar a falta de agravante geral em caso de crime em que um dos elementos da culpa seja uma motivação associada ao racismo e à discriminação.

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78 Em 1999, na sequência de um debate cheio de êxito do Relatório de aplicação da

CERD em Portugal, o Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas de então

resolveu anuir à sugestão então formulada pelo CERD, de se introduzir um mecanismo

de queixa diante dele, CERD, por discriminação racial. O mecanismo de queixa é o

seguinte: depois de esgotados os recursos internos (e também argumentativamente

para se dar ao Estado português uma oportunidade, por via da sua Justiça, de se pro‑

nunciar sobre o problema), o particular lesado que não obteve vencimento, pode

queixar ‑se ao Comité ERD.

Em 1999 foram feitos informações e pareceres e o conjunto de peças foi enviado

ao MNE, o qual apresentou a comunicação de aceitação por parte de Portugal, do

mecanismo de queixa do artigo 14.º17. Portugal está internacionalmente vinculado18.

E internamente? A CERD foi aprovada para adesão pela Assembleia da República (AR)

em 198219. Qualquer modificação à CERD no plano interno português deveria seguir

o mesmo caminho20. Aqui há uma modificação à CERD na vinculação do Estado por‑

tuguês. Mas o procedimento formal ora evocado não foi seguido. A pergunta do obser‑

vador é a seguinte: porque é que ainda não estão presentes queixas contra Portugal

diante do Comité ERD por violação de uma disposição da CERD?21

Verifica ‑se a necessidade de o Governo proceder à entrega do processo à AR para

aprovação para adesão do mecanismo do artigo 14.º CERD22. Seguramente, diante da

importância da questão, pelo número de pareceres e de peças que salientam, mor‑

mente no plano internacional, a utilidade deste mecanismo, e pelo empenho que

Portugal tem verdadeiramente demonstrado em promover uma sociedade multicul‑

tural dentro das suas fronteiras, que a AR aprovaria para adesão o mecanismo de

queixa do artigo 14.º.

17 Ver aviso do MNE n.º 95/2001, do MNE, no Diário da República I.ª Série de 24 de Agosto de 2001.18 Se não o estiver internamente, é internacionalmente responsável. Quais as consequências dessa responsa‑

bilidade? Neste caso, provavelmente nenhumas, apenas uma advertência do Comité no sentido de reparar

a situação. 19 Lei n.º 7/82 de 29 de Abril.20 Ver o Parecer da PGR n.º 37/1990 de 28 de Junho sobre a questão. Pode ser consultado em www.dgsi.pt. 21 Não será certamente apenas porque existem muitos meios em Portugal, que efectivamente existem, ou por‑

que ainda não terá passado o tempo suficiente para existirem queixas… 22 E o mesmo quanto ao financiamento do Comité ERD, relativamente ao qual – emendas ao artigo 8.º – o

Comité vem pedindo que as contribuições dos Estados se façam para o orçamento das Nações Unidas, o

que não parece trazer mais despesa para Portugal. Foi feita a promessa ao Comité pelo ACIME em 1999,

seguiram os pareceres para o MNE. Neste caso, não houve sequer entrega de uma declaração pelo MNE

ao Comité ERD, o que é patente pela falta de publicação de aviso no DR.

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79Direitos económicos, sociais e culturais

Mecanismos de queixa

Neste domínio, a descoberta de possíveis modificações do Direito, quer constitucional

quer ordinário, a existirem, exigiria um escrutínio apurado, resultante do trabalho dos

vários intervenientes no que respeita aos chamados Direitos económicos, sociais e

culturais, como o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, com os seus peritos e os

seus técnicos, que têm negociado a ratificação por parte de Portugal, da Carta Social

Europeia Revista, e que, agora, com justiça, propõem, em paralelo ao mecanismo de

reclamações colectivas da Carta Social Europeia Revista, um Protocolo introduzindo

um mecanismo de queixa individual23. O mesmo esforço está a ser envidado no plano

dos direitos económicos, sociais e culturais das Nações Unidas, que já chegaram a

elaborar um projecto de Protocolo ao Pacto Internacional relativo aos Direitos econó‑

micos, sociais e culturais das Nações Unidas.

O mecanismo de queixa é simples e rapidamente perceptível24: para um conjunto

de direitos de dimensão económica, social e cultural, contemplados na CSERevista ou

no PIDESC, e dentro de uma medida de concretização legislativa e prática, efectiva, no

interior do Estado25, passa a poder o cidadão queixar ‑se se a Administração não cum‑

prir o direito daquele que corresponde a um dever desta26. Como sempre, estamos

diante de um mecanismo de queixa, por isso será sempre necessário o prévio esgota‑

mento dos recursos argumentativos e judiciais internos. Neste plano, as modificações

que a Ordem internacional determina não levantam dificuldades. Apenas a Administração

não se poderá mais escusar a cumprir o direito do cidadão, argumentando que este

direito corresponde a um programa que não está ainda consolidado e cuja medida de

concretização está na sua discricionariedade, quando haja concretização legislativa do

direito.

23 Assim a Senhora Dra. Josefina Leitão, no Seminário sobre a Carta Social Europeia organizado pelo Secretariado

da Carta Social Europeia e pela Direcção ‑Geral dos Direitos Humanos – DG II do Conselho da Europa e

pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social; que teve lugar em Lisboa, em 8 de Janeiro de 2008,

no Auditório CITEFORMA.24 Quem tiver um conhecimento mediano do mecanismo de queixa da CEDH ou do Protocolo Facultativo ao

Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos entra rapidamente no funcionamento da proposta

de Protocolo ao PIDESC25 Esta medida corresponde à “margem de apreciação dos Estados” que a estes é reconhecida na medida da

concretização dos direitos pela CEDH e constantemente afirmada pelo TEDH.26 E que resulta da elaboração legislativa do Estado ao reconhecer este ou aquele direito subjectivo, no quadro,

por exemplo da Segurança Social.

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80 Aos defensores do equilíbrio orçamental e da luta contra a despesa se pode opor

com sucesso que, existindo cobertura legislativa, a cobertura financeira foi assumida

previamente pelo legislador, ou este legislou mal, e que, por conseguinte, não se veri‑

fica uma geração anormal ou excessiva da despesa.

Distinção entre direitos programáticos e não programáticos na Constituição e

programa constitucional

Onde a questão dos direitos económicos, sociais e culturais é sintomática, é no fim da

distinção entre direitos programáticos e não programáticos na Constituição. Com isto

não creio estar a escrever uma ousadia ou a fazer política.

A Declaração e o Programa de Acção de Viena de 199327, ao afirmarem como

pressuposto do Direito internacional que os Direitos Humanos são universais, inter‑

dependentes e indivisíveis, vem acabar com a distinção que se vinha fazendo e era

resultante dos tempos da Guerra Fria entre direitos civis e políticos e direitos econó‑

micos, sociais e culturais28.

Isto deve ter as suas consequências nas repartições de direitos programáticos e não

programáticos e nas várias distinções que se vinham fazendo na C.R.P.. O pressuposto

“não programático – programático” da C.R.P. cederá o lugar ao princípio “universali‑

dade, interdependência e indivisibilidade” dos direitos.

Implicará isto uma reforma profunda da C.R.P. em que todos tenhamos que traba‑

lhar, dias e noites durante os anos de uma Revisão Constitucional esperada e liberta‑

dora? Não. Uma Revisão Constitucional que se faça neste sentido não é libertadora,

pois está concretizado em Portugal um elevado grau de liberdade política e económica

e um elevado grau de protecção social que importa não perder. Ao operar uma revisão

da C.R.P. neste domínio, há que manter o nível de liberdade política e económica, bem

como o nível de protecção social que até hoje desde o texto da C.R.P. de 1976, e com

as sete revisões em que já vamos, se logrou alcançar, ou então, não vale a pena rever

nada. A revisão constitucional pode ser esperada, mas não é vital, por outro lado,

Portugal, já vive muito bem como está.

27 Para o texto, cfr. “Relatório português sobre a aplicação da Declaração e Programa de Acção de Viena” –

separata ao Boletim Documentação e Direito Comparado, BDDC 1999, n.º 77/78, pág. 261. A DPAV foi

adoptada por consenso na própria Conferência de Viena de 1993. No domínio das Nações Unidas foi

assumida pela Resolução n.º 48/121 da Assembleia ‑Geral.28 Isto já era evidente quando em Direito Privado, não se conseguia vislumbrar a autonomia dogmática do

Direito Comercial relativamente ao Direito Civil e não se conseguia vislumbrar também, a autonomia

dogmática do Direito do Trabalho, relativamente ao Direito Civil.

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81Que tenhamos que trabalhar dias e noites durante anos para esta Revisão? Também

não, nem nos devemos deitar tarde por ela! Devemos simplesmente pensar todos se

queremos a Revisão e, se não a quisermos, não a devemos fazer: tem de haver consen‑

so nacional para todas estas questões.

E temos de saber o que queremos rever. Falamos em direitos programáticos e não

programáticos e no fim desta distinção por força do verdadeiro pressuposto dos direi‑

tos fundamentais e de todo o Ordenamento, a universalidade, a interdependência e a

indivisibilidade. O que é que isto implica em termos de revisão constitucional?

Os direitos estão bem definidos na C.R.P.. Há mais de trinta anos de C.R.P. e de

trabalho sobre os seus direitos, as suas noções. Houve querelas mortais, intervenções

fortes e silêncios assassinos na discrição dos gabinetes de juristas e de políticos.

Transformaram ‑se divergências doutrinais em dramas políticos… Todos sofreram e

quando se volta a falar nestas questões, em todos vem um enjoo comum acerca delas.

Uma velha náusea que nos é, a todos, familiar.

Quais os direitos, os textos constitucionais a modificar, pois? Os direitos estão

demasiado bem definidos, demasiado finamente trabalhados para serem, sem mais,

modificados. A única coisa que importa fazer não é diminui ‑los. Importa reforçá ‑los.

A lição da universalidade, interdependência, indivisibilidade, ao dar ‑lhes exigibilidade,

não milita no sentido do seu enfraquecimento. Antes, vai no sentido do seu reforço.

Então, não há nada a modificar?

Apesar de tudo, pode haver. O texto do artigo 17.º da C.R.P. relativo ao regime dos

Direitos, Liberdades e Garantias. Há direitos mais direitos que outros? A mim parece‑me

que não. A Declaração e o Programa de Acção de Viena reforçam esta ideia. Um proto‑

colo facultativo à CSE Revista e outro ao PIDESC confirmam ‑me nesta pista.

Se houver consenso, será, quanto a mim, de substituir o actual texto do artigo 17.º

da C.R.P. pelo seguinte, sem comentários adicionais:

“Os direitos fundamentais são universais, indivisíveis e interdependentes”.

Depois seguirá o texto constitucional sem emendas, nem sequer quanto aos capí‑

tulos, apenas com uma ou outra alteração pontual como o sugerimos com os artigos

relativos à prisão preventiva, mas não alterações que possam ir no sentido de diminuir

a protecção constitucional dos direitos hoje alcançada.

Programa Constitucional

Mesmo se se pretender manter o texto constitucional, o que é perfeitamente factível e

admissível, na medida em que, se a distinção “programático ‑não programático”, no

plano dos direitos, é obsoleta, o que é necessário é existir um consenso nacional sobre

o que há para fazer ou não – e até será pouco.

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82 E mesmo se a distinção “programático – não programático” é obsoleta, uma coisa

que não se confunde com ela, não é de todo obsoleta, antes sendo de extrema actua‑

lidade e importância: o programa constitucional assumido formalmente desde 1976,

na C.R.P. e por esta, de melhoria constante das condições de vida dos cidadãos.

E esse programa tem sido relativamente cumprido, com altos e baixos, ao longo

dos nossos mais de trinta anos de C.R.P.. Este programa não está de modo algum desac‑

tualizado: a melhoria significativa das condições de vida dos cidadãos portugueses que

se vem registando desde a adopção da C.R.P. de 1976 está bem documentada, nomea‑

damente nos I, II e III Relatórios de Portugal, de aplicação do PIDESC29 e mede ‑se por

situações de maior conforto dos cidadãos portugueses no interior do país para além

dos cidadãos das faixas litorais e dos grandes aglomerados urbanos, pese embora o

muito que há ainda por fazer.

Este programa, num quadro de imposição de políticas orçamentais excessivamen‑

te rigorosas e de um juro alto para uma moeda que não corresponde à riqueza real do

cidadão português30, enquanto a distinção das normas programáticas ou não pode cair,

deve manter ‑se e procurar cumprir ‑se pois representa a estreita defesa das condições

de vida do cidadão português numa governação económica em que já não existe a

possibilidade de um desvio ou de um aliviar do esforço do cidadão, em que a “mar‑

gem de relevância”31 de Portugal é cada vez mais estreita e em que o nosso país não

dispõe de qualquer possibilidade de decisão, ou até, de negociação.32NE

29 Vejam ‑se os documentos sob as cotas E/1980/6/Add.35/Ver.1; E/1990/6/Add.6 e E/1994/104/Add.20,

nomeadamente na página do GDDC em http://www.gddc.pt/direitos ‑humanos/portugal ‑dh/portugal‑

‑relatorios.html#fa. 30 Ainda que esta moeda para Portugal seja necessária pelas razões que foram expostas no trabalho referido

anteriormente, relativo à “Sustentabilidade, (à) integração e (à) independência de Portugal”.31 Cfr. O título da obra de Raul Lopes Mateus, “A difícil tranquilidade do Euro, a margem estreita da rele‑

vância”.32 O programa constitucional não tem de ser desmontado por razões orçamentais, nomeadamente. Eventual‑

mente uma adaptação orçamental poderia ser mais lenta embora seja indispensável: é que o que for des‑

feito agora não será mais refeito no futuro. Aquilo que existe, mesmo se hoje há a consciência aguda de

que nada está adquirido, precisamente por esta consciência, não tem de ser desfeito. A assunção do novo

destino que o Euro implica não tem de significar a assunção da miséria para quem vive e trabalha em

Portugal. No contexto de sombria crise em que acabámos de entrar, a eficiência económica hoje neces‑

sária para enfrentar as dificuldades, outrora afirmada para gerar riqueza, não afasta estas considerações:

a consciência da necessidade da defesa dos Direitos Humanos é mais premente que nunca desde a sua

formulação hodierna que remonta a 1949 com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

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83La gestión de conflictos en la Comunidad Iberoamericana

Rafael Marcos Aranda*

Introducción la propuesta de impulsar el debate sobre la gestión de conflictos como tema

central de la Comunidad iberoamericana se basa en un análisis cercano de la

situación actual de la Secretaria General Iberoamericana, comprometida con la

mejora de las condiciones de vida en los países Iberoamericanos.

La necesidad ante las crecientes situaciones de tensión, que se han vivido y se

están viviendo en el contexto Iberoamericano, hacen necesaria la creación de un área

especializada de Gestión de Conflictos en el seno de la SEGIB.

La prevención y resolución de conflictos como respuesta en el mundo pos ‑Guerra Fría A partir

de inicios de los años 90, los actores de la sociedad internacional han buscado

formular y definir respuestas innovadoras frente a los cambios en el sistema

político mundial tras la caída del muro de Berlín. Estas propuestas han tomado en

especial consideración los nuevos riesgos de una situación global y específicamente,

de un contexto de los países iberoamericanos, que no ha conseguido el nivel de

estabilidad política, económica y social proclamada por el optimismo de los

primeros años tras la finalización de la Guerra Fría.

Los enormes costes, tanto materiales como en sufrimiento humano, de los

conflictos ‑genocidios en América Latina llevaron a un profundo proceso de orientaci‑

ón hacia la prevención, promovido sobre todo por el entonces Secretario General de

las Naciones Unidas Boutros Boutros ‑Ghali (“Agenda para la Paz – Diplomacia preven‑

tiva”).

En cuanto al nivel iberoamericano, ha ido ganando fuerza la perspectiva de pre-

vención y gestión de conflictos, construcción de la paz y tras los atentados del 11 de

septiembre de 2001 en Nueva York y del 11 de marzo de 2004 en Madrid, la preocu‑

pación por la seguridad.

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* Professor de Gestão de Conflitos e Negociação Diplomática, na Escola Diplomática de Espanha. Professor de negociação do III e IV Curso de Especialização de Jovens Diplomatas Iberoamericanos.

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84 Este proceso reflexivo se encuentra estrechamente vinculado con el debate, con

enfoque principal en América Latina, sobre la interrelación entre la democracia y el

desarrollo socioeconómico, fruto de la simultaneidad de las transiciones democráti‑

cas (la “tercera ola de democratizaciones”) y el cambio casi generalizado del modelo

de desarrollo económico aplicado en el último cuarto del siglo XX.

En este sentido, la comunidad iberoamericana ha conocido la creciente introduc-

ción de factores políticos como ejes estratégicos de la lucha contra la pobreza y el

impulso al desarrollo humano sostenible. En la esfera internacional, esto se ha plasma‑

do, por ejemplo, en las cláusulas democráticas y el concepto de “good governance” del

Banco Mundial, pero también, concretamente, en una reasignación de la Ayuda Oficial

al Desarrollo mundial a intervenciones dirigidas al fortalecimiento de la democracia,

la promoción de los Derechos Humanos, las reformas del sistema judicial y de segu-

ridad, el fortalecimiento y la participación de la sociedad civil, la descentralización

regional y municipal, el fomento del desarrollo local, etc.

La gestión de conflictos se debe englobar en esta reorientación estratégica en la

medida en que busca reaccionar de forma proactiva al contexto internacional radical‑

mente cambiado tras el fin de la Guerra Fría. Frente a la persistencia y el aumento de

guerras civiles atroces, “limpiezas étnicas” y en general, conflictos internos violentos

(latentes o activos) en todas las regiones del mundo, y especialmente en América

Latina. La propia Secretaría General Iberoamericana podría consolidar diferentes foros

y formar actores a nivel regional elaborando una serie modelos de interconexión

entre: prevención de conflictos, paz y desarrollo.

Aspectos clave de la interrelación entre paz, conflicto y desarrollo humano La promoción de

una Cultura de Paz, o la construcción de la paz, como aspecto implícito del desarrollo

y objetivo de la cooperación entre los países de la comunidad iberoamericana tiene

su fundamento en la convicción de que la paz es una condición “sine que non” para

el desarrollo sostenible. En otras palabras, los conflictos violentos de cualquier

naturaleza causan un enorme retroceso en los progresos humanos alcanzados

anteriormente que, en muchos casos, no se pueden recuperar. Siendo un conflicto

anterior un enorme obstáculo para el futuro desarrollo. Además, los enfrentamientos

violentos afectan con especial gravedad a los grupos más vulnerables (mujeres,

niños, jóvenes).

Es de destacar que la paz se entiende, en términos del desarrollo humano, como

un entorno de estabilidad estructural, es decir, una paz positiva. Estos conceptos, con

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85profundas raíces en el continente europeo, abarcan las capacidades de las sociedades

de gestionar los conflictos de forma no violenta, es decir, negociada y consensuada

dentro de un sistema de gestión del conflicto establecido y consolidado.

Como condicionantes políticos e institucionales, la gestión de conflictos aspira a

fomentar y consolidar:

– la Democracia como sistema legítimo, dinámico y representativo

– el Estado de Derecho

– las instituciones públicas con suficiente legitimidad y credibilidad

– la sociedad civil como “portavoz de la paz” (“diplomacia ciudadana”)

– los procesos participativos, incluida la descentralización

– la rendición de cuentas (accountability)

– el respeto de los Derechos Humanos

– sistemas de seguridad reformados

– supervisión y control civiles de las fuerzas de seguridad

Componentes e intereses políticos La definición de este nuevo concepto surge en un

doloroso análisis de las lecciones aprendidas, de los esfuerzos de la comunidad

internacional por mitigar los efectos desastrosos de la escalada de conflictos internos,

que se encendieron una vez desparecido el Telón de Acero. Cabe mencionar que

una parte considerable de la fortaleza que ha adquirido la prevención y gestión de

conflictos, se basa en el enlighted selfinterest de algunos Estados.

En un primer momento, las catástrofes humanitarias causadas por conflictos inter‑

nos absorbieron una creciente parte de la AOD global y encadenaron importantes

flujos de refugiados hacia los países con más estabilidad política y económica. Desde

mediados de los años 90, se percibe además con mayor nitidez, la necesidad de desar‑

rollar e implementar nuevos conceptos de seguridad mundial frente a los desafíos de

las atrocidades acometidos en vastas regiones del mundo. Algunos Gobiernos europeos

(Alemania, Francia y los países escandinavos, entre otros) entienden la cooperación

como una herramienta estratégica de la prevención de conflictos, incluidos aquellos

conflictos que podrían afectar directamente la seguridad de sus respectivas sociedades.

Sin duda, esta tesis ha alcanzado aún más fundamento con la creciente irrupción del

terrorismo en el orden mundial actual.

Estos dos aspectos, que aquí se han destacado entre una serie de puntos críticos,

demuestran la enorme necesidad de crear foros y marcos estables de debate e inter-

cambio entre los expertos de diferentes ramas relacionados con la prevención de con‑

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86 flictos. Para la Comunidad Iberoamericana, sin duda representa tanto un enorme

desafío como una oportunidad histórica, ya que podría incidir proactivamente en las

bases fundamentales de progreso humano a largo plazo, superando así también la

perspectiva convencional de las intervenciones temporales. Asimismo, existe un con-

siderable potencial para los actores de la cooperación internacional de gestionar

aspectos de enorme complejidad en los países iberoamericanos, donde sin duda cuen‑

tan con una ventaja comparativa por su cercanía a las estructuras locales. No obstan‑

te, para poder aprovechar este potencial, será imprescindible perder el temor ante unos

cambios supuestamente radicales y entender el debate como una aportación fructífe-

ra a la mejora de los mecanismos existentes actualmente.

Prevención y gestión de conflictos en Iberoamérica Iberoamérica está marcada por una alta

y creciente incidencia de violencia que se puede definir como conflictos internos

de baja intensidad con un potencial apreciable de aumento de las actitudes violentas,

tanto internas como hacia los países vecinos.

Habiendo perdido el valor estratégico para los EE.UU. en la lucha contra el

comunismo (reemplazado en parte por la lucha contra el narcotráfico), representa

una región de riesgo en cuanto al impacto destructivo de conflictos violentos en

su desarrollo humano. Ello se refiere principalmente a la violencia social y criminal

a la que se responde desde las instituciones públicas con medidas represivas y recor‑

tes en las libertades civiles. En resumen, ofrece un cuadro de conflicto potencial,

por lo que se debería optar por una prevención temprana de mayores dimensiones

de conflictividad.

En cuanto a la vulnerabilidad de Iberoamérica frente a los conflictos, se pueden

mencionar las siguientes características principales interrelacionadas entre sí:

– Un legado de violencia tras la finalización de las guerras civiles y sub regionales

como campo de batalla secundario en el enfrentamiento ideológico.

– Considerable crispación ideológica de los partidos políticos con grupos

enfrentados en conflictos internos.

– Sistemas democráticos frágiles (institucionalización, Estado de Derecho,

rendición de cuentas, etc.).

– Cierta limitación de la representatividad y legitimidad del sistema político.

– Retrasos en los procesos participativos de la sociedad civil.

– Escasa preparación y formación de las fuerzas de seguridad oficiales.

– Expansión acelerada y descontrolada del sector privado de seguridad.

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87– Disponibilidad y presencia excesiva de armas ligeras.

– Incidencia considerable del narcotráfico en las relaciones sociales y

económicas.

– Presencia apreciable del crimen organizado alrededor de los secuestros y el

tráfico ilícito de armas, personas, órganos, etc.

– Conflicto de baja intensidad entre jóvenes.

– Enormes disparidades socioeconómicas, en línea de diferencias étnicas.

– Procesos importantes de degradación del medio ambiente y de los recursos

naturales (agua potable, tierras de cultivo, ecosistemas, biodiversidad, etc.).

Por ello y en consonancia con el Programa de Naciones Unidas para el Desarrollo

se considera que Iberoamérica necesita, además de los programas y proyectos conven‑

cionales, un impulso en la creación y la consolidación de una Cultura de Paz, para

poder socavar las raíces de los conflictos potenciales de forma preventiva. De hecho,

existe además una enorme necesidad en mecanismos de gestión y negociación de

conflictos frente al cada vez más patente estallido de la violencia en la sociedad.

No cabe duda de que, para alcanzar un mayor nivel de seguridad humana y redu‑

cir el riesgo colectivo, se tendrán que promover especialmente las capacidades locales

de gestionar las tensiones y conflictos de forma no violenta para lograr el fortaleci‑

miento de unas sociedades pacíficas, aspecto para el que en la mayoría de los países y

representantes de los Gobiernos existe un consenso apreciable.

Conclusión La presente propuesta pretende generar una oportunidad para que los actores

iberoamericanos, especialmente desde la Secretaría General Iberoamericana se

puedan analizar conflictos, debatir opciones, intercambiar opiniones y elaborar

respuestas concretas en torno a la prevención y gestión de conflictos en una región

en la que mantenemos amplios y profundos lazos.

Un enfoque regional sobre la prevención y la gestión de conflictos abrirá un pri-

mer espacio estable para la discusión y la aplicación de los conceptos teóricos,

haciendo así manejable la propia complejidad iberoamericana, que se ha descrito de

forma sucinta en estas páginas.

La consolidación de un Área de Gestión de Conflictos en el seno de la propia

Secretaria General Iberoamericana, la creación de equipos de trabajo, como también

las publicaciones temáticas que recojan los resultados de estos esfuerzos, permitiría un

importante impulso estratégico del debate sobre la vinculación entre conflictos y

desarrollo y su prevención en la Comunidad Iberoamericana de Naciones.NE

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89Contributos para o Estudo da Política Externa Portuguesa

no Contexto do Brasil Pombalino – O Directório

dos Índios do Pará e Maranhão

Duarte Nuno Gonçalves Jorge Pinto da Rocha*

NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 p. 89-140

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n Abstract:

Indigenous Brazilians’ legal statute and their freedom was the driver for relevant and

endless political, social and economical clashes in colonial Brazil. Missionaries, mainly

Jesuits, colonists and colonial authorities were the main actors of this confrontation

directly linked to the key role of native Brazilians as manpower to the Portuguese

entrepreneurs and the Portuguese colonization of the south Atlantic new found land.

With the aim of strengthening their action towards indigenous Brazilians and protect

them from colonists’ attacks in search of manpower, Jesuits adopted a strategy consist‑

ing of assembling Christianized “Indios” in settlements where Europeans were not

allowed to enter, therefore conducting them to settle as a way of reshaping their mate‑

rial and spiritual background while also disengaging them from their traditional social

organization and way of life. This main trend and the inevitable clashes with colonists,

colonial authorities and, at times, with metropolitan policy reached a climax during

the eighteenth century. The enlightenment background of the century, as well as the

political centralization, material modernization and secularization of Portugal in those

days, personified by the Marquis of Pombal, led to a final clash between two civic and

spiritual orders, apparently unable to live together. That clash is directly linked with

the overall background of Portuguese foreign relations, mainly with Spain and the

Vatican, while evolving on an integrated framework of international competition and

colonial rule relevant to Portuguese geopolitical affirmation and foreign relations. The

“Directorio dos Índios” is one of the most remarkable legal instruments of the political

authorities in Lisbon in order to reshape society and the indigenous peoples legal stat‑

ute in colonial Brazil, by which we can envisage a larger scope made of tensions and

different approaches and world views as well as different proposals to society buildup

and different, if not conflicting, conceptions of Mankind.

* Secretário de Embaixada. Trabalho final do Curso de Política Externa Nacional 2006 ‑2007, sob a orientação do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão.

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90 Prólogo a questão iNdígeNa foi um dos vectores principais e primordiais em face da presença

portuguesa no Brasil. A questão da liberdade dos Índios foi motivo de intermináveis

embates políticos na colónia e no Reino, envolvendo especialmente três grupos: os

missionários (predominantemente jesuítas), os colonos e as autoridades coloniais. A

causa de tal disputa relacionava ‑se directamente com a importância fundamental da

mão ‑de ‑obra indígena no processo de colonização. Numa fase inicial a angariação

de mão ‑de ‑obra consistia, maioritariamente, nos prisioneiros de guerra capturados

pelos aliados ou de sortidas em embarcações realizadas pelos próprios colonos. No

entanto, em algumas capitanias, como a Baía, em que se verificara o sucesso da

economia da cultura sacarina, estas modalidades iniciais de apropriação do trabalho

indígena deixaram de satisfazer as necessidades do aparelho produtivo. Assim, os

colonos começaram a proceder à escravização dos Índios dando origem a numerosas

revoltas. A tensão em torno da questão da liberdade dos Índios adensa ‑se com a

implantação do Governo ‑Geral, coincidindo com a chegada ao território brasílico

dos primeiros jesuítas. Por acção destes (junto da Coroa, do Governo ‑Geral e demais

autoridades civis e religiosas, no Reino e no Brasil, bem como junto dos colonos)

vai sendo gradualmente limitado o espaço de manobra dos arregimentadores dos

autóctones. Com efeito, a partir de meados do século a utilização compulsiva da

mão ‑de ‑obra indígena vai sendo progressivamente restringida àqueles que tivessem

sido capturados no âmbito de guerra considerada justa.1 Os graves acontecimentos

que marcaram a colónia nos finais da década de cinquenta, inícios de sessenta da

centúria de quinhentos,2 trouxeram para a ordem do dia o problema da política

1 A guerra justa foi o principal caso reconhecido de escravização legal de indígenas. Sendo um conceito jurí‑

dico criado pelo direito romano, a sua aplicação pelos povos peninsulares data da época de luta contra

os muçulmanos, sendo objecto de muita discussão a partir do século XVI, quando é pretendida a sua

aplicabilidade a populações que, não tendo conhecimento prévio de fé, não podiam ser encarados nem

tratados como infiéis. Nesta fase da questão indígena é fundamental para a reflexão teológico ‑jurídica

relativa à empresa colonial ibérica e, nomeadamente, à noção de guerra justa, a reflexão desenvolvida pela

escola jurídica de Salamanca, particularmente a obra de Francisco de Vitória. Eram causas tradicionais de

reconhecimento da justeza de uma guerra a recusa da conversão ou impedimento da propagação da fé,

o desenvolvimento de hostilidades contra colonos (especialmente pregadores), bem como contra aliados

dos Portugueses e ainda a quebra de pactos celebrados. Álvaro Pais definia ainda como causas para a decla‑

ração de guerra justa a preexistência de uma injustiça do adversário, as boas intenções do partido cristão

e a declaração por uma autoridade competente (temporal ou espiritual). Eram ainda invocadas a salvação

das almas e a prática da antropofagia pelas populações ameríndias (essencialmente como agravante).2 A revolta dos Caetés em Pernambuco no ano de 1555, a execução para fins antropofágicos dos náufragos da

nau Nossa Senhora da Ajuda e os dois grandes surtos epidémicos de varíola na Baía em 1562 ‑1563.

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91a adoptar quanto aos indígenas. A Junta reunida para analisar a questão (em que

participavam, nomeadamente, o governador ‑geral, bispo e ouvidor ‑geral) decretou,

em 30 de Julho de 1556, um conjunto de medidas destinadas a assegurar a segurança

dos nativos que viviam nos aldeamentos tutelados por jesuítas, colocar sob a alçada

do ouvidor ‑mor a resolução dos conflitos relativos a fugitivos que buscavam refúgio

nos aldeamentos inacianos, a promoção da libertação dos indígenas ilegalmente

cativados, a instituição do cargo de procurador dos Índios e de um meirinho

indígena por aldeamento. Em contrapartida, era assegurado aos colonos o trabalho

temporário dos índios contra pagamento de um salário. É na sequência deste processo

(e, particularmente, dos decretos produzidos pela Junta a que nos referimos) que

surge v.g. a Lei de 20 de Março de 1570. Com efeito, a Coroa buscava encontrar uma

solução de compromisso que atendesse às diversas correntes e interesses em jogo.

O legislador definia como únicas situações em que era possível a escravização dos

Índios os casos de prisioneiros resultantes de guerra justa decretada pelo soberano ou

pelo governador, em virtude de combaterem ou devorarem Portugueses, bem como

Índios aliados ou escravos.3 Determinava ainda a libertação de todos os cativos cujos

proprietários não possuíssem título regular, interditando, igualmente, a aquisição

dos Índios de corda.4 Por último, estabelecia a obrigatoriedade do registo dos novos

escravos nas Provedorias da Fazenda no prazo de dois meses, sob pena de cessação

do direito de propriedade sobre o nativo. Na prática, a promulgação desta lei

motivou preocupação e viva reacção junto dos colonos que enviaram representações

ao monarca solicitando, especialmente, a revogação da claúsula relativa ao resgate

de índios. Argumento, a escassez de mão ‑de ‑obra que poderia conduzir à ruína a

economia (e com ela todo o processo de colonização brasílica). A lei a que nos

referimos, à semelhança da maioria das disposições da Coroa nesta questão, traduzia

a sua preocupação na procura de uma solução de compromisso, compatibilizadora

das pretensões dos jesuítas à protecção dos seus neófitos, das agudas necessidades

de mão ‑de ‑obra (especialmente por parte dos senhores de engenho), bem como

da necessidade de amenizar a intensidade das razias provocadas pela pressão dos

3 Como compatíveis com a verificação destes critérios são, desde logo, indicados os Aimorés.4 Os índios de corda eram aqueles capturados por tabas inimigas e destinados ao sacrifício cerimonial (também

alimentar...) antropofágico. A justificação para a licitude do resgate destes prisioneiros baseava ‑se na

argumentação de que desse modo se salvava a vida do condenado e, assim, pela sua conversão, a salvação

da alma.

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92 colonos sobre os indígenas para obtenção de mão ‑de ‑obra, na medida em que

poderiam exacerbar a rebeldia e resistência das populações nativas ao ponto de fazer

perigar a segurança da colónia.5

Com o objectivo de conferir eficácia à sua actuação junto das populações indí‑

genas e de as proteger das investidas dos colonos em busca de mão ‑de ‑obra, os

jesuítas optaram por reunir os Índios cristianizados em aldeamentos onde não era

permitida a presença de europeus, forçando ‑os à sedentarização como forma de os

enquadrar material e espiritualmente, desarticulando, também assim, o seu modo de

organização social e de subsistência. Com vista a este último aspecto, requereram à

Coroa a concessão de sesmarias. Este conjunto de mutações económico ‑sociais no

5 Quanto ao objecto é possível distinguir duas categorias fundamentais entre a muita legislação relativa aos

Índios do Brasil. Assim, a relativa ao tratamento a prestar aos Índios aldeados e aliados dos Portugueses

e, por outro, o relativo aos Índios inimigos. Aos inseridos na primeira categoria é desde o início da colo‑

nização garantida a liberdade. Aldeados são legalmente senhores das suas terras, constituindo a reserva

de mão ‑de ‑obra da colónia. Podiam ser legalmente contratados mediante salário pelos moradores ou

requisitados pela Coroa. Assim se estabelecia na lei de 1587, alvará de 1596, lei de 1611, no regimento

do governador do Grão Pará e Maranhão de 1655 e no Directório de 1757 que analisaremos. Os Índios

aldeados constituíam deste modo e, desde o início da colonização,o grosso das tropas de guerra para a

defesa da colónia, bem como das tropas de resgate e descimentos. A administração das aldeias foi um dos

pontos móveis deste ordenamento, já que dela foram inicialmente encarregados, com exclusividade, os

missionários jesuítas, vindo a passar alternadamente para moradores, para os jesuítas conjuntamente com

chefes indígenas, outras ordens de missionários e, de modo definitivo, para as mãos de administradores

leigos, como instituído pelo regimento que nos propomos analisar. Aos Índios que não se quisessem

aldear era facultada permissão para permanecerem nas suas terras, especialmente quando ocupavam regi‑

ões fronteiriças constituindo, assim, uma primeira linha de defesa. A liberdade dos Índios aldeados foi

frequentemente violada pelos moradores que utilizavam toda a espécie de subterfúgios para mantê ‑los

nas suas propriedades como escravos apesar da existência (e pretensa actividade isenta) do procurador dos

Índios, instituído desde o alvará de 1596. Já a escravidão era o destino corrente dos Índios prisioneiros

de guerra, contanto que reconhecida como justa. De igual forma, os Índios cativos de guerra entre as

populações ameríndias, neste caso obtidos por resgate. Uma última hipótese legalmente formulada (mas

menos frequentemente e com restrições variáveis ao longo do tempo), a da venda de si mesmos ou de

seus filhos pressionados pela miséria. As leis eram ainda (e sobretudo) violadas, levando à escravização de

povoações inteiras, com recurso ao pretexto de proteger a colónia dos ataques de povos indígenas inimi‑

gos. As tropas de resgate escravizavam indiscriminadamente. Estes abusos dos colonos (e nas dimensões

em que foram praticados) contrariavam o projecto político da Coroa de vassalagem dos povos indígenas,

atinente a assegurar a segurança territorial da colónia. Neste sentido, foram sendo limitadas as possibili‑

dades de declaração de guerra e chegou a declarar ‑se a liberdade de todos os indígenas brasileiros, sem

excepção, pelas Leis de 1609, 1680 e 1755 (esta última na base do Directório cuja análise constitui a fonte

prioritária desta monografia). No entanto, nos dois primeiros casos, a Coroa, pressionada pelas autorida‑

des coloniais e pelos colonos que reclamavam da escassez de mão ‑de ‑obra e pelas constantes hostilidades

praticadas por povos indígenas inimigos que colocavam em risco a sobrevivência da colónia, restaurou as

possibilidades legais de cativeiro por resgate e guerra justa.

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93modo de vida indígena tinha em vista a aplicação do suave jugo de Cristo tido como

propiciador da evangelização dos ameríndios. No mesmo sentido, o seu empenha‑

mento na fundação de colégios, na catequeze geral, baptismo das crianças e sua

educação cristã, conversão dos principais e baptismo dos moribundos. A defesa dos

Índios cristianizados motivou muitos conflitos com os colonos geralmente arbitra‑

dos pela Coroa a favor da posição da Companhia de Jesus. Os confrontos mais graves

ocorreram em Santos e São Paulo, no ano de 1640, devido à publicação do breve

Comisum Nobis de Urbano VIII referente à obrigatoriedade de devolução dos Índios

capturados às missões dos jesuítas espanhóis.

O grande desenvolvimento da actividade dos jesuítas no Norte conduziu à ele‑

vação da Missão do Maranhão à categoria de vice ‑província, abrangendo a área

daquele Estado. No Estado do Maranhão as posições dos inacianos relativamente à

liberdade e administração dos Índios levaram à expulsão da Companhia de Jesus em

1661 e 1684, sendo posteriormente readmitidos por imposição régia. O debate e

conflito quanto à estratégia de evangelização dos aborígenes e administração dos

índios forros fundamentaram, também, conflitos com autoridades régias, clero secu‑

lar e, muito especialmente, outras ordens religiosas como franciscanos e carmelitas.

Um dos aspectos mais importantes para compreender a posição dos indígenas

no Brasil colonial tem que ver com a imagética e valoração do seu modo de organi‑

zação material, social e espiritual que divide, desde cedo, os próprios jesuítas – his‑

toricamente aqueles que são valorados como os seus principais defensores. Neste

sentido, parece ‑nos particularmente relevante a oposição do optimismo da visão

antropológica do indígena presente e.g. nos escritos do padre Manuel da Nóbrega e

o pessimismo antropológico v.g. presente no retrato dos brasis captado pelo padre

Luís da Grã no que era secundado por outros missivistas da Companhia. Esta duali‑

dade (evidentemente também presente externamente aos membros da Companhia

de Jesus) é de fulcral importância na medida em que se relaciona com, por um lado,

a visão edénica do Novo Mundo e do Índio, por outro, com uma valoração do Índio

como sub ‑humano e bárbaro e do Novo Mundo como terra de caos e incivilização.

Mas esta dualidade de leituras do real ganha novo interesse por se tratar de Luís da

Grã e António Vieira, na medida em que catalizaram simultaneamente dois modos

opostos e conflituais de entender e desenvolver a presença jesuítica (e os modos de

a efectivar) no Brasil, com vista à evangelização e defesa da fé. A questão da escrava‑

tura constituiu um dos problemas mais complicados que se colocaram aos jesuítas

desde os primeiros passos dados no processo da sua fixação na Terra de Vera Cruz.

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94 Para evitar a aquisição de mão ‑de ‑obra escrava para cultivar as terras doadas à

Companhia, Manuel da Nóbrega, enquanto primeiro provincial do Brasil, requereu

ao provincial de Portugal que procurasse a materialização do apoio da Coroa à

Companhia no Brasil, não através da concessão de terras, mas de dízimos. Esta posi‑

ção de Nóbrega resultaria já de pressões exercidas pelo padre Luís da Grã para que

os jesuítas não aceitassem terras nem escravos. Com a Coroa a experimentar dificul‑

dades financeiras, os inacianos tiveram que optar entre expandir o ritmo da activi‑

dade missionária (o que implicava grandes disponibilidades materiais e, portanto, a

aceitação de propriedades e escravos) ou recusar esses meios económicos e, conse‑

quentemente, prescindir do objectivo de expansão do seu âmbito de actuação. A

maioria dos jesuítas defendiam a primeira destas estratégias de actuação. O colégio

da Baía decidiu por isso aceitar todas as doações que lhe fossem feitas e requereu o

envio de escravos da Guiné por considerar inconveniente a posse de escravos da terra.

Existiam, portanto, duas correntes entre os jesuítas da província do Brasil. A encabe‑

çada por Manuel da Nóbrega, pragmática, considerando que a expansão da compa‑

nhia tornava necessário possuir bens e utilizar escravos; outra, representada por Luís

da Grã, privilegiando a pobreza e o ascetismo, recusando a possibilidade de a

Companhia aceitar bens de raíz e recorrer à utilização de escravos só aceitando

mesmo a contratação de trabalhadores em caso de grande necessidade. Sucedendo o

padre Luís da Grã no cargo de provincial, a orientação da Companhia foi bastante

modificada, pelo que Nóbrega expôs ao Geral da Companhia as suas divergências

relativas à posse de bens de raíz e uso de escravos. Nessa carta defende um ideal de

independência/auto ‑suficiência económica, nomeadamente face à Coroa, como base

da liberdade da sua actuação evangelizadora e insinua que “...fosse ... grande invenção do

inimigo vestir -se da santa pobreza para impedir a salvação de muitas almas.”6 A persistência de

diferentes pontos de vista manteve ‑se até 1568, data da reunião da congregação

provincial. Aí, foi deliberado que os colégios podiam (e deviam) adquirir os neces‑

sários escravos para seu sustento na falta de outros meios. Em 1576, o mesmo órgão

revogou mesmo a proibição de os jesuítas terem escravos índios. Temos, pois, que,

primeiro, o ideal de defesa do Índio visava primordialmente a sua evangelização e

não quaisquer valores de defesa étnico ‑cultural de um grupo ameaçado – valor que

6 Cfr. COUTO, Jorge O Colégio dos Jesuítas do Recife e o destino do seu património (1759 -1777), vol. I, Dissertação de

Mestrado em História Moderna de Portugal, apresentada pelo Dr. José Jorge da Costa Couto à Faculdade

de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, exemplar policopiado, pp. 221 e 222.

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95seria, no essencial, estranho à cultura e mentalidade coevas – segundo, que os Índios

não eram fundamentalmente considerados como indivíduos plenos (no sentido

jurídico, ético, mesmo afectivo do termo), na medida em que se permite a escravi‑

zação de alguns para custear economicamente a salvação de outros. O objectivo não

é, pois, ao menos prioritariamente, a salvaguarda dos seus direitos e interesses

enquanto indivíduos, ou sequer como grupos, mas sim alcançar a conversão e pos‑

terior manutenção na fé do maior número possível de ameríndios. Também não está

em causa uma defesa intransigente da identidade cultural ou étnica do ameríndio,

na medida em que a redução será o principal agente, numa primeira fase, do estiolar

daquela identidade. Do mesmo modo, o princípio anti ‑esclavagista não está, como

vimos, essencialmente presente enquanto valor ‑chave – o que seria igualmente estra‑

nho aos valores ainda actuantes na generalidade das consciências da época. A funda‑

mentação desta aceitação da escravatura traduziu ‑se na aceitação do parecer da Junta

de Burgos que, em 1511, para facilitar e legitimar a entrada de negros na América

espanhola, adoptara o pressuposto de que todos os africanos traficados já tinham o

estatuto de escravo nos seus países de origem. Opinião contrária professava o jesuíta

Manuel Garcia para quem nenhum escravo de África ou Brasil era justamento cativo,

recusando confessar os seus proprietários, incluindo padres do colégio da Baía.

Idêntica contestação por Gonçalo Leite, originando actos de hostilidade para com a

Companhia e perturbações entre os inacianos. Nos dois casos a solução foi idêntica

– ordem para regressar ao reino por inadaptação. Na resolução desta polémica terá

tido significativo papel a publicação do De Iustitia et iure de Luís de Molina no qual

abordava a problemática da escravatura. A longa convivência da Igreja católica –

desde os seus primeiros momentos – com a escravatura terá contribuído para a sua

legitimação. Mas no plano concreto da situação americana e brasílica, a noção de que

a presença de escravos africanos contribuía para a rarefacção das operações de escra‑

vização dos Índios, a consciência da necessidade vital de importação de mão ‑de ‑obra

escrava para a economia colonial e sobrevivência das actividades de missionação do

Índio (ou da maior parte possível deles) levou a maioria dos jesuítas a aceitar a pre‑

sença de escravos, maioritariamente negros, nos seus estabelecimentos e unidades

produtivas. Ainda neste caso pugnaram por promover a catequização dos negros,

pela criação de normas de conduta dos senhores face aos escravos, suavizantes da sua

situação, e pela defesa dos seus direitos espirituais. Vemos, pois, sempre presente, o

fundamental desígnio espiritual (submetendo ‑se o ideal temporal àquele fim espiri‑

tual). Deste modo, a Companhia de Jesus optou pela sua integração no sistema pro‑

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96 dutivo mediante a aceitação e aquisição de bens de raíz e mão ‑de ‑obra escrava,

produzindo para o mercado ( geralmente com uma gestão, inovação e rendimento

ímpares ) com a finalidade de obter os recursos necessários a financiar as actividades

missionárias, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino e obras assistenciais,

construção e embelezamento (tido como estratégia eficaz de evangelização/fideliza‑

ção) de igrejas, colégios e residências. Por este processo a Companhia de Jesus acu‑

mulou no Brasil um enorme património constituído por propriedades rústicas e

urbanas, engenhos, fazendas de gado, olarias, boticas, num valor total, à data da sua

expulsão, que excedia os 1000 contos. A grande questão que se coloca (geralmente

distorcida) é a de que qualquer instituição (inclusivé do foro religioso) necessita

para o exercício que se atribui (e que a sociedade lhe atribui) bem como para a

fidelização de aderentes que implica a sua condição de instituição (logo, que procura

instituir uma ordem no social) necessita, dizíamos, de uma base material que lhe

confira operatividade. Com todas as divergências e debate, interno e externo à

Companhia de Jesus, a escravatura era um dado cultural do século XVIII e a

Companhia fazia parte dele. Pretender algo de diferente ao nível da actuação da

Companhia seria buscar uma imagem viva e actuante dos Puros dos Puros que é parte

da imagética da Cidade de Deus mas não da dos Homens. A actividade educativa e

cultural da Companhia, geralmente elogiada (exceptuando os seus métodos) mesmo

pela maioria dos críticos passou, assim, também, pela base do trabalho escravo. Do

mesmo modo, a evangelização, missionação e resgate de almas – expressão que julga‑

mos exemplarmente expressiva do sistema filosófico e do plano de actuação da

Companhia. Importa ter em mente este enquadramento para compreender o alcance

do Directório dos Índios do Grão Pará e Maranhão, na medida em que o estatuto

daquele grupo étnico foi um dos pontos fulcrais da vida da colónia (e mesmo da

nação independente).

Antecedentes e condicionantes Temos presente, quando realizamos este pequeno estudo,

enquadrado pelo “Directório dos Índios do Pará e Maranhão”, que para procurar

compreender os seus fundamentos, pertinência epocal e conjuntural, alcance

pretendido e consequências, próximas e remotas em sede da política interna e

externa portuguesa, importa, primeiro, analisar a condição do Índio ao longo do

processo colonial brasílico mas, sobretudo, integrá ‑lo na complexa e dinâmica

conjuntura económica, política e social do Brasil, de Portugal e, se quisermos

(e cremos que devemos querê ‑lo) mundial, num quadro de reordenamento

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97dos equilíbrios geo ‑estratégicos mundiais como é o final do século XVIII, pela

concorrência das potências europeias na expansão da sua área de influência em

termos de soberania e do político ‑económico. Neste sentido, afigura ‑se ‑nos

indispensável integrar o Directório em dois processos ‑chave. Primeiro, a evolução

do relacionamento jesuítico com os poderes espirituais e temporais. Segundo, a

inserção e perspectivação do Regimento no vasto plano político que marca o período

pombalino/josefino e a sua pertinência/intencionalidade quando confrontado com

as correntes político ‑ideológicas da época em que se insere.

Convém recordar a evolução de mentalidades que marca o século XVII e que

ficou bem patente na difusão, entre os países católicos, das ideias e ideais jansenistas

que propunham uma reforma da Igreja e do social que, simplificando, implicavam

o reequacionar do papel da Igreja ‑instituição e de Trento (em todo o seu alcance).

Mas o século XVII e a transição para o século XVIII) é também o século de Descartes,

Newton, Locke, da afirmação plena das línguas vernáculas, logo de inovações técni‑

cas e filosóficas que põem em causa o ordenamento mental dos séculos anteriores.

As posições da Companhia em disputas doutrinárias e conflitos de natureza temporal

granjearam ‑lhe a hostilidade de sectores sociais e intelectuais. Grotio e Hobbes redi‑

fundiam aspectos (e consequências práticas) das teses de Marsílio de Pádua, catali‑

zando (mas também expressando) a passagem de uma sociedade holística, hierár‑

quica e hierática, para os quadros de racionalidade e para o acelerar de um processo

de secularização (não de laicização) longo de séculos. A teorização e emergência do

Estado como instância primeira, ordenadora do social, é um dos produtos (mas

também agente) deste processo. Mas o Estado é feito (e faz -se) para agir sobre os

homens e o que de mais essencial ocorre é uma lenta, mas profunda, reconversão de

mentalidades. O combate às crescentes tendências para o fortalecimento do poder

real tornou a Companhia um alvo prioritário dos partidários do reforço do poder

espiritual. No que toca às relações com as instituições do domínio do espiritual

importa reter como conexos com a alteração de mentalidades (mas também com o

equilíbrio de poder entre instituições e formas de poder no campo internacional) a

questão dos ritos chineses e do Malabar. O evoluir da conjuntura internacional con‑

tribuiu para criar uma imagem dos inacianos como ultramontanos (com toda a carga

que tal facto tinha num quadro de afirmação dos nacionalismos e dos Estados),

pedagogicamente conservadores (defensores da metodologia e categorias epistemo‑

lógicas e conceptuais escolásticas, bem como da autoridade dos antigos – e do pró‑

prio princípio de autoridade no campo epistemológico quando se difundia o expe‑

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98 rimentalismo). Igualmente como dissimulados, obstrucionistas e rebeldes às ordens

do Papa, quando julgavam o seu cumprimento atentatório dos interesses da

Companhia. Este último aspecto era particularmente grave numa instituição que

visava inculcar nos seus membros a imagética e a prática do soldado de Cristo obe‑

diente ao trono de Pedro na defesa da fé e da ortodoxia. Diga ‑se que tal imagem

monolítica ficava também comprometida quando na Europa os seus membros se

apresentavam como campeões da ortodoxia e, na Ásia e América, contemporizavam

com os usos e costumes locais como forma de conseguir maior número e mais rápi‑

das conversões. De certa forma (numa determinada leitura política dos factos, à

época com acolhimento no círculo de poder mais restrito, erigido, em Portugal, em

torno de D. José e do Marquês de Pombal, bem como noutras cortes europeias) a

Companhia transformara ‑se numa Igreja dentro da Igreja, dotada de enorme poder

espiritual, político (pelo papel que desempenhava no ensino e junto dos meios

influentes) e económico (como sustentáculo da expansão e manutenção da sua

acção). Algo que tinha que desagradar à Igreja pós ‑tridentina com o seu ideal hie‑

rárquico e uno, centralizado em Roma, às outras instâncias e organizações do reli‑

gioso católico, aos estados em afirmação, mesmo a núcleos e classes sociais.

No caso português, todos estes fenómenos que referenciámos estão presentes

v.g. na crescente aceitação e expansão da Congregação do Oratório como instância

alternativa, educativa e formadora de consciências, traduzindo ‑se em divergências

filosóficas, políticas, pedagógicas e mesmo de articulação com grupos sociais.7

Acabaram por se combater fortemente, ao longo da maior parte do século XVIII,

com base em questões filosóficas, pedagógicas e filológicas.

Mas a crise jesuítica com o Estado em Portugal ganha uma outra dimensão com

a complexa situação introduzida com o Tratado de Limites de 1750. Sem que caiba

a este estudo traçar os acontecimentos que marcaram esta fase da política ibérica, é

forçoso realçar alguns factos na medida em que eles fundamentaram e contribuíram

para concitar forças dos equilíbrios futuros, nomeadamente, do Estado face à

Companhia de Jesus. O Tratado de Madrid reconhecia a soberania portuguesa em

grande parte da Amazónia, no Mato Grosso e zona litoral até Castilhos Grandes.

Portugal cedia definitivamente a Colónia do Sacramento. Tendo ‑se decidido seguir o

7 Os Jesuítas, mais próximos da casa real e das elites dirigentes, os oratorianos das camadas médias da popu‑

lação.

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99princípio de utilizar as barreiras naturais para efectuar as demarcações, ficou estabe‑

lecido que a Espanha cederia a Portugal os territórios compreendidos entre a mar‑

gem do rio Ibicuí e a zona oriental do rio Uruguai. Nessa região situavam ‑se sete

aldeias de Índios dirigidas por jesuítas que deveriam ser evacuadas, entregando ‑se à

Coroa as igrejas, residências, outros edifícios e a propriedade da terra. Os guaranis

que aí estavam aldeados podiam levar todos os seus bens móveis. As sete reduções

pertenciam à Província do Paraguai da Companhia de Jesus. No prazo de um ano os

inacianos deviam retirar ‑se com os cerca de 30 000 Índios das povoações. Seis outras

reduções perderiam as estâncias de gado que possuíam a Este do rio Uruguai. Como

compensação, a Coroa espanhola ofereceu aos guaranis desalojados novas terras,

isenção de impostos por dez anos e uma indemnização de 4000 pesos por redução.

A divulgação das claúsulas do Tratado de Madrid provocou na América espanhola

intensas reacções negativas por parte de autoridades civis, eclesiásticas e, sobretudo,

dos Índios e dos jesuítas. Com efeito, os guaranis e os seus missionários eram inimi‑

gos irredutíveis dos Portugueses devido às numerosas investidas dos bandeirantes

paulistas ao longo do século XVII.8 A aplicação das disposições do Tratado provocaria

uma significativa perda de território pela Província do Paraguai e a perda de sete das

trinta reduções inacianas. Procuraram, por isso, impedir tal facto, enviando repetidas

representações à corte de Madrid, solicitando a inobservância da entrega da margem

oriental do Uruguai a Portugal.

Apesar de discordar da opção geo ‑estratégica portuguesa que presidira à aceita‑

ção das condições do Tratado de 1750, Carvalho e Melo, ao assumir as funções de

Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Gente de Guerra, tinha como

assunto mais importante em mãos a execução daquele Tratado. Para prevenir a even‑

tualidade de surgir resistência à entrega da região dos Sete Povos, fez aprovar um

convénio adicional secreto em que os dois governos ibéricos se comprometiam a,

no caso de resistência dos guaranis, usarem conjuntamente a força para promover a

evacuação da zona.

Enquanto os representantes das duas Coroas ibéricas se aprestavam para executar

o Tratado, os jesuítas desenvolviam intensas diligências no sentido de obstar à entre‑

ga dos territórios que tutelavam. Primeiro, procuraram convencer o governo espa‑

8 Desde 1610 que os jesuítas aí desenvolviam trabalhos de evangelização conseguindo, com grandes esforços,

criar uma extensa rede de missões. Funcionavam em regime comunitário, desempenhando os padres papel

preponderante ao nível da direcção espiritual e temporal dos Índios.

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100 nhol de que a cedência das reduções colocaria em causa a salvação espiritual dos

Índios e os interesses da Coroa. No mesmo passo concitaram os esforços de Francisco

de Rávago, confessor do rei, no mesmo sentido. Face à oposição dos missionários

americanos, o gabinete de Madrid solicitou ao Geral da Companhia de Jesus que

diligenciasse no sentido de convencer os inacianos da Província do Paraguai a pro‑

mover a retirada pacífica das Sete Reduções. Apesar das ordens expressas do Geral da

Companhia e do seu representante na América, os missionários não se conformaram

com as deliberações régias e dos seus superiores. Não conseguindo persuadir Madrid

à renegociação do Tratado com Portugal (o que não desagradaria a Carvalho e Melo)

que lhes permitisse permanecer na região dos Sete Povos, passaram a contestar a

própria validade moral do Tratado de Madrid – salto qualitativo de extraordinária

importância. Discutiam e contestavam agora a legitimidade de um acto de Direito

Público Internacional com base na falta de protecção do rei aos seus deveres para

com os vassalos – os Índios – pelo que lhes assitiria o direito de resistir legitima‑

mente à aplicação de um Tratado com bases jurídicas e morais inválidas, em violação

dos princípios do direito natural.9 O comissário jesuíta enviado para assegurar a

observância do Tratado foi permanentemente coartado de poder e as interferências

nas suas diligências sucederam ‑se. Quando chegou ao território das reduções, o

padre Strobel iniciou uma visita aos Sete Povos aconselhando os párocos a que colo‑

cassem as maiores dificuldades na efectivação das medidas para retardar indefinida‑

mente a sua aplicação. Escreveu mesmo ao Geral da Companhia informando que o

comissário não deveria deslocar ‑se àquelas aldeias porque correria perigo de vida.

Com a sucessão dos acontecimentos o comissário convenceu ‑se de que a resistência

dos Índios se devia à influência dos missionários (comunicou ‑o ao Geral Visconti)

na esperança de que Fernando VI anulasse o Tratado com Portugal. Entretanto

espalhou ‑se o boato de que o comissário era português pelo que queria retirar as

terras aos guaranis e este foi expulso de São Miguel com ameaças de morte. Este

escreveu para Roma a sugerir o envio de 2000 homens de armas para amedrontar os

índios e compeli ‑los a abandonar a região. No início de 1753, um dos grupos luso‑

‑espanhóis que efectuava a delimitação da fronteira na região meridional viu a pas‑

9 Pela ilegitimidade do Tratado, assumiam a ilegitimidade e invalidade de todas as medidas decorrentes – ordens

régias, dos superiores da Companhia e mesmo eventuais excomunhões papais. Na prática, punham em

causa a capacidade da monarquia espanhola dispor dos seus territórios, delimitar fronteiras, estabelecer

acordos internacionais e exercer soberania nas suas colónias.

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101sagem bloqueada em Santa Tecla. Decidiu ‑se o início dos preparativos militares. A

resistência militar de algumas reduções guaranis, apoiada pelos seus missionários

que nunca saíram das missões, contrariamente a todas as ordens recebidas, criou em

Espanha e, de um modo geral, na Europa, a convicção de que os inacianos estavam

a recorrer a todos os meios para conservar o domínio temporal sobre os Índios,

beneficiando das riquezas da região.10 A determinação de Fernando VI e dos seus

novos colaboradores no cumprimento do tratado retirou argumentos a Lisboa para

a sua renegociação, tornou claro que a solução do problema seria de natureza militar

e tornou irreversível o processo de ruptura entre a Coroa espanhola e os jesuítas

americanos. A 10 de Fevereiro de 1756 os exércitos de Freire de Andrada e D.

Joaquim de Viana aniquilaram a resistência guarani na batalha de Caiboaté perto da

redução de S. João. A resistência à evacuação das missões esteve na base das ordens

da Coroa espanhola para reduzir ao mínimo a presença dos inacianos na região pla‑

tina e, assim, o estiolar das florescentes reduções jesuíticas do Paraguai. Note ‑se que

a decisão do novo Geral de renovar o mandato do Provincial do Paraguai foi muito

mal recebida em Madrid, sendo interpretada como prova de reconhecimento e apro‑

vação, pela instância máxima de poder da Companhia em Roma, do comportamen‑

to rebelde dos missionários americanos.11

Na prática, porém, os Sete Povos só foram entregues em 1801. A resistência dos

Índios guaranis, armados pelos jesuítas, causando a guerra guaranítica, provocou a

anulação do Tratado de Madrid e a sua substituição pelo de El Pardo em 1761. Em

Portugal a maior evolução provocada por este embate sul ‑americano foi o recrudes‑

cimento da campanha anti ‑jesuítica. Os inacianos foram acusados de terem impedi‑

do a demarcação na América meridional e Amazónia, não fornecendo os Índios

necessários e adequados à expedição do demarcador naquela área, Francisco Xavier

de Mendonça Furtado, Governador do Pará e irmão de Carvalho e Melo. É significa‑

tivo, face à data de assinatura daquele tratado, que os jesuítas fossem expulsos em

10 As repercursões destes acontecimentos foram extraordinariamente negativas para a Companhia e contribuí‑

ram para o acentuar das críticas ao excessivo poder temporal dos jesuítas.11 O curso dos acontecimentos relativos às sete Missões tornou claro para Madrid a existência de um Estado

quase ‑autónomo nos seus domínios sul ‑americanos, dotado de uma lógica própria e esquivo à admissão

de interferências das esferas de poder diocesano, bem como às ordens das autoridades régias. Associado à

sua capacidade de mobilização das populações contra o Estado, deu azo à efectivação de toda uma estra‑

tégia para eliminar os focos de autonomismo do vice ‑reino do Prata, conduzindo à expulsão geral de 2

de Abril de 1767.

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102 1759. No entanto, o Tratado de San Ildefonso consagrou as linhas de demarcação de

Madrid que, no essencial, são as mesmas que ainda hoje definem o alcance da sobe‑

rania do Estado brasileiro. Note ‑se que neste processo de delimitação de soberania(s)

o governo josefino adoptou uma política sistemática de materialização da presença

nacional, pela sistemática fortificação das zonas estratégicamente mais importantes

das possessões sul ‑americanas.12

As instruções públicas e secretas dirigidas a Francisco Xavier de Mendonça

Furtado, quando encarregado como governador e capitão ‑general do Estado do

Maranhão como governador e capitão ‑general do Estado do Maranhão e Grão ‑Pará,

podem ser interpretadas como o começo de um programa de governo específico

para o Brasil, com o estabelecimento de metas de fortalecimento da sua economia,

promoção da defesa territorial e um esforço de ocupação das regiões do Norte. O

seu modelo operativo é o de uma tutela exercida pelo Estado, regulando as relações

de trabalho entre Índios e colonos e incorporando um plano de povoamento. É na

sua decorrência que podemos entender o Directório assinado a 3 de Maio de 1757 por

Mendonça Furtado e vendo as suas directrizes aprovadas por força do Alvará de 17

de Agosto de 1758. Aplicado primeiro ao governo das povoações indígenas do Norte

e, depois, recomendado como expressão única do comportamento do colonizador

em relação aos Índios do Brasil, o Directório foi lei geral até à sua extinção pela carta

régia de 12 de Maio de 1798. Começou a ser escrito a partir das primeiras instruções

de Sebastião José de Carvalho e Mello ao seu irmão, governador do Grão ‑Pará,

Mendonça Furtado, representante plenipotenciário dos interesses da monarquia por‑

tuguesa, governador do Estado do Maranhão e Grão ‑Pará e supervisor da execução

do Tratado de 1750. O Directório surgia da necessidade de dar resposta a situações em

que havia falhado o regimento de 1686 (formulado com base nas doutrinas de

António Vieira e nas experiências de missionação no século XVII, centradas em torno

de disputas com os colonos pela administração dos Índios) e outra legislação, res‑

pondendo à procura da força de trabalho indígena em áreas em que se apresentava

como a única disponível. Neste sentido, é articulável com a Bula de 20 de Dezembro

de 1741 (expedida pelo Papa Bento XIV e publicada pela diocese do Pará em 29 de

12 Das Comissões de Demarcação de Limites do Norte e do Sul faziam parte engenheiros, militares e astróno‑

mos realizando o levantamento geográfico e cartográfico das mais reconditas regiões brasílicas. Com base

nesses dados foi concebido o plano de construção de uma malha de fortificações, assegurando a soberania

em regiões estratégicas vitais e/ou potenciadoras de conflitos. No mesmo sentido, as reformas orgânicas,

funcionais e logísticas das forças militares no terreno.

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103Maio de 1757), a lei de 6 de Junho de 1755 (que tem por objecto a liberdade dos

Índios) e a lei de 7 de Junho do mesmo ano (relativa à secularização das aldeias),

tendendo, em conjunto, a reconhecer o Grão ‑Pará como um Estado indígena.

Surgido dois anos após a lei de 6 de Junho de 1755 (que restituía a liberdade dos

Índios) e da lei de 7 de Junho de 1755 (que excluiu os missionários do poder tem‑

poral da sua administração), em ambas objectivando ‑se a emancipação plena do

Índio, o Directório (a que é dado o cunho de lei pelo Alvará de 17 de Agosto de 1758)

pode ser visto como elemento disciplinador dos efeitos emancipadores da aplicação

da lei de 6 de Junho, para que atendesse aos propósitos da colonização.

O contexto O novo grupo dirigente resultante do chegada ao poder de D. José em

Portugal, propunha ‑se três grandes objectivos. A aplicação prudente e ponderada

do Tratado de Madrid, garantindo a salvaguarda dos interesses portugueses; a

reorganização, reforço e alargamento do poder do Estado no sentido da submissão

das autonomias regionais e privilégios de grupo; o reenquadrar da política externa

à luz da crescente confrontação entre a França e a Inglaterra pela hegemonia entre

as potências europeias (com as suas dependências coloniais). Estes objectivos

político ‑programáticos implicavam a assunção de um ideal de alargamento dos

quadros sociais, criação de instituições fiscais, judiciais, administrativas, militares

e económicas. Tal alargamento de funções de Estado constituia ‑se como reacção à

nova realidade de concorrência global inter ‑Estados, dotando ‑o do poder passível de

disciplinar os grupos sociais, submeter instituições autónomas (no caso português

com realce para a Igreja, Inquisição e Companhia de Jesus), assumir novas, mais

vastas (mas, também, mais exigentes, material e organizativamente) funções ao nível

do económico, cultural, educativo e mesmo religioso.13 Sob a égide das reformas

13 É com base neste quadro que encontramos a frequente classificação do período em Portugal como cor‑

respondendo ao despotismo esclarecido, conceito sobre cuja operacionalidade no tempo e espaço em

apreço não nos pronunciaremos, mas que, para além de toda a classificação que evoque similitudes com

fenómenos extra ‑nacionais, se caracterizou por um processo de concentração dos poderes temporal e

espiritual nas mãos do soberano (com restrição dos poderes de certas casas nobres e ordens religiosas),

alicerçado no primado teórico do direito natural e, concomitantemente, da lei como instância sacral

reguladora e instituidora da realidade político ‑social querida pelo monarca, em ordem à crescente con‑

flituosidade internacional e à defesa dos interesses nacionais em tal quadro. Note ‑se, no entanto, que e.g.

o conteúdo regalista do despotismo esclarecido português não era uma novidade em Portugal, apesar de

se desenvolver fortemente neste período, quer por reacção às evoluções externas, quer como factor de

equilíbrio face ao enfraquecimento do poder do Estado e surgimento de instâncias intermédias de poder

que caracterizou o governo joanino.

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104 pombalinas, a política colonial portuguesa para com as colónias (em especial o

Brasil) sofre uma modificação sensível, embora se mantenham as linhas mestras

da política mercantilista. Sob o impacto da crise que atinge o Império português14

a política colonial seguida face ao Brasil, articulando ‑se com a política instaurada

na metrópole, revela a influência da ilustração com todo o seu aparato conceptual,

imagética, valores, mas, sobretudo, vectores ‑chave estruturantes do mental.15

14 Conjuntural e estrutural ao mesmo tempo, mas também síncrona de um importante momento de reconver‑

são civilizacional em que se definem novos rumos globais no seio de algumas das principais potências

europeias. 15 De facto, a crise resultava da própria estrutura e funcionamento colonial instaurado como estava, já que

ao acelerar o processo de acumulação primitiva de capitais, o sistema colonial gerou as condições

(somando ‑se a outros factores como a técnica ou a simples capacidade de inovação) para a passagem

do capitalismo dominado pela acumulação mercantil, para o capitalismo industrial nos núcleos direc‑

tores do sistema colonial internacional. O país paradigmático da execução deste processo de profunda

transformação civilizacional foi a Inglaterra, operando a passagem da manufactura à produção baseada

na máquina ‑ferramenta, encontrando a base económica para tal no mercado mundial e especialmente

colonial. Ao processar ‑se esta evolução, peças essenciais do anterior sistema coloial, como o sistema de

monopólio e a escravatura, tornaram ‑se obstáculos insuportáveis para a assunção plena de um tal sistema

sócio ‑económico – uma produção e a extensão do capital à escala mundial. Colocava ‑se, assim, em causa,

o sistema colonial assente no capital mercantil. Os problemas de Portugal na tentativa de seguir aquele

novo rumo da industrialização, começavam com a (in)disponibilidade de capitais (e logo de procura)

suficientes para a sustentar na metrópole e colónias, mas também, na difícil gestão política das reformas

indispensáveis à concretização daquele objectivo, mas sem que tal implicasse o estilhaçar do edifício

social português. Pretendeu ‑se, assim, conseguir a integração dos mercados no plano interno, colonial e

externo, bem como uma tentativa de harmonização da política mercantil em ordem aos novos objectivos

(operando por meio das Companhias de comércio privilegiadas), a integração do sector produtivo indus‑

trial e agrícola metropolitano no sector agrícola colonial. No entanto, e no que toca ao Brasil, o trabalho

escravo tinha na sua base uma imperiosa necessidade prática – a angustiante carência de mão ‑de ‑obra

desde o início sentida por Portugal (aliás, desde o início da constituição do Império) e particularmente

sensível num domínio de dimensão continental como o Brasil. Desde D. João V que a salvaguarda, defesa

e administração da colónia era um terrível encargo para Lisboa pelas desmedidas proporções territorias

que alcançara. Para tal muito contribuiram as acções paulistas de caça ao Índio e prospecção metalífera,

a expansão da criação de gado no sul da colónia e nordeste, bem como a acção missionária, predomi‑

nantemente jesuítica, na Amazónia. Com efeito, a rica região fluvial paraguaio ‑uruguaia e a maior parte

da Amazónia não despertavam grande interesse nas suas metrópoles, ficando a presença europeia quase

exclusivamente entregue aos esforços maioritariamente jesuíticos de catequização e actividade económi‑

ca em áreas de forte presença indígena. Só em meados do século XVIII esses espaços serão valorizados

com base em considerações de natureza geopolítica e de alternativa/massificação do sistema económico.

Para aquilatar o grau de rarefacção da presença de Brancos em muitas das áreas teórica ou hipoteticamente

senhoriadas pela Coroa portuguesa basta recordar que, em fins do século XVIII, entre as regiões ainda

não penetradas pelos colonizadores, se encontravam toda a margem oriental do rio Tocantins, bem como

as cabeceiras da capitania do Maranhão. Nas capitanias centrais e do sul havia ainda imensos territórios

ocupados por índios bravos. A região intermédia entre a capitania de Minas Gerais e o sul da Baía, bem como

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105Carvalho e Mello atribuía os problemas do País ao estado de dependência semi‑

‑colonial face à Inglaterra. O ouro do Brasil tinha sido quase totalmente absorvido por

aquela potência e Portugal pouco lucrara com isso. Uma das metodologias de actuação

contra a influência inglesa (sem levar ao confronto pleno pela inobservância de claú‑

sulas de tratados) consistia na utilização dos poderes discricionários do governo nas

colónias para desviar as vantagens dos poderosos grupos comerciais estrangeiros para

os operadores económicos nacionais. Neste sentido, os primeiros anos do poder pom‑

balino caracterizam ‑se por uma intensíssima produção legislativa visando instituir

novos modos de operacionalidade à vida nacional, bem como, regulamentar os novos

enquadramentos. Neste sentido, o Brasil com o seu formidável peso na vida económi‑

ca do Império no período histórico em apreço, foi um dos objectivos prioritários do

legislador, até atendendo à ideologia económica subjacente ao processo – o mercanti‑

lismo comercial e industrial. Foram instituídas inspecções nas principais cidades por‑

tuárias para fiscalizar os preços dos principais produtos de exportação – açúcar e

tabaco. Em 1755 ‑56 foi criada uma companhia monopolista para o Grão ‑Pará e

as zonas fronteiriças com as capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Paulo, eram ainda pouco

conhecidas e povoadas por numerosos grupos tribais de índios bravos. Dos grandes rios só as margens mais

próximas tinham sido descobertas. Logo, nas áreas onde o colonizador branco não chegara ainda, eram

as tribos índias que senhoreavam a região, autonomamente e segundo os sistemas tradicionais de com‑

posição social e económica (realizando, ocasionalmente, incursões nas terras e povoações coloniais) ou

enquadrados pelas comunidades missionárias em que avultavam os jesuítas. É neste contexto que, aqui

como v.g. no Oriente, se procuram definir as áreas de influência e preencher os vazios geográficos. É,

também, nesta conjuntura internacional e interna ao Império português e à situação na América do Sul,

que podemos perspectivar mais correctamente o objectivo político de combater o domínio espanhol que

ameaçava no Sul e das grandes potências europeias a Norte, com a necessária ocupação demográfica e eco‑

nómica, contando para tal com a população branca e índia para afastar as pretensões alheias. Neste sentido,

surge mais fortemente a noção do domínio temporal da Companhia de Jesus (instituição com âmbito de

acção internacional, supranacional) sobre importantes núcleos indígenas em regiões fronteiriças, como

um risco de alienação de soberania, começando os Jesuítas a ser encarados (até face à guerra Guaranítica)

como culpados das usurpações territoriais e situação de domínio/submissão de que dispunham junto dos

Índios e da condição jurídica, social e económica em que aqueles viviam, qualificada v.g. por Pombal de

escravidão jesuítica. A inexistência da escravatura como solução de recurso para obstar à absoluta carência de

mão ‑de ‑obra era, aliás, uma fórmula de salvaguarda da própria lógica do sistema colonial. A abundância

de terra poderia levar os colonos a produzirem para a própria subsistência, transformando ‑os em peque‑

nos proprietários. O sector exportador teria por isso de assalariar a força de trabalho livre e remunerá ‑la

acima das expectativas económicas de lucro no sector de subsistência. Neste caso a inflação salarial seria

de tal ordem que o próprio sistema colonial ficaria em causa ao não mais permitir a acumulação de capital

pela burguesia mercantil. O trabalho escravo foi, pois, o meio indispensável à eficácia de um processo de

acumulação de capital que, no caso português, era particularmente importante pela natureza triangular

dos fluxos económicos coloniais do Império.

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106 Maranhão e decretada a expulsão do Brasil de todos os comissários volantes, caixeiros

viajantes que tinham invadido a colónia como agentes comissionistas das empresas

comerciais estrangeiras instaladas em Lisboa, na sua maioria inglesas. A instituição da

Companhia privilegiada, baseava ‑se na proposta do governador do Grão Pará e

Maranhão, em Janeiro de 1754, de criação de uma Companhia Geral de Comércio

Nacional que assegurasse o fornecimento de escravos negros destinados ao cultivo das

terras improdutivas e ao trabalho das minas do Mato Grosso.16 A escolha de tal região,

importante núcleo de actividade missionária jesuíta e palco de violentas disputas entre

os Índios (enquadrados por aqueles) e os colonos, amplificou as consequências das

tentativas de Carvalho e Melo para centralizar e integrar o sistema luso ‑brasileiro. A

Companhia estimularia os interesses comerciais nacionais e esperava ‑se que, pela con‑

cessão de privilégios e protecções à produção e comércio, se verificasse suficiente

acumulação de capitais que permitisse a concorrência com os operadores estrangeiros.

16 Com efeito, o principal obstáculo à ampliação das áreas agrícolas na região norte residia na extrema carência

de mão ‑de ‑obra que aí se verificava. Essa sugestão encontrou acolhimento em Carvalho e Melo, na medida

em que permitiria combater o contrabando francês nessas áreas, aumentar e acelerar a velocidade de cir‑

culação monetária na região, promover a integração daquele Estado (pelos condicionalismos de navegação

no Atlântico, desenvolvendo ‑se até tarde quase em circuito fechado face ao Estado do Brasil) nos circuitos

económicos atlânticos, agindo como agente de aquisição dos indispensáveis escravos africanos, exportação

das produções locais para o reino, reexportando ‑as para nações estrangeiras e praticando a importação de

mercadorias metropolitanas e estrangeiras. O esperado ressurgimento económico permitiria um acrésci‑

mo das receitas fiscais (uma das linhas de força programáticas do governo de Carvalho e Melo, dotando

o Estado dos meios necessários à prossecução e intensificação das políticas de povoamento, fortificação e

reconhecimento – geográfico, científico e das potencialidades económicas – da região amazónica). A prática

de concessão de monopólios constituir ‑se ‑ía, ainda, como incentivo à construção naval (a par de outras

medidas legislativas) e à marinha mercante nacionais, facilitando a constituição de grupos económicos

que dispensassem a presença de operadores estrangeiros nos circuitos económicos comerciais portugueses.

Sumariamente, podemos dizer que a Companhia, ao longo dos seus quase 33 anos de existência, contribui

fortemente para aumentar o volume e valor global das exportações do Estado do Grão Pará e Maranhão,

promover a qualidade da produção estadual e diversificar as produções locais agindo como catalizador

do arranque económico da região. Refira ‑se que a sua constituição se integrava no projecto de reforço do

Estado e no conexo desígnio de expulsar as outras potências das redes comerciais nacionais. Neste senti‑

do, o facto de a Companhia só dever obediência ao rei e a constituição da Companhia de Pernambuco e

Paraíba e da Companhia das Vinhas do Alto Douro. Note ‑se que os particulares tinham o direito de vender

por conta própria, embarcando os seus produtos nos navios da Companhia, na prática, um direito utópico,

na medida em que, quem monopolizava o transporte, poderia impor a sua vontade. Os benefícios desta

política assentaram, em grande medida, na alta dos preços (decorrente do afluxo ao mercado europeu do

ouro brasileiro e da prata mexicana, sobretudo de 1736 a 1740 e de 1751 a 1755), mais sensível ao nível

dos bens agrícolas. Com base neste condicionalismo conjuntural favorável (e correcta leitura e pertinência

das medidas adoptadas pelo poder político), se explica o ressurgimento agrícola da região.

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107Face às ocorrências relativas aos Sete Povos, a que aludimos, Lisboa acreditava (ou

parecia acreditar), cada vez mais, na existência de uma coligação de interesses congre‑

gando os jesuítas, os ingleses e os comerciantes desapossados, instituindo ‑se como uma

ameaça a toda a sua política. No entanto, com a nova definição de fronteiras e a maior

consciencialização do valor estratégico e (a prazo) económico do domínio do interior

do Brasil seria inevitável que o grande complexo de missões jesuítas, portuguesas e

espanholas, do Amazonas ao Prata, fossem cada vez mais lidas pelo poder civil como uma

ameaça para ambas as potências ibéricas. As autoridades portuguesas tinham especiais

motivos para não confiar naquelas missões já que, nos últimos anos da década de 40 do

século XVIII, os jesuítas, sitos em territórios portugueses e espanhóis (no plano do

direito internacional que não pela jurisdição efectiva, no terreno, dessa soberania),

tinham colaborado numa tentativa de impedir os Portugueses de assumir o domínio da

importantíssima passagem do Guaporé e do Paraguai. Portugal recearia especialmente a

potencial aliança dos jesuítas portugueses e espanhóis contra os seus interesses.

Vimos já as condições internas e externas (ao Brasil e ao império português) que

colocam em situação as reformas pombalinas relativas ao Brasil. Neste território

importa reter a importância da concessão da licença de constituição da Companhia do

Grão Pará e Maranhão mas, também, as importantes reformas administrativas operadas

no sentido de adequar a divisão administrativa às prioridades definidas. Assim, a inten‑

sificação do povoamento, manutenção da integridade territorial e fomento das activi‑

dades económicas, indissociáveis como eram. Neste sentido, a divisão do estado do

Grão Pará e Maranhão em dois governos, com sede em Belém e em São Luís, este na

dependência daquele.17 No mesmo sentido de assegurar a presença soberana do

Estado, a reforma da justiça, v.g. pela criação de Juntas em todas as cidades ou vilas

17 Saliente ‑se a inversão hierárquica, no plano administrativo, entre os centros do norte brasílico, expressão da

crescente relevância económica e estratégica da região amazónica para a Coroa, particularmente em face

do projecto político josefino. Pela extraordinária vastidão da área do estado do Grão ‑Pará, com entraves à

eficácia governativa e administração de justiça – sede primeira de qualquer pretensão de soberania efec‑

tiva – foi mesmo – em 3 de Março de 1755 – criada a Capitania subalterna de São José do Javarí (mais

tarde do Rio Negro) com sede em Barcelos (transferida mais tarde para Manaus). Note ‑se que em 1772

a administração régia optou pela extinção do Estado do Grão Pará e Maranhão, colocando as capitanias de

Maranhão, Pará, São José do Rio Negro e Piauí directamente sob a alçada de Lisboa. Refira ‑se ainda, um

outro domínio pelo qual o governo josefino operou uma transformação de competências administrativas

tendentes a uma reestruturação de protagonismos, modalidades e esferas de poder jurisdicional no Brasil

– a relativa extinção do poderio dos municípios v.g. na antiga (Baía) e nova capital (Rio de Janeiro) per‑

dendo a Câmara o direito de eleger os administradores da cidade e seu termo, bem como o poder fiscal.

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108 onde residissem ouvidores ‑gerais, para obviar às grandes distâncias (e consequentes

demoras processuais) a que se encontrava a maior parte dos núcleos populacionais

relativamente às sedes das relações (reforma que se operará num período posterior ao

da produção e aplicação do Directório). No plano fiscal, a tentativa de unificação e

centralização do fisco, a introdução do sistema de contabilidade de partidas duplas, a

separação funcional e orgânica da administração das rendas e jurisdição contenciosa

da contabilidade, finalmente, a redução ao mínimo dos contratos de arrecadação dos

réditos da Coroa (conduzindo frequentemente à opressão dos povos e à diluição da

presença soberana material da Coroa) e a transformação dos cargos da Fazenda Real de

vitalícios em amovíveis.

Temos, portanto, o quadro geral, os vectores do projecto político de um reinado,

o desenhar das recomposições e oposições em causa (interna e externamente).

Analisemos agora um momento, uma região e um objecto específicos – o Directório que

se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará e Maranhão de 3 de Maio de 1575 e o seu prin‑

cipal agente executor – Francisco Xavier de Mendonça Furtado.

Após a nomeação do irmão mais velho, Sebastião José de Carvalho e Melo, para a

pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, foi indigitado para o governo do Norte

da América portuguesa,18 sendo nomeado para o cargo de governador e capitão‑

‑general do Estado do Grão ‑Pará e Maranhão.19 Mendonça Furtado viria a deixar uma

18 Como vimos, uma das áreas de acção prioritária para o projecto político josefino.19 Note ‑se que, para além da fidelidade aos princípios e objectivos josefinos, Mendonça Furtado conhecia bem

a situação da América portuguesa. Com efeito, fora oficial da marinha entre 1735 e 1749, participando

em 1736 na expedição destinada a socorrer a Colónia do Sacramento, então sitiada por forças espanholas.

Em carta de 2 de Dezembro de 1751 dirigida ao secretário de Estado dos Negócios do Reino, lamenta‑

va a miséria e confusão do Estado para cuja gestão fora empossado, defendendo a tomada de medidas

governamentais com carácter de urgência. Efectuou no princípio de 1752 uma vasta expedição de reco‑

nhecimento do território amazónico, durante a qual fundou a vila de S. José de Macapá com recurso a

colonos açorianos (desde o seu governo no Pará e Maranhão até às providências tomadas depois da ida

da Corte para o Brasil, registou ‑se uma colonização de origem açoriana que se achava ser a mais adequa‑

da ao desenvolvimento da agricultura), inspeccionou fortalezas e visitou aldeias indígenas ao longo dos

principais rios. Nesse mesmo ano, foi investido como plenipotenciário e primeiro comissário régio para o

Norte da América portuguesa, com a responsabilidade de execução na sua área das disposições do Tratado

de Madrid e do Convénio Adicional Secreto a que já nos referimos. A extensa Comissão portuguesa, que

levou dois anos a organizar, atingiu o seu objectivo – a aldeia carmelita de Mariuá – a 28 de Dezembro de

74, aguardando por dois anos a chegada dos comissários espanhóis, na realidade retidas pelos seus com‑

patriotas inacianos. No decurso dessa longa espera o governador experimentou deserções de indígenas,

escassez de víveres, demora no pagamento às tropas e insubordinação de alguns destacamentos. Por fim

regressou à capital do Estado em finais de 1756.

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109forte marca na região norte da América Portuguesa por força das reformas que patro‑

cinou e instituiu. Como já vimos, Mendonça Furtado encontra ‑se directa (através da

proposta da criação de uma Companhia Geral de Comércio Nacional) e indirectamen‑

te (através do apoio à elaboração, por alguns dos paraenses de maior prestígio, de uma

petição tendo em vista a constituição de um organismo privilegiado que fomentasse a

agricultura, o comércio e o povoamento da região) na origem da constituição da

Companhia Geral do Grão ‑Pará e Maranhão, cuja importância para a dinamização

regional já focámos. Por outro lado, desenvolveu, de acordo com os ditames da gestão

económica patrocinada pelo gabinete josefino, a divulgação e promoção das produções

paraenses num quadro de optimização e especialização da produção.20 Note ‑se que,

segundo a sua opinião, a importação de mão ‑de ‑obra escrava pela Companhia ‑Geral

seria o único expediente passível de impedir o contrabando que se fazia com os Índios

e o cativeiro a que eram injustamente sujeitos. A concessão de liberdade aos Índios

constituiu uma das vertentes prioritárias da sua actuação governativa.21 Na prática, a

fundação da Companhia contribuiu para atenuar as resistências dos colonos. No entan‑

to, e devido à sua ausência nas margens do rio Negro (no âmbito do aplicação do

Tratado de Madrid) por cerca de dois anos, não publicou a legislação régia relativa à

liberdade dos Índios senão em Fevereiro ‑Maio de 1757. Assim, foram publicadas, pri‑

meiro, a Lei da Abolição do Poder Temporal dos Regulares e, dominada a situação e

controladas as reacções dos religiosos, a da Liberdade dos Índios.

Durante o período josefino o Estado procurou promover os casamentos entre

brancos e índias por meio da lei de 4 de Abril de 1755. Por esta, declarava ‑se que os

brancos que realizassem tais casamentos não cometiam qualquer infâmia. Na verdade,

nas terras em que se instalassem seriam preferidos para as atribuições próprias ao seu

estatuto social e profissional, o que se estendia à sua descendência. A lei instituía ainda

proibição do tratamento social injurioso com base na distinção étnica dessas uniões e

sua descendência. Tal política, adoptada pelo governo Josefino, contrariava a política

racial até então seguida pelos jesuítas, tendente a preservar a população indígena da

miscigenação com os brancos, mas apoiando os casamentos mistos com os negros.

Recorde ‑se que pela lei de 1 de Abril de 1680 os Índios haviam sido declarados livres

20 Saliente ‑se quanto a este aspecto a promoção do café paraense.21 Aliás, de acordo com as Instruções régias, públicas e secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado aprovadas por D. José

a 31 de Maio de 1751 e subscritas por Diogo de Mendonça Corte ‑Real, Secretário de Estado da Marinha

e Domínios Ultramarinos.

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110 mas, na prática, passaram a ser administrados, forma disfarçada de escravidão efectiva. Já

em 1741 o Papa Benedito XIV proibiu que qualquer indivíduo possuísse Índios como

escravos e os reduzisse a cativeiro sob qualquer forma. No entanto, quando se inicia o

governo josefino, a situação não estava clarificada, pese embora o facto de a metrópo‑

le sempre ter tido a preocupação de distinguir entre o tratamento dado aos negros e

aos Índios. O facto é que essas nuances e distinções instituídas pelo legislador não eram

geralmente aplicadas no terreno. Assim, o real estatuto dos Índios era extremamente

complexo, mutável e (muitas vezes) distinto das prescrições legais, civis e eclesiás‑

ticas. Em regiões como o Pará e o Maranhão, em meados do século XVIII, o escravo

africano ainda não fora introduzido e os colonos brancos contavam apenas com a mão‑

‑de ‑obra indígena para o desempenho das actividades económicas. Mendonça Furtado

pretendeu a passagem dos Índios de uma real situação de escravos para a de assalaria‑

dos elaborando uma tabela de remunerações. No entanto, a ideia da liberdade dos

Índios não foi abertamente defendida antes de se apresentar aos colonos brancos da

região a ideia, e consequente constituição, de uma Companhia de Comércio destinada

a trazer pelos preços mais acessíveis a necessária mão ‑de ‑obra escrava, no caso africana.

A este propósito é sintomático que o alvará de 7 de Junho de 1755 que criou a

Companhia do Grão Pará e Maranhão seja (também no plano cronológico) como que

uma medida complementar e propiciadora da implementação da liberdade dos Índios

que a lei de 6 de Junho de 1755 instituía. Por ela se reiterava a sua liberdade, procla‑

mada em 1680 (mas nunca efectivada), extinguia ‑se o estatuto de administrado

(podendo os Índios trabalhar para quem pretendessem) e impunha ‑se a libertação de

todos aqueles que fossem detidos como escravos. Há nesta lei um ponto particular‑

mente importante, pelo que significa de embate de perspectivas sobre a questão. A lei

remete para a prática frequentemente incentivada pelos jesuítas (sobretudo na capita‑

nia de S. Paulo) dos casamentos mistos entre Índios e negros escravos. A lei de 1755

concedia que os mestiços de Índios, nascidos de mãe negra, continuassem a ser con‑

siderados como escravos. Na prática, era uma forma de, no momento em que se dava

a liberdade aos Índios e mestiços de Índios com brancos, acentuar o repúdio por um

modelo de união que (sem ser praticado com intensidade igual por todo o Brasil) era

conotável com a prática jesuítica e implicava uma deterioração da situação jurídica (ao

menos comparativamente) dos indivíduos que se integrassem na categoria de mestiços

de Índios e negros.

Note ‑se que a prática jesuítica de tutelar os Índios reunidos em reduções implica‑

va um processo de desarticulação do seu sistema social e da sua cultura (em sentido

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111lato). Assim, Nóbrega nos seus Apontamentos defendia, já em 1558, a produção de uma

lei que, relativamente aos Índios, os proibisse de comer carne humana e guerrear sem

a licença do governador (se quisermos uma forma de impedir as guerras inter ‑tribais

e contra os colonos, mas também de os colocar sob a direcção da administração por‑

tuguesa e de os utilizar para os objectivos daquela). No mesmo sentido, a aplicação da

justiça régia, tanto no interior das comunidades indígenas como nas relações destas

com os colonos. A autorização para terem apenas uma mulher e obrigatoriedade de

utilização de vestuário (ao menos para os cristianizados), bem como eliminação dos

pagés (fórmulas de rompimento dos modelos de constituição do social e de materia‑

lização da tessitura social segundo significantes produzidos e reconhecíveis pela cultu‑

ra autóctone). Por último, a fixação dos ameríndios em aldeamentos, com a concessão

de terras para o cultivo e sendo ‑lhes vedado o nomadismo. No fundo, fórmulas que

permitiam a inclusão dos Índios na esfera de influência jurisdicional, mas também

cultural, europeia (no caso portuguesa), na óptica jesuítica, ao serviço da sua conver‑

são e cristianização do modo de vida; aos olhos do Estado, pretendendo ‑se uma incor‑

poração e enquadramento face aos princípios de soberania nacionais. Na prática,

também segundo o modelo preconizado por Manuel da Nóbrega, se dotava os agru‑

pamentos indígenas de uma nova organização social, neste caso aplicando ‑lhes o méto-

do de sujeição – o suave jugo de Cristo – sem os quais entendia ser toda a cristianização efé‑

mera. Com efeito, a visão antropológica que Nóbrega tinha do Índio era a de papel

branco no qual se poderia gravar a mensagem cristã (e para o facilitar também o modo

cultural e civilizacional do europeu). É em relação com aquele fim, e segundo a meto‑

dologia que realçámos, que Nóbrega defendia que deveriam ser tratados como próximo,

já que todo o Homem tinha a mesma natureza22, podendo consequentemente, ter

conhecimento de Deus e, assim, salvar a sua alma. Realce ‑se, portanto, o enquadra‑

mento deste posicionamento da Companhia quanto ao comportamento em face do

Índio e do favorecimento da mestiçagem conducente à assunção da sua condição de

escravo. Tal medida integra ‑se num sistema filosófico que privilegia a conversão ao

Cristianismo, incluindo para tal a reconversão dos modos civilizacionais originais e

que não privilegia a noção de liberdade terrena do indivíduo, mas sim a sua salvação

eterna. Assim, uma das linhas de força dos missionários, muitos deles jesuítas, era a

22 A argumentação teológica que servia de base a este estatuto jurídico era a de que possuíam alma porque

todos os Homens haviam sido feitos à imagem e semelhança de Deus sendo, desse modo, susceptíveis de

conversão ao Cristianismo.

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112 prédica da submissão dos contingentes índios e africanos à sua condição de escravo e/

ou tutelado, na medida em que a mensagem de Cristo não visava a liberdade terrena,

mas sim a salvação eterna. Por último, convém não perder de vista a justificação (ao

menos teórica, mas muitas vezes genuína) da utilização da mão ‑de ‑obra escrava e a

constituição da Companhia como muito importante agente económico no Brasil. Esta

inserção na temporalidade visaria sustentar a expansão da acção missionária da

Companhia. Deste modo, a condição jurídica diminuída do Índio, do escravo africano

ou do mestiço destas duas categorias, visaria, primeiro, uma maior tutela destes pelos

seus evangelizadores e um pôr dos olhos na Cidade Celeste e não na dos homens. Por

outro lado, permitia sustentar a continuação da Cristianização junto de outros indiví‑

duos. Uma lógica que, pouco a pouco, se distanciava dos modelos estruturantes mais

correntes. E uma lógica que, aqui e ali, terá assumido contornos de extrita e exclusiva

finalidade temporal. Note ‑se que a assunção da mestiçagem entre negro e Índio per‑

mitia, assim, a detenção de uma mão ‑de ‑obra abundante e altamente renovável, aten‑

dendo ao facto de os jesuítas deterem a tutela (espiritual e temporal) de importantes

contingentes de ameríndios. Todo um sistema que, em conclusão, era antitético das

concepções filosóficas em emergência na sociedade ocidental e que, ao mesmo tempo,

chocava com as necessidades de ordenamento social e económico do novo modelo de

mercantilismo comercial, agrícola e mesmo industrial a que já nos referimos.

O directório Para aplicar convenientemente a Lei de 6 de Junho de 1755 e o Alvará com força

de Lei de 7 do mesmo mês, Mendonça Furtado redigiu o Directorio, que se deve observar nas

povoações dos índios do Pará, e Maranhão de 3 de Maio de 1757. Este tem pois a função de

regulamentar detalhadamente as leis de 1755, atendendo à sua correcta, justa e estrita

aplicação no território do governador. Ao longo dos seus 95 parágrafos enunciam ‑se

os principais objectivos que se pretende atingir, tendo em conta as especificidades,

pormenores e nuances na regulamentação que só alguém que conhecesse in situ as

relações de poder instituídas e especificidades locais poderia observar. Analisemo ‑lo

de mais perto.

O parágrafo primeiro do Directório23 é, desde logo, um enunciado da concepção

política que subjaz às leis que regulamenta e às quais já nos referimos. Refere que pela

23 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 166.

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113lei de 7 de Junho de 1755, decidindo “...abolir a administraçaõ Temporal, que os Regulares exer-

citavaõ nos Indios das Aldeas deste Estado; mandando -as governar pelos seus ... Principáes ... estes pela sua

lastimosa rusticidade, e ignorancia, com que até agora foraõ educados, não tenhaõ a necessaria aptidaõ ... para

o governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo -lhes naõ só os meios da civilidade, mas da convenien-

cia, e persuadindo -lhes os proprios dictames da racionalidade, de que viviaõ privados ... havera em cada huma

das ... Povoaçoens ... hum Director, que nomeará o Governador, e Capitaõ General do Estado ... dotado de ...

sciencia da lingua ... para poder dirigir ... os ... Indios debaixo das ordens, e determinações seguintes ...”24.

Transcrevemos uma tão extensa porção de texto porque nos pareceu significativa, por

si e pelo que nela transparece da valoração do legislador relativamente aos fenómenos

que regulamentava. Este primeiro parágrafo regulamenta a criação do cargo de

Director25, encarregado da execução/vigilância do exercício da justiça, comércio, cate‑

quese, ensino e moralidade. Mas de primordial importância, para percebermos a base

conceptual e a visão do real segunda a qual o legislador compõe a sua actuação, é a

motivação ou causa que apresenta (porque é como causa que surge) para a abolição

da administração temporal do clero regular nas aldeias de ameríndios. Retirada aquela

administração e pretendendo ‑se entregá ‑la aos principais das aldeias, o legislador

entendia ser tal impossível. Motivo – a rusticidade e ignorância em que haviam sido

mantidos pela educação que lhes fora ministrada. Estava assim enunciada a crítica da

política preconizada pelas ordens religiosas – de segregação/isolamento do Índio –

face a um outro modelo que o próprio Directório instauraria – de integração/mesti‑

çagem. No caso do Índio brasileiro a protecção (fruto do isolamento proporcionado

pela acérrima exclusão do universo branco do contacto com o ameríndio patrocinado

pelo clero regular) proporcionara a salvaguarda física de importantes contingentes

humanos (não necessária e integralmente da sua cultura e modo de vida) mas jamais

impediria e muito menos preparara ou apetrechara o Índio para o inevitável (a prazo

variável) contacto com o Branco que sempre tenderia para lhe ser desfavorável. Por

isso, a transitoriedade da função do Director, nomeado até que o novo sistema lhes

incuta a civilidade e racionalidade a que o parágrafo introdutório se refere, o que

24 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 166. 25 Nomeado pelo governador, o que salientamos, atendendo ao facto de traduzir uma filiação do cargo numa

hierarquia e quadro de dependência do poder de Lisboa, logo centralização política, que não apenas

administrativa. Realce ‑se ainda os requisitos de probidade para o desempenho de tal cargo (que compre‑

enderemos melhor ao analisar as suas atribuições), lado a lado com a noção das qualidades e competências

essenciais ao bom desempenho do cargo, no terreno, no que se destaca a sciencia da lingua.

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114 remete para o sistema filosófico das luzes e do racionalismo que impregna o governo

josefino. Mas, com esta argumentação, introduzia ‑se, igualmente, o conceito de meno‑

ridade do Índio e, com ele, a noção da sua necessária tutela. É nesse sentido que se cria

a figura do Director.

O segundo parágrafo26 remete para a atribuição do governo temporal das novas

vilas e aldeias respectivamente aos juízes ordinários, vereadores e oficiais de justiça no

primeiro caso, no segundo aos principais das aldeias. Mas nele se enunciam dois dados

essenciais que marcaram todo o regimento. A contenção da área de jurisdição do

Director que, pela fonte da sua nomeação para o cargo e capacidade de intervenção,

poderia exceder as suas prerrogativas. Por outro, uma função de fiscalização do desem‑

penho das entidades supracitadas a quem se conferia o governo temporal. Uma última

nota para a suavidade que o diploma prescreve nas sanções a aplicar em face do que a

lei comine. Motivação principal – “... para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as

suas Povoaçoens, tornando para os escandalosos erros da Gentilidade.”27 Portanto, e desde logo, a pre‑

ocupação sempre presente de manter tais populações inseridas no enquadramento do

Estado português e, subjacente, a questão do povoamento e senhorio das vastas e escas‑

samente povoadas terras amazónicas. Uma última nota para a “... igualdade do premio, e do

castigo ... equilibrio da Justiça, e bom governo das Republicas”28 que o legislador coloca como fun‑

damento de tal disposição e que aqui importam como testemunho de uma filiação

ideológica conexa com um certo iluminismo de matriz católica ( talvez com leves

influências jansenistas ), fundada no direito natural, na lei positiva e no ideal/valor do

Estado.

Essa matriz, senão católica e em parceria com a Igreja ‑instituição ao menos de

base cristã, parece ‑nos surgir logo no terceiro parágrafo e seguintes. Com efeito, o

legislador adopta uma postura de legitimação das medidas que implementa com base

na defesa da Religião e cristianização do Índio. Mais importante ainda a assimilação do

Cristianismo (não da Igreja...) ao acto civilizador e deste ao Bem do Estado. Assim,

enuncia que as providências de D. José I “...se dirigem unicamente a christianizar, e civilizar estes

ate agora infelices, e miseraveis Póvos, para que sahindo da ignorancia, e rusticidade, a que se achão reduzidos,

26 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 166 e 167. 27 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 167. 28 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 167.

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115possão ser uteis a si, aos moradores, e ao Estado...”29 Note ‑se a crítica aos regulares (e, portanto,

também, ou especialmente, aos inacianos) mas, sobretudo, a assimilação entre o inten‑

to evangelizador, civilizador e o interesse geral e do Estado. Estamos pois no centro da

política centralizadora, classificável (para muitos) de despotismo iluminado, mas tam‑

bém de um intensíssimo regalismo que cria (procura criar) a simbiótica de meios, fins

e objectivos. O Estado josefino não é anti ‑Igreja, não é descristianizador (bem pelo

contrário), é regalista, e intenta, nesse quadro, implementar reformas estruturais. De

alguma forma expressa legalmente as transformações do mental que lentamente se

operam e que processam a transferência de valores do social – de um horizonte de

castidade para o da primazia plena da família, de um horizonte ideal estruturante de

pobreza para o da valorização do trabalho e dos princípios de submissão e hierarquia

para o do protagonismo, intervenção do indivíduo no social, da centralidade da comu‑

nidade para a valorização do protagonismo individual. Estamos, pois num quadro de

secularização, não ainda num de laicização. Secularização que se traduz no intento de

cristianização (pelos párocos das aldeias e os prelados na diocese) e civilização (pelos

Directores) dos Índios, numa perspectiva europocêntrica. E aquela secularização

traduz ‑se no princípio de separação de esferas de competência que o quarto parágrafo

consagra30, ao estabelecer a cristianização dos Índios – matéria dita meramente espiri‑

tual – como tarefa exclusiva dos prelados diocesanos (não dos regulares, frise ‑se). Os

párocos designados pelos prelados só poderiam dedicar ‑se à catequese. Os Directores

deveriam conceder todo o auxílio à função espiritual do clero secular. Já a jurisdição

dos Directores terminaria onde termina o esforço de Civilidade dos Indios como consagra

o parágrafo quinto.31

Um dos aspectos muito interessantes que o diploma consagra é o papel e relevân‑

cia da língua, do idioma, como mecanismo de aculturação e enquadramento no uni‑

verso mental, cultural e conceptual da potência colonial. Logo, como factor de integra‑

ção, objectivo que já reconhecemos aos diplomas que o Directório regulamenta. Neste

sentido, a crítica à utilização da língua geral entre os Índios (crítica aos jesuítas que igual‑

mente reconheceram a língua como peça de construção do seu sistema de separação/

29 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 167 ‑168. 30 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 168. 31 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 168.

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116 distinção). Tanto o Português quanto a “Língua Geral” eram idiomas estranhos ao

Índio não ‑Tupi. O seu uso nas missões permitia estabelecer conexão com missões

espanholas delimitando, desse modo, um universo de acção jesuítica que se afirmava

como domínio (político?) próprio da congregação, independentemente de se exercer

em territórios espanhóis ou portugueses. Tornando, consequentemente, possível a sua

leitura como projecto político independente que ameaçaria as monarquias ibéricas.

O Directório estabelece, pois, no parágrafo seis, a obrigação para os Directores de

promoverem, nas suas circunscrições, a utilização da língua portuguesa, com a cons‑

tituição para tal de escolas (masculinas e femininas) para as crianças índias.32 Tal ensi‑

no seria obrigatório, o que demonstra o valor de tal aspecto para a integração preten‑

dida. Curiosa a separação e distinção dos currículos em função dos sexos, partilhando

o ensino da doutrina cristã, ler e escrever, mas reservando a álgebra para os meninos,

fiar, fazer renda e todos os mais ministério proprios daquelle sexo, para as meninas (como insti‑

tuía o parágrafo sete). Uma vez mais, o propósito é preparar as populações ameríndias

para a vida prática no contacto com a civilização ocidental, logo, segundo os seus cri‑

térios e princípios. A orgânica do novo sistema de ensino visava isso mesmo, mas

revestia ‑se de um aspecto singular. A percepção do papel reprodutor do universo cul‑

tural da mulher (e da mãe) no quadro social, para mais nos ameríndios brasílicos,

marcados pela escravatura e, tradicionalmente, pelo importante papel económico da

mulher indígena, v.g. para a subsistência do grupo. Nesse sentido, a salvaguarda do

parágrafo oito de que, no caso de não haver ninguém com a qualificação para ser mes‑

tra de meninas, estas se integrassem até aos dez anos na Escola dos Meninos.33 Note ‑se,

no entanto, que os mestres seriam pagos pelos pais dos alunos (oitavo parágrafo) aten‑

dendo ao grau da sua pobreza. Este aspecto é importante, na medida em que as Aulas

Régias previstas para a restante população seriam gratuitas. A exigência de um paga‑

mento por parte dos índios foge assim, à gratuitidade que caracterizou, no geral, a

importante reforma pombalina do ensino.

Um outro princípio que o Directório consagra no nono parágrafo34 é o do respei‑

to pela hierarquia como organizador e consolidador das relações sociais. Assim, a

32 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 168 e169. 33 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 169. 34 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 169 e 170.

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117prescrição no sentido de que os Índios dotados de postos fossem tratados com as hon‑

ras devidas às suas funções. Note ‑se que o legislador reforça a crítica ao comportamen‑

to das ordens missionárias pelo incumprimento de tal tipo de preceito, v.g. as Cartas de

1 e 3 de Fevereiro de 1701. Na prática, critica ‑se, também, o comunitarismo da organização

social e modo de produção das reduções jesuíticas. No mesmo sentido, de promoção

e defesa da pretendida visibilidade social da Igualdade e Liberdade (jurídica mas, tam‑

bém, real, concreta, não meramente teorética) dos Índios, a defesa de serem cognomi‑

nados de Negros, patente no parágrafo décimo.35 Dois pormenores interessantes.

Primeiro, a noção de que tal tratamento era igualmente aviltoso para o Estado que os

nobilitava mediante os cargos para os quais eram capacitados. Segundo, ao estabelecer

a proibição de que os próprios Índios se apelidassem de Negros, pela carga simbólica

e de estatuto que tal tinha no plano social, fica patente a compreensão pelo legislador

das dificuldades inerentes à adopção pelas populações autóctones dos quadros mentais

ocidentais, enformadores deste Regimento. Adopção que era condição indispensável à

sua aplicação real. Neste mesmo sentido a estatuição pelo parágrafo 11 de que, dora‑

vante, os Índios passassem a ter sobrenome (o que até aí não acontecia) como o fim

de facilitar a sua identificação, mas também de evitar mais um dado que os separasse

da população branca e livre. Segundo este fim, a ordem para que os Directores lhes

introduzissem os nomes das Familias de Portugal36 Portanto, surge ‑nos já o papel de fisca‑

lização dos Directores (dos párocos e mestres), no exercício das funções, mas também

de distribuição de honrarias e títulos aos Índios e vigilância/castigo dos brancos quan‑

do lhes chamassem negros. Um outro domínio no qual os Directores deviam intervir

era zelar pelos costumes impedindo que as famílias de Índios vivessem em promiscui‑

dade (para o que o 12º parágrafo prescreve a construção de casas à semelhança das dos

brancos)37, a ebriedade entendida como poderoso inimigo do bem comum do Estado (parágrafo

13.º)38. Atendendo ao mesmo fim, o parágrafo 15.º39 estabelece aos Directores a função

35 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 169 e 170. 36 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 171. 37 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 171. 38 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 171 e 172. 39 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 172 e 173.

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118 de introduzir junto dos Índios o desejo de se vestirem, segundo a qualidade de suas Pessoas, e das

graduaçoens de seus postos, combatendo assim a nudez, especialmente entre as mulheres, para

o que se invoca a razão e honestidade. Refira ‑se que a adopção de vestuário pelos Índios (e

vestuário europeu e segundo os ditames do vestuário europeu enquanto visibilidade da

hierarquia e estatuto sociais) era um importantíssimo factor tendencialmente igualitário

do Índio, de inserção no universo cultural do branco, de aculturação.40 Registe ‑se,

ainda, ( no 14º parágrafo )41 a preocupação (que já registámos anteriormente) em que,

da aplicação destas medidas, não resulte que os Índios se retirem do Gremio da Igreja, o que

implicaria, igualmente, a sua subtracção à soberania do Estado e a perda por este do seu

contributo. Note ‑se, pois, o evidente papel de enquadramento que a Religião tem para

o legislador (e, também, a oportunidade de invocar, em face destas medidas, que seriam

gratas a algum clero, a apresentação da sua finalidade, de incentivar a agricultura entre

os Índios, como forma de melhorar a sua condição e do Estado).

Neste sentido, a verdadeira declaração política em que se constitui o 16.º parágra‑

fo42, enquanto crítica aos resultados da entrega aos Padres Missionários da administração

econômica, e Política dos ... Indios, entendida como só realizável pela cultura e comércio.

Acusa o legislador que naõ se omittio meio algum de os separar do Commercio, e da Agricultura. É

sintomático do enquadramento cultural e mentalidade do legislador o 20.º43 parágra‑

fo em que enuncia dois princípios que concorreriam para a miséria dos Índios e do

Estado pela precariedade da agricultura. Assim, a ociosidade que considera congénita

às nações incultas ( cultura, portanto, como sinónimo de trabalho ) a que que faltam

as luzes do natural conhecimento e o errado uso que ... se fez do trabalho dos ... Indios ... applicados à utili-

dade particular de quem os administrava [...] os missionários, em particular os jesuítas [...]

40 Neste mesmo parágrafo note ‑se a crítica de Mendonça Furtado à desproporção entre a nudez dos Índios e,

como refere, a profanidade do luxo... entendido como vicio dos capitães e causa do empobrecimento e ruína dos

Povos. Por este e pelos anteriores parágrafos fica claro o conceito de civilização que o Directório torna presen‑

te: a Europa e os seus referenciais são o seu centro, o Mundo o seu campo de expansão que deverá tornar ‑se

Cristão, mercantil, tributário, agricultado, sedentário e socialmente diferenciado segundo níveis de poder

e obediência diferenciados. A função primeira dos Directores será, pois, educativa, orientando ‑se segundo

um princípio de perfectibilidade humana, segundo moldes europeus. Logo, seria um intermediário. 41 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 172. 42 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 173. 43 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 174 e 175.

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119havião de padecer os habitantes do estado o ... danno de não ter quem os servisse, e ajudasse na colheita dos

frutos. Enuncia ‑se, portanto, a falta de mão ‑de ‑obra para os colonos por força da inclu‑

são de importantes contingentes de Índios nas reduções jesuíticas. Assim, pelo 17.º

parágrafo44 atribui ‑se aos Directores a tarefa de persuadir os Índios à prática da agri‑

cultura para sua subsistência e comercialização dos excedentes da produção. Nesse

sentido, a preferência dada na atribuição dos cargos honoríficos, honras, privilégios e

empregos àqueles que se dedicassem à agricultura, como estabelece o 18.º parágrafo45

estimulando sentimentos estranhos às concepções indígenas como a ideia de lucro. O

empenho na produção pelos Índios é valorado como expressão e manifestação de leal‑

dade política à Coroa.

O Directório atendia à delicada questão da gestão da força de trabalho para todo o

serviço da colonização e qualquer categoria social de origem europeia que o requeresse.

Nesse sentido, actua como um regimento de trabalho e encontra a razão primeira do seu

carácter substantivo face ao Regimento das Missões. A sua inovação reside no facto de ultra‑

passar a intenção missionária da conversão religiosa dentro dos limites de uma missão e,

ao mesmo tempo que regulamenta as relações de trabalho, apresentar um plano de orga‑

nização económica do Pará, Maranhão e novas áreas em início de exploração e ocupação,

colocando, em primeiro lugar, no planeamento económico, a agricultura.

Para a exequibilidade destas disposições importava que as terras dos Índios fossem

suficientes à sua sustentação, pelo que a distribuição das terras devia fazer ‑se segundo

as leis da equidade e da justiça e tendo em atenção se as terras junto às povoações

indígenas não teriam sido concedidas em sesmarias a particulares.46 Assim, o Director

era encarregue de remeter uma listagem destes casos ao Governador do Estado para

que aos prejudicados se distribuissem terras, conforme o parágrafo 19.º.47

Os Directores deviam, portanto, incentivar ao cultivo da mandioca, como susten‑

ta o 22 parágrafo48, para a sustentaçaõ das suas casas, e familias, mas com que se possa prover abundan-

44 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 173 e 174. 45 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 173 e 174. 46 O principal problema, neste caso, seria a sua concessão em sesmaria a brancos, sendo as parcelas sujeitas a

benfeitorias e incorporação de capitais, traduzindo ‑se a sua devolução em prejuízo grave para aqueles.47 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 174. 48 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 175.

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120 temente o Arrayal do Rio Negro; socorrer os moradores desta Cidade; e municiar as Tropas ... a abundancia da

farinha, que neste Paiz serve de paõ, como base fundamental do Commercio, deve ser o primeiro, e principal

objecto dos Directores.Temos pois, uma utilização estratégica da mão ‑de ‑obra índia como

base para assegurar o sustento às vilas centralizadoras das actividades transformadoras,

extrativas e comerciais. Além desta cultura, que traduz, por sua vez, a inserção do bran‑

co na cultura indígena, os Índios seriam “... obrigados a plantar feijão, milho, arrôs, e todos os mais

generos comestiveis ... se augmentaraõ as Povoaço~es; e se fará abundante o Estado; animando -se os habitantes

... a continuar no interessantissimo Commmercio dos Sertoens, que até aqui tinhaõ abandonado, ou porque fal-

tavaõ os mantimentos precisos ... ou ... os excessivos preços ...”, conforme o 23.º artigo.49 Temos, pois,

uma potencial divisão estratégica da vida económica com o essencial do primário entre‑

gue aos Índios, o secundário e terciário aos brancos. A base agrícola do mercantilismo

comercial fica também bem expressa nos parágrafos 24.º e 25.º50 pelos quais se atribui

aos Directores a função de incentivo à cultura do algodão e do tabaco. Aquele como

ponto de partida para a instalação de Fabricas deste panno, este pelo importante consumo na

América, no Reino e também, o que o legislador omite, como moeda de troca para o

tráfico de escravos em África. Aconselhava ‑se, inclusivé, a concessão de cargos públicos

em recompensa aos plantadores mais capazes, como fórmula de incentivo.

Um dos aspectos mais importantes para a administração de Mendonça Furtado e o

governo josefino era a obtenção do sustentáculo económico que permitisse a imple‑

mentação das reformas económicas, sociais e administrativas que se traduzissem num

maior poder do Estado. Neste sentido, o incentivo à produção mas, também, a procura

de um saneamento da política fiscal, assumindo particular relevância a percepção dos

dízimos das aldeias e estabelecimentos indígenas a que sempre se haviam furtado sob a

protecção e direcção jesuítica. É segundo estas duas linhas de força – percepção de dízi‑

mos e incentivo à produção – que nos surgem os parágrafos 26, 27 e seguintes.51 Os

Índios, de acordo com o seu novo estatuto jurídico, equiparados aos brancos como

cristãos e civilizados, participam destas duas linhas de força. Deste modo, o Director do

povoado e os Índios proprietários assistiam à avaliação do rendimento das roças por

dois louvados, um pela Fazenda Real (sendo nomeado pelo seu representante) o outro

49 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 175 e 176. 50 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 176. 51 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 177, 178 e segs.

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121pelos lavradores (parágrafo 28)52. A Câmara ou o chefe indígena (no caso de se tratar

de uma vila ou aldeia) designava um terceiro no caso de se verificar um empate dos

votos (parágrafo 29).53 Note ‑se que neste mesmo passo se insere uma protecção (teó‑

rica) aos Índios, na medida em que se prescreve que se attenda sempre á notoria pobreza dos Indios;

fazendo -se a dita avaliação a favor dos Agricultores. O escrivão municipal redigia uma lista com o

registo de cada fazenda, nome do proprietário e respectivo rendimento, para uso do

governador, director e responsáveis pela cobrança dos dízimos de toda a produção local

(parágrafo 30)54 Os géneros arrecadados deviam ser remetidos para armazéns régios e

daí para a Provedoria, segundo a supervisão do director (parágrafo 31).55 O cabo da

canoa de transporte recebia do provedor uma certidão de entrega das mercadorias no

almoxarifado, apresentando ‑a no regresso ao director, a fim de ter quitação (parágrafos

32 e 33)56 Uma das observações mais nítidas desta sucessão de disposições relativas à

percepção dos dízimos e sua arrecadação consiste na malha de sucessivos controlos e

fiscalizações, recíprocas e sucessivas, do funcionalismo da Coroa. Igualmente, a respon‑

sabilização dos directores pela arrecadação e encaminhamento para os centros adminis‑

trativos dos dízimos, lado a lado com a sua defesa no caso de dano no transporte sem

dolo. Estamos, pois, em presença de todo um aparelho legal que limita em muito as

hipóteses de corrupção e negligência, porque as partes envolvidas na operação de

cobrança, transporte e recepção se obrigam à emissão de documentos, com valor jurí‑

dico, probatórios da legalidade nas operações efectuadas. Os Directores recebiam a sexta

parte da produção agrícola dos Índios sob a sua supervisão, bem como dos géneros não

comestíveis que adquirissem. Dos bens comestíveis produzidos auferiam a sexta parte

dos destinados à comercialização, deduzido previamente o consumo dos produtores

(parágrafo 34).57 Pretendia ‑se, assim, interessar os principais garantes no terreno da

52 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 178. 53 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 178. 54 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 178 e 179. 55 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 178. 56 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 179 e 180. 57 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 179 e 180.

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122 arrecadação dos dízimos, no bom desempenho daquela função. No entanto, é justo

questionar se a forma como está redigido este parágrafo 34 não encerra uma fina ironia

relativamente à eventual corrupção do funcionalismo.

Os parágrafos 35, 36 e 37 inserem ‑se directamente na temática comercial e

enunciam a relação umbilical e directa dependência que Mendonça Furtado, Carvalho

e Melo e o governo josefino encontravam entre o incremento agrícola (em grande

medida agricultura de mercado para exportação) e mercantilismo comercial.

Atendendo a este fim os directores deveriam demonstrar aos Índios “... a grande utilida-

de de venderem pelo seu justo preço as drogas, que extrahirem dos Sertoens, os frutos, que cultivarem, e todos

os mais generos, que adquirirem pelo virtuoso, e louvavel meio da sua industria, e do seu trabalho.”58 Os

produtos da floresta amazónica surgiam assim, na mira do interesse comercial e tri‑

butário do Estado, como mais uma peça do incentivo e promoção à expansão e desen‑

volvimento económico potenciador das forças do Estado. O parágrafo 37 apresenta‑

‑nos, desde logo, o Director como defensor dos interesses económicos dos Índios no

plano comercial, quer na venda dos seus bens, quer no acto de aquisição por aque‑

les.59 Tal restrição à liberdade de comércio era justificada, mais uma vez, pela sua

rusticidade e ignorância.60 No mesmo sentido, o parágrafo 39 61 que procura legiti‑

mar tal restrição, sensível, na medida em que uma das linhas de força do Directório

era terminar com a separação entre Índios e brancos. A justificação estaria no desin‑

teresse e ignorância dos Índios, por um lado, o conhecimento e ambição dos mora‑

dores, por outro, faltando assim no comércio a igualdade. No entanto, tais restrições

alargavam ‑se na medida em que, podendo escolher o pagamento em dinheiro ou

fazenda, seria interdito aos Índios (com fiscalização dos Directores) a aquisição de

aguardente (por ser nociva) e de bens supérfluos, como estabelecia o 40.º parágrafo.62

58 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 181.59 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 181 e 182. 60 Com efeito, a passagem de uma economia de subsistência para a lógica do mercado (mundial) e com base

monetária (logo, operando com valores abstractos) não seria fácil. Por este ponto regressa ‑se ao tema da

menoridade do Índio, sempre com base no argumento da sua rusticidade e ignorância, características

indutoras da protecção estatal. 61 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 182 e 183. 62 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 183.

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123A disposição de consumo do Índio teria, consequentemente, de se moldar à visão

utilitária dos seus designados “educadores ‑protectores”: o Estado, nas pessoas dos

quadros da administração local.

O tráfico de aguardente era considerado suficientemente negativo ( pela dissolu‑

ção dos laços sociais e desarticulação da força de trabalho indígena ) para merecer a

estrita regulamentação que lhe dedicam os parágrafos 41.º e 42.º.63 Note ‑se, no entan‑

to, que pelo 43.º parágrafo o legislador permitia que os Índios vendessem os géneros

que adquirissem ou os produtos do cultivo onde quisessem, exceptuado o necessário

para o sustento do seu agregado familiar.64 Note ‑se, atendendo ao mesmo parágrafo,

que os directores assistiam a todas as transacções comerciais sendo ‑lhes estritamente

proíbida a mercancia por conta própria. Anotavam no livro do comércio, rubricado

pelo provedor, as transacções realizadas, qualidade dos produtos, preços praticados,

nome dos contraentes etc..., para apresentar tais dados ao governador, conforme o

parágrafo 44.º.65 Por último, segundo o 45.º parágrafo66 deveriam persuadir os Índios

a venderem na cidade mais próxima os seus produtos, para o que se invoca o maior

preço dos produtos aí praticado e menor dispendio atendendo aos transportes. No

entanto, estamos de novo em face de uma medida que visa assegurar o encaminha‑

mento da produção para as cidades comerciais, administrativas e manufactureiras,

permitindo, assim, o seu eficaz abastecimento. Quanto ao controlo comercial, as

Câmaras afeririam os pesos e medidas, medida tendente a instalar a boa ‑fé e equidade

nas relações comerciais (parágrafo 38).67 A economia dirigida seria assim um mal

inevitável nas povoações indígenas, perspectiva que era partilhada pelo próprio

Carvalho e Melo. Deste modo, a principal distinção do sistema que se instaurava face

ao das reduções jesuítas era a supressão da posse comunitária dos meios de produção

e a orientação da produção para o mercado, especialmente para o sustentáculo dos

pólos urbanos ocupados pelas populações brancas.

63 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 183 e 184. 64 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 184. 65 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 184 e 185. 66 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 185. 67 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 182.

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124 Entre o comércio do Estado do Grão Pará e Maranhão, o economicamente mais

importante era o dos produtos do sertão, o que é confirmado pelo 46.º parágrafo e pelo

conjunto de disposições que o Directório consagra àquela matéria.68 Assim, a extracção

de produtos, mas também, as feitorias de manteiga de tartaruga, salga de peixe, óleo

de cupaiva, azeite de andiroba, salsa ou cravo... A primeira preocupação dos directores,

no que respeita a esta actividade económica, deveria residir no fomento à indústria

extractiva mais apropriada à região, como estabelece o 47.º parágrafo.69 Atendendo a

este princípio básico, igualmente a escolha da produção que exija um mínimo de mão‑

‑de ‑obra e de tempo, bem como a diversificação de produções dentro de cada comar‑

ca, o que provocaria a deflação nos preços de mercado desse género e a impossibili‑

dade de estabelecer circuitos comerciais regionais. Segundo o 49.º parágrafo70, os

lucros eram repartidos proporcionalmente ao trabalho realizado por cada um na

colheita e no transporte dos bens. No entanto, vemos de novo a primazia dada à agri‑

cultura como forma de assegurar a subsistência dos núcleos populacionais coloniais,

na medida em que só após a conclusão do cultivo das terras se procederá à chamada

dos principais e Índios para que os que o desejem participem nas expedições ao sertão.

Note ‑se a dimensão do interesse que o legislador atribui aos Índios neste trato, já que

no caso de todos desejarem participar, seriam rotativamente escolhidos para que não

se desamparassem as aldeias e vilas (novamente o papel do Índio como agente de

manutenção da soberania portuguesa). Refira ‑se ainda o limite ao engajamento da

população de Índios neste comércio, limite ao manuseamento dessas populações pelas

autoridades no terreno e barreira às extrapolações de competências e potencial confli‑

to entre as autoridades locais. Com efeito, as populações de Índios participantes nas

expedições ao sertão seriam apenas aquelas que pertencessem à distribuição das povo‑

ações. Pelo 50.º parágrafo71 estabelecia ‑se o número de indivíduos que cada habitante

poderia mandar na expedição. Note ‑se que a hierarquização patente na variação desse

número traduz a preocupação em favorecer gradativamente aqueles que mais directa‑

68 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 185 ‑191. 69 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 185 e 186. 70 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 186 e 187. 71 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 187.

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125mente influenciariam o sucesso da empresa. Seria igualmente uma forma de interessar

o poder local, o aparelho burocrático ‑administrativo e militar neste comércio, como

garante do cumprimento da lei. Note ‑se que todos esses trabalhadores ameríndios

receberiam salário e os oficiais seriam responsáveis pela observância desta disposição.

Note ‑se ainda a noção do atrativo desse trato, na medida em que o legislador impõe

que querendo as autoridades locais e representantes da Coroa participar com as suas

pessoas teriam que o fazer alternadamente, ficando sempre metade dos oficiais na

povoação.72 O que o Directório aqui reafirma é a necessidade de atender aos dois vecto‑

res centrais (e complementares) do novo plano de colonização: a organização de

povoações que actuassem como unidades económicas e, simultaneamente, como

núcleos de povoamento.

Câmaras, chefes e Director escolhiam e responsabilizavam ‑se pelo apresto das

canoas e tripulações (51.º parágrafo)73, ficando expressamente proíbido aos Cabos das

embarcações negociar directamente com os Índios. Note ‑se que os Cabos eram

no meados pelas Câmeras e principais ameríndios, mas sempre a contento dos Índios

participantes (53.º parágrafo).74 Para tal, assinavam um termo antes de partir, res‑

ponsabilizando ‑se com sua pessoa e bens por qualquer dano (54.º parágrafo).75 Neste

mesmo sentido, quando a expedição regressava, o Director do povoado sindicava sobre

a conduta do cabo, procedia ao lançamento dos géneros adquiridos no livro do comér‑

cio de que remetia uma guia ao governador do Estado e outra ao tesoureiro ‑geral dos

Índios (55.º parágrafo).76 Era ao tesoureiro ‑geral que cabia a venda dos produtos pelo

melhor preço possível (56.º parágrafo).77 A distribuição dos lucros e obrigações eco‑

nómicas concernentes às expedições traduzem uma hierarquia (essa sim real) das

partes envolvidas face ao Estado, garante e verdadeiro organizador. Assim, deduzia ‑se

do lucro obtido os dízimos, as despesas da expedição (transporte), o lucro do Cabo, a

72 Como salvaguarda da manutenção de uma presença mínima do poder do Estado?73 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 187 e 188. 74 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 188. 75 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 188 e 189. 76 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 188 e 189. 77 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 189 e 190.

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126 sexta parte dos directores e o restante (produto líquido da operação) era repartido

entre os interessados na empresa. Note ‑se a preocupação da Coroa em receber os dízi‑

mos devidos patente na disposição do 57.º parágrafo78 em que se estabelece que quan‑

to ao cacau, cravo e salsa tal obrigação pertencia aos compradores. Os mais produtos

(excluindo os frutos) seriam remetidos para a cidade onde pagariam os direitos.

Quando a venda dos produtos da indústria extractiva do sertão se processava na povo‑

ação, o director desempenhava as funções do tesoureiro. Pelo 58.º parágrafo79 institui‑

‑se também, no tocante ao comércio dos produtos do sertão, a tutela plena dos fun‑

cionários régios face aos Índios. Com efeito, seria o tesoureiro geral a comprar com o

dinheiro auferido por aqueles as fazendas de que necessitassem. No entanto, tal tutela

seria em boa verdade um mal menor face à possibilidade de serem, na prática, expo‑

liados do salário, resultado da sua participação em tais expedições.

Aspecto fundamental para a operatividade do sistema económico que o

Directório implementava em torno do estatuto e função dos Índios era a repartição

dos Índios entre os colonos. Uma das finalidades que presidiam à abolição das mis‑

sões era proporcionar mão ‑de ‑obra aos brancos sem luta e conflitos entre civis e

religiosos, que permitissem a prática da agricultura, a extracção das drogas e a

expansão do comércio. Isso mesmo afirma o legislador no 59.º e 60.º parágrafos.80

Neste sentido, a observação pelo legislador de que a inobservância das disposições

relativas a esta matéria pelos directores os constituiriam como “... Réos do mais abomi-

navel, e escandalozo delicto; qual he embaraçar o estabelecimento, a conservação, o augmento, e toda a feli-

cidade do Estado ...”.81 Neste sentido, o Directório, no seu 61.º parágrafo82, recorda o

Alvará de 6 de Junho de 1755 visando que os “... Moradores ... se naõ vejaõ precizados a

mandar vir obreiros, e trabalhadores de fóra para o trafico das suas lavouras e cultura das suas terras; e os

Indios naturaes do Pays naõ fiquem privados do justo estipendio correspondente ao seu trabalho ...”.

78 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 190. 79 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 190 e 191. 80 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 191. 81 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 191. 82 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 191 e 192.

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127Atendendo a este fim os directores deveriam, como estabelece o 62.º parágrafo83,

procurar não faltar com Índios ao colonos que se apresentassem com portarias do

Governador do Estado. A importância para o Estado deste aspecto da gestão do novo

estatuto dos Índios surge ‑nos pela determinação de que os Directores não deveriam

deixar de executar as referidas Ordens, ainda que seja com detrimento da mayor utilidade dos mesmos

Indios; por ser ... certo, que a necessidade commua, constitue huma Ley superior a todos os incomodos, e

prejuizos particulares.” Vemos aqui surgir claramente a ideologia que preside à raison d’état.

No entanto, o novo ordenamento relativo às ordens regulares dispensava a pretérita

divisão dos habitantes das aldeias e vilas indígenas em três fracções. Dos colonos, dos

missionários e uma terceira destinada a permanecer nas povoações. Era agora sufi‑

ciente que metade fosse distribuída entre os colonos que necesitassem de trabalha‑

dores e a outra metade se mantivesse sempre nas suas povoações para defesa do

Estado e quaisquer necessidades de mão ‑de ‑obra sentidas por este. É precisamente

isto o que estabelece o 63.º parágrafo do Directório.84 Os Directores inscreviam os

Índios dos 13 aos 60 anos em duas listas rubricadas pelo desembargador juiz de fora,

remetendo ‑as anualmente a este magistrado e ao governador do estado, conforme

estabelecido nos parágrafos 64.º,65.ºe 66.º.85 No entanto, os Directores e autorida‑

des indígenas de cada povoado (principais ou juízes) só entregavam os ameríndios

mediante apresentação de ordem por escrito do governador, especificando as licen‑

ças o tempo de serviço a prestar, conforme o 67.º parágrafo.86 De igual modo, deter‑

minava que não consentissem que os colonos retivessem os Índios para além do

tempo pelo qual lhes fora feita a sua concessão. Na prática, um modo de, em teoria,

defender os Índios dos excessos e exorbitações dos limites que a legislação impunha

à prestação destes serviços, face à eventual negligência ou corrupção dos directores

e principais. Note ‑se que os Directores e principais ficavam obrigados a remeter

todos os anos ao Governador do Estado uma lista dos transgressores para que fossem

punidos. Portanto, a intenção do legislador era claramente a de conter tais prestações

83 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 192. 84 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 192. 85 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 192 e 193. 86 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 193 e 194.

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128 de serviços dentro dos limites considerados necessários à manutenção da agricultura

e comércio do Estado. Realce ‑se que o empregador era obrigado a depositar anteci‑

padamente junto do Director dois terços do salário e entregar ao empregado índio

um terço, conforme os 68.º e 69.º parágrafos.87 Note ‑se que esta medida obrigava o

primeiro a pagar ao Índio (a parte mais fraca neste tipo de contrato, e de longe a

mais fraca pelos hábitos culturais arreigados) e o Índio a regressar ao seu povoado a

fim de receber a maior parcela do salário. Povoado em que, como já vimos, o Índio

era tutelado na realização de operações económicas, como compra e venda de bens.

No caso de os Índios desertarem do serviço para o qual tinham sido destacados antes

do estipulado prazo de seis meses os colonos poderiam, sob prova documental,

requerer a devolução dos dois terços do vencimento entregues aos Directores, con‑

forme o 70.º parágrafo.88 Verificar ‑se ‑ia, no entanto, se os colonos tinham dado

motivo a tal deserção o que, verificando ‑se, obrigaria à perda por aqueles de toda a

importância do pagamento acrescido de mais 100%. Note ‑se que com tal medida se

visava, à partida, assegurar condições de trabalho minimamente aceitáveis para os

Índios. No caso de falecer algum Índio ou ficando impossiblitado para o trabalho por

doença no exercício das suas funções, os colonos seriam obrigados a entregar ao

Índio ou aos seus herdeiros o salário merecido. Note ‑se quanto aos salários e seu

pagamento a preocupação do legislador em introduzir um parágrafo (o 71.º) exclu‑

sivamente destinado aos principais e representantes da Coroa (militares ou

administrativos).89 Reiterava ‑se também nesta categoria de pessoas a observação de

todas as determinações relativas aos pagamentos. Com uma nuance. O caso de “... como

Pessoas miseraveis naõ tenhaõ dinheiro, opu fazendas com que possão prefazer a importancia dos

Salários ...”90, o que não era muito abonatório do estado financeiro do funciona‑

lismo e não podia deixar de ser encarado como um grave óbice à sua integridade

no desempenho das importantes funções (para o correcto desempenho do

Directório) em que se encontravam investidos. Neste caso, assumiriam, não obs‑

87 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 194. 88 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 195. 89 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 195. 90 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p.195.

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129tante, um termo de responsabilidade por dívidas e seriam obrigados à satisfação

dos salários assim que recebessem com que obviar a esses passivos.91

O pagamento aos Índios poderia efectuar ‑se em mercadorias, contanto que a sua

avaliação fosse aprovada pelo Director, conforme o conteúdo do 72.º parágrafo.92 O

lucro permitido restringia ‑se, apenas, ao seu valor na cidade, acrescido das despezas

com os transportes.93 Pelo 73.º parágrafo94 ficavam os Directores obrigados a remeter

todos os anos ao Governador do Estado todas as informações relativas à utilização da

mão ‑de ‑obra índia segundo esta legislação.

A celeridade na aplicação das disposições do Directório é imposta aos Directores

no 74.º parágrafo95 como forma de restabelecer o estado das povoações dos Índios que

Mendonça Furtado classifica de ruinoso. Neste sentido, a incumbência de que se cons‑

truam edifícios camarários com a possível grandeza e cadeias públicas seguras. Enfim,

de novo a dupla utilidade do símbolo e sede material e cultural de soberania e o fito

de que as habitações dos Índios se façam à imagem das europeias, contribuindo desse

modo para a valorização das localidades. Um conceito que Carvalho e Melo utilizou na

reedificação de Lisboa.

O Directório estipulava ainda no seu 77.º parágrafo96 a população mínima de cada

povoado em cento e cinquenta habitantes. O legislador aponta como causas para tal

91 A grande questão que se coloca é a de, no caso de tal procedimento ser prática frequente (e excluídas já as cumplicidades socioprofissionais e locais), quem fiscalizaria e garantiria, de facto, a observância de tais disposições. O facto é que neste sistema de governo sobressai a facilidade com que o funcionalismo (especialmente os Directores) poderiam cometer abusos face a populações bastante primitivas e vivendo tão longe do governador da capitania. Poderiam ser prepotentes no desempenho das suas funções, desonestos na percepção da percentagem que lhes cabia ou defraudarem os dízimos da Coroa, apesar das medidas legislativas tomadas por Lisboa e por Mendonça Furtado. O facto é que Carvalho e Melo tinha consciência das deficiências deste modo de administração, mas não fora possível implementar outro melhor. Fiscalizar os Directores, significava deduzir, das já escassas rendas dos povoados do interior, os salários para funcio‑nários que, muito provavelmente, seriam subornados, constituindo mais uma despesa, no caso, inútil.

92 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira “Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 ‑1850)”, Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 195 e 196.

93 Ou seja, pretendia ‑se que a margem de lucro fosse idêntica à das cidades, não onerando os produtos para além dos custos de deslocação. Medida cautelar do poder de compra dos Índios, já que a distância enco‑rajaria, muitas vezes, a especulação. Note ‑se que qualquer prejuízo dos Índios, causado pela inobservância desta disposição pelos Directores, seria por eles coberto.

94 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, p. 196.

95 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 196 e 197.

96 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes, 1988, pp. 197 e 198.

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130 abandono as condições experimentadas em tais povoações ( numa crítica, prioritaria‑

mente, às ordens missionárias ) e o seu recrutamento forçado pelos habitantes (75.º

parágrafo)97. No entanto, o assunto é encarado com suficiente gravidade para que se

encomende aos Directores o envio ao Governador de “... Hum mappa de todos os Indios

ausentes ... dos que se achaõ nos Mattos, como nas casas dos Moradores, para que examinando -se as causas da

sua deserçaõ, e os motivos porque os ... Moradores os conservaõ em suas casas, se appliquem todos os meios

proporcionados para que sejaõ restituîdos ás suas respectivas Povoaçoens.”98 A solução encontrada de

reunir a população de várias aldeias para perfazer aquele número ou da prática dos

descimentos, patente no 76.º parágrafo99 só contribuía para revelar a decadência das

missões quando Mendonça Furtado assumiu as suas funções. Para que fosse praticável

o reagrupamento dos indígenas era necessário que os Directores estudassem os costu‑

mes das diversas tribos, averiguando se poderiam viver em conjunto, o que traduz a

compreensão pelo legislador dos Índios como representantes de organizações sociais

distintas, ficando patente que as diferenças étnicas e culturais figuravam entre os crité‑

rios a ter em conta no planeamento daquelas acções. É isto o que estabelece o 77.º

parágrafo a que já nos referimos onde, recuperando o estipulado pelo Regimento das

Missões, se estabelece em 150 o número de moradores (limite ideal) para a existência

das povoações. Recomendava ‑se, ainda, fortemente aos Directores que atraíssem os

nativos do interior por intermédio dos chefes indígenas, conforme os parágrafos 78.º

e 79.º.100 No entanto, como os descimentos eram incumbência do clero regular (que

pelo alvará de 7 de Junho de 1755 se encontrava removido de tais funções e de toda a

incumbência temporal) a situação era nova. Deste modo, os Directores deveriam adver‑

tir juízes ordinários, vereadores, oficiais de justiça e principais que a mais importante

obrigaçaõ dos seus postos consiste em fornecer as Povoaçoens de Indios por meio dos decimentos, ainda que seja

á custa das maiores despesas da Real Fazenda.”101 Note ‑se que se procurava favorecer o estabele‑

cimento dos Índios mediante descimento através da isenção de prestação de qualquer

97 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 197. 98 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 197. 99 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 197. 100 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 198 e 199. 101 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 198.

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131serviço durante dois anos, como estabelecido pelo 94.º parágrafo.102 Saliente ‑se a clara

nomeação do fim primeiro (e último com esta legislação) da Coroa: o aumento da

presença demográfica de populações súbditas de Portugal que pudessem surgir como

agentes de manutenção da soberania da Coroa em áreas disputadas e/ou remotas con‑

tribuindo, de um modo geral por todo o Brasil, para o crescimento económico.

Os brancos, apresentando atestado de bom comportamento assinado pelo governa‑

dor, poderiam viver nas aldeias mediante compromisso, registado no livro da Câmara,

de respeitarem as autoridades locais. Neste caso os Directores dar ‑lhes ‑iam todo o auxí‑

lio à instalação, nomeadamente pela distribuição de quantidade de terras que pudessem

cultivar sem prejuízo dos direitos dos Índios, (primeiros e naturais senhores das terras),

mas sendo concedida a posse aos novos moradores (conforme o 80.º parágrafo).103

Temos, pois, a oposição total à política defendida e efectivada nas reduções jesuíticas e

a peça central da legislação pela qual se elege a aculturação como fim. Com efeito, o

legislador afirma pretender com esta medida facilitar a civilização dos Índios e que as

“... Povoaçoens passem a ser naõ só populosas, mas civîs ...”104 No entanto, e atendendo a que os

Índios poderiam entender esta alteração como uma medida prejudicial, as condições de

admissão dos novos colonos deveria ser publicitada. Tais condições são expressas do 82.º

ao 86.º parágrafo.105 De essencial podemos destacar que aqueles nunca poderiam (em

qualquer circunstância) possuir as terras dos Índios. Seriam, igualmente, obrigados a

conservar com aqueles a paz e igualdade própria de vassalos iguais de um mesmo sobe‑

rano. Nos empregos honoríficos não seriam privilegiados, bem pelo contrário,

verificando ‑se discriminação positiva a favor do Índio quando em igualdade de compe‑

tências. Deveriam continuar os novos colonos a trabalhar as suas terras, agindo como

exemplo e factor de civilização para os ameríndios. Por último, que deixando de observar

qualquer uma das condições estabelecidas seriam expulsos, perdendo o direito de pro‑

priedade sobre as terras, lavouras e plantações. Neste sentido encomendavam ‑se os

Directores no sentido de velarem pela extinção da distinção entre Índio e Branco. Fim

102 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 203. 103 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 199. 104 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 199. 105 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp.200 e 201.

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132 enunciado, que tão bem expressa a mentalidade e objectivos do legislador – a paz, união,

concordia publica,e interesses públicos, conforme enunciado no 87.º parágrafo.106 Principal

meio para conseguir essa paz e união (resultantes da extinção da distinção) pelas quais

os Directores deveriam velar, a promoção por estes dos matrimónios entre os Brancos e

os Índios (88.º parágrafo).107 No mesmo sentido, a incumbência de castigar os cônjuges

que desprezassem a outra parte, desprezando o vínculo matrimonial e instalando a dis‑

córdia nessa união. Em tal caso deveriam relatar o facto ao Governador que os castigaria

como fomentadores das antigas discórdias (90.º parágrafo).108 Afinal, um reconheci‑

mento do papel da família como instância de reprodução dos valores sociais e como

unidade básica da vida económica, para mais no quadro de uma sociedade predomi‑

nantemente agrícola. Objectivo destes últimos parágrafos, obrigar os moradores a agi‑

rem de acordo com o novo estatuto jurídico dos Índios enquanto emancipados pela Lei

de 6 de Junho de 1755. É de realçar que o novo quadro jurídico e social que o Directório

vinha implementar e regulamentar demandava profundas alterações no comportamen‑

to e concepções dos próprios Brancos (autoridades e residentes) e.g. no que toca ao

trabalho braçal e ao escravo. A persuasão sobre a mudança de comportamentos exercia‑

‑se primeiro sobre os Brancos, tentando ‑se modificar a escala de valores e tornando o

que era tido por infâmia em factor de privilégio, como estipula o 89.º parágrafo. No

restante, o Directório concretiza teorizações contemporâneas no tocante à liberdade dos

homens e ao trabalho remunerado ou independente, realizado em benefício próprio.

Note ‑se que as medidas implementadas por este Directório foram confirmadas

por alvará de D. José I a 17 de Agosto de 1758109 e que, por seu turno, um alvará de 8

de Maio de 1758 declarava os Índios do Pará, Maranhão e Brasil livres.

Consequências O Directório pode, assim, ser lido como (mais) um instrumento do regalismo

de Lisboa na segunda metade do século XVIII, no sentido de combate à autonomia de

acções e à liberdade económico ‑financeira usufruída pelas ordens religiosas. Não tanto

106 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 201. 107 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 201. 108 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 201 e 202. 109 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 204 e 205.

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133(ao menos primordialmente) um combate às ordens religiosas mas a determinação

política do Estado de incorporar aquelas instituições no projecto colonizador concebido

por Lisboa para a América portuguesa. É no âmbito dessa estratégia que se compreende

a publicação (com larga difusão patrocinada por Lisboa) do opúsculo Relação abreviada

da República que os religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios das

duas monarquias e da guerra que nelas têm movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses de

1756. Aliás, todo o processo concernente ao Directório é marcado pelo recurso à difusão

baseada no impresso. Em ofício de 1759 assinado por Mendonça Furtado anuncia ‑se

a distribuição aos Directores de 300 exemplares do Directório. Distribuição, note ‑se, na

Amazónia do século XVIII, entre poucas pessoas com domínio da leitura e da escrita.

Surge, claramente, portanto, a ideia do Directório como instrumento de controlo e

vigilância sobre os administradores de Índios e, também, como referencial para quem

fosse iniciar empreendimentos de carácter económico. Os seus efeitos, esses, chegam

a todos os Índios do continente do Brasil pelo Alvará de 8 de Maio de 1758 que torna o

Directório lei geral.

Os últimos parágrafos do Directório (93.º, 94.º e 95.º)110 são um retomar da deli‑

mitação da recta conduta dos Directores – apresentados como tutores dos Índios – no

respeito pelas Leys do Direito natural, e Civil. A prescrição da observância de prudência,

suavidade e brandura no exercício das ordens, especialmente quanto à reforma dos

abusos, dos vicios, e dos costumes dos Índios. Por último, a recomendação aos Directores de

que “... só empreguem os seus cuidados nos interesses dos Indios ...”, para que a sua felicidade incen‑

tivasse os dos sertões a juntarem ‑se ‑lhes. Fim pretendido com isto, e na prática com o

Directório e a legislação que este regulamenta – “... a dilataçaõ da Fé; a extinçaõ do Gentilismo;

a propagaçaõ do Evangelho; a civilidade dos Indios; o bem commum dos Vassallos; o augmento da Agricultura;

a introducçaõ do Commercio; e finalmente o estabelecimento, a opulencia, e a total felicidade do Estado.”111

A tarefa de converter os Índios em cristãos, tarefa de finalidade religiosa mas, sobretu‑

do, educadora (civilizadora, na perspectiva coeva, europocêntrica) baseada na ideia da

sua transformabilidade, foi transferida no Directório para os Directores.

Por este enunciado expressa ‑se a questão central da legislação em causa – o esta‑

tuto e o papel do Índio na América portuguesa em face da situação conjuntural portu‑

110 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, pp. 202 e 203. 111 Cfr. In NETO, Carlos de Araújo Moreira Índios da Amazónia, de Maioria a Minoria (1750 -1850), Petrópolis, ed. Vozes,

1988, p. 203.

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134 guesa, brasileira e mundial, das grandes transformações culturais, mentais, sociais e

económicas que se operavam em meados de setecentos. Assim, a fé e o evangelho, que

traduzem não hipocrisia, mas a assunção de um pleno princípio regalista do estado

josefino, pela sua articulação com a opulência e felicidade do Estado.112 Esta, passaria

pelo favorecimento da Agricultura e do Comércio e, com efeito, a originalidade da

administração da Fazenda no reinado de D. José I residiu em enviar funcionários ple‑

nipotenciários (como Mendonça Furtado) e constituir nas colónias órgãos técnicos

para incentivar a lavoura e contratar especialistas em mineração. Até este reinado o

monarca limitava ‑se, quase em exclusivo, a perceber os impostos que lhe eram devi‑

dos. Agora passava a investir, dirigir (e a controlar, cientificamente) a produção, regulando

o social e mesmo o demográfico em vista dos fins a alcançar – o estabelecimento, a opulencia,

e a total felicidade do Estado, pelo augmento da Agricultura e introducçaõ do Commercio, potencializan‑

do as condições para o bem commum dos Vassallos. Temos, portanto, o Estado interventor,

fundamentado e em acção. No entanto, note ‑se que durante a Restauração Portugal

pouco pôde fazer pelo Brasil, que se constituira como a colónia mais valiosa, contri‑

buindo para a luta na Europa, a recuperação das possessões africanas e a expulsão dos

holandeses do nordeste brasílico. Nesta fase da vida da colónia, a autonomia dos

capitães ‑mores e Municípios atingiu o auge, lutando muitas vezes com o governo

central relativamente à liberdade de comércio e utilização da mão ‑de ‑obra escrava,

com a frequente vitória dos interesses que os primeiros representavam. No Brasil, o

governo central era fraco, a máquina burocrática reduzida, a Igreja detinha uma certa

independência, não existia qualquer código geral de leis e prevalecia uma significativa

autonomia regional e local. As próprias diferenças regionais e dificuldades de comuni‑

cação no espaço brasílico o justificariam, especialmente no isolado Estado do Grão Pará

e Maranhão. Face a isto, o reinado de D. José I marca o apogeu do absolutismo monár‑

quico ou, se quisermos, do Despotismo esclarecido. A estruturação de um Estado fun‑

dado nesses princípios não era compatível com a partilha de parcelas de jurisdição e,

nesse sentido, vemos o governo josefino a prosseguir a política adoptada nos reinados

anteriores de incorporação na Coroa das capitanias ainda na posse de particulares

112 A política de Carvalho e Melo em relação à Igreja, na colónia, reflectia a da metrópole. Reivindicava os

direitos jurisdicionais facultados ao rei pelo patronato. Um dos primeiros factores de conflito, residiu na

indicação dos prelados pelo monarca, o que o Papa relutava em aceitar. Neste sentido, o processo cro‑

nológico da expulsão dos Jesuítas surge como um movimento transformador breve mas que não rompe

integralmente com as estruturas anteriores, antes é um momento específico da lenta transformação das

instituições públicas e civilizacionais da Europa ocidental.

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135mediante a concessão de indemnizações. Do mesmo modo, outro aspecto central do

Directorio, o domínio temporal dos aldeamentos ameríndios por membros do clero

regular em que avultavam os jesuítas, insere ‑se na mesma política de centralização e

soberania do Estado. Conservando as missões, a maior parte das rendas continuaria a

ser remetida para a manutenção de conventos extramuros e para Roma. A produção das

aldeias do sertão autoconsumida ou embarcada e vendida nos mercados europeus não

contribuía para a expansão interna das potencialidades brasílicas. Os missionários per‑

sistiam em não ceder mão ‑de ‑obra ameríndia aos colonos. Logo, as missões prejudi‑

cavam a população branca do norte do Brasil e a expansão e fortalecimento do Estado.

Tal facto, somado às oposições e entraves relativamente às Comissões de demarcação

de fronteiras, ao papel social, económico e cultural detidos no Reino, no Brasil e nas

possessões portuguesas em geral, contrariava o projecto político e o regalismo josefi‑

nos. A questão dos Távoras e o (suposto) atentado ao rei terá sido um epílogo para uma

longa e dura luta em que a parte mais forte venceu levando à expulsão dos jesuítas do

Brasil e do Reino. Com efeito, os seus membros no Grão ‑Pará e Maranhão resistiram

denodadamente à nova orientação política adoptada pelo governo josefino na pessoa

de Mendonça Furtado, de que viria a resultar a proscrição da Companhia de Jesus da

América portuguesa. O confronto decisivo ocorreu, no entanto, entre 1754 e

1759.113

A descoberta do ouro e dos brilhantes favoreceu o processo de unificação do

Brasil, com vastas áreas a assumirem ‑se como fornecedoras do mercado de Minas

Gerais e São Paulo e a consequente abertura e dinamização de vias de comunicação

ligando o nordeste e o periférico sul ao centro aurífero. A orientação e fortalecimento

imprimidos por Carvalho e Melo ao Absolutismo monárquico e à centralização admi‑

113 Uma das consequências desta expulsão foi a reforma dos estudos secundários a partir de 1759, visando a

divulgação da doutrina cristã e da língua portuguesa entre as crianças índias, a secularização dos agentes

de ensino, a actualização da metodologia pedagógica segundo os princípios aplicados pelos estabeleci‑

mentos oratorianos e a actualização dos manuais escolares. A educação e o ensino da língua portuguesa

podem ser considerados, à luz do próprio Directório, como os instrumentos por excelência da desejada

sociabilização dos ameríndios. No campo da educação é de realçar que não foi a expulsão do clero regular

a levar à secularização dos agentes de ensino, mas a obrigação da divulgação da língua portuguesa – parte

integrante da estratégia josefina de fortalecimento do Estado e assunção da soberania – que os regulares

recusavam e era entendida pelo Estado como instrumento essencial de colonização e civilidade. Nesse

sentido a sua singularidade residiria no facto de ter abolido uma ordem e orientado a implantação de

outra, sendo exemplo de secularização e incorporando uma experiência pioneira de formação da ideia de

sociedade civil. O que não obsta a que a expulsão dos Jesuítas se tenha traduzido num inelutável empo‑

brecimento cultural e educativo de Portugal.

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136 nistrativas, só foi possível graças à unificação da colónia, ao nível comunicacional, de

fluxos económicos, administrativo, mas também étnico, cultural, linguístico... As

medidas proteccionistas implementadas permitiram igualmente um aumento do inter‑

câmbio económico com o Reino, conferindo eficácia final geral ao sistema.

Uma centralização ainda assim, nunca levada ao excesso e centrada mais na direc‑

ção política do que na gestão administrativa, confiada aos representantes no terreno,

estritamente vigiados. A conjuntura económica favorável, com inflação dos preços dos

produtos agrícolas permitiu o arranque de um verdadeiro ressurgimento agrícola da

colónia e mesmo de alguma indústria com ele ligado. A companhia do Grão ‑Pará e

Maranhão teve, neste processo de renascimento e recomposição económica do Norte

brasílico, um papel de primeiro plano. Note ‑se que em 1819 o Maranhão concentrava

12% da população escrava do Brasil, cifrando ‑se assim em quarto lugar.114 Desde o

final do século XVIII, com as grandes exportações de algodão e arroz, vivia ‑se a sua

fase áurea, estimulada pelo surto da Revolução Industrial europeia e pela Guerra da

Independência dos Estados Unidos da América.

No que toca à aplicação real do Directorio, importa referir a dúvida quanto ao suces‑

so da política de miscigenação. Com efeito, só depois de uma análise cuidada dos

registos de casamento das paróquias de todas as capitanias será possível avaliar o grau

da sua aplicação. Nas listas nominativas de habitantes os Índios praticamente desapare‑

ceram, restringindo ‑se os dados aos Brancos, pardos e negros. Os Índios só eram con‑

tabilizados como tal no caso de estarem aldeados.

De facto, ainda no fim do período colonial o separatismo dos aldeamentos indígenas

continuava a subsistir. Já quanto à posse da terra, na prática, era muito difícil transformar

as aldeias em vilas e garantir aos Índios a posse das terras adjacentes, permanecendo v.g.

a contradição entre a obrigatoriedade do cultivo das suas terras, quando metade da popu‑

lação deveria estar à disposição do Estado para tudo o que fosse real serviço e a outra

metade trabalhasse para os moradores pelo período de seis meses. Que tempo ocupariam

os Índios no cultivo próprio? E, se se contava com a tradicional divisão sexual do traba‑

lho, seria tal modelo operativo numa agricultura mais diversificada e exigente do que a

tradicional agricultura de coivara? É duvidoso. Quanto aos Índios enquanto povo(s),

cultura(s) e civilização, a secularização operada pela política pombalina, substituindo o

114 Cfr. Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Luso Brasileiro. 1750 ‑1822, direcção de Joel Serrão

e A. H. Oliveira Marques, vol. VIII, Lisboa, Editorial Estampa, 1986, p. 35.

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137regime das missões por um esforço de intervenção e de integração das populações indí‑

genas aldeadas ao sistema colonial, catalizou extraordinariamente o processo de desor‑

ganização dessas comunidades iniciado nos assentamentos missionários. Apesar do

esforço da política josefina na Amazónia no sentido de integrar, organizar e engajar os

Índios ao serviço do Estado e dos particulares, os resultados concretos foram pouco sig‑

nificativos atendendo aos grandes contingentes de ameríndios disponíveis nos aldea‑

mentos das antigas missões, agora secularizadas. A sucessão de revoltas na Amazónia, em

que o período é fértil, demonstra que os Índios – tribais mas também, aldeados – muitas

vezes não se integraram na economia e sociedade coloniais.

Por fim, a Carta Régia de 12 de Maio de 1798 aboliu o Directório dos Índios e

determinou que não se lhes fizesse guerra alguma, mesmo a defensiva, e essa só em casos

extremos. Propósito explícito, o de integrar os Índios na sociedade colonial e eliminar os

efeitos abusivos propiciados pelo controlo, pelos Directores de aldeia, dos rendimentos

auferidos com o trabalho dos Índios. Note ‑se que não apresentava fórmulas novas, face

às conhecidas e já praticadas, de partilha de um mesmo espaço social entre Índios e

Brancos. Papel relevante na extinção do Directório teve D. Francisco de Sousa Coutinho

com a sua Infirmação sobre a civilização dos índios do Pará de 2 de Agosto de 1797, onde se defen‑

dia a extinção do cargo de Director, fonte de todos os abusos e distorções pelo larguíssi‑

mo poder administrativo de que se achava investido e pela rarefacção das instâncias de

controlo do seu exercício no imenso espaço brasílico. Objectivo, prosseguir com a trans‑

formação do Índio, num quadro da sua eterna menoridade e à figura da tutela. O

Director terá sido, de facto, o ponto fraco do Directório, mas a precocidade da ideia de

fracasso do projecto do Directório surgiu, desde logo, pela verificação de muitas baixas

populacionais por doenças endémicas, só compensadas pelos descimentos. No entanto,

logo que chegou ao Brasil, o regente determinou – pela carta régia de 13 de Maio de

1808 – que se fizesse guerra ofensiva contra os Botocudos em Minas Gerais e, do mesmo

modo, contra os Bugres, recomeçando, sob o pretexto da guerra, o verdadeiro regime de

cativeiro e escravidão. As providências que se seguiram acabaram por se constituir em

política de substituição dos Índios por colonos brancos. No reinado de D. João VI, a polí‑

tica indígena transformara ‑se em política anti ‑indígena, sunstituindo ‑se, assim, por uma

política de rejeição radical do Índio que deveria ser eliminado fisicamente e substituído

por populações mais condicentes com as exigências do “Progresso”.

Como vimos, o Brasil conheceu durante o governo de Carvalho e Melo impor‑

tantes transformações. A preocupação primeira da Coroa consistiu na manutenção da

integridade das fronteiras saídas do Tratado de Madrid, base da adopção de políticas

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138 de fomento da imigração, intensificação do povoamento, reconhecimento geográfi‑

co e cartográfico, edificação de estruturas defensivas e, mediante a legislação que o

Directório regulamenta, a concessão de liberdade aos Índios. Este documento legis‑

lativo é, pois, uma das múltiplas peças pelas quais se procura assegurar uma sobera‑

nia, mediante o desenvolvimento e integração de territórios e de gentes. Talvez o

Brasil busque aí a origem (para o melhor e para o pior), não tão romântica mas

profundamente fundante, da sua existência como a Nação e como o Povo que conhe‑

cemos no contexto internacional, surgindo o Directório como instrumento jurídico

muito relevante no plano interno, português, e enquanto instrumento enquadrável

no âmbito dos projectos e equilíbrios de Portugal no concerto internacional, em

sede da afirmação de uma política externa nacional na qual o Brasil avultava como

pólo da maior relevância.NE

FONTES

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140 MONTEIRO, Miguel Maria Santos Corrêa, O Padre Inácio Monteiro (1724 -1812), um jesuíta

português na dispersão [texto policopiado]: contribuição para a história da Companhia de Jesus durante a

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141África, perspectivas para el futuro

Gisela Guevara*

n Abstract:

Después del impacto profundo del colonialismo y de la Guerra Fría en África, el con‑

tinente busca actualmente nuevos caminos para su desarrollo. El artículo tiene como

objetivo principal llevarnos, a través de los caminos de la historia que marcaron tan

duramente este continente, a un presente que, a pesar de estar todavía dominado

por conflictos étnicos, pugnas por ricos recursos naturales, entre otras problemáticas,

apunta a un África más consciente de sus potencialidades.

n Key words:

Africa´s colonial past, Africa´s instability, Great powers competition for Africa.

1. Una pesada herencia colonial William easterly llamó la atención para el hecho de que

la visión que el mundo tiene del continente africano es demasiado negativa y nunca

muestra mejoras de lo que realmente está pasando. Easterly dice que no se puede sólo

pensar en términos de medidas ‑limosna, concluyendo: “Could it be that we don´t

know as much as we think?” (EASTERLY, Los Angeles, 2007).

El norteamericano subraya el hecho que nuestra percepción de África esta cargada

de estereotipos que no corresponden a la realidad. La África sub ‑sahariana tuvo un

crecimiento de 6% en 2006 y Burkina Faso, tan frecuentemente atacado por el Banco

Mundial, esta teniendo buenos logros en la escolarización, de hacer envidia a los logros

obtenidos por otros países en vía de desarrollo en las ultimas décadas. Por otro lado,

Easterly coloca el “dedo en la herida” cuando menciona que la supuesta “ayuda” occi‑

dental a África no se hace sentir respecto a asuntos fundamentales como el de los

productores africanos de algodón, a quienes no se les permite competir en igualdad

de circunstancias en los mercados occidentales.

* Docente universitária em Política Comparada de África e do Médio Oriente e Política Comparada da União Europeia, na Universidad del Norte, Colômbia.

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142 Un pasado cargado de paternalismo colonial tiene, hasta nuestros días, efectos

dañinos en la forma como se enfoca los problemas en varios territorios en el mundo,

en especial en África. Para el premio Nobel de Economía 2001, Stiglitz, es imcompren‑

sible el hecho que el FMI no escuche los analistas locales cuando se trata de definir el

mejor futuro para los países. Esto fue el caso, a juicio del profesor de la Universidad

de Columbia, cuando a finales de los noventa el FMI no tuvo en cuenta las opiniones

del primer ministro de Etiopía, que conoce mucho mejor el país que los funcionarios

de dicha institución (VV AA, 2007, pp. 288 ‑289).

Según menciona Maria Emilia Madeira Santos, la coordinadora del Instituto de

Investigación Científica Tropical de Lisboa, el ayer pre ‑colonial esta de nuevo emer‑

giendo en África. A partir de mediados del siglo XIX el continente asistió a una violen‑

ta ocupación de las potencias coloniales europeas que, por vía de una “pacificación”,

es decir, una ocupación militar, se encargaron de destruir culturas y estructuras políti‑

cas africanas en nombre del “progreso”. Se siguen acciones militares muy duras. Para

Madeira Santos es poco importante si fueron los portugueses, británicos, franceses o

belgas los que llevaron a cabo estas acciones. El resultado fue el mismo: “Hay ejércitos

a avanzar, hay tratados firmados sin que el jefe africano sepa exactamente lo que esta

ocurriendo” MADEIRA SANTOS, Lisboa, 2007, p. 18). Pero la investigadora menciona

que gracias a un arduo trabajo de investigación cartográfico la matriz pre ‑colonial esta

emergiendo. No se trata de provocar conflictos sino devolver a los PALOP (Países

Africanos de Lengua Oficial Portuguesa) su verdadera historia y cultura. El lema es

ahora regresar al pasado a través de los mapas para redescubrir los antiguos caminos

que definían el poder político africano. Madeira Santos subraya: “Los africanos deben

conocer su ayer inmediato a la instalación del sistema colonial por que era ahí que ellos

estaban”(Ibid., p.19).

El colonialismo tuvo un impacto profundo en todas las dimensiones y esferas de

las sociedades africanas. Al analizar las implicaciones del derecho europeo sobre las

sociedades africanas, John Powelson afirma que este ha sido, a largo plazo, doblemen‑

te negativo: en primer lugar se negó a los africanos la posibilidad de negociar ellos

mismos la forma cómo desearían configurar sus sociedades y resolver sus problemas.

En segundo lugar “las prerrogativas de los jueces locales y tribales, fueron mutiladas

bajo el colonialismo y la concentración de poder en la ciudad central continuó hasta

la independencia” (POWELSON, John, 2006).

Estas consideraciones nos llevan a cuestionar si nuestra mirada hacia los problemas

de África no debería dejar para tras los modelos occidentales. Recordemos que ya

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143Lumumba había afirmado en los años sesenta que los arquetipos europeos no podrían

ser aplicables al continente negro y que se tendría que buscar un camino propio.

Patrice Lumumba (1925 ‑1961) era partidario de un Estado centralizado respetador de

las diferentes etnias. Roger Louis, un experto francés en temas africanos afirmó, que

éste “era el único hombre posible para África. El líder africano pensaba que ninguna

ideología europea podría ser aplicable a África y que esta tendría que buscar la suya”

(“C´était le seul homme possible pour l´Afrique, il pensait qu´aucune idéologie euro‑

péenne n´était aplicable a l´Afrique et qu´elle devrait trouvait la sienne propre”)

(LOUIS, Roger, 1979). Estaríamos así hablando de una vía africana.

A partir de mediados del siglo XIX África asistió a la gradual abolición de la

trata de esclavos; por los menos en el papel, ya que a pesar de que los buques bri‑

tánicos y franceses pratullaban las costas africanas para evitar la trata, esta seguía

floreciente. La penetración europea en el continente se haría entonces de forma más

contundente.

Cuando los europeos no lograron dominar los poderes locales por las armas

hicieron uso de otras estrategias. Así siendo, en algunos territorios como en Ruanda,

las relaciones étnicas se deterioran bajo la administración colonial belga (que se

sucede a la de los alemanes, en 1919). Bajo el lema divide et impera, los belgas difun‑

dieron la idea que la minoría tutsi era racialmente superior a la mayoría hutu. Se

difunde la idea que los tutsi eran “caucasianos negros” que habían llegado de

Etiopía. Se impulsa así, por parte de los poderes coloniales, el racismo entre los mis‑

mos africanos.

A todo estos factores se juntarán también aspectos sociales y económicos que

vuelven agrias las relaciones entre las dos etnias, pues los tutsi son los que poseen el

ganado y la tierra. Según Coquery ‑Vidrovitch, tanto en Ruanda como en Burundi tene‑

mos una sociedad de castas donde una población campesina se encontraba al servicio

de clanes que controlaban la tierra y el ganado. Sin embargo, para la investigadora, los

dos grupos étnicos eran permeables a través del matrimonio o de la alternancia de

funciones. Antes de la llegada de los belgas no había una estricta rigidez social. Esta

autora subraya: “hay que ser prudentes, pues la distinción no siempre está resuelta en

la práctica (...) tanto desde el punto de vista étnico como desde el punto de vista de la

repartición de áreas” (COQUERY ‑VIDROVITCH, 1985, p. 39).

En inicios del siglo XX el jefe hutu, Kilima, que dominaba el noroeste rwandés,

ya había ordenado las primeras matanzas de los tutsi. Cuando en los años sesenta del

siglo XX, la independencia es proclamada, se hace de forma muy conturbada. La mayo‑

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144 ría hutu (90%) tiene muchos resentimientos contra los tutsi (9%), pues estos habían

sido favorecidos por los belgas en los cargos administrativos entre otros (CORTES

LOPEZ, 2001, p. 501).

Desde la independencia en 1963, se hacen frecuentes las masacres a los tutsi, lle‑

vando muchos integrantes de esta etnia a tener que buscar refugio en países vecinos.

En los años noventa se forman “escuadrones de la muerte” para asesinar a los tutsi y a

los hutu moderados. Empezó el genocidio que llevará a las muertes de miles en la

África Centro ‑Oriental, con importantes implicaciones para la política de países como

el Zaire (después Republica Democrática de Congo).

Burundi conoce una descolonización más armoniosa, pero cuando la monarquía

termina en 1966, el nuevo régimen procede a la eliminación sistemática de las élites

tutsi, que responden con matanzas sistemáticas de los hutu, por temor a que se le quite

su poder, pues desde la independencia los tutsi se aseguraron los puestos en el Ejército

y Administración. La tensión entre las dos etnias radica, entre otros, en el hecho que

los tutsi, la minoría de la población (14%), no quiere compartir su poder con la mayo‑

ría hutu (85%). La Conferencia de los Grandes Lagos, celebrada en finales de 1995, no

solucionará los conflictos étnicos en los Estados Interlacustres y en 1996 el primer

ministro burundés, un tutsi, declara: “La ideología de la exclusión y del genocidio va

ganando terreno”. (Declaración de Antoine Naduwayo, tutsi, Primer Ministro burun‑

dés, en inicios de 1996 apud CORTEZ, p. 497).

En el siglo XIX habían surgido planes megalómanos por parte de los europeos

entre los cuales estaba el de unir Angola a Mozambique, el llamado “Mapa Color de

Rosa”, de los portugueses, o el Cabo al Cairo, alimentado por el británico Rhodes, el

Dakar ‑Djibouti, soñado por los franceses, o la Mittelafrika, tan acariñada por los alema‑

nes (GUEVARA, Gisela, 2006, p. 77 y ss).

Se da entonces un progresivo desarrollo de las actividades misioneras y comercia‑

les y, paralelamente, se difunden ideas peyorativas de que los pueblos africanos no

habían hecho nada notable ni duradero antes de la llegada de los blancos.

Desafortunadamente, estas ideas han inhibido por décadas la curiosidad histórica sobre

la época pre ‑colonial y han dado base justificativa para los atropellos a los derechos de

los africanos.

En inicios del siglo XIX habían emergido algunas potencias africanas; es el caso de

Egipto, que, partiendo de una situación de subordinación a la voluntad del Imperio

Otomano, es conducido por Mehmed Ali a fundar un Estado moderno. El gran jefe

inicia una firme política exterior con dos ejes principales: 1) Lograr mayor autonomía

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145frente al Imperio Otomano; 2) Afirmar un espacio de decisión mayor frente a las gran‑

des potencias europeas. Egipto se expande entonces hacia la región de Arabia para

controlar la zona estratégica de las rutas comerciales y dominar los márgenes del mar

Rojo. Pero los designios geoestratégicos de Mehmed Ali se chocan con las ambiciones

de los europeos.

Así los planes del egipcio (de origen turco) para ocupar Siria encuentran oposici‑

ón por parte de los británicos que temen que la decadencia del Imperio Otomano lleve

a un vacío de poder ocupado por un Egipto poderoso. Cuando Mehmed Ali rechaza un

ultimátum de los europeos, las principales ciudades costeñas sirias son ocupadas por

buques europeos.

Egipto perdió el estatus de potencia en la segunda mitad del siglo XIX. Este terri‑

torio pasó gradualmente a ser administrado por los británicos. Ante serios problemas

financieros, los gobernantes egipcios terminan por vender las acciones del Canal de

Suez, lo que genera un contencioso que estallará en los años cincuenta del siglo XX,

cuando Nasser decide nacionalizar el Canal.

Ocupado por Gran Bretaña en 1882, Egipto se hunde y da paso a la liberación de

otros pueblos; es el caso de Sudán, que había resistido ferozmente a los ocupantes

egipcios se libera. Pero, la aparición de los Mahdi, fanáticos religiosos, preparan tiem‑

pos marcados por la Gihad (Guerra Santa). La abolición de la trata de esclavos, que

había afectado los intereses de los comerciantes islamizados, llevó a una gran inestabi‑

lidad que seria entonces aprovechada por los Mahdi. Estos se habían organizado alre‑

dedor de Mohammed Ahmad, que predicaba el “islam puro”. En 1881 la revuelta

organizada por el Mahdi (el mesías) lleva a la tomada de Jartum. El nuevo Estado islá‑

mico duraría hasta 1894.

Un siglo después se asiste de nuevo al fundamentalismo religioso en la vida polí‑

tica del país. Con la toma del poder en 1989, a través de un golpe de Estado, los extre‑

mistas musulmanes intentaron crear un Estado islámico con la Sharía como referencia.

Esto nos conduce a una de las problemáticas futuras de África: En qué medida extre‑

mismo religioso, problemas étnicos y la pugna de varios grupos alrededor de los

recursos natural puede llevar a un coktail explosivo en algunas regiones africanas y

desestabilizar regiones como el Oriente Medio?

El conflicto Sur ‑Norte fustiga desde hace décadas el Sudán. Aspectos históricos,

problemas étnicos y religiosos producieron, entre otros, un escenario inestable. A fina‑

les del siglo XIX los británicos habían decidido compartir el dominio sobre Sudán con

Egipto. Se formara entonces un condomínio angoegípcio. Posteriormente, en el siglo

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146 XX, el rey Faruk ambiciona unificar a los dos países, lo que lleva a Gran Bretaña a con‑

ducir una política de autonomía de las regiones sureñas del Sudán, de mayoría cristia‑

na, donde predominan campesinos y ganaderos africanos contra el norte, de mayoría

musulmana.

Durante la transición a la independencia, en los años cincuenta del siglo XX estal‑

ló una guerra civil en Sudán. Había surgido la conciencia en el sur que había que

oponerse a los atropellos del todo poderoso norte. Se formo en ese entonces un movi‑

miento clandestino, el Anya Nya. En los sesenta el gobierno estuvo dirigido por Sadiq

al ‑Mahdi, el nieto del Mahdi. Este personaje dominaría durante décadas la escena polí‑

tica sudanesa.

En los años ochenta la guerra secesionista se mezcla con la pugna por las riquezas

naturales del sur sudanés, pues la agricultura intensiva en el norte del país había tenido

nefastas implicaciones medioambientales. Jartum procede a deportaciones masivas de

poblaciones africanas, condenadas al hambre. Los niños están sujetos a ser capturados

y adoctrinados por los “islamistas puros”.

A finales de los noventa Asan el ‑Tourabi, arquitecto de la islamización pierde algu‑

na fuerza, pues se empieza a hacer sentir el aislamiento de Sudán en el escenario

internacional. Las relaciones con Etiopía empeoran, pues Jartum es acusada de infiltrar

extremistas en el territorio de su vecino. Por su parte, Uganda apoya a la guerrilla

antiislamista de John Garang. Estados Unidos hará entonces todos los esfuerzos para

aislar Jartum apoyando Etiopía, Egipto y Uganda contra el Sudán que protege Osama

Bin Laden. El país tiene un valor geoestratégico relevante, pues hace el puente entre el

África Central y el Mar Rojo. Sus yacimientos en petróleo no son de despreciar, lo que

añadirá otros actores al juego complejo sudanés. China apoyará la China National petroleum

para firmar un acuerdo con Jartum para explotación petrolífera. Mismo Israel no pare‑

ce ignorar la importancia del país y esta atenta a todo lo que en este se pasa, pues ahí

se albergarían militantes del Hamas.

Con una dinámica política e histórica especial, el poderoso vecino del Sudán al

norte, Egipto sufrió un desarrollo que tenemos que mencionar, como ejemplo de

alguna contraposición a los hechos sudaneses. En los veinte y treinta del siglo XX, los

británicos habían prometido la independencia a Egipto. Sin embargo, se rehusaban a

liberar el canal de Suez. En los años cincuenta Gamal Nasser (1918 ‑1970), de orígenes

humildes (su padre era funcionario de los correos), toma el poder y promete a su

pueblo liberar el país de los ocupantes. Nasser ya había estado en 1929 encarcelado

por luchar por la completa independencia del país frente a los británicos. En 1948

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147había participado en la guerra israelí ‑árabe. Su decepción fuera grande cuando se pro‑

clamaba la creación del Estado de Israel en mayo del mismo año.

El nasserismo tendrá gran influencia en la política de los países árabes en los cin‑

cuenta y sesenta. Nasser es el gran defensor de la unidad árabe. Defiende que los recur‑

sos naturales del mundo árabe deben estar al servicio de los intereses de sus pueblos y

no de los países occidentales, considerados imperialistas. Nasser apela en varias ocasio‑

nes a la unidad pero redefine el concepto de panarabismo al fundamentar la identidad

árabe en la historia común de lucha por conseguir la completa independencia frente

al colonialismo occidental. Su rol será fundamental al apoyar la independencia de paí‑

ses como Argelia, Libia y Yemen.

Para Nasser el panarabismo era el medio estratégico para lograr el desarrollo y la

modernización de los pueblos árabes. Sin embargo, los enemigos de Nasser no se

encuentran solamente en el campo de las potencias occidentales que no desean dejar

el Canal de Suez. El gobernante también lucha contra el fanatismo religioso. Cuando,

en 1955, Nasser apoya la conclusión de un tratado con los británicos que comprome‑

ta estos últimos a abandonar el Canal de Suez dentro del plazo de veinte meses, los

Hermanos Musulmanes atentan contra su vida. Nasser se salva pero sus relaciones con

los extremistas religiosos quedarán rotas. Como afirmó Bertrand Badie “La desconfian‑

za de un Nasser frente a los hermanos musulmanes o de un Nehru frente a las agita‑

ciones panhinduistas se ha revelado fundamentada con la perspectiva del tiempo.”

(BADIE, Bertrand, 2000, p. 106).

En política exterior, Nasser aprovecha el creciente peso en el escenario internacio‑

nal de los países afro ‑asiáticos para lograr más margen de maniobra entre la URSS y

Estados Unidos. Estamos en plena Guerra Fría y el gobernante egipcio desarrolla la

estrategia de lograr más autonomía frente a los dos titanes de la política mundial, cre‑

ando el movimiento de los No alineados. El dirigente egípcio tiene una meta: construir

una fuerte conciencia nacional (DORAN, Michael, 1999, p.35 y ss.; OWEN, Roger,

2006, p. 52 y ss)frente a los intereses de las potencias que deseaban imiscuirse en los

asuntos del país. Pero su política interna es controvertida. El “Faraón rojo” decidirá

disolver los partidos. Hasta nuestros días Egipto esta lejos de ser una democracia pero

hay indudable consenso en la comunidad internacional que su papel es fundamental

como moderador de conflictos en el Oriente Medio y en la contención del fundamen‑

talismo islámico. Véase, más últimamente, el papel importante de mediador que Egipto

jugó en el conflicto Israel ‑Palestina en finales de 2008 e inicios de 2009 respecto a la

Franja de Gaza.

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148 2. Recursos naturales, rivalidades étnicas y religiosas: seguirá la maldición? Desde los

atentados del 11 de septiembre 2001, el cuerno de África, caracterizado por ser una

región de tradicional choque entre el mundo africano y el mundo árabe, ha sido

sujeto a especial atención por parte del mundo occidental. Estados Unidos y muchos

países europeos temen que este vasto territorio en el África oriental, que se extiende

desde el Mar Rojo por países como Somalia y Etiopía, y que abarca, saliendo de

las definiciones estrictamente geográficas, el Sudán, se convierta en el refugio de

terroristas internacionales.

Estados Fallidos como Somalia presentan un riesgo muy grande para la estabili‑

dad de una región que ya se debate con serios problemas étnicos, religiosos, políti‑

cos y económicos. Los collapsed states tienen algunos rasgos en común: la implosión de

estructuras de autoridad y legitimidad que, al mismo tiempo, aniquilan la soberanía

del Estado. Para Santiago Tazón, del Grupo de Estudios Estratégicos, el sistema polí‑

tico somalí se redució al “pago de tributos y peajes constantes” a los señores de la

guerra, es decir, las milicias armadas que dividen ese territorio. Por eso el autor

compara la actual Somalia a la Europa medieval, dividida entre señores feudales que

constantemente provocaban guerra y donde la autoridad de un monarca era muy

débil.

Otro aspecto que merece ser referido en los procesos de descentralización de la

guerra, que afectan especialmente el continente africano, es el hecho que en los collap-

sed states la población civil ha tomado las armas para defenderse de grupos criminales,

por lo que, como afirma Eric Lair, los civiles terminan por convertirse en actores de la

guerra, aunque intermitentes. Además, como afirma el mismo autor, la población civil

pasa a estar sujeta a un “terror intimidante y desmoralizante”, pues el ataque pasa a ser

“una señal enviada al entorno” (LAIR, Eric, 2003, p. 98 ss.)

Frente a la anarquía reinante en Somalia, los islámicos extremistas ganaron terreno

imponiendo la sharia en muchas partes del territorio. Ya desde inicios de los años

noventa se había instalado el sistema de los tribunales islámicos que asumieron las

funciones policiales de un Estado en vía del colapso. El problema es que estos Tribunales

tienen una interpretación muy estricta del Islam, lo que se enfrenta a una Somalia que,

por tradición, había sido islámica pero tolerante. Así, en la realidad, los integristas no

tienen una base de apoyo muy amplia en el país. Sólo se aprovecharon de circunstan‑

cias especiales de inestabilidad política para imponer la ley islámica. Si el integrismo

somalí se une a un norte del Sudán árabe, la región puede sufrir gran inestabilidad; y

eso preocupa las potencias occidentales.

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149Después de la guerra de Irak, el Oriente Medio volvió a entrar en una etapa de

gran inestabilidad. África, que ya era un importante proveedor de petróleo, sobre todo

a Estados Unidos y a algunos países europeos, adquirió importancia crucial. El conti‑

nente negro pasó a ser palco de una lucha tenaz por recursos naturales, donde nuevos

actores, como China o Brasil, potencias emergentes, adquieren importancia creciente.

Entre las potencias emergentes interesadas en África, queremos destacar China y

Brasil. En los años cincuenta y sesenta, en el contexto de la Guerra Fría, la relación de

China con África era más ideológica. Desde los noventa los motivos de los intereses de

la gran nación asiática por el continente se volvieron más comerciales. Mientras tanto,

el país se convirtió en el tercer socio comercial de África, detrás de Estados Unidos y

la Unión Europea (S.A., “China y África: Amores sin interés”, 2007). En el primer

semestre de 2007, el comercio de China con África registró el valor de 39 billones de

dólares, lo que corresponde a un aumento de 30% respecto a año anterior (S.A.,“China

set to beef up ties with Africa”, 2007). Algunos analistas consideran mismo que si los

precios del petróleo y de otros recursos se dispararon en África es a raíz de la gran

demanda de las industrias chinas.

Brasil también pasó a dar mucha importancia a sus relaciones con África. El

gobierno brasileño amplió el crédito a Angola para permitir la conclusión de la central

hidroeléctrica de Capanda (la central hidroeléctrica de Capanda se ubica en la provin‑

cia de Malanje, en el norte angoleño) y la contratación de nuevos proyectos para infra‑

‑estructuras en el país. Además crecen las inversiones de Petrobrás en África. Para

Claudio Oliveira Ribeiro, África pasó a tener un rol privilegiado en la política exterior

de Brasil (RIBEIRO, Claudio Oliveira, 2007).

El país tiene mismo un proyecto ambicioso de integración con África. Se trata de

integrar la Comunidad de Países de Lengua Portuguesa (FPLP), con la Zona de Paz y

Cooperación del Atlántico Sur (ZPCAS) en un trasfondo de cooperación entre

MERCOSUR, la Comunidad para el Desarrollo de África Austral (SADC) y la Comunidad

Económica de los Estados de África Occidental (ECOWAS). Por su parte, los Estados

africanos se esfuerzan para aplicar reformas macroeconómicas y políticas con el apoyo

de la Unión Africana (UA), la SADC, la ECOWAS y la Nueva alianza para el Desarrollo

de África (NEPAD), que ya mostraron claras señales que tienen interés en impulsar

dichas reformas.

Otro actor importante en África es Estados Unidos. Olvidadas las antiguas pugnas

con la URSS alrededor del continente negro, que llevó al sacrificio de tantas vidas, la

potencia ambiciona liberarse de su extrema dependencia del petróleo del Oriente

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150 Medio. Actualmente, 15% de las importaciones de petróleo estadounidenses provienen

de África. Además, hay que tener en cuenta que, potencialmente, el continente podría

proveer los EE UU con 25% de sus necesidades de importaciones petrolíferas (Artículo

de PRINCETON/DORFF, 2007). En 2003, sólo Nigeria se había convertido en el sép‑

timo productor mundial de crudo y el cuarto en exportaciones para Estados Unidos

(DELGADO CAICEDO, Jaime, Jerónimo, 2005).

La cuestión que se coloca a respecto del “oro negro” y otras riquezas es ¿ si en los

países africanos la abundancia de tan abundantes y ricos recursos naturales podrá bene‑

ficiar en el futuro la población?. Petróleo y gobernabilidad son temas que están siendo

intensamente debatidos con el objetivo de proporcionar más beneficios a los pueblos

de África. Durante décadas solamente unas pocas minorías acumularon fortunas colo‑

sales con los recursos naturales africanos. Es de mencionar que el debate sobre el

desarrollo de los países no puede solamente concentrarse alrededor de los recursos

naturales. Países como Holanda crearon riqueza luchando contra la naturaleza.

Para Jerónimo Delgado “el petróleo podría fácilmente ser la salvación para un

continente que, desde su independencia, ha estado marginado de las dinámicas mun‑

diales, pero para esto, es necesario la creación de mecanismos que garanticen una

óptima utilización de los recursos.” (DELGADO CAICEDO, 2005). Así siendo, para este

académico los niveles de gobernabilidad, democracia y transparencia deben ser mejo‑

rados para garantizar una distribución más equitativa de los beneficios de los recursos

naturales. A este respecto, el presidente del Banco de Desarrollo Africano, Donald

Kaberuka, afirmó: “África está ahora mejor dispuesta para la prosperidad económica y

a un mejor gobierno que lo que ha estado en décadas.” (S.A.,“China y África: Amores

sin interés?”, 2007).

Uno de los países africanos que actualmente preocupa la comunidad internacional

por su abundancia en recursos naturales y problemas étnicos y religiosos, conforman‑

do una de las combinaciones más peligrosas para la estabilidad regional del noreste

africano, es Sudán. Ya habíamos mencionado en 1. que en el siglo XIX este territorio

había sido palco de un movimiento integrista islámico, el de los mahdi. Pasado más de

un siglo, en 1995, el ministro adjunto de Asuntos Exteriores de Sudán afirmaba que el

papel del país en el mundo árabe era ser “el modelo de renacimiento islámico.”

(HUBAND, 2004, p. 343). A partir de entonces el país ha conducido una política exte‑

rior con el objetivo de extender la influencia del país en el cuerno de África.

Sudán consideró a Somalia, que estaba colapsando como Estado desde inicios de

los noventa, como un territorio propenso a su expansión ideológica. Esto se chocó con

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151los intereses de Estados Unidos, cuya presencia era mal vista por los africanos integris‑

tas. Sudán habría también apoyado ideológicamente y con armas los rebeldes de Eritrea

que deseaban establecer un Estado islámico. El fracaso de Estados Unidos y de la ONU

en pacificar Somalia sigue proporcionando un terreno fértil para los integristas. A todo

esto hay que añadir una pesada herencia de la Guerra Fría.

En Sudán, después de una larga guerra civil entre el sur y el norte, se logró llegar

a un acuerdo entre las dos partes. Se trataba de establecer un equilibrio político entre

el norte árabe ‑musulmán y el sur negro ‑cristiano ‑animista. La guerra prolongada entre

Jartum y los grupos rebeldes cristianos tuvo un trasfondo en el cual jugaron un rol

importante los recursos naturales. Así, el norte ambiciona expandir sus intereses

comerciales hacia el sur, pues allí esta por explotar petróleo y yacimientos de níquel y

uranio.

Jartum acordó dar mayor autonomía a los rebeldes. Sin embargo, cuando el sur

decidió que seria deseable trasladar los acuerdos firmados a la región del Darfur (que

había tenido autonomía hasta 1916), el norte reaccionó negativamente, pues esto

implicaría el replanteamiento del poder en el país: el occidente sudanés se juntaría al

sur contra el norte. A raíz de esta pugna política y también étnico ‑religiosa (aunque en

el sur y en occidente también tenemos árabes y africanos musulmanes) surgió en 2003

el conflicto del Darfur.

Las potencias occidentales y las potencias emergentes tienen los ojos puestos en el

Sudán por su posición geoestratégica, su papel en el tema del terrorismo internacional

y sus recursos naturales. China que tiene una enorme carencia en reservas energéticas

ha tenido intensas relaciones con Jartum en los últimos años. El país ha invertido en

oleoductos dirigidos a Port Sudán, para exportar el petróleo de que tanto necesita. Sin

embargo, si se concreta la posibilidad de transportar petróleo por el sur sudanés, con

oleoductos que serían conectados a través del Chad y a Camerún, ‑ un plan que sería

alimentado por Estados Unidos ‑, el Sur adquiriría mucho más poder económico y

político. Será este uno de los motivos que habría llevado el presidente sudanés al Bashir

a realizar en 2007 un viaje para entrevistarse con el papa Benedicto XVI? Oficialmente,

el ministro de Asuntos Exteriores de Sudán afirmaba que la odisea italiana tenía como

objetivo “el diálogo de civilizaciones y el diálogo entre Cristiandad y el Islam.”

Será el futuro del continente africano dominado por una pugna entre los intereses

de Estados Unidos y los de China? O podrán los africanos, después del trauma de la

Guerra Fría que asoló países como Angola, Somalia, Etiopía, entre otros, contener la

ambición de las potencias occidentales y emergentes?

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152 3. El largo camino hacia la democracia Las décadas que se siguieron a las independencias

de los países africanos, con la oleada más importante de descolonización en los años

cincuenta y sesenta del siglo XX, fueron marcadas, en la mayoría de los países del

continente, por golpes de Estado y dictaduras. En el cuadro de la Guerra fría, las

grandes potencias “cerraron los ojos” a las arbitrariedades practicadas por parte de

muchos líderes contra políticos de oposición o minorías étnicas. Lo que interesaba a

las potencias era ganar apoyantes contra el otro bando. ¿ Podría haber entonces una

esperanza para la democratización del continente tras el final de la Guerra Fría?

En junio de 2006 la Unión Africana rechazó una Carta sobre la democracia que

podría dificultar la manutención indebida en el poder de más de un jefe de Estado

africano. Dicha Carta tenía el objetivo, entre otros, de fortalecer el proceso electoral en

los países africanos, retirar legitimidad a los golpes de estado y restringir las manipu‑

laciones de las constituciones con el objetivo de permitir una permanencia indefinida

en el poder de algunos presidentes actuales. Esta última cláusula terminó por ser deter‑

minante en el rechazo de dicho documento. Según afirmó una observadora de los

debates que se dieron alrededor de la Carta Africana para la democracia, “the main

contention was around the clause that talks about people not being allowed to mani‑

pulate the constitution to extend their terms of office” (S.A.,“AU turns down demo‑

cracy charter”, 2006).

Uno de los casos más flagrantes de aferramiento al poder en un país africano es

el de Robert Mugabe. Cuando, en 1980, la minoría blanca fue obligada a dejar el poder

a la mayoría negra, Mugabe surgió entonces como el hombre fuerte de Zimbabwe

(antes Rhodesia), finalmente reconocido como país por la comunidad internacional.

Desde los años noventa, la Unión Europea y Estados Unidos hacen frecuentes acusa‑

ciones contra los métodos fraudulentos que Mugabe utilizaria para ser reelegido. El

proceso político de acaparamiento del poder por parte de este líder político ha sido

acompañado por un deterioro de la situación económica del país hasta nuestros días;

al cual se juntó en finales de 2008 una epidemia de cólera que la OMS computa en

miles de muertos.

Para asegurarse la manutención en el poder, el gobernante lanzó una campaña

demagógica contra los terratenientes blancos, que estigmatizó como “enemigos de

Zimbabwe”. Todo esto tenía supuestamente el objetivo de redistribuir las tierras de una

minoría, que, de forma “legitima”, debían estar en manos de la población negra. En la

realidad, muchas acciones “pagaban” los favores de algunos grupos de milicianos que

apoyaban Mugabe en el poder por medio de acciones menos ortodoxas. Los resultados

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153fueron catastróficos, pues justamente los granjeros blancos permitían una importante

entrada de divisas en el país por el tabaco exportado. Así, la reforma agraria llevó, entre

otros factores, al colapso económico del país.

Sin embargo, la grave crisis alimentícia que azota la población zimbabweña llevó

a la comunidad internacional a mostrar sus intenciones de ayudar al país. Así, Mugabe

tendrá, en cambio, que cumplir requisitos de transparencia democrática y aceptar la

mediación del presidente sudafricano en el proceso de democratización del país si

desea la ayuda de los demás países. La Comunidad de Desarrollo del África Austral

(SADC) juega un importante rol en toda esta dinámica. Pero contrariamente a todas a

las expectativas de la comunidad internacional, Mugabe no permite un cambio demo‑

crático en su país.

De Mozambique llegan señales positivas en esta dirección. Recordemos que en

1975 la antigua colonia portuguesa se convertió en un Estado independiente bajo la

dirección de Samora Machel, que estableció un régimen unipartidista. Hasta 1975 la

historia del país había sido marcada por resistencias a la colonización portuguesa

(PELISSIER, 1988, p. 32 ss). Después de la independencia la Asamblea popular solo

tuvo representantes de la FRELIMO, cuya doctrina era el marxismo ‑leninismo. En el

cuadro de la Guerra fría, Mozambique sufrió una sangrienta guerra civil. Sudáfrica,

potencia regional, armó y asesoró la RENAMO en su lucha contra la ideología del

Estado marxista. La guerra sólo terminó en los años noventa.

Tras la muerte de Machel en 1988, Joaquim Chissano intentó liberarse de la estric‑

ta la ortodoxia comunista. Finalmente, en 1990, en el contexto del final de la Guerra

Fría, fue votada una nueva Constitución que reconoce el pluripartidismo y la economía

de mercado. En 1992 el gobierno y el jefe de la guerrilla de la RENAMO lograron

llegar a un acuerdo de paz. El presidente Chissano terminó por anunciar su intención

de no candidatarse a un tercer mandato. El país, que se contaba entre uno de los más

pobres en el mundo cuando salió en los años noventa de la larga guerra civil, muestra

actualmente una buena recuperación económica. En 2006 la economía creció en un

10% y en los primeros meses de 2007, el gobierno aprobó un paquete de inversiones

por el valor de 1300 millones de euros.

La comunidad internacional deposita también esperanza en el proceso de demo‑

cratización de Angola, que, tal como Mozambique, sufrió las trágicas consecuencias de

una guerra civil alentada por los dos bandos de la Guerra Fría (HUBAND, 2004, p. 63

y ss). El país muestra un crecimiento económico que se acerca del 19%, valor que

sobrepasa, en larga medida, el promedio de la mayoría de los países africanos. Además

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154 la economía pasó a estar menos dependiente del petróleo, pues los sectores no depen‑

dientes de éste recurso natural crecieron en 2006 un 25, 7 %, comparado con el 14,7%

en 2005 (S.A., Angola Wirtschaft, 2006).

Sin embargo, Amnistía Internacional sigue denunciando las violaciones de dere‑

chos humanos en Angola por parte de las fuerzas del orden. Son frecuentes las arbitra‑

riedades ejecutadas por la policía. Las raíces de este fenómeno remontarían a los

tiempos de la Guerra fría, cuando muchos agentes policiales procedían de las fuerzas

armadas. Recordemos que el proceso de democratización en Angola se deparó con

serios obstáculos desde el inicio de la independencia, en 1975. Finalmente, cuando, en

1994, los dos bandos rivales, el MPLA y la UNITA firmaron el protocolo de Lusaka, las

segunda de estas facciones, liderada por Savimbi, no respetó dicho acuerdo. Este rea‑

nudó en 1998 la guerra. Solamente en 2002, con la muerte del jefe de la UNITA, se

abrieron reales perspectivas de democracia para Angola.

Como menciona Mohamed El ‑Khawas, el éxito de este proceso político en el

país depende de la voluntad de las dos facciones de encontrar un camino que per‑

mita la completa transición democrática. El autor menciona igualmente que entre

otros obstáculos a dicho proceso se encuentran problemas étnicos y regionalismos

que “sabotean la democratización y la integración nacional” (EL ‑KHAWAS, 2005,

pp. 58 ‑ 59).

África del Sur es indudablemente un buen ejemplo de una democratización

realizada a partir de circunstancias muy adversas. Tras décadas de apartheid, el país

entró, en los años ochenta, en una seria crisis económica. Estos años fueron tambi‑

én marcados por una dura represión a los opositores del régimen de Botha. A fina‑

les de los ochenta la minoría blanca de la República Sudafricana se había aferrado

al poder. Esta minoría correspondería a un 25% de la población total, constituida

sobre todo por descendientes de británicos y holandeses. Nada parecía hacer prever

un cambio.

Sin embargo, en 1990 empezaron las primeras negociaciones entre el ANC

(Organización política que había estado en la ilegalidad durante el apartheid) y el

gobierno de De Klerk, el hombre que finalmente había tenido la conciencia de que

todos los sudafricanos debían tener los mismos derechos: “Nuestro objetivo es que

todos los sudafricanos, de una forma justa y equitativa, formen parte del proceso polí‑

tico y tomen decisiones en Sudáfrica.” De Klerk cumplió sus promesas. Liberó a

Mandela, que había estado durante décadas encarcelado por sus convicciones y, final‑

mente, se inició el proceso de democratización del país.

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155Fue entonces promulgada una nueva constitución, que terminaba con años de

discriminación racial y, en referéndum, se aprobó el cambio político. Muchos de los

soldados del MK (brazo armado del ANC) fueron integrados en el nuevo ejército

nacional sudafricano. En abril de 1994 las elecciones multirraciales permitieron la

victoria del Congreso nacional de Mandela, que pasó a ser el primer presidente negro

de la república surafricana. El ANC dejó su orientación marxista ‑leninista y hoy el país

es un buen ejemplo, incluso para Colombia, de una reconciliación entre varios sectores

de la sociedad.

La Comisión para África (creada en 2004 por Tony Blair, entonces primer ministro

británico, para generar ideas y nuevas acciones para volver África más próspera) que

trabaja en estrecha cooperación con la Unión Africana y la Unión Europea, identificó

dos aspectos fundamentales a ser mejorados en lo que respecta a asuntos de goberna‑

bilidad en África. Por un lado, la capacidad de desarrollar y aplicar políticas. Por otro,

la imputabilidad, o sea, la respuesta que los gobiernos deben dar a la población de sus

países para los problemas fundamentales existentes. Se trata de asegurar, entre otros, el

refuerzo de los poderes de los parlamentos; aumentar la transparencia de los ingresos

y gastos en los presupuestos elaborados, sobre todo, en países con abundancia de

recursos naturales; luchar contra la corrupción; reforzar los derechos de la mujer; inte‑

grar la diversidad de grupos étnicos y religiosos; mejorar la gestión de los recursos

naturales y asegurar la crucial inversión en infraestructuras hidráulicas y energéticas,

lo que por su vez, integraría los sectores más desprotegidos de las sociedades africanas

en las dinámicas de desarrollo.

Hoy en día África descubre que la vía democrática parece ser el único camino

para la estabilidad de las sociedades. Para la Vice ‑presidente del Banco mundial para

África, Obiagili Ezekwesili, se trata de algo esencial el hecho de involucrar los

ciudadanos africanos en proyectos del Banco Mundial, para así impulsar “una vía

africana”:

“The things we do as an institution will be very important, because if they (the

citizens) are involved then they know we are doing things with their governments and

they are able to hold us and their government to accountability.” (Entrevista a la Vice‑

‑presidente del Banco mundial para África, 14.06.2007).

Para el analista brasileño Claudio Oliveira, la estrategia de prevención de conflictos

por parte de la UA (Unión Africana) deberá también tener en cuenta el asegurar de la

construcción y el refuerzo de la democracia en un continente donde la integración

sigue siendo un sueño.

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156 4. Quo Vadis Africa? El 1,7 millón de emigrantes del la región subsahariana que vive

en Europa podría pasar a tener un papel fundamental en la recuperación de

sus respectivos países. El Banco Mundial esta invitando a muchos de ellos para

incorporarse a proyectos de empresas que tengan un espíritu social. Sin embargo,

el continente se debate con algunos obstáculos a su recuperación. El fenómeno del

“Brain drain” es uno de los más serios.

Para desarrollarse, los países africanos necesitan de mano de obra calificada.

Lamentablemente, los egresados universitarios prefieren Europa o Estados Unidos

para su futuro laboral. Ya en 2000 se había debatido muy en serio la marcha hacia

los países desarrollados de universitarios africanos. Según estimaciones, entre 1991

y 2000, 383 000 africanos habían dejado su país por Estados Unidos. África del Sur

ha perdido 1/3 de sus doctores para países como Australia, Canadá y Reino Unido

(EL ‑KHAWAS, 2005, p. 94 ‑95).

El problema reside, entre otros, en el hecho que los gobiernos africanos no están

desarrollando estrategias suficientemente firmes para retener dicha mano de obra cali‑

ficada. Esto es tanto más dramático si consideramos que el continente gasta anualmen‑

te unos 4000 millones de dólares en reclutar expertos occidentales. En febrero de

2002, un funcionario de la Comisión Económica para África de la ONU mencionaba

la gran paradoja que afecta el continente:

“(...) every African country has been faced by the paradox of higher rates of

unemployment and underemployment, including university graduates (…) this has

often resulted in a wave of migration of the highly educated and highly skilled to

Europe and North America.” (Apud EL_KHAWAS p. 95).

Los gobernantes africanos parecen estar cada vez más sensibilizados para la

problemática del “brain drain”. Esta sensibilización se alargó a temas como “más

democracia” y “más equidad”. A pesar de todos los escollos, se esta dando en el

continente negro la estabilización del orden político y económico. En muchos paí‑

ses la inflación disminuye, se da la mejora de las infraestructuras y del impulso

turístico. Sin duda sigue habiendo serios problemas como la difusión del AIDS, las

secuelas de los conflictos interétnicos y el desempleo abrumador. Sin embargo,

tenemos la convicción de que podremos ver finalmente a África en las próximas

décadas como el continente que se liberó de sus tragedias, dispuesto a caminar con

coraje hacia el futuro.

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159História e Diplomacia

João Sabido Costa*

muitas vezes Nos perguntamos sobre qual a importância da História nos nossos conhecimentos.

Para que interessará uma aparente fixação no passado, quando o que interessa é

assentarmos os nossos pés no presente, e partirmos para o futuro?

A História pode aparecer, assim, a muitos, como uma matéria mais aborrecida ou

mais lúdica, mas nunca nada que saia do âmbito da obrigação tediosa (sucessão de

datas ou factos), ou do entretenimento (possibilidade de viagens imaginárias por tem‑

pos idos e exóticos).

Para o diplomata, para o qual o dia a dia é vivido intensamente e as perspectivas

de actuação parecem alterar ‑se em ritmo acelerado, não é anormal que venha a existir,

também, um sentimento quando à inutilidade de “passado”, da cultura histórica, por

pensarmos que nada haverá a recuperar do que já foi, quando o importante, afinal, é

o futuro.

Teremos, no entanto, de ver que a História, como ciência e como área do conhe‑

cimento humano, não se reduz nem a uma sucessão de datas, nem, mesmo, de factos.

Estes factos e datas, importantes que sejam, só ganham relevo se conseguirmos vislum‑

brar um nexo sequencial entre eles, em que os mais recentes se tornariam impossíveis

sem aqueles que os antecederam.

Afinal, o conhecimento histórico é uma percepção – em vários níveis e dimen‑

sões – da corrente da presença humana no tempo: o que é que nos trouxe até “aqui”?

Essa sequência é, naturalmente, importante para compreensão de qualquer processo,

seja físico, psíquico, ou de qualquer outra área do saber. Mas o processo histórico será,

dentre todos, o mais abrangente, pois debruça ‑se sobre o conjunto de todos os pro‑

cessos descritivos e narrativos que digam respeito ao Homem. A História influencia e

marca a visão que o homem tem de si mesmo.

Tal deriva do facto de “todo ser humano necessitar reflectir sobre seu ambiente, sua

situação concreta, seu meio, sobre o seu contexto social e comunitário e sobre seu

* Cônsul‑Geral em Salvador da Bahía.

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160 compromisso social”1. E isso implica, naturalmente, também, a necessidade de recupe‑

ração de um sentimento de equilíbrio entre o sujeito e o seu contexto, que passa pela

reflexão sobre a própria identidade, seja ela a própria, seja comunitária e nacional.

Não se pode perder, assim, uma perspectiva realista, em que a imposição incon‑

tornável do presente não aceita hipóteses romantizadas do passado que a ele conduzam

causalmente (e irrealistamente).

Ninguém vive bem com um sentimento de incompreensão face a si mesmo, ou

face à coerência e consistência das suas origens que, vindas do passado, têm que ser

suficientemente racionalizadas para funcionarem como um esclarecimento do presen‑

te, em todas as suas dimensões: psicológicas, sociais, económicas e comportamentais.

Urge, pois, um entendimento do passado que para nós faça sentido.

Como diz o historiador José Mattoso2: “(…) a ignorância ou o desprezo do pas‑

sado correspondem à tentativa absurda ou perigosa de anular a posição anterior ou de

querer negar o real”. “Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passa‑

do, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e

o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas

indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no

caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido”3.

Torna ‑se, assim, fundamental, que cada indivíduo, ou povo, tenha, pelo menos,

uma noção da sua própria “história”. Isso, a um nível puramente cultural, no da pre‑

paração que cada pessoa deve ter como cidadão do mundo e da sua pátria. Para ganhar

consciência das opções tomadas ontem e que, hoje, nos tornam o presente não forço‑

samente determinado, à “(…) História cabe a análise da sociedade humana em termos

de tensão e de evolução.”4

Com isto, não se pretende, naturalmente, que cada indivíduo se torne um histo‑

riador, um cientista da História de “per si”. Releva, sim, que cada um passe a ter inte‑

resse sobre a obra dos historiadores, reflicta sobre ela e, até, a critique ou admire,

passando a fazer parte duma espécie de entidade como aquela idealizada por Teilhard

de Chardin como uma consciência colectiva criada através do aprofundamento da

interacção de mentes humanas5, respondendo ao desafio de descobrir como reagimos

1 Matta, pág. 68.2 Pág. 15.3 Pág. 16.4 Cunha, pág. 49.5 Cascio, pág. 96.

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161e nos adaptamos ao imenso manancial de conhecimento (ou informação) por nós

criado6. “Não se trata de saber mais factos ou de tornar a História mais pesada, mas

sim de fornecer mais recursos para que se possa proceder a um renovado trabalho de

espírito crítico, estabelecendo novos ajustamentos e relações”7.

E, como diz Nietzsche, citado por José Mattoso8: “O verdadeiro historiador deve

ter a força de transformar numa verdade completamente nova o que é conhecido de

todos, e exprimi ‑lo com tanta simplicidade e profundidade que a profundidade faça

esquecer a simplicidade e a simplicidade a profundidade”. É sobre esse processo que

é preciso reflectir.

A importância da História para Portugal Para um país como Portugal, essa percepção da

linha temporal que foi a sua existência tem ainda mais importância, “(…) num

momento em que por tantas vias e de tantas maneiras se tenta definir e renovar

o sentimento de identidade nacional, face às profundas mutações que a sociedade

portuguesa actualmente atravessa”9.

País com uma existência antiga, com fronteiras fixas desde há muitos séculos e

uma história de expansão pelo Mundo que não corresponde à sua dimensão continen‑

tal, Portugal é muitas vezes historicamente ignorado na mentalidade contemporânea.

Não raro nos cruzamos – profissionalmente ou não ‑ com pessoas que por completo

desconhecem a nossa História, e nos fazem afirmações e suposições de todo irreais,

mas baseadas no facto de sermos um país territorialmente menor, com todas as con‑

sequências que julgam daí se dever tirar.

Para além disso, é um facto que as grandes perspectivas históricas criadas por

autores de grandes países – que são as que geralmente circulam, inclusive em edições

portuguesas – dão uma visão histórica baseada na perspectiva desses mesmos países,

nos quais eles vêm o foco principal e irradiador de todos os relevantes acontecimentos

mundiais.

Não existe, aliás, segundo creio, a possibilidade de uma História universal comple‑

tamente objectiva, pois cada país, cada nação, cada povo, Estado ou cultura, projectará

sempre no seu passado – mesmo que com autenticidade – a sua própria subjectividade.

6 Cascio, pág. 96.7 Faria, pág. 108.8 Pág. 54.9 Mattoso, pág. 107.

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162 Importância da reflexão histórica para o trabalho do diplomata Essa necessidade de

aprofundar, de saber reflectir, existe também, para os diplomatas.

Naturalmente, é fundamental, principalmente para o jovem diplomata, uma actu‑

alização constante de conhecimentos sobre a actualidade que lhe proporcione uma

visão abrangente e clara dos rumos das relações internacionais em cada dia que corre,

‑ para já não falar, naturalmente, daqueles assuntos de que ele, profissionalmente, tem

de tratar. Mas tal não inibe que o mesmo diplomata não possa encontrar utilidade, até

para a melhor compreensão dos assuntos presentes, num entendimento do que foi a

via cronológica e diacrónica conduzindo ao presente estado de coisas, como eles se

apresentam.

Pois também os “(…) sociólogos, os economistas e até os etnólogos deixaram de

tratar dos fenómenos sociais como se eles fossem rigorosamente contemporâneos; há

anos que passaram a considerar imprescindível ter em conta a sua dimensão diacróni‑

ca e em situá ‑los em contextos históricos determinados”10.

Como escreveu o antigo Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso “(…)

das várias disciplinas úteis para um político, e onde as leituras certamente vão ajudá ‑lo,

acredito que o mais importante é ter uma noção de história”11. Para “(…) alguém

poder saber o que vem pela frente, tem de saber o que veio antes, tem de ter uma certa

ideia do processo, senão a pessoa acaba não construindo nada duradouro e novo. Sua

acção pode dar certo ou não na política, mas não conseguirá construir um caminho

para a nação se seus actos não forem embasados na história e nos sentimentos e valo‑

res da sociedade”12.

“O historiador está sempre a descobrir no passado longínquo e recente o e o , a

identidade e a variância, a repetição e a inovação. A prática na verificação destes dois

aspectos da realidade, quando se desenvolve como um talento que outras formações

não dão facilmente, dota ‑o de uma capacidade especial para atribuir aos acontecimen‑

tos do presente a sua verdadeira importância”13.

Assim, para quem tem quotidianamente de lidar com questões políticas internacio‑

nais, torna ‑se bastante útil – mesmo que tal seja apenas empiricamente constatado – um

entendimento da sequência de ocorrências que fez essas questões surgirem como tal.

10 Mattoso, pág. 63.11 Cardoso, pág. 78.12 Cardoso, pág. 79.13 Mattoso, pág. 68.

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163Pois como já visto, da mesma experiência desse lidar com processos negociais, ou

da análise de situações, ou da necessidade de propor linhas de acção (num espectro

que abrange toda a amplitude da profissão diplomática, desde o do relacionamento

entre países, ao multilateral, ao da própria acção consular) decorre a utilidade de se

acolher uma perspectiva diacrónica e sequencial (histórica) das matérias abordadas. Só

uma percepção, e compreensão racional e articulada da sequência de factos conduzin‑

do ao presente será realmente possível perspectivar, em termos válidos, uma possibili‑

dade de desenvolvimento das situações actuais.

Enganos sobre o que entendemos por História Algumas características da nossa forma de

pensar conseguem contudo, distorcer aquela necessidade de reflexão sobre a nossa

forma de ser, partindo, precisamente, da colocação de importantes questões sobre o

nosso passado.

A primeira delas, aliás, já referida, é a de se reduzir aleitura da História a uma

actividade lúdica, geralmente a partir de livros romanceados ou de filmes.

Da leitura histórica como actividade de recreio poderá, certamente, resultar uma

sensação de prazer, mesmo intelectual e, admitamo ‑lo, alguma cultura geral; mas sem

dúvida que daí também poderá provir uma aceitação “a priori” de “verdades (históri‑

cas) inquestionáveis” que, mesmo que inconscientemente, rejeitam a reflexão.

A História da Literatura, inclusive através de algumas das suas obras ‑primas, como

os romances de Alexandre Dumas, está repleta desses exemplos, em que a mestria da

criação literária prima em criar uma distorcida impressão de um período.

“A mera curiosidade pelo passado, o prazer de o reconstituir sem nenhuma espé‑

cie de objectivo, para além desse mesmo prazer, redu ‑lo a um simples jogo; torna ‑se,

portanto, um passatempo pueril e inútil”14.

Na realidade “(…) ao contrário do que acontecia outrora nas bibliografias ou nas

monografias, não interessa tanto o caso, a pessoa ou o facto em si mesmos, mas a sua

representatividade e a maneira como nele se repercutem as estruturas e os movimentos

globais”15.

Outro risco, também bem actual, é o de tentar “fechar” a interpretação histórica

num “(…) tempo curto, sujeito às constantes modificações que a alteração das ideias

14 Mattoso, pág. 53.15 Mattoso, págs. 42/43.

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164 e da acção política provoca, sejam elas reais ou aparentes”16. Enfim, trata ‑se de não

saber separar, numa sequência histórica, os factores determinantes dos aspectos cir‑

cunstanciais ou emotivos que marcaram episodicamente aqueles.

Dentro desta classificação poderemos também colocar a “História ideológica”, ten‑

dencialmente repleta de adjectivos, ou substantivos derrotistas ou negativos com que se

pretende, amiúde, atribuir a uma única causa, abstracta, todos os malefícios da

Humanidade ou de uma sua parcela, que sem aquela viveria plenamente feliz e perfeita.

Do mesmo modo, também o que nos parece como estável e perene pode, afinal,

não o ser. Por exemplo, fenómenos físicos e geográficos que presenciamos, e que mui‑

tas vezes vemos como fruto de uma alteração radical do passado, correspondem, afinal,

apenas, a ciclos que, analisados, nos ajudam a relativizar (ou mesmo não dramatizar

excessivamente) a sua importância, Como diz José Mattoso17: “(…) o cenário espacial

que tantas vezes se pressupõe invariável e estático (no passado), está bem longe de o

ser, apesar das mutações de grande amplitude serem relativamente lentas”. A visão dos

tempos ajuda a desdramatizar o presente.

Outro dos principais erros em que caímos ao pretendermos interpretar os acon‑

tecimentos passados consiste na sua “distorção subjectiva”, isto é na incompreensão

ou ignorância da mentalidade e mesmo objectivos) que marcaram os homens que

viveram esse passado. Como refere George Duby18: “Interesso ‑me mais por objectos

(…) mais impalpáveis, pelas ideias, por aquilo que as pessoas têm no espírito e que

determina o seu comportamento”.

Diz José Mattoso, que é imprescindível, por exemplo, que uma fonte histórica seja

considerada no conjunto das suas condições de produção, o que “(…) pressupõe que

se considere a fonte como uma peça de um conjunto histórico. Se a isolo desse con‑

junto arrisco ‑me a atribuir ‑lhe um sentido que o autor não lhe quis dar, nem cons‑

ciente, nem inconscientemente”19. Deve ‑se procurar, assim, “(…) situar o texto (his‑

tórico) num espaço e tempo determinados e identificar o autor e o momento em que

escreveu com o maior rigor possível, o que constitui um ponto de partida para a des‑

coberta das suas intenções e a relação destas com o público ao qual ele se dirigia”20.

16 Mattoso, pág. 164.17 Pág. 193.18 Pág. 919 Pág. 135.20 Mattoso, pág. 135.

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165A compreensão dos fenómenos históricos deve assim interpelar o passado, os seus

códigos e a verdadeira finalidade das suas aparentes inutilidades. Como o que parecia

ocorrer, na mitologia grega, com Ares, o Sanguinário, a quem a finalidade do comba‑

te deixaria indiferente, limitado este ao “sangue e tumulto da batalha”21. Ou no

Diálogo de Luciano, onde “(…) um Cita pergunta a Sólon para que servem as compe‑

tições desportivas dos gregos: “Rolam como porcos na areia”, diz o Cita, “Batem ‑se

como bodes. Isto torna ‑se por vezes terrivelmente brutal e, contudo, não são separados

por esse homem de manto de púrpura que, a julgar pelo seu vestuário, deve ser um

representante da autoridade. Gostaria de saber para que serve isso: parece ‑me uma

simples loucura”22.

No entanto, contrapõe ‑nos a nossa própria experiência que raramente um com‑

portamento humano é desprovido de finalidade, certa ou errada.

Nesse sentido, é também um facto que um “(…) comportamento possível numa

dada cultura não o é numa outra. Uma cultura distingue ‑se, pois, por um sistema

próprio e homogéneo de comportamentos, que se modificam quando passamos para

a cultura precedente, ou para a seguinte”23.

É fácil, pois, enganarmo ‑nos com “aparências” quando não as apreciamos de um

ponto de vista “histórico”, sendo essa possibilidade de engano ainda muito maior

quando a análise é feita – como muitas vezes acontece relativamente à já referida ima‑

gem de Portugal no Mundo – por alguém estrangeiro, com outra formação cultural.

A compreensão da própria participação (e interesse) do país no contexto internacional –

História da Europa De salientar que o conhecimento da “História ‑Pátria” não se deve

limitar ao estudo da própria Historia do país. Esta terá, para ser compreendida, de

ser integrada num conjunto mais amplo de eventos, desde logo, no caso português,

na História da Europa, por exemplo. Como diz José Mattoso24: “(…) os fenómenos

verdadeiramente significativos, como se tornou evidente na nossa época de grandes

contactos intercontinentais, são, a maior parte das vezes, num certo plano, os que

resultam da relação de influência ou de oposição de grandes civilizações; e noutro,

os que se podem observar em todas elas ou pelo menos na sua maioria”.

21 Grimberg. pág. 87.22 Grimberg, pág. 99.23 Ariés, pág. 22.24 Pág. 33.

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166 Nenhum país é uma ilha deserta, assim como que nenhum país é neutro em rela‑

ção a outros. Referindo ‑se a um papel europeu de um Portugal geograficamente loca‑

lizado na periferia da Europa, descreve José Mattoso que, afinal, é “(…) através da

periferia que o centro e todo o conjunto incorpora novas contribuições para as cons‑

tantes manifestações temporais e no desenvolvimento das virtualidades da ideia ‑tipo,

que todavia permanece como sistema de referências fundamentalmente idêntico a si

mesmo”25.

“(…) Portugal e a Espanha (e o mesmo acontece também nos países de Leste, em

relação às civilizações orientais), sempre foram lugares onde a identidade europeia é

porventura mais vivamente sentida, do ponto de vista cultural, e como resultante da

presença do . E, ao mesmo tempo, o lugar onde as contradições e as lacunas da civili‑

zação ocidental se apercebem mais agudamente”26.

Portugal “(…) pode e deve manter, e certamente desenvolver, um papel de inter‑

mediário com os outros continentes, no sentido mais amplo e mais dinâmico que este

conceito possa conter”27.

Por outro lado, uma visão transnacional ou mundial ajuda a “(…) relativizar as

situações de crise, mesmo as de crise profunda” (…), através da “(…) evidência da

disparidade de situações existentes actualmente num mundo em que a informação

acerca do que se passa em qualquer parte do globo é muito abundante (…)28”. Como

diz António Borges Coelho29: “A compreensão da História de Portugal não pode

fechar ‑se dentro das fronteiras nacionais (…)”.

A História portuguesa só se pode entender, assim, realmente quando inserida no

contexto dos movimentos e fluxos que influenciaram a comunidade internacional.

Urge, assim, também, como diz Armando Marques Guedes30, para situar Portugal

no Mundo, “(…) consolidar uma história político ‑diplomática portuguesa em bases

científicas adequadas a uma modernidade e um rigor que durante muito tempo nos

iludiram”.

Nesta área, não se pode deixar de citar o papel que, no século XX português, foi

o de Jorge Borges de Macedo, autor de uma verdadeira História da nossa Diplomacia

25 Pág. 157.26 Mattoso, págs. 61/62.27 Mattoso, pág. 162.28 Mattoso, pág. 238.29 Pág. 91.30 Pág. 5.

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167em termos modernos, através de uma “(…) vasta e importante obra, impulsionadora

da renovação que a historiografia portuguesa conheceu a partir da década de 50 e 60

(…)”31, utilizando (…) os “factores concretizáveis” para expor as insuficiências das

explicações ideológicas, que teimavam em ocupar o vazio de uma investigação histo‑

riográfica pouco consolidada”32. Do mesmo modo, “(…) ligava a política externa à

história da sociedade como um todo, aos seus mecanismos de selecção e verificação,

abrindo, assim, novas direcções de pesquisa (…)”33.

Na sua explicação histórica, Borges de Macedo não nos conta, na realidade, nada

que não saibamos já. Muda, é, toda a perspectiva e ponto de vista, tornando ‑se a nossa

História muito mais compreensível e lógica.

O risco do nacionalismo O interesse por temas históricos não significa, por outro lado,

adoptar aquela posição “ufanista” face à História, segundo descreve Ernest Lavisse

quanto ao que nalguns casos pareceu ser a missão do professor primário: “(…) se

o aluno não tiver sempre presente a viva recordação das nossas glórias nacionais; se

não souber que os seus antepassados lutaram, em mil campos de batalha, por causas

nobres; se não aprendeu quanto sangue e quanto esforço foram necessários para

construir a unidade da nossa pátria e retirar, em seguida, do caos das nossas velhas

instituições as leis que nos fizeram livres; se não se tornar um cidadão consciente

dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma, então, o professor terá perdido

o seu tempo”.

No entanto, a “(…) memória mítica não nos confere nenhuma efectiva capacida‑

de de resistência às alterações do nosso século”34. Trata ‑se de uma “(…) velha história

(…) que (…) escolhia apenas como dignos de atenção os acontecimentos mais vene‑

ráveis e gloriosos”35.

Pelo contrário, como dizia Lucien Febvre36: “A História não se aprende, a História

compreende ‑se”. E acrescenta José Mattoso37: “Mesmo que (um) (…) acidente tenha

desencadeado graves questões, o que o torna objecto da História não é o facto em si

31 Macedo, pág. 12.32 Santos, pág. 24.33 Faria, pág. 105.34 Mattoso, pág. 116.35 Mattoso, pág. 170.36 Cit. por Pierre, pág. 60.37 Pág. 13.

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168 mesmo, mas o que ele eventualmente possa representar para o destino da humanidade.

Este destino é, por isso mesmo, o único fio condutor na busca de significado da infi‑

nitude de moléculas factuais que engrossa o oceano da História”.

Serão, assim, de repelir “(…) textos com objectivos políticos ou ideológicos que

só aproveitam da História os factos e dados que favorecem uma determinada tese e

ocultam os de sentido contrário”38

Mesmo a historiografia portuguesa – e já sem falar de todo o aproveitamento

puramente político que por vezes dela terá sido feito ‑ padeceu, em certa medida,

certas deficiências que a alienaram do próprio propósito histórico. Como diz

Mattoso39: “(…) o historicismo puro não teve entre nós uma voga muito conside‑

rável. A nossa historiografia foi demasiado marcada por preocupações dominantes

de outra natureza, que lhe imprimiram sempre um pendor demonstrativo ou ideo‑

lógico”.

Claro que ao longo da nossa História nem sempre isso se passou assim. Refere

também José Mattoso que já a partir do final do século XVII se tende a pôr “(…) em

causa a interpretação feita por autores a quem interessava mais o aproveitamento retó‑

rico das narrativas ou a exaltação da autoridade monárquica do que a reconstituição

de um passado neutro e ambivalente”40.

A necessidade de (re)pensar a História de Portugal O pensar, o elaborar sobre qualquer

tema é uma qualidade que se desenvolve e treina como um desporto. E nós

portugueses muitas vezes enfrentamos a actividade do raciocínio – não na perspectiva

puramente prática, do efectivar do dia a dia, mas como acto de aprofundamento da

compreensão da vida – como algo “errado”, susceptível de colocar em causa uma

qualquer autoridade implícita mantenedora daquilo que podemos e devemos ser.

Talvez por isso, muitas vezes, para nós, o pensar torna ‑se uma acção puramente

elogiosa ou crítica, assimilada que por nós é como algo moralmente falso. Louvar ou

destruir torna ‑se, então, mais relevante do que perspectivar o futuro, não obstante

ser uma realidade evidente que as nossas críticas ou louvores não anulam o facto de

termos de continuar a viver no mesmo mundo que com grande potência recusamos

e mentalmente destruímos, ou pelo menos recusamos analisar.

38 Mattoso, pág. 94.39 Pág. 36.40 Pág. 127.

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169Diversos aspectos – importantes – da História de Portugal tendem a ser, assim,

normalmente tidos como verdadeiros, bem como aceites sem discussão das suas teo‑

rias explicativas. Tal aconteceu, por exemplo, com um dos principais acontecimentos

que marcaram o nosso passado, o percurso dos Descobrimentos, felizmente já de uma

forma ultrapassada.

“O que é que torna os Portugueses diferentes dos outros povos? As Descobertas,

a colonização da África ou do Brasil, a capacidade para conviverem com civilizações

não europeias e assimilarem os seus conteúdos, a saudade, a nostalgia, o lirismo, a

incapacidade de programação, o irrealismo, a não violência? Talvez tudo isto. Mas estas

características, detectadas por alguns literatos e pensadores que tentaram reflectir sobre

a nossa História ou o nosso comportamento colectivo na actualidade, não se basearão

em dados mal interpretados e sobretudo numa inventariação de dados falseada à par‑

tida por uma selecção unilateral? Serão características da maioria dos Portugueses, ou

apenas de alguns que estiveram no centro das decisões ou próximos daqueles que têm

de as tomar? De resto, não acontecerá que o facto de nos imaginarmos assim influen‑

cie as nossas próprias limitações e tendências?”41.

Tudo isso carece de uma reflexão a que muitas vezes nos furtamos, por indolência

mental, ou por aquela “vergonha de pensar” que atrás se refere.

Uma questão tão fundamental, raras vezes colocada – mas com repercussões,

mesmo que inconscientes, nos nossos dias – é a da importância real que teve para

todos portugueses a gesta que os levou às Descobertas. Foi um povo inteiro que se

lançou ao mar, ou foi obra de alguns, ignorados ou recusados por outros? Somos,

realmente, um povo inteiro de Vascos da Gama, ou o Velho do Restelo faz parte da nossa

estrutura moral? Seremos uma nação disposta a partir – em tantas e diversas questões,

com reflexos internacionais ou não ‑, ou estaremos cindidos entre os que olham para

longe e os que miram o perto?

Para além de considerações de valor sobre os vários tipos de opções ou compor‑

tamentos, não terá sido por acaso que Vitorino Nemésio colocou a questão ao analisar

a obra de Gil Vicente, um dos nossos principais escritores mas, paradoxalmente, um

aparente desinteressado das grandes Descobertas nacionais, quando elas estavam no

seu auge. “(…) Gil Vicente andava já perto dos quarenta quando Vasco da Gama foi à

Índia por mar e Pedro Álvares Cabral aproou ao Brasil. Se pertencente à geração que

41 Mattoso, pág. 115.

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170 empreendeu as grandes navegações, não tomou parte nelas nem teve, como escritor, a

exaltação da vida marítima (…) Gil Vicente parece representar aquela parte da popu‑

lação portuguesa do começo do século XVI que vivia recolhida aos campos e que,

identificada com a tradição agrária, caseira, dificilmente se adaptava ao ritmo febril da

nova vida”42.

Outra contradição cultural não esclarecida e que constantemente, afinal, nos surge e

se assinala é aquela entre a ânsia por uns cultivada de conquistar e descobrir o que não

temos, sem que, no entender de outros, a própria casa, afinal, fique arrumada e desen‑

volvida. O apego a grandes riquezas almejadas, quando, afinal, no próprio país somos

pobres, como na subtil ironia de Manuel Alegre: “(…) eu que fui pelo mundo e nunca

saí daqui”, ou “Procuras pelo Mundo o Portugal / que em Portugal perdeste”43.

Importa, assim, “(…) desmontar (…) ideias feitas e lugares comuns, não só sobre

problemas fulcrais da História de Portugal, mas também sobre muitos dos debates

contemporâneos que atravessaram a sociedade portuguesa”44. Temos, assim, um dever

perante nós próprios que não se permite limitar a um aceitar de opiniões. Se “(…) a

terra dá o pão à gente, também nós lhe damos pão. E o pão mais rico que lhe damos

não é tanto a semente que a fecunda: é a alma que lhe confiamos”45.

Diversos podem ser, aliás, os exemplos de casos mais obscuros na nossa História,

carecendo de análise que efectivamente comprove a veracidade do que se julga saber,

clarificando o que muitas vezes foi, num passado mais recente, normalmente origina‑

do por um nacionalismo pujante ou por uma agressividade ideológica, destruidora dos

nossos valores e, muitas vezes, da nossa própria identidade.

Por exemplo, relativamente à “(…) celebérrima questão das origens da expansão

portuguesa no princípio do século XV; (só não há muito tempo) deixou de se consi‑

derar inconciliáveis as principais teses em confronto – a que privilegia os factores

económicos e a que prefere dar mais relevo aos factores ideológicos”46.

Também a figura de D. Sebastião é vista normalmente numa perspectiva meramen‑

te romântica ou dramática, retirada do seu real contexto histórico da política interna‑

cional sua contemporânea.

42 Nemésio, págs. 23 e 24.43 Silva, Alberto da Costa e, Bueno, Alexei., p.3844 Macedo, pág. 12.45 Ruas, obra cit.46 Mattoso, pág. 95.

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171Surgem, também, as “(…) leituras sobre a figura de Sebastião José de Carvalho e

Melo, prejudicadas pela projecção no passado de preconceitos presentes e pela super‑

ficialidade da investigação”47.

Preconceito recorrente da nossa mentalidade pública é, também, o relativo a uma

“dependência externa” (económica) constante que enlutaria a nossa História e que,

sem dúvida, careceria de ser examinada “(…) com a devida ponderação da natureza

recíproca das relações comerciais”48.

Outro aspecto com este relacionado – “ressuscitado”, até, recentemente no que

respeita ao Brasil, pelas comemorações dos 200 anos da chegada da Corte Portuguesa,

em 1808 – é a do (alegado) abafamento da indústria nacional (ou colonial) em prol da

importação de produtos estrangeiros. Aparentemente, tratar ‑se ‑ia de um imenso erro

político, ou de mais uma imposição externa. Na realidade, contudo, trata ‑se um proble‑

ma ainda mal esclarecido. Como diz Luís Aguiar Santos49: A “(…) natureza do problema

– a redução de custos de produção que permitisse baixar preços ao consumidor – era

eminentemente económica e de difícil resolução política. A problemática tecnológica,

ligada sobremaneira à problemática dos preços, relativiza a eficácia da substituição de

importações, desiderato da crença desenvolvimentista das políticas industrialistas”.

Na área cultural, muitos mitos se formaram, também, nomeadamente, aqueles

mais recentes, indicando uma suposta aceitação “ipsis verbis” de influências estrangei‑

ras como base de um possível progresso da sociedade em Portugal.

Na verdade, como diz Raul Rasga50 sobre a Cultura portuguesa, Portugal revela um

“(…) núcleo peninsular dotado de mecanismos de construção cultural próprios e que o

distinguiam (e distinguem) do resto da Península”. Quanto às influências decisivas

estrangeiras, nomeadamente aquelas advindas com o Pombalismo, as “(…) elites exis‑

tiam já antes de Pombal, conheciam os textos e as obras que se produziam na Europa

culta do tempo e aproveitavam desse conjunto o que interessava à cultura portuguesa”51.

A “(…) capacidade de seleccionar a partir dos debates contém (…) o que se podia com‑

binar com a tradição cultural existente no país. A esta capacidade de resistência à unifor‑

mização reside a faceta mais importante e mais responsável da cultura portuguesa”52.

47 Santos, pág. 21.48 Santos, Pág. 24.49 Pág. 25.50 Pág. 31.51 Rasga, pág. 32.52 Rasga, pág. 32.

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172 Mais exemplos se poderiam dar de preconceitos e ideias pré ‑concebidas que tan‑

tas vezes alimentamos sobre o nosso próprio passado e, afinal, sobre a nossa própria

existência no Mundo.

A História como realidade dinâmica e auto ‑actualizante Tal não significa, por outro lado,

que seja possível reduzir o “pensar histórico” a um carácter puramente objectivo

e fixo. Lá diz, assim, George Duby53 sobre o uso que sempre fazemos do material

histórico interpretado: “(…) continuamos (afinal) a utilizar esse material (…)

da mesma forma que os nossos antecessores, ao serviço das nossas paixões e da

ideologia que nos domina (…)”. Como diria Valéry54: “…a História serve para

justificar tudo o que se quiser”. E refere ainda José Mattoso: “(…) há, portanto,

uma positividade a instaurar e a quantificar, um método rigoroso a cumprir, mas a

descontinuidade própria dos elementos que fazem o objecto da (…) pesquisa não

(…) permite ultrapassar os domínios da representação das relações”55.

Mas acrescenta Duby56: “Quando digo que sou céptico em relação à objectividade,

é, também, porque penso estar a prestar um serviço às pessoas, persuadindo ‑as de que

toda a informação é subjectiva, que é necessário recebê ‑la como tal e, por conseguinte,

criticá ‑la”. “É absolutamente necessário que o historiador colabore na tarefa essencial

que consiste em manter vivo na nossa sociedade o espírito crítico”57. Pois (…) a História

não é de modo nenhum arbitrária. Tem de se construir segundo regras extremamente

exigentes. Uma vez adoptado um determinado esquema interpretativo, as soluções têm

de ser coerentes”58. Como diz Raymond Bellour59: “Como se o espírito crítico fosse a

dose de sonho necessária a cada indivíduo, na sociedade em que se encontra”.

Numa “(…) sociedade cada vez mais dominada pela informação maciçamente

mediatizada, é indispensável o espírito crítico para avaliar, na medida do possível o seu

efectivo valor”60

“Não há História definitiva, pela simples razão de que a palavra pronunciada, por

mais fundadora e fecunda que seja, está ela própria sujeita ao tempo, torna ‑se ela pró‑

53 Pág. 8.54 Cit. por Pierre, pág. 62.55 Pág. 24.56 Pág. 19.57 Duby, pág. 19..58 Mattoso, pág. 21.59 In Duby, pág. 19.60 Mattoso, pág. 96.

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173prio passado, objecto de outras experiências, o que quer dizer que tem de ser constan‑

temente renovada, constantemente pronunciada para se manter viva”61. “Não é o facto

de ter de reconhecer a irredutibilidade dos dados susceptíveis de fundamentar o dis‑

curso histórico no encadeamento próprio das ciências dedutivas, ou a impossibilidade

de proceder à verificação experimental peculiar das ciências empíricas, que pode dis‑

pensar o historiador actual de usar sistematicamente a crítica para a selecção dos seus

dados e as categorias das ciências humanas para descobrir os nexos susceptíveis de

exprimir a relação que os une ou opõe”62.

Conclusão E essa necessidade de reflexão não se restringe apenas aos problemas do passado.

“Cada vez mais as instituições e organizações têm necessidade de agentes detentores

de conhecimento teórico, mas aplicado aos problemas emergentes e práticos capazes

de se adaptar com rapidez na busca de novas soluções e de sua integração a contextos

plurais e diversos”63.

Nesse sentido, o que interessa é que os problemas (neste caso, históricos), sejam

sentidos pelos que os analisam “como concretamente vividos”64, sendo assim efecti‑

vamente vistos como “historicamente constituídos”65, impedindo o bloqueio da capa‑

cidade de reflexão e assim contribuindo para uma verdadeira capacidade crítica nesse

âmbito, com reflexos na capacidade de análise, estruturação e percepção de situações

do presente. Enfim, a “leitura do presente, a partir do questionamento do passado”66,

Curiosamente, pode ‑se até afirmar, a adopção desse “pensar histórico” (que não é,

como se viu, uma sobrevalorização da História na preparação cultural ou profissional,

ou uma redução dessa preparação e formação a meros estudos históricos) dinamizará,

paradoxalmente, uma maior motivação para a abordagem das questões mais importan‑

tes que se nos colocam ao longo da vida na sua essência constitutiva e tornando ‑se,

portanto, muito mais compreensíveis para nós67.

61 Mattoso, pág. 22.62 Mattoso, pág. 24.63 Matta, pág. 26.64 Matta, pág. 48.65 Matta, pág. 48.66 Mata, pág. 51.67 Já que o formando pode encarar a aprendizagem da História “(…) como sendo do seu interesse particular, a

autenticidade do problema dado provoca auto ‑iniciativa (…) e possibilita auto ‑aprendizagem, autocrítica

e auto ‑avaliação” (Mata, pág. 67).

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174 Podemos, assim, concluir com José Mattoso que “(…) o recurso à história será

(…) um dos mais procurados pontos de apoio para a aquisição de uma nova consci‑

ência nacional, agora formulada em termos diferentes dos tradicionais entre nós”68.

E essa consciência reflectir ‑se ‑á também, sem qualquer dúvida, na nossa própria

consciência pessoal.NE

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177Notas de Leitura

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179

retrovisorum álBum de famíliade Vera Futscher Pereira Editora: Rui Costa Pinto Edições

Lisboa, 2009

o que seNti quando acabei de ler e ver

“Retrovisor” chegou‑me numa paráfrase do

primeiro verso do Endymion de Keats1, de que

me sirvo agora para dar nome a esta resenha

do livro. Da capa à contracapa é amor de

filha, de irmã, de neta, de tia, de sobrinha,

A thing of love is a joy forever

José Cutileiro*

de viajante em vários mundos, que dá cora‑

ção à aventura em que a autora se meteu,

ajudada por legados de Pai e Mãe, escravos

desde pequenos do tão certo secretário com

quem a pena desafogavam e meticulosos na

guarda de escritos assim feitos e de mais

papelada.

Sobre esse espólio muito variado – de

poesia lírica intimista a telegramas diplomá‑

ticos, passando por ‘O livro do bébé’ –, um

acervo de fotografias e mais documentos

coevos, o livro acompanha por algumas gera‑

ções uma família burguesa de Lisboa –, ou

melhor, porque o nosso sistema de parentes‑

co é cognático, várias famílias vindas do

século XIX que em duas gerações afunilam

até ao casal Margarida‑Vasco e alargam depois

noutras duas chegando às novas famílias dos

seus filhos e netos. Margarida e Vasco são por

assim dizer o epicentro, os heróis principais

do livro, mas este demora‑se também em

mais gente que com eles teve a ver, da família

chegada a amigos de passagem, em Portugal,

no Brasil e noutras partidas do mundo. A

autora entremeia na narrativa informações

* Embaixador.1 A thing of beauty is a joy forever.

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180 sintéticas datadas que nos recordam o que se

ia entretanto passando, em paz ou em guerra,

na história de Portugal e do mundo.

O livro está muito bem escrito, é grá‑

ficamente bem‑sucedido, folheia‑se com

gosto e como acontece com fotobiografias,

a cujo género pertence, presta‑se a ser lido

de várias maneiras, desde ir olhando para

os bonecos como se de um ‘coffee table book’

se tratasse – assim comecei eu – a escrutínio

atento de fio a pavio, que me entreteve um

serão em seus enredos romanescos. Embora

me pareça que, para quem goste de História

e de histórias bem contadas, o livro possa

interessar mesmo quem não tenha conhecido

qualquer dos seus personagens, enriquece

com certeza a leitura ter privado com alguns

deles, sobretudo com os principais. Por mim,

não conheci Margarida, pessoa quasi inteira‑

mente privada, de quem Ruy Cinatti me falou

às vezes com grande ternura e cujos versos só

agora li mas conheci um pouco Vasco, de

quem fui colega, que em 1982 e 1983 foi

meu ministro e que é de longe a figura públi‑

ca mais importante entre as capas do volume

(outra é o pai de Margarida, colaborador

chegado de António Ferro quando este diri‑

gia o Secretariado de Propaganda Nacional).

Encontramo‑nos pela primeira vez num

almoço al fresco na Gôndola, organizado para

o efeito pelo Vasco Valente e o Fernando

Andresen, estava eu em posto em Estrasburgo

e Futscher em Nova Iorque. Chegou atrasado,

como era seu costume, e contou‑nos que na

véspera à noite não conseguira falar ao tele‑

fone com a Malu, que ficara em Manhattan,

devido a impossibilidade da Marconi estabe‑

lecer a ligação. Nas conversas que pela noite

fora, em sucessivas tentativas, tivera com a

operadora – de quem fora fazendo amiga e

aliada – julgara identificar problemas de pes‑

soal e de organização que levavam à insufi‑

ciência de serviço de que fora vítima. A

seguir ao último ensaio vão de atingir Nova

Iorque, metera pena ao tinteiro (era assim

que gostava de escrever) e passara o resto da

madrugada e a manhã a compor uma carta

sugerindo soluções ao director da Marconi,

que acabara de ir entregar na sede da compa‑

nhia, já não me lembro em que rua da Baixa

pombalina. Era um português transitivo.

A esse primeiro encontro seguiram‑se

outros, ao acaso de circunstâncias. Vindo do

Conselho de Segurança, ficou em minha casa

em Estrasburgo numa visita ao Conselho da

Europa. E, ministro dos estrangeiros quando

Francisco Balsemão era Primeiro‑Ministro

veio com ele numa viagem oficial a Maputo

ao fim da qual negociou com Chissano, seu

homólogo moçambicano, o comunicado de

imprensa. Eu participara antes na negociação

de outro comunicado de visita oficial a

Moçambique, dessa vez do Presidente da

República, sempre com Chissano do lado de

lá, mas com outro ministro dos estrangeiros

do nosso lado. Ambas as sessões foram cor‑

rectas e eficazes mas na segunda, mal se sen‑

tara à mesa e haviam sido trocadas as corte‑

sias de circunstância, Chissano tinha já, por

assim dizer, absorvido dois valiums que o

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181charme de Vasco infiltrara nele e passamos

todos a seguir uma hora feliz.

Esse charme legendário, ao serviço de

considerável intelecto e de uma curiosidade

voraz, ajudou muitas vezes Vasco Futscher a

levar a água ao seu moinho mas havia quem

lhe fosse insensível. Nessas ocasiões o meu

amigo ficava, como o desertor do poema de

Desnos, a parlamentar com sentinelas que

não compreendiam o que ele lhes queria

dizer. Mas, do começo ao fim da vida, tal

aconteceu‑lhe muito raramente. Quando ele

morreu dei por mim, que sou ateu tal como

ele era, a imaginar a conversa com S. Pedro

em que o Santo, seduzido, lhe abria as portas

do céu.

Comunicações diplomáticas suas em

momentos complexos da história portugue‑

sa, páginas do seu diário, testemunhos de

colegas e amigos nutrem a narrativa, recor‑

dando o diplomata excepcional que ele foi (e

pondo muito justamente em relevo ter sido

ele quem, em ocasião crítica, mantivera viva

a causa de Timor‑Leste nas Nações Unidas,

tornando assim possível a independência

negociada do país anos depois). Toda a gente

que com ele – ou contra ele – trabalhou sen‑

tiu o cunho da sua personalidade invulgar na

aplicação das regras intemporais da arte

diplomática. O poder de uma pequena potên‑

cia pode ser aumentado pelo talento eficaz de

quem a represente e o exemplo de Vasco

Futscher afinou a minha capacidade de ava‑

liar o desempenho dos diplomatas. Desde

então tenho para mim que um embaixador

mau não representa o seu país, que um

embaixador razoável representa o seu país – e

que um embaixador bom disfarça o seu

país.

O encanto e interesse de “Retrovisor”

não se esgotam no que nos diz ou sugere

sobre os dois personagens principais. Amor

filial não impede a autora de contar feitos e

mostrar caras de muitas outras pessoas, situ‑

ando nos seus lugares e no seu tempo os

múltiplos actores e actrizes desta saga, desde

os que já morreram há muito tempo aos que

agora começam as suas vidas. E aprendem‑se

coisas. Eu, por exemplo, não sabia que o

Bernardo, meu antigo chefe de gabinete na

União da Europa Ocidental, tinha sido cam‑

peão nacional de florete dos menos de 20

anos – e descobri que o primeiro Futscher

chegado a Portugal, no século XIX, fora um

austero suíço alemão protestante – e não,

como eu imaginara do convívio com Vasco,

um judeu céptico e bon vivant do Império

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182

arquitectos da paza diplomacia portuguesa de

1640 a 1815de Ana Leal de Faria

Editora: Tribuna da HistóriaLisboa, 2008

teNho muito prazer em apresentar este livro

de Ana Leal de Faria, sobre um tema que me

é especialmente grato por lhe ter consagrado,

na actualidade e a tempo inteiro, um pouco

mais de 40 anos da minha vida.

E assim esse mundo dos diplomatas e

das sociedades em que estão inseridos, tanto

Leonardo Mathias*

nacional como internacionalmente, que a

autora com autoridade e conhecimento nos

descreve, entre 1640 e 1815, não me é total‑

mente alheio, embora o meu mundo se situ‑

asse entre 1960 e 2001.

As linhas de força do que devia ser a

diplomacia portuguesa estavam lançadas,

depois da Restauração, quando os diplomatas

de Portugal agiram, no processo de consoli‑

dação de um Estado moderno, num dos mais

duros e difíceis períodos da nossa História,

de forma essencialmente positiva, não desa‑

nimando perante as contrariedades e revelan‑

do qualidades de determinação e de coragem,

tantas vezes exemplares. Eles que, nas palavras

do Visconde de Santarém, bem dominavam

“a importante sciencia de negociar” no que

ela tem de capacidade de sedução, de persua‑

são e de influência.

Ana Leal de Faria traça‑nos um quadro

do que foram esses quase dois séculos em

que a diplomacia esteve presente num mundo

em constante transformação, com os seus

permanentes conflitos europeus e as suas

repercussões além mar, com as suas vitórias e

também as suas derrotas, diplomáticas ou

* Embaixador. Texto apresentado na cerimónia de lançamento do livro.

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183militares, com os seus Tratados, concluídos e,

tantas vezes, logo anulados. E nesse contexto

permanece o espírito e a vontade da diplo‑

macia portuguesa de salvar a soberania e a

independência de Portugal.

Quando se alteravam as posições no

xadrez dos confrontos e se mudavam as alian‑

ças, – falava‑se em “inversão de alianças” – se

passava da neutralidade para o conflito e

deste, de novo, para a neutralidade. E se fazia

frequente uso do ultimato.

Quando se dá inicio a relações diplomá‑

ticas que, em breve período de tempo, serão

interrompidas para voltarem, poucos anos

depois a existir.

Quando o fenómeno religioso interfere,

e se vê católicos e cristãos novos, protestantes

e agnósticos e até monárquicos e republica‑

nos, nos combates entre velhas dinastias

europeias e novas concepções da organização

das sociedades.

Quando a diplomacia é casamenteira e

os casamentos procuram ir ao encontro de

interesses nacionais de convívio e de paz, ou

quando serve para apresentar pêsames ou

parabéns. É uma diplomacia hábil e compe‑

tente e empenhada na defesa do país e dos

seus territórios ultramarinos.

Estamos perante uma vasta e muito

completa investigação em que se juntam,

para esclarecimento do leitor atlas, redes da

diplomacia, que a autora desenha num con‑

junto de curiosos quadros que dão a medida

das ambições do Estado e da dificuldade e

dureza da tarefa, sobretudo nos primeiros

anos que se seguiram à Restauração, biogra‑

fias de diplomatas do período tratado, indica‑

ções de numerosas fontes e até de um léxico

de diplomacia num trabalho que é, só por si,

excepcional, e que perdurará porque servirá

de útil e necessária consulta para futuros tra‑

balhos deste tipo, tão abundante e minuciosa

é a documentação citada.

Mas a autora vai mais longe, na vontade

de compreender, absorver e transmitir‑nos o

que era a diplomacia da época – não muito

diferente da actual – e quais os meios de que

dispunha e como os aplicava para o desempe‑

nho da sua missão.

Fala‑nos no perfil do Embaixador, em

condições com as quais me atreveria a criti‑

car, porque me parece que não lhe cumprem,

no exercício de funções diplomáticas, inicia‑

tivas políticas e sobretudo porque é alheia à

espionagem ou que esta é apenas um subpro‑

duto ocasional, mas é a própria autora que

esclarece com razão que “o ofício do diplo‑

mata não se aprende nos livros. Requer um

conhecimento aprofundado dos homens e

uma particular sensibilidade às relações

humanas”.

Demora‑se a mencionar os saberes do

Embaixador, e da forma como, com o tempo

e com os dados da realidade local onde esta

acreditado, com o seu entendimento das pes‑

soas e das instituições, e com as instruções

que vai recebendo, apura a sua maneira de

agir num mundo complexo, onde os inimi‑

gos de Portugal também agem com a sua

própria politica externa.

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184 Procura exemplificar com casos concre‑

tos, a que faço breve alusão pelo alcance de

que se revestiram. E assim leva‑nos depois da

paz de Vestefália à diplomacia a que chama,

poderá dizer‑se que contraditoriamente, de

guerra. Portugal, reconhecido apenas pelo

Reino Unido, a França a Holanda e a Suécia,

e enfrentando a hostilidade de Espanha apoia‑

da no Vaticano, tem de usar de imaginação

criadora. E a diplomacia multiplica a sua

acção e consegue armas e munições em

França e obtém o casamento, em Londres, da

Infanta Dona Catarina com o Rei D. Carlos II.

1668 marca o restabelecimento das rela‑

ções diplomáticas com Madrid, o que não

acontece sem os sobressaltos de que a autora

nos dá conhecimento. E, continuando a resu‑

mir, vemos a análise que depois Ana Leal de

Faria faz da Guerra de Sucessão de Espanha e

do papel de Portugal nessa guerra, designada‑

mente depois da entrada em Madrid das for‑

ças coligadas, comandadas por um portu‑

guês, o Marquês de Minas, em 28 de Junho

de 1706

Mas vão seguir‑se as derrotas que conhe‑

cemos.

Os conflitos multiplicam e atingem toda

a Europa no final do século XVIII, a que a

Revolução Francesa dá cunho especial.

Portugal vê‑se envolvido nas guerras que a

França desencadeia. A autora descreve‑nos,

com a sua habitual qualidade intelectual, os

dilemas da diplomacia portuguesa que são

sérios e aos quais depressa se dá conta de não

poder escapar. O Tratado de Fontainebleau

entre Carlos IV de Espanha e Napoleão I é o

mais duro atentado à existência de Portugal,

dividido em três” bocados”, como diz a

autora, e ameaçada a língua. O país sofre três

tentativas de invasões francesas e tempo de

ocupação estrangeira. Mas salva‑se com a

inteligente e brilhante, nas suas consequên‑

cias, decisão da partida da Corte para o Brasil,

que preserva a identidade da Pátria, a autora

recorda‑nos que a elevação do Brasil a Reino

Unido de Portugal e dos Algarves foi aprova‑

da no Congresso de Viena, decisão que salva

a monarquia e permite depois o regresso de

D. João VI a Lisboa deixando o seu filho

Imperador no Rio de Janeiro.

Pela riqueza e densidade da sua investi‑

gação e pela forma elevada como aborda o

papel da diplomacia em fases cruciais da

nossa vida colectiva, permito‑me aconselhar

vivamente a leitura deste belo livro da

Professora Doutora Ana Leal de Faria.NE.

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185

haNdBook of iNtelligeNce studies

de Loch K. JohnsonEditora: Routledge

Londres, 2009

Loch K. Johnson1 traz‑nos o que prova‑

velmente será um dos mais estimulantes

volumes introdutórios/gerais ao mundo das

Informações até à data publicados. Embora o

Do estudo ao escrutínio parlamentar: uma introdução às

Informações

Filipe Ortigão Neves*

título sugira uma abordagem académica, o

livro tem um alcance abrangente que poderá

interessar um vasto leque de leitores: desde

políticos (tanto no executivo como na

Assembleia da República) a juízes e magistra‑

dos; de diplomatas, a militares e oficiais de

informações; de académicos e estudantes que

se debrucem sobre a matéria, até ao leigo

interessado.

O grande trunfo deste livro em relação

a outros do mesmo género reside no facto de

contar com a colaboração de 27 especialistas.

Cobre assim, através dos seus 26 capítulos,

um lato espectro de questões com uma pro‑

fundidade e diversidade que dificilmente

poderia ser alcançada por um só autor. Este

volume é enformado não apenas pela pes‑

quisa e análise académica, como também

pela experiência profissional de alguns dos

autores.

Tratando ‑se, na sua maioria, de norte‑

‑americanos, o livro é naturalmente marcado

* Investigador. Mestre em Intelligence and International Security, pelo King’s College London.1 Regents Professor de Ciência Política na Universidade de Geórgia, EUA, e editor da revista Intelligence and

National Security. Serviu nas comissões de informações e de negócios estrangeiros do Senado e da Câmara

de Representantes e foi consultor do Conselho Nacional de Segurança, do Departamento de Estado e da

Subcomissão do Senado de Separação de Poderes. É autor de vários livros e artigos sobre Informações e

segurança nacional dos EUA.

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186 pela experiência dos EUA. Apesar deste inevi‑

tável enfoque, os temas cobertos e as refle‑

xões deles decorrentes são pertinentes e

muito úteis. Convém sublinhar que o estudo

e análise dos serviços de informações e das

suas actividades se encontra, por agora, mais

desenvolvido entre os anglo‑saxónicos – fruto

da sua inegável importância para o desempe‑

nho do Reino Unido e dos EUA durante a

Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Não

alheio a isto, regista‑se também uma maior

abertura para discutir esta temática e a exis‑

tência de ligações próximas e um diálogo

entre a academia e as instituições e órgãos

governamentais.

O livro encontra‑se dividido em seis

partes, que examinam os tópicos centrais do

estudo das Informações, das quais gostaría‑

mos de chamar especial atenção para duas,

nomeadamente a primeira e a sexta parte. A

primeira interessará, em especial, aos que se

interessem pelo estudo das Informações. A

sexta parte será de particular interesse para

políticos, em especial, ao legislador com

assento no parlamento e comissões relevan‑

tes, e para juízes e magistrados que por ine‑

rência de funções lidem com questões ligadas

às Informações.

A primeira parte é dedicada à temática

do estudo das Informações. Dos seus quatro

capítulos, o primeiro discute diferentes abor‑

dagens aos desafios do estudo das Informações,

sobretudo no que respeita a casos concretos,

tanto para o investigador institucional como

para o pesquisador externo. O segundo capí‑

tulo analisa a abordagem americana ao estu‑

do das Informações. Identifica factores que

moldam o interesse americano no assunto e

a abordagem dele decorrente; uma sociedade

aberta e relativamente bem informada, a exis‑

tência de uma academia que procura com‑

preender os serviços de informações, o seu

funcionamento, os seus sucessos e fracassos

através da aplicação de métodos de estudo e

análise provenientes das ciências sociais.

Também conta a preocupação em manter os

serviços de informações e as suas actividades

sob escrutínio democrático sem contudo as

desprover do sigilo necessário à sua eficácia.

O capítulo seguinte discute os desafios e

meandros inerentes à elaboração de uma his‑

toriografia de um serviço de informações,

neste caso o FBI, sugerindo possíveis instru‑

mentos e perspectivas de inquérito e análise.

O capítulo final foge ao sentido geral desta

primeira parte e oferece uma estimulante

discussão sobre a ética nas actividades dos

serviços de informações.

Destacamos esta primeira parte, em par‑

ticular os primeiros três capítulos, por dar ao

leitor, sobretudo ao pesquisador, uma con‑

textualização epistemológica ao estudo das

informações e por oferecer ideias para pensar

avenidas de pesquisa e análise enriquecedo‑

ras. Neste veio, sublinhamos também o

segundo capítulo da segunda parte, que, a

nosso ver, deveria ter sido o capítulo final da

primeira. Este aborda o estudo e a análise

comparativa de diferentes serviços de infor‑

mações. Aponta para necessidade de desen‑

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187volver métodos que facilitem uma análise

comparada estruturada, advertindo, contudo,

para as limitações inerentes neste tipo de

estudo.

A segunda parte trata a evolução das

informações modernas. Numa perspectiva

estrutural, será a parte que deixa mais a

desejar. Não pela qualidade dos seus três

capítulos, mas sim, por no seu conjunto,

não preencherem as expectativas que o títu‑

lo dado a esta parte sugere. Como já foi

apontado, um dos seus capítulos, o segundo,

teria tido maior pertinência na primeira

parte.

O primeiro capítulo desta segunda parte

trata do escrutínio, controlo e dos respectivos

mecanismos internos e externos (estes últi‑

mos, o político, parlamentar e judicial) dos

serviços de informações e das suas activida‑

des. Este tem sido um aspecto que tem evolu‑

ído ao longo das últimas décadas, e que faz

com que seja o capítulo com mais clara rele‑

vância para esta segunda parte. O terceiro

capítulo explora um caso concreto, o papel

dos EUA na criação dos serviços de informa‑

ções alemães no pós‑guerra a partir dos ves‑

tígios do aparelho securitário do Terceiro

Reich. Pelas questões da problemática histo‑

riográfica que aborda, teria maior pertinência

na primeira parte do livro, embora também

não destoe inteiramente da temática desta

segunda parte. Um capítulo adicional, ou

talvez dois, de natureza mais geral e abran‑

gente, teriam composto esta segunda parte de

forma mais satisfatória.

A terceira e quarta parte do livro tra‑

tam do ciclo (de produção) de informações.

A primeira, das duas, cobre os métodos e

disciplinas de recolha de informações, a

segunda trata as questões de análise, disse‑

minação e impacto das informações produ‑

zidas. Destacaremos aqui apenas dois capí‑

tulos.

O primeiro, sobre a pesquisa de infor‑

mações por fontes abertas, aponta para a sua

utilidade no trabalho de informações desen‑

volvido por forças multinacionais na ausên‑

cia de protocolos oficiais que permitam a

partilha de informações entre forças de dife‑

rentes países. Também adverte quanto ao

fraco aproveitamento deste meio de pesquisa

que, a relativamente baixo custo, permite

obter num curto espaço de tempo, um

manancial de informação considerável e que

continua a ser negligenciado ou pouco apro‑

veitado por órgãos de decisão públicos e

privados. O segundo trata das informações

de cariz económico (industrial, tecnológico

e cientifico) com uma abordagem e disserta‑

ção interessante sobre o assunto, não muito

usual neste tipo de livros de carácter intro‑

dutório/geral. Diferencia entre a pesquisa de

informações no sector económico, activida‑

de legítima e importante, e a espionagem

económica, actividade clandestina e que em

termos latos afecta negativamente a produti‑

vidade e inovação económica.

A quinta parte deste livro aborda as acti‑

vidades de contra‑espionagem e as acções

encobertas – actividades de subversão e exer‑

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188 cício de influência que não possam ser direc‑

tamente associadas ou imputáveis ao manda‑

tário.

Destacada no início, a sexta e última

parte deste livro trata do escrutínio democrá‑

tico e judicial dos serviços de informações e

das suas actividades. Com quatro capítulos

dedicados ao tema e um quinto adicional, se

considerarmos o primeiro capítulo da segun‑

da parte, este volume aborda esta questão

com uma riqueza e diversidade de pesquisa e

análise fora do comum num livro de carácter

introdutório/geral.

O primeiro capítulo analisa o escrutínio

parlamentar no Reino Unido, tendo por

objecto de análise os inquéritos feitos às

informações sobre as armas de destruição

maciça do Iraque. Disserta sobre as limitações

das comissões de inquérito, em particular,

[quanto] no que diz respeito a mandatos e ao

acesso a material classificado. Sublinha tam‑

bém a necessidade de conduzir tais inquéri‑

tos com sobriedade e as devidas medidas para

salvaguardar os inquiridos de indesejáveis

pressões públicas e mediáticas – que neste

caso resultaram no suicídio do Dr. David

Kelly.

O segundo capítulo investiga a legisla‑

ção de escrutínio e de controlo dos serviços

de informações em diferentes democracias

liberais, analisando três aspectos: o grau de

independência e a eficácia parlamentar no

escrutínio dos serviços de informações e

assuntos relacionados; a incorporação da sal‑

vaguarda dos direitos humanos no interior

dos serviços; e a neutralidade política dos

mesmos. Para cada um, apresenta uma com‑

pilação de bons exemplos de legislação pro‑

veniente de diferentes países. Pelo tópico que

analisa, possivelmente será dos mais interes‑

santes capítulos deste volume

Os dois últimos capítulos focam os

EUA. O primeiro examina a evolução do

escrutínio judicial dos serviços de informa‑

ções e da sua utilização por parte do execu‑

tivo. Este escrutínio evoluiu a partir de duas

necessidades. Primeiro, a de conter a actua‑

ção e utilização dos serviços de informações

– por inerência secreta – dentro dos limites

do quadro legislativo, prevenindo e punindo

abusos. A segunda, a necessidade de salva‑

guardar direitos fundamentais individuais,

como o direito a um julgamento transparen‑

te ou o direito à privacidade. Embora com‑

parativamente mais restrito em relação ao

escrutínio exercido pelo Congresso, não

deixa de ser um instrumento importante no

controlo e regulamentação da actuação do

executivo e dos serviços de informações.

Como constata lapidarmente o autor deste

capítulo “Nothing concentrates the mind

and dampens excess so wonderfully as the

imminent prospect of explaining one’s

actions to a federal judge”.2

2 JOHNSON, Loch K. ed. Handbook of Intelligence Studies, Routledge, Londres, 2009, p. 340.

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Page 191: 15 número 15 publicação semestral do Instituto Diplomático · José-Sigismundo de Saldanha Leonardo Mathias Manuela Franco ... Do estudo ao escrutínio parlamentar: uma introdução

189O segundo e último capítulo discute as

insuficiências do escrutínio exercido pelo

Congresso. A análise feita aponta a falta de

interesse pela temática e ausência de um

processo de escrutínio regular, por ser elei‑

toralmente pouco lucrativo, revelando a

acção do Congresso ser sobretudo reactiva

face a escândalos e fracassos dos serviços de

informações. Ao alhearem‑se assim da sua

responsabilidade de escrutínio, sublinha o

artigo pertinentemente, os representantes

eleitos deixam de estar em posição de asse‑

gurar a eficácia dos serviços de informações,

falhando, portanto, na sua responsabilidade

de velar pela segurança e interesses da socie‑

dade que os elegeu.

Fica assim, uma sinopse deste livro.

Enquanto volume introdutório/geral, é extre‑

mamente rico e variado no que respeita à

pesquisa e análise que apresenta. Tal como

pretende o seu editor, oferece sugestões e

estímulos à reflexão e pesquisa neste campo.

Não sendo uma monografia, ao contrário da

maioria das publicações deste género, o

Handbook of Intelligence Studies não usufrui de uma

coerência estrutural equilibrada patente

naquelas, e que por elas é mais facilmente

alcançada. Como já indicámos, a distribuição

e organização dos capítulos da primeira e da

segunda parte não será a mais feliz.3 Os 26

ensaios que constituem os capítulos deste

livro, apesar de tratarem os principais temas

no estudo das informações, fazem‑no conso‑

ante a lógica do tema e a abordagem escolhi‑

da pelos seus autores. Resulta assim, um tra‑

tamento menos equilibrado dos tópicos e

acaba por haver uma identificação, categori‑

zação e esquematização menos clara e explí‑

cita neste volume do que a encontrada nas

monografias, aspecto que interessará ao leitor

estreante. Mas esta é uma crítica menor face

ao interesse e valor que este volume encerra,

e que o leitor facilmente ultrapassará através

de monografias como as de Michael Herman,

Walter Laqueur ou de Abram N. Shulsky e

Gary J. Schmitt, entre outros.NE

3 Reconhecemos que este reparo não teria razão de ser, caso o volume fosse apresentado na sua estruturação

como uma colecção de ensaios, tal como Johnson perfila na sua introdução ao volume. Mas isto, de facto,

não acontece. Essa opção provavelmente implicaria uma organização dos ensaios (note‑se que já não os

referimos como capítulos) diferente, mas que julgamos não seria tão satisfatória para o editor. Haveria,

vejamos por exemplo, um ensaio solitário sobre ética face a um bloco substancial de ensaios sobre ques‑

tões de pesquisa de informações.

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190

seeds of terror. hoW heroiN is BaNkrolliNg the

taliBaN aNd al qaedade Gretchen Peters

Editora: Thomas Dunne BooksNova Iorque, 2009

semeNtes do terrorismo (Seeds of Terror) trans‑

porta‑nos para uma viagem ao mundo das

relações promíscuas entre os movimentos

subversivos e o narcotráfico no Afeganistão.

Segundo a autora, Gretchen Peters, o movi‑

mento talibã e os traficantes de droga con‑

Carlos Martins Branco*

fundem‑se e misturam‑se de tal modo que se

torna impossível tratá‑los como assuntos

separados. Peters chama a esta união de nar‑

cotraficantes, grupos terroristas e submundo

do crime internacional o novo eixo do mal.

Peters explica ao longo de 300 páginas

de leitura envolvente, por vezes excitante,

que se lêem quase como um romance, como

é que o comércio da droga se tornou vital

para a sobrevivência dos talibãs, defendendo

como remédio santo para essa enfermidade

a necessidade de secar a sua fonte de finan‑

ciamento, ou seja, a desarticulação do nar‑

cotráfico como a forma última de os derro‑

tar. Aí se deveria concentrar a acção dos

Estados Unidos, sublinha a autora.

O facto de a investigação estar bem

documentada – grande parte das referên‑

cias a que se socorreu tem origem nos

relatórios da DEA (Drug Enforcement Admi-

nistration) – e resultar de um profundo

conhecimento da região – calcorreada pela

autora durante mais de uma década como

jornalista ao serviço da Associated Press e

da ABC News – tornam o livro um docu‑

mento incontornável.

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* Major‑General. Director de Doutrina do Exército.

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191Ela explica com mestria como o comér‑

cio da heroína se misturou ao longo dos

tempos com os desenvolvimentos políticos

do país, muito em particular desde a Jihad

levada a cabo pelos Mojahedines contra o

Exército soviético nos anos 80 até aos dias

de hoje, dando especial ênfase ao papel cru‑

cial desempenhado pelos traficantes de

droga e pelos chefes tribais na ascensão dos

talibãs ao poder, assim como na consolida‑

ção e manutenção do regime, fazendo com

que o Afeganistão se tivesse transformado

durante o governo talibã num narco‑esta‑

do.1 Essa análise estende‑se ao período que

se segue à intervenção militar americana,

em Outubro de 2001, no rescaldo dos acon‑

tecimentos de 11 de Setembro desse mesmo

ano contra as torres gémeas, precisando

com detalhe o modo como o dinheiro da

heroína salvou os talibãs de soçobrar e lhes

permitiu reincarnar numa versão ainda mais

brutal daquela que governou o Afeganistão

nos anos 90.

Peters faz um retrato exemplar das via‑

gens espúrias do dinheiro da droga, salien‑

tando as dificuldades em lhe seguir o rasto,

assim como detectar a lavagem do dinheiro

que lhe está associada, numa região do

globo onde impera a ilegalidade e a corrup‑

ção e que na prática é um autêntico wild west

financeiro. Para esta situação, concorre deci‑

sivamente o hawala, um sistema informal de

transferências e envio de dinheiro alternati‑

vo e paralelo ao sistema bancário tradicional

predominante naquela região do mundo, o

qual é constituído por uma rede de interme‑

diários (hawaladars) que operam sem instru‑

mentos promissórios e sem registos das

transacções, e a que, curiosamente, acorrem

também algumas organizações internacio‑

nais que operam na zona.

Centrada nas políticas americanas para

a região, Peters faz uma incursão na política

americana contra a droga e às complexida‑

des que lhe estão associadas, nomeadamente

no que respeita às vicissitudes da aplicação

do Direito Internacional. A autora procura

explicar porque é que aquelas políticas

falharam no Afeganistão e propõe uma nova

abordagem. Peters desfaz o tão propalado

mito da proibição do cultivo da droga

durante o período talibã. Inicialmente, os

talibãs manifestaram‑se contra o negócio do

ópio, mas só actuaram contra ele num

número muito reduzido de casos. O narco‑

tráfico foi sempre a principal fonte de finan‑

ciamento dos grupos insurrectos. Mas a

queda do regime em 2001 veio acentuar

essa dependência, que se tornou vital para a

sua sobrevivência. Também encontramos no

livro uma descrição pormenorizada do papel

desempenhado pelos paquistaneses no nar‑

cotráfico e das relações que estes mantive‑

ram e mantém com os grupos afegãos.

1 O relato refere como o Afeganistão se tornou um destino cool do roteiro hippie dos anos 60, devido ao haxixe

barato e à paisagem arrebatadora.

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192 O livro põe ainda a nu as contradições

da política americana na região desde a Jihad

contra a União Soviética, nomeadamente as

relações com os serviços secretos paquista‑

neses (ISI), os quais introduziam no

Afeganistão armas e materiais destinados

aos combatentes afegãos e no regresso ao

Paquistão traziam heroína. Peters descreve

com rigor os dilemas levantados pelo envol‑

vimento de figuras gradas do regime e do

governo afegão no narcotráfico, com quem

Washington se vê na inevitável contingência

de ter trabalhar e de contar como aliados

incontornáveis no combate à Al‑Qaeda.

O livro é muito crítico da complacên‑

cia posta no combate à droga pelas sucessi‑

vas administrações americanas, acusando‑as

de centrarem a sua actuação na perseguição

dos dirigentes talibãs e da Al‑Qaeda, em vez

combaterem o sistema que os apoia. Segundo

Peters, é necessário encontrar um modo de

fundir a operação contra‑subversiva com a

operação da DEA contra os narcóticos. Se é a

droga que alimenta a violência e a subver‑

são, então a prioridade das políticas devia

ser colocada no combate à droga e ao narco‑

tráfico que as sustenta. Na embaixada ame‑

ricana em Cabul lutar contra o narcotráfico

era menos importante do que combater os

terroristas, exactamente como tinha aconte‑

cido no tempo dos soviéticos, acrescenta a

autora.

Peters critica de uma forma velada a

resistência do Pentágono e dos militares

americanos em se envolverem no combate à

droga, nomeadamente na desarticulação dos

mercados do ópio, no desmantelamento dos

laboratórios de processamento de droga e

na interdição dos carregamentos, rejeitando

sistematicamente os pedidos de apoio da

DEA. Não obstante, expõe de uma forma

neutral os motivos por detrás dos receios do

Pentágono em participar nestas actividades.

Atacar os cultivadores de ópio significa um

rude golpe na campanha pelas almas e cora‑

ções, tão decisiva no combate contra‑sub‑

versivo. Mas, para além disso, os aliados da

CIA e dos militares americanos no combate

à Al‑Qaeda e aos talibãs estão igualmente

envolvidos no narcotráfico.

Estas duas estratégias de actuação dis‑

tintas chocam e são responsáveis pelas ten‑

sões e rivalidades existentes entre o Pen‑

tágono e a DEA. O livro faz igualmente eco

das divisões entre americanos, ingleses e a

Administração Karzai sobre as estratégias a

seguir. Enquanto os americanos acusavam a

estratégia britânica de ser desajustada, tanto

conceptual como operacionalmente, britâ‑

nicos e Governo afegão opunham‑se vee‑

mentemente às propostas americanas da

erradicação das plantações de ópio através

de pulverização aérea. A tudo isto juntam‑se

ainda as reticências do Presidente Karzai em

perseguir os seus aliados tribais envolvidos

no tráfico de drogas, nomeadamente os da

etnia Pasthun, por necessitar do seu apoio

para competir com os rivais talibãs que se

apoiam igualmente na etnia Pasthun. São

ainda referidos com pormenor os proble‑

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193mas de natureza legal que se levantam ao

Reino Unido com a extradição de indivídu‑

os ligados ao narcotráfico, detidos fora das

suas fronteiras.

Para além de um excelente ponto da

situação sobre o desenvolvimento do narco‑

tráfico no Afeganistão e de uma notável

caracterização das envolventes políticas, o

trabalho de Peters tem o mérito de arriscar

soluções. Critica a pulverização aérea, e

sugere uma acção militar da coligação em

larga escala (leia‑se das forças americanas

que actuam no âmbito da operação Enduring

Freedom, e não das forças da OTAN) contra os

cabecilhas dos traficantes, de modo a secar o

fluxo do dinheiro da droga que alimenta os

grupos de insurrectos e terroristas. Sugere

também que a Coligação aniquile o peque‑

no número de especialistas que é capaz de

transformar o ópio em heroína. A materiali‑

zação desta estratégia colocaria de imediato

um enorme obstáculo à produção de heroí‑

na. A Força Aérea deveria bombardear os

laboratórios e atacar as colunas que trans‑

portam a droga, no caminho para as frontei‑

ras iraniana e paquistanesa. A campanha

deveria ser dirigida apenas contra os maus

rapazes, sem atingir os agricultores afegãos.

Peters defende a implementação de

uma estratégia assente em nove pilares: ini‑

ciativas diplomáticas para estabelecer a paz

regional e o comércio livre; estratégia de

contra‑subversão devidamente equipada e

implementada; esforços para combinar

intelligence com imposição da lei; recurso aos

militares contra os senhores da droga e os

laboratórios de processamento, e na interdi‑

ção do transporte da droga; criação de uma

rede de apoio aos agricultores; campanha de

relações públicas; isolamento e desarticula‑

ção do tráfico da droga e do financiamento

do terrorismo; e promoção de um programa

alternativo de vida. O esforço deveria ser

holístico, sem se encontrar subordinado a

prioridades; e deveria ser de region building em

vez de nation building.

As propostas de Peters merecem‑nos

algumas reflexões. Estão bem articuladas e

soam maravilhosamente, mas levantam‑nos

dúvidas quanto à viabilidade da sua imple‑

mentação. É mais fácil falar de interdição do

que fazê‑la, especialmente num país onde

nem a polícia nem o sistema judicial funcio‑

nam. A ideia de juntar a luta contra‑subver‑

siva com o combate ao narcotráfico parece

excelente e faz aparentemente sentido, par‑

tindo do pressuposto que é fácil conjugar

ambas as coisas, o que não é verdade. A

autora poderia, por exemplo, ter explicado

melhor as reticências dos militares em par‑

ticiparem no combate à droga.

Nem a ISAF nem as forças americanas

que operam sob o chapéu da operação

Enduring Freedom foram concebidas, treinadas

ou equipadas para combater o narcotráfico.

Atribuir‑lhes novas missões quando o prato

já está cheio, esticando ao máximo as suas

capacidades não parece avisado e arrisca‑se a

mission creep. Parece esquecer‑se que toda a

gente no Afeganistão se encontra, de um ou

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194 de outro modo, envolvida no comércio da

droga, começando por aqueles com que se

conta como aliados. Uma política assertiva

neste domínio poderia ser fatal para a

manobra militar contra‑subversiva.

O argumento central do livro, forte‑

mente alinhado com as teses da DEA e a

cujos relatórios a autora recorre frequente‑

mente, é aparentemente razoável e sedutor –

os grupos de insurrectos só deixarão de

constituir uma ameaça quando se conseguir

desarticular a sua fonte de financiamento,

isto é, o narcotráfico – mas é tremendamen‑

te simplista.

Não se pode negar a importância da

droga no financiamento dos talibãs, mas daí

a atribuir‑lhe um papel determinístico na

solução do conflito, ou reduzir a acção

contra‑subversiva ao primado da droga vai

uma grande distância. Com base numa meia

verdade – a droga é o garante da sobrevivên‑

cia dos talibãs –, Peters constrói um argu‑

mento em que reduz a resolução de todos os

problemas à eliminação da droga e do nar‑

cotráfico. Ao centrar o debate na droga, a

mãe de todos os problemas, Peters escamo‑

teia a questão central do problema e passa

ao lado de temas cruciais como sejam, por

exemplo, a necessidade de encontrar uma

solução política viável e suficientemente

mobilizadora dos pasthuns, susceptível de se

contrapor à solução centralista e presiden‑

cialista consagrada na Constituição afegã,

que é rejeitada pela maioria dos grupos afe‑

gãos.

Ao considerar o comércio da droga a

causa de todos os males e o problema cen‑

tral do conflito que urge resolver em pri‑

meiro lugar, Peters inquina o debate des‑

viando‑o da questão política essencial. Não

é verdade que os comandantes insurrectos

tenham perdido os referenciais ideológicos

e as aspirações políticas por causa da droga,

e se assemelhem agora mais a membros de

grupos criminosos do que a uma força polí‑

tica – “Estes já não são talibãs. Já não sabe‑

mos quem são”2 –, diz um oficial dos servi‑

ços de segurança afegãos, citado por Peters.

Não é verdade que os insurrectos tenham

abdicado de mudar o regime em Cabul, e

sua táctica se tenha desviado para a protec‑

ção das plantações de ópio e das colunas que

transportam a droga.

Na realidade têm sido interpretações

desta natureza, menosprezando as questões

ideológicas subjacentes ao conflito, que têm

impedido a compreensão do processo sub‑

versivo afegão. O movimento insurrecto

afegão tem uma ideologia típica de um

movimento de guerrilha, com a qual tem

mobilizado as tribos para resistir aos estran‑

geiros: a luta contra o invasor. Ao contrário

do que se afirma recorrentemente, a subver‑

são afegã não é motivada principalmente

2 Pág. 104.

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195pela religião mas sim pelo ódio ao estran‑

geiro. A verdade é que os chefes insurrectos

procuram legitimar‑se internamente como

movimentos de resistência nacional. O argu‑

mento de Peters insere‑se numa corrente de

pensamento que nega a existência de uma

ideologia autóctone afegã, a qual recorre à

repetição ad nauseam de estereótipos e slogans

inúteis que não ajudam à compreensão do

fenómeno, nem à identificação de uma

estratégia contra‑subversiva ganhadora que

possa anular o desejo endémico dos afegãos

de repelirem os forasteiros.

Por outro lado, Peters não faz qualquer

distinção entre o movimento talibã e a

Al‑Qaeda, nem reconhece as diferenças ide‑

ológicas que os separam, assim como as

tensões existentes entre os dois grupos

desde os anos 90. Não faz qualquer referên‑

cia a este facto. A tradição pashtun da Jihad

diferencia‑se claramente do projecto

Jihadista global da Al‑Qaeda; foi desenvolvi‑

da localmente há muitos séculos. A subver‑

são afegã é de natureza tribal e local, não

tendo nada a ver com o projecto do califato

global da Al‑Qaeda.

A proposta de uma abordagem holística

ao problema da droga é interessante, mas

não passa de um lugar‑comum. Fica por

perceber como implementá‑la. Não pode‑

mos deixar de ficar surpreendidos com a

proposta de uma solução com base no region

building,3 numa região onde nem sequer o

state building tem sucesso. Fica‑nos um pro‑

fundo cepticismo sobre o realismo das pro‑

postas avançadas. Não obstante os comentá‑

rios efectuados, o livro proporciona

informação importante e constitui, sem

dúvida, uma referência no estudo do narco‑

tráfico no Afeganistão e das suas envolven‑

tes.NE

3 Pág. 218.

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196

the future of freedomilliBeral democracy at home

aNd aBroadde Fareed Zakaria

Editora: W. W. Norton and CompanyNova Iorque, 2007

Não possuiNdo um teor revolucionário, “The

Future of Freedom”1 é um livro onde alguns

elementos que têm andado escondidos do

Jorge Azevedo Correia*

debate político actual são relembrados e

onde alguns equívocos do nosso tempo são

recolocados no seu lugar. A Zakaria, mais

conhecido pelas suas reflexões sobre maté‑

rias internacionais2 do que propriamente

pela destreza de análise teórica e conceptual,

acaba por ter de ser creditada a audácia de

aclarar alguns pontos essenciais sobre a pre‑

sente matriz democrática e liberal. Numa

sociedade em que o termo democracia‑

liberal surge como elemento descritivo de

uma realidade presente, Zakaria demonstra

de que forma a construção e a expansão de

um sistema de liberdade individual foi rea‑

lizada contra ou apesar da ideia democrática.

Algo que se encontra muito próximo de

descrever o termo democracia‑liberal como

um oximoro.

Segundo Zakaria, Liberalismo e Demo‑

cracia são duas forças autónomas que cami‑

nham lado a lado, correspondendo a pri‑

meira ao impulso de formulação de um

sistema de preservação de esferas indivi‑

* Assessor Diplomático no Instituto Diplomático do MNE.1 Fareed Zakaria, The Future of Freedom: Illiberal Democracy at Home and Abroad, Norton & Company, New York, 2007.2 Fareed Zakaria distinguiu‑se essencialmente como director da revista Foreign Affairs e pela sua famosa coluna

na Newsweek sobre assuntos de política externa americana e de relações internacionais. Actualmente apre‑

senta o programa “GPS” na CNN, que se dedica sobretudo à actualidade política internacional.

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197duais que são invioláveis por outrem3 e a

segunda a um impulso genérico de titulari‑

dade e propriedade da comunidade polí‑

tica4. De acordo com a concepção liberal, o

objectivo da comunidade política corres‑

ponde a um reforço das barreiras que nos

separam do outro (para que desta forma se

delimite com precisão a propriedade e a

esfera de autonomia), algo que a tentação

democrática tenta derrubar através do

aumento do valor normativo da comunida‑

de política. Num sistema democrático onde

não sejam tomados como essenciais e estan‑

do acima do debate político os valores do

individualismo e do respeito pela proprie‑

dade, segurança e dignidade dos outros, ou

onde estes se encontrem em erosão, a comu‑

nidade política transformar‑se‑á inevitavel‑

mente numa arma de arremesso das maio‑

rias ou dos poderosos, contra as minorias.

Este é um ponto em que Fareed Zakaria se

apoia fortemente na observação tocque‑

villiana de que um sistema de liberdade na

“era democrática” depende da força das suas

instituições, em particular das que articulam

os princípios estruturantes da comunidade

(responsabilidade individual, respeito pelos

contratos e propriedade, receio da retribui‑

ção divina…)5, para que se mantenha livre.

Neste contexto, o grande desafio colocado a

esta formulação do jusnaturalismo liberal

clássico6 é a Democracia, quando entendida

no sentido de comunidade onde os fins

colectivos são detidos pelos indivíduos em

virtude do carácter livre dos mesmos7.

Segundo esta ideia, o direito de propriedade

dos cidadãos sobre a comunidade organiza‑

‑se de forma a que, ao contrário das pers‑

pectivas jusnaturalistas, a própria identidade

e estrutura comunitárias nada mais sejam

que não um reflexo dos actos voluntários

dos seus cidadãos, em clara oposição com as

3 Uma concepção muito próxima da “liberdade negativa” descrita por Isiah Berlin em “Two Concepts of Liberty”

e que radica na afirmação da transcendência da individualidade, no “individualismo possessivo” descrito por

McPherson e na perspectiva descrita por Charles Taylor em Sources of the Self como “atomista”.4 Esta é uma perspectiva antiga na história do pensamento político. Já Aristóteles (Política, III, 1279b‑1280a10

e VI,1318a‑1319b ) havia definido a Democracia como um regime onde a titularidade da comunidade

política por parte dos cidadãos permitiria que estes se organizassem segundo a sua própria vontade, em

virtude da sua liberdade individual, e não segundo princípios transcendentes. Esta formulação é, não ape‑

nas uma forma de convencionalismo jurídico‑político, mas uma oposição (um desvio, em termos aristoté‑

licos) a princípios constitucionais ou republicanos que tornariam inamovíveis os preceitos constitucionais

essenciais quer fundados na estrutura da comunidade, quer em princípios de Direito Natural.5 Ver Alexis de Tocqueville “Da Democracia na América”, vol.1, cap. XV.6 Nos autores do liberalismo clássico, seja Hobbes,Locke, ou mesmo em Kant, os direitos individuais encon‑

tram‑se limitados a uma esfera privada e a possibilidade política de remover os princípios constitucionais

de uma sociedade através do voto ou de actos plebiscitários é algo que se encontra ausente nas suas bas‑

tante diversas perspectivas.7 Ver Nota 3.

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198 perspectivas jusnaturalistas clássicas e

modernas, onde o fulcro essencial da comu‑

nidade se encontraria além das capacidades

dos cidadãos enquanto legisladores. Nesse

sentido a constituição da comunidade, os

seus elementos valorativos e princípios

estruturantes, perdem a validade enquanto

autónomos e adquirem um valor dependen‑

te da efectivação por parte dos cidadãos. Os

princípios da comunidade política deixam

de ser normas independentes que regulam

os conflitos sociais, segundo a perspectiva

jusnaturalista, para adquirirem um carácter

convencional, onde as próprias normas que

regulam a ordenação política são palco do

conflito social e fruto do mesmo. Os proble‑

mas fundamentais da Democracia residem

precisamente aí. A Demagogia, a exploração

para fins privados das paixões e desejos dos

indivíduos titulares da soberania, torna‑se

um problema no momento em que estes

adquirem um papel primacial na definição

das regras políticas.

A emergência da ideia democrática

como princípio normativo absoluto, é algo

que, para Zakaria, ameaça a própria

Liberdade. A constituição de uma sociedade

de massas, onde o soberano corresponde o

conjunto dos cidadãos, mas estes se encon‑

tram dependentes do poder político para

satisfação das necessidades individuais,

gerou sociedades onde o desprezo pela

autonomia individual se corporizou na

emergência de regimes totalitários8. Por

outro lado, onde a experiência política e

social incorporou a existência de elementos

independentes do poder político na cons‑

trução dos governos populares, consagrando

o direito a distinções sociais ou aceitando a

primazia das elites no plano político e não

permitindo o acesso livre às premissas da

liberdade (ao elemento constitutivo essen‑

cial), as liberdades individuais adquiriram

um maior estatuto na comunidade e estas

floresceram enquanto sociedades livres9.

Numa sociedade onde a política é reduzida

ao critério democrático, à obtenção de

maiorias para efectivar normas e ao jogo de

criação de consensos e recursos que possibi‑

litam a referida obtenção, as consequências

serão, no dizer de Zakaria, claramente nega‑

tivas, quer no que respeita à política através

de partidos10 e homens públicos que nada

são para além de veículos de pressões sociais

8 O autor não aborda a forma como a liberdade individual e as concepções individualistas, conduziram, como

postulou Gassett (A Rebelião das Massas,1930) a uma desumanização do Homem e ao surgimento de

uma nova servidão, face ao Estado Omnipotente. Em suma, a forma como uma concepção individualista

resultou no desprezo da própria individualidade.9 Ver Zakaria, p. 63. O autor questiona a diferença entre a sociedade alemã e a sociedade britânica e a forma

como uma sociedade de massas e outra com uma aristocracia de razoável independência, divergiram. Uma

para um estado totalitário, outra para um liberal.10 Zakaria, p. 180.

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199e onde nada que se assemelhe a uma crítica

pode ser ouvido contra o que é, ou é aper‑

cebido como, a opinião maioritária ou o

consenso social. Também os representantes

eleitos vêem a sua capacidade de actuação

limitada por uma concepção cada vez mais

directa e personalizada da política11. Numa

comunidade onde os mandatos dos repre‑

sentantes têm carácter de imperatividade,

estando totalmente dependentes da vontade

do eleitor, muitas vezes mesmo com possi‑

bilidade de “recesso” ou recall12, é pratica‑

mente certa a inexistência de uma represen‑

tação independente, propícia à liberdade a

que Zakaria alude. Mesmo fora da esfera

política as consequências desta forma de

legitimidade política, que se consubstancia

numa mercantilização de elementos que se

consideravam estar acima das finalidades

comerciais, são profundas e têm gravíssimas

implicações políticas. Na esfera religiosa, a

transformação das várias denominações reli‑

giosas em meras máquinas de adesão, onde

a doutrina e a severidade moral foram subs‑

tituídas por amplos critérios de aceitação e

tolerância13. Na esfera jurídica, a advocacia,

tida na fundação dos EUA como a “aristo‑

cracia americana”14, misturou‑se com as

actividades comerciais dos clientes, perden‑

do a sua independência e respeitabilidade. A

advocacia americana passou, na feliz expres‑

são de Zakaria, de “cão‑de‑guarda” dos

valores americanos a “animal de colo” dos

interesses sociais15, sendo actualmente

indistinta das outras forças sociais e econó‑

micas. O mesmo sucede com a cultura e arte

americanas, transformadas em elementos

onde o elemento comercial é o essencial16.

Todas estas alterações representam uma sig‑

nificativa mudança no ordenamento social

americano, uma transformação severa que

conduz o “excepcionalismo americano”,

simbolizado pelos conjuntos de obstáculos à

vontade popular ou à democracia directa

eregidos pelos founding fathers17, a uma con‑

vergência com as demais perspectivas apoia‑

11 De relembrar a importância que os Federalist Papers atribuem ao carácter impuro (indirecto e representativo) da

democracia americana, contra as concepções revolucionárias da democracia directa rousseauniana. Sobre

este assunto veja‑se Leo Strauss et al.,“A History of Political Philosophy”, University of Chicago Press, 1987,

Chicago., pp. 659‑678.12 Zakaria, p. 168.13 Zakaria, pp. 206‑213.14 Ver Zakaria, p. 224. Encontra‑se aqui um enorme paralelismo com o Capítulo XIV da “Democracia na

América”, onde os juristas são vistos como a elite que impede a sociedade de destruir os seus preceitos

sociais e legais.15 Como o autor descreve na p. 227, os juristas americanos transmutaram‑se de “watchdogs” para “lapdogs”.16 Zakaria, p. 216‑220.17 É de realçar nos Federalist o papel de James Madison como grande proponente da limitação constitucional da

soberania popular.

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200 das meramente na legitimação democrática.

As consequências estão à vista e o descon‑

tentamento do povo americano com as ins‑

tituições políticas não se faz sentir quanto

aos cargos independentes da aprovação

popular18, por estes serem naturalmente

imunes ao descontentamento que as suas

decisões impopulares, mas necessárias, ins‑

tilam. Existe um poder de representação que

escapa a uma lógica de imperatividade19 do

representado face ao representante e que, de

acordo com Zakaria, pode constituir uma

fórmula mais perfeita e mais capaz de gerar

os objectivos pretendidos através de uma

acção mais independente.

É precisamente nesse ponto em que

Zakaria se apoia para elaborar a sua proposta

de restruturação das instituições americanas,

baseando‑a em alguns pressupostos conser‑

vadores e em tonalidades burkianas. A fun‑

ção política de representação deve adquirir

um peso que possibilite que o representante

tenha a possibilidade de ir contra a vontade

do representado, quando tal for no sentido

dos melhores interesses deste último. Desta

forma um representante não veria como seu

horizonte máximo a obediência aos ditames

dos eleitores e poderia, dessa forma, agir de

forma a resolver ou a contornar os proble‑

mas com uma liberdade superior e resguar‑

dado das pressões populistas que a demo‑

cracia pressupõe. Na realidade esta proposta

existe desde que Burke fez o seu “Discurso

aos Eleitores de Bristol”20, onde defendeu

essa mesma perspectiva de que o lugar da

representação se encontra no melhor inte‑

resse da comunidade e não na vontade par‑

ticular dos cidadãos. Talvez seja mais impor‑

tante compreender as razões pelas quais tal

perspectiva não frutificou, e que foram des‑

critas por Burke nas “Reflexões sobre a

Revolução em França”, nomeadamente a

falta de uma estrutura valorativa que possi‑

bilitasse a aceitação por parte dos represen‑

tados de decisões que iriam contra o seu

julgamento. Num tempo em que as concep‑

ções rousseaunianas de soberania popular e

voluntarismo triunfaram sobre quaisquer

perspectivas orgânicas, a possibilidade de

uma limitação a esse poder, emanado unica‑

mente dos cidadãos, será operada a que

título, com que autoridade e com que pro‑

pósitos? Podemos crer na representação

independente como medida avulsa e inde‑

pendente das grandes “mundividências”,

ou, como Burke defendeu, precisaremos de

18 Zakaria, p. 168 e 171.19 No caso do mandato imperativo o representado mantém os poderes de supervisão sobre o representado

durante o mandato, sendo a sua vontade imperativa sobre os desejos e acções do representante. Sobre a

matéria veja‑se Luís Sá, “Eleições e Igualdade de Oportunidades”, Caminho, Lisboa, 1997.20 No discurso de 3 Nov. 1774, in The Works of the Right Honourable Edmund Burke. 6 vols. London: Henry G. Bohn,

1854‑56. Vol. 1, pp. 446‑48, Burke demonstra‑se contra o carácter imperativo da representação, afirman‑

do que não será escravo das suas vontades, mas zelador dos interesses nacionais.

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201uma mudança de paradigma político e de

uma subversão dos princípios de legitimida‑

de democrática e do voluntarismo rousseau‑

nianos, para que qualquer mudança possa

caminhar no sentido desejado por Zakaria.

O critério definido, patentemente burkia‑

no21, para a limitação do poder popular, é a

necessidade de prover pelo futuro da comu‑

nidade política, através de um “contrato

intergeracional”, onde se evita o predomí‑

nio da presente geração sobre as futuras.

Este é algo que dificilmente será aplicável

avulsamente e sem a revolução de paradig‑

ma atrás mencionada. Ao contrário de

Burke22, Zakaria afirma‑se enquanto defen‑

sor do sistema democrático e mero correc‑

tor do lugar estrutural da democracia no

nosso tempo23, sendo que o seu contrato

intergeracional parece esquecer o facto de

que, sem o ponto retrospectivo do contrato,

uma constituição prescritiva dificilmente

pode ser remetida às gerações presentes a

limitação do seu próprio poder. Sem um

passado imperativo e prescritivo, é dificil

perceber de que forma o nosso presente

pode ser aceite como tal pelas gerações futu‑

ras e de que forma não será a presente gera‑

ção a decidir de forma irrestrita toda a

organização e forma de actuar.

A edição de “The Future of Freedom” adqui‑

rida pelo Instituto Diplomático24 possui

como novidade um posfácio do autor, onde

o argumento do livro é reforçado e proble‑

matizado através dos acontecimentos recen‑

tes da história dos EUA e à situação no

Iraque, assim como pela incapacidade ameri‑

cana de agir segundo os ideias que professa.

Para além do válido contributo para a refle‑

xão sobre o lugar da Democracia no mundo

contemporâneo, bem como da sua génese e

problemas essenciais, este é um livro que

pode colocar o leigo em contacto com as

mais recentes ferramentas do pensamento

político contemporâneo, sendo para esse

efeito um interessante ponto de partida.NE

21 Como Burke defendeu nas “Reflexões sobre a Revolução em França” (EDMUND BURKE, SELECT WORKS OF

EDMUND BURKE, 3 VOLS. (PAYNE ED.) (1874‑1878), VOLUME II: REFLECTIONS ON THE REVOLUTION IN

FRANCE (1790), p. 147. reed. Liberty Fund): “society is indeed a contract. It is a partnership in all science;

a partnership in all art; a partnership in every virtue, and in all perfection. As the ends of such a partnership

cannot be obtained in many generations, it becomes a partnership not only between those who are living,

but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born.”22 Burke defendia que o contrato intergeracional não seria mera defesa da sustentabilidade do futuro, mas a

aceitação do carácter involuntário da constituição presente como elemento prescritivo. Sobre o assunto ver

Francis Canavan, Edmund Burke, Prescription and Providence, Carolina Academic Press, 1987.23 Zakaria, pp. 25‑27.24 E que pode ser consultada e requisitada na Biblioteca do MNE.

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202

a 11 de setemBro de 2001, os ataques terro‑

ristas aos EUA trouxeram as questões do

Médio Oriente para o centro das atenções e

da política internacional, coarctando decisi‑

vamente a margem de acção do recém‑

‑eleito Presidente George W. Bush que, para

a História, ficará associado às Guerras do

Afeganistão e do Iraque. A 1 de Dezembro

de 2009, o Presidente Barack Obama anun‑

ciou o envio de mais 30.000 soldados para

o Afeganistão, elevando o número de tropas

norte‑americanas ali estacionadas acima de

100 mil militares, a juntar a cerca de 40 mil

dos restantes 42 países que integram a coli‑

gação presente no teatro afegão.

A decisão e o discurso marcam uma

nova etapa das guerras da Ásia Central e do

Sul, assinalando a determinação política dos

EUA de continuar o combate pela conten‑

ção das ameaças declaradas do radicalismo

e terrorismo islamico, de armas nucleares

localizadas no Paquistão ou no Irão, de con‑

flitos regionais e infiltrações armadas, da

possível desintegração e fragmentação de

estados. Neste momento está em causa a

localização da linha da frente. Do ponto de

O Novo Médio Oriente ou De novo, o Médio Oriente?

Manuela Franco*

vista ocidental, essa linha está avançada. O

Médio Oriente definiu as Presidências Bush

e vai definir a Presidência Obama.

Os EUA defrontam uma mudança geo‑

política que ameaça a sua preponderância

no sistema internacional e força uma reava‑

liação estratégica. A ascensão da China

como grande potência asiática, continental

e marítima, combinada com o fim da

URSS, a crise da Rússia e a vulnerabilidade

do arco que vai do Mar Negro à Ásia

Central, o desgaste da Aliança Atlântica,

uma Europa ainda não adversa mas distan‑

ciada, marcam o aparecimento de uma

situação geopolítica muito diferente da que

caracterizou o século XX, sobretudo após a

II Guerra Mundial. O principal teatro de

acção deslocou ‑se da Europa e do Atlântico

para a Ásia e para o Pacífico, exigindo aos

EUA que desenvolvam novas tecnologias e

novas alianças. Pairam dúvidas sobre se a

América vai conseguir flexibilidade estraté‑

gica e capacidade de adaptação necessárias

para acompanhar a mudança e manter a

liderança na ordem internacional no século

XXI. Por agora, o Médio Oriente é a região

* Conselheira de Embaixada.

NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 202-215

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203onde é mais imediatamente nítida a adap‑

tação estratégica exigida aos EUA.

A dissensão estratégica começa por inci‑

dir sobre o próprio significado de “Médio

Oriente”. Será que existe um grande Médio

Oriente, este conceito que se sobrepõe e se

estende para além das fronteiras geográficas

tradicionais da região? E, na afirmativa, quais

seriam os traços comuns partilhados pelos

diferentes países agora identificados como

partes de um todo, uma faixa que se estende

de Marrocos ao Paquistão? Quais as conse‑

quências políticas concretas? Se todos os

países fazem parte de uma mesma entidade,

deveria haver soluções idênticas para proble‑

mas idênticos? Por exemplo, a criação de um

estado árabe na Palestina significa que se

deveria formular idêntica desiderata para um

estado independente na Caxemira? Ou um

estado curdo independente?

É hoje comum dizer ‑se que o conceito

de Grande Médio Oriente foi um conceito

político inventado pela Administração Bush

para confundir aliados e adversários, ocultar

inconfessáveis objectivos e escamotear as

deficiências da sua mal gizada política médio

oriental. Quando em 2004, os EUA levaram a

iniciativa do Grande Médio Oriente ao G8

(Sea Island, Geórgia), a guerra do Iraque esta‑

va no pleno do correr mal; e um relatório do

PNUD sobre o Desenvolvimento Humano no

mundo árabe acabava de apresentar, com uma

terrível clareza, a respectiva situação de sub‑

desenvolvimento quanto a todos os indicado‑

res como liberdade, conhecimento, democra‑

cia, economia, emancipação da mulher. A

proposta americana dizia que encorajar a

disseminação da democracia era a política

certa, quer no interesse desses povos sujeitos,

quer no interesse ocidental: ajudar os povos

do Grande Médio Oriente a ultrapassar o

défice de liberdade e desenvolvimento era a

chave para ganhar as questões mais vastas da

guerra contra o terror. As reacções contrárias

não se fizeram esperar. Bush foi logo acusado,

primeiro de não saber geografia e, segundo,

de recorrer à expansão das fronteiras geográ‑

ficas da região para diluir a importância do

problema palestiniano, despromovê ‑lo da

centralidade no palco do Médio Oriente para,

apenas, mais um dos pontos quentes numa

região demasiado vasta.

De facto, a ideia de Médio Oriente,

sendo um conceito eminentemente geopolí‑

tico, é produto dos tempos e tende a não ter

um conteúdo determinado. Se no início do

século XX designava, do ponto de vista britâ‑

nico, as regiões da Ásia que comandavam a

aproximação à Índia, já do ponto de vista

naval americano se aplicava mais ao Golfo

Pérsico. Até à II Guerra Mundial usava ‑se

“Próximo Oriente” para referir as áreas em

torno da Turquia e zona oriental do

Mediterrâneo, reservando “Extremo Oriente”

para a China e “Médio Oriente” para o que

não era nem uma nem outra, designadamen‑

te a região da Mesopotâmia, reflectindo assim

a organização da burocracia britânica em que

a governação do Iraque dependia do India

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204 Já do ponto de vista regional, a forma‑

ção do Médio Oriente contemporâneo tem

sido marcada – desde a I Guerra Mundial –

pela doutrina do nacionalismo árabe que,

sem questionar a unidade das populações

que habitam tão diversos territórios, postu‑

la a existência de uma só Nação Árabe unida

pelos laços comuns da língua, religião e

história, organizada territorialmente numa

multiplicidade de estados soberanos. A

extensão territorial desta “nação” varia

segundo os paladinos da ideologia, poden‑

do abranger “apenas” o Crescente Fértil ou

todo o território que vai da cordilheira de

Zagros a Leste, até ao Oceano Atlântico a

Oeste, e, do outro lado, desde as margens

do Mediterrâneo e das montanhas da

Anatólia, a Norte, até ao Oceano Indico, às

nascentes do Nilo e ao grande deserto, a

Sul.

Com a criação do estado de Israel, o

conflito com a ideia e com a concretização

de uma soberania judaica tomou preponde‑

rância sobre todos os outros conflitos da

região, e Médio Oriente passou a ser mais

uma maneira de designar o conflito israelo‑

‑árabe. Porém a partir da Guerra do Yom

Kippur de Outubro de 1973, o rol de acon‑

tecimentos – a visita de Sadat a Jerusalém,

os Acordos de Camp David e a formalização

da paz entre o Egipto e Israel, a revolução

iraniana, a invasão soviética do Afeganistão,

o fim da Guerra Fria, a Guerra Irão ‑Iraque,

a invasão do Kuwait por Saddam Hussein, a

I Guerra do Golfo, os Acordos de Oslo –

alterou de tal modo o panorama que se

passou a falar de um “novo” Médio Oriente.

Este “novo” talvez quisesse descrever uma

região que podia passar da guerra para a

paz. Desde então, o 11/9 e sucessivos ata‑

ques da Al ‑Qaeda, as guerras no Afeganistão

e no Iraque, a afirmação do projecto de

nuclearização do Irão e sua projecção de

força crescente na região por intermédio de

movimentos como o Hamas e Hezbollah, as

dificuldades entre palestinianos e israelitas,

alteraram ainda mais fundamentalmente as

perspectivas sobre a região. Procuram ‑se

novas políticas e novas designações.

A atenção dos EUA desloca ‑se para

Oriente, localizando ‑se agora mais clara‑

mente no Golfo Pérsico e alargando ‑se aos

montes e vales do Paquistão e do Afeganistão.

E a experiência de falhanço em transformar

o Médio Oriente vem entroncar directa‑

mente no regresso das políticas de equilí‑

brio de poder. O primeiro exemplo do

regresso em força do “realismo” é o recuo

da Administração Obama na afirmação da

defesa dos direitos humanos e da impor‑

tância da autodeterminação interna dos

povos. O Presidente Bush tinha colocado os

valores democráticos e os direitos humanos

no plano principal, consagrando como

objectivo externo dos EUA a procura de

liberdade e democracia. Mas, entre o caos

da guerrilhas no Iraque e a insistência de

realização de eleições nos territórios pales‑

tinianos a redundar na eleição do Hamas

em Gaza, quedou ‑se uma prioridade con‑

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205testada. Já em Abril de 2009, diante do

Senado, a Secretária de Estado Clinton

declarou que “a política externa dos EUA

assenta em três D: defesa, diplomacia e

desenvolvimento”. O quarto D, o de Demo‑

cracia, não foi referido.

NegotiatiNg chaNge: the NeW politics

of the middle eastde Jeremy Jones

Editora: Palgrave MacmillanFeb 1 2007, 224 p.

Sobre este tema, actualmente conheci‑

do como “democratização e mudança polí‑

tica” debruça ‑se “Negotiating Change: The New

Politics of the Middle East”. Jeremy Jones,

Investigador Associado da Kennedy School

of Government e do Centro de Estudos

Islâmicos de Oxford, com uma carreira de

25 anos como consultor privado na região,

apresenta um conjunto de crónicas de repor‑

tagem, a raiar o antropológico, sobre o b -a-

-ba da política quotidiana em onze países do

“grande” Médio Oriente: Egipto, Irão,

Turquia, Iraque, Territórios Pales tinianos,

Jordânia, Marrocos, Dubai, Líbano, Omã e

Síria. De leitura fácil, Negotiating Change é um

livro de episódios, de instâncias de política

participativa em cada um destes países,

muito ao jeito do modelo popularizado pelo

famoso Tom Friedman do New York Times: o

repórter calejado e empático observa a rea‑

lidade local e formula as suas opi niões,

oportunamente apoiadas por entrevistas e

encontros com cidadãos, activistas políticos,

académicos e líderes políticos. Também aqui

não faltam entrevistas com funcionários de

governos e de organizações não‑governa‑

mentais ao serviço do apoio à democracia

no Médio Oriente.

As conclusões surgem, quase natural‑

mente, a apontar as tradições e culturas

indígenas como factores‑chave na definição

das perspectivas de mudança. Os movimen‑

tos islamistas são vistos como agentes cru‑

ciais de democratização, e seus principais

beneficiários. Jones argumenta por exemplo

que o sucesso da Irmandade Muçulmana no

Egipto não resulta da popularidade do movi‑

mento ou dos seus méritos próprios, mas

sim da capacidade repressiva do aparelho do

estado egípcio e da repressão severa que

impõe à sociedade civil. Na prática, a relu‑

tância do estado em invadir a Mesquita con‑

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206 fere aos grupos islamistas uma liberdade de

organização, reunião e expressão, muito

superior a quaisquer outros grupos. Assim, a

opressão política produz um movimento

que pode ser mais perigoso para a sobrevi‑

vência do actual sistema egípcio do que as

forças que este se empenha em reprimir. No

mais, Jones prevê que, na região, será a tra‑

dição shia que produzirá as mudanças mais

promissoras nas relações entre política e

religião.

O autor lamenta a frequência com que

responsáveis políticos americanos pura e

simplesmente não percebem os códigos de

conduta e de comunicação local, nem dos

partidos políticos, nem da sociedade civil,

revelando incapacidade de apreender o que

realmente se está a passar. Jones certifica as

declarações políticas norte‑americanas sobre

o Médio Oriente como quase universalmente

obtusas e mal informadas, susceptíveis

mesmo de sufocar a democratização.

É possível – sem dificuldade de maior –

conceder que o contexto é importante e que

os “enlatados” de democratização já tiveram

os seus dias. No que não se consegue concor‑

dar é com a perspectiva base de toda a análise

política deste autor que vê a democracia no

Médio Oriente a partir de um conceito fun‑

cionalista e formalista, em que a afluência às

urnas, o depositar do voto, constituem um

fim em si próprio, quando de facto são meios

de controle dos governantes, da respectiva

obrigação de cumprir um pacto constitucio‑

nal prévio, de respeitar a separação dos pode‑

res e sobretudo, de organizar o acto eleitoral

seguinte, aquele que os pode apear da cadeira

do poder.

Quanto aos valores democráticos, e à

laia de comentário final, ocorre citar o já

referido Tom Friedman, a propósito do recen‑

te incidente terrorista no Texas, em que um

capelão muçulmano provocou uma matança

indiscriminada de pessoas na base de Fort

Hood. Friedman comenta que “após duas décadas

em que a política externa americana se tem dedicado a

salvar muçulmanos ou a tentar ajudá -los a libertarem -se

de tiranias – na Bósnia, Darfur, Koweit, Somália, Líbano,

Curdistão, Paquistão pos -sismo, Indonésia pos -tsunami,

Iraque e Afeganistão – os EUA vêem -se confrontados com

uma “narrativa” pujante que sustenta que a América vive

para destruir os muçulmanos. Embora actualmente a

maior parte dos muçulmanos mortos em situação de vio-

lência sejam vítimas de bombistas suicidas, a narrativa

dominante é que o 11/9 foi uma fraude, inventada por

americanos e/ou israelitas, para viabilizar um ataque

americano ao Islão, e que os muçulmanos são as verdadei-

ras vítimas da perfídia americana”1. Assinale ‑se que

a larga maioria dos media que difundem tais

mensagens via satélite são propriedade de

governos, sobretudo de países do Golfo, em

“processo de democratização”.

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1 America vs. The Narrative, By THOMAS L. FRIEDMAN, 28 Novembro, 2009, http://www.nytimes.

com/2009/11/29/opinion/29friedman.html.

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207the greater middle east aNd the cold War:

u.s. foreigN policy uNder eiseNhoWer aNd keNNedy

de Roby C BarrettEditora: I.B. Tauris

Londres 2007, 494 p.

Pegar em The Greater Middle East and the

Cold War é recuar cinquenta anos para encon‑

trar um “déjà vu”: uma crise prolongada no

Médio Oriente, incluindo a queda violenta

do governo do Iraque, abalam severamente

o sistema político internacional.

Com mais uma Administração ameri‑

cana em dificuldades no Grande Médio

Oriente, este livro de Roby C. Barrett pro‑

porciona uma leitura interessante, ilumi‑

nando um período difícil das relações

in ternacionais, apresentando muitíssima

informação, que ajuda a avaliar as paradas e

apoia a compreensão dos sucessos e falhan‑

ços dos anteriores protagonistas. Em 150

páginas de notas substantivas, produz um

trabalho considerável de rastreio de fontes

primárias, trazendo ao leitor matérias de

arquivos dos EUA, Egipto, Reino Unido,

Austrália e Nova Zelândia, entrevistas e

recursos de História Oral e extensa revisão

crítica de literatura secundária. Doutorado

em História do Médio Oriente e da Ásia do

Sul pela Universidade do Texas, especialista

em questões de defesa e segurança e com

uma longa e profícua carreira em cargos de

governo, empresas e academia no Médio

Oriente, Roby C. Barrett apresenta uma des‑

crição do que foram as preocupações cen‑

trais da Administração Eisenhower, que

retrata como especialmente competente a

lidar com uma realidade crua e difícil e

com as limitações externas impostas ao

poder americano. Entre estas ressaltam, com

enorme destaque, a complexidade das rela‑

ções entre a Grã‑Bretanha e a burocracia

política americana; a ignorância das realida‑

des locais; e a preponderância das opiniões

e persuasões ideológicas dos intervenientes

nos vários níveis da formação da vontade

política.

Os tempos eram de facto outros: John

Foster Dulles, o Secretário de Estado de

Eisenhower não viu problemas em conside‑

rar que o Médio Oriente era grande e ia de

Marrocos à Índia. E Roby Barrett usa agora

este critério para estabelecer um campo de

análise que lhe permita demonstrar que as

presidências de Eisenhower e de Kennedy

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208 não foram assim tão divergentes nas políti‑

cas desenvolvidas para a região.

O autor encontra a semelhança no

facto de ambos precisarem de conter o

comunismo e para tanto recorrerem ao

desenvolvimento económico como instru‑

mento de eleição. Ao confundir a impor‑

tância de defender os interesses nacionais

americanos com a praxis de duas adminis‑

trações tão diversas quanto foram as de

Eisenhower e Kennedy, o autor cria desde o

início uma grande dificuldade conceptual,

dificuldade esta agravada pela arbitrarieda‑

de com que decide não tratar a Crise do

Suez e estabelece o golpe de estado de

1958 no Iraque como marco temporal fun‑

damental. Embora a opção de não tratar o

Suez seja compreensível – visto o grau de

pormenor da pesquisa de arquivo implica‑

do –, o facto é que a ausência de uma aná‑

lise da crise de 1956 torna difícil compre‑

ender vários aspectos, desde logo um que o

autor reputa principal: a passagem de teste‑

munho da Grã‑Bretanha, império marítimo

cessante, para os EUA, superpotência rei‑

nante. Interessaria por exemplo aprofundar

o que pensava realmente um Eisenhower

que, na sabedoria da reforma, considerava

o não ter apoiado a Grã‑Bretanha nessa

ocasião como o maior erro da sua política

externa.2 Um outro tema de interesse seria

recordar, neste contexto, os meandros da

preparação da Doutrina Eisenhower, bem

como os caminhos que levaram ao envio de

14 mil soldados para o Líbano no Verão de

1958, logo após o golpe de estado no

Iraque. Ao aniquilar as presunções tradicio‑

nais sobre a hegemonia britânica e francesa

no Médio Oriente, ao contribuir para trazer

a Guerra Fria para o Médio Oriente e para

ancorar o envolvimento dos EUA de forma

significativa substancial e duradoura, a

Crise do Suez foi um acontecimento crítico

na história da política externa americana.

Não há como escapar.

A política de containment da URSS, China

e demais movimentos comunistas dominou a

política externa americana durante mais de

40 anos. Os modelos para a política america‑

na da Guerra Fria foram criados pela

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2 Passados dez anos, num encontro com Richard Nixon, Eisenhower teria dito que a gestão da Crise do Suez

havia prejudicado as possibilidades de o Reino Unido e a França desempenharem um papel construtivo

no Médio Oriente. Segundo Nixon, “Eisenhower cerrou os dentes e comentou “porque é que os ingleses e os franceses não se

conseguiram despachar mais depressa”. “Eisenhower acrescentou que a intervenção dos EUA em favor de Nasser “não ajudou nada no

respeitante ao Médio Oriente. Nasser tornou-se mais antiocidental e mais antiamericano.” Concordámos que o pior resultado do Suez

foi ter enfraquecido a vontade dos nossos aliados, Reino Unido e França, quanto a desempenharem um papel principal no Médio Oriente

e noutras áreas fora da Europa” vd. n.38., in Myths, Illusions, and Peace: Finding a New Direction for America in the Middle East,

Dennis Ross e David Makovsky, Ed. Viking, 2009.

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209iriam acabar por sucumbir a revoluções

nacionalistas, “the wave of the future” tão bem

personificada em Nasser, que neste livro é,

por assim dizer, o herói intuído. R. Barrett

procura demonstrar que, apesar do estatuto

não alinhado da Índia, Washington apoiava

fortemente a prestação de ajuda económica à

aposta de Nehru no desenvolvimento; e que

Eisenhower “empurrava” o Paquistão para a

democracia, desenvolvimento económico e

reforma social. Barrett insiste que, no caso do

Paquistão, a adesão às duas organizações de

defesa ocidental – SEATO e Pacto de Bagdade,

depois CENTO – era vista muito mais como

um empenho político que militar; e que a

ajuda militar era mais uma forma de pacificar

as patentes superiores das forças armadas

locais e de manter a respectiva identificação

política com o Ocidente.

O golpe de Bagdade de Julho de 1958

foi um choque. Um regime crucial pró‑

‑ocidental, em pleno processo de concreti‑

zação de reformas, colapsava numa revolu‑

ção. Pior: o que se tomava por uma

revolução nasserista, revelava ‑se como

revolta fortemente influenciada pelo parti‑

do comunista do Iraque e pela URSS. Logo

mudou o paradigma: subitamente, a estabi‑

lidade a curto prazo e uma postura pró‑

‑ocidental tomaram prioridade sobre as

incertezas das reformas e os benefícios

futuros do desenvolvimento económico.

Esta reformulação das prioridades trouxe

uma modificação brutal ao pensamento de

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Administração Truman, a partir do compro‑

misso com a defesa da Europa Ocidental e do

Japão, com a disponibilidade para o confron‑

to militar, no caso da Coreia, ou com a polí‑

tica de dissuasão por intermédio de alianças

defensivas como a NATO e com programas

de desenvolvimento económico e reconstru‑

ção como o Plano Marshall. Em 1953, o

General Eisenhower chegou a Washington

com a ideia que, a prazo, a estabilidade e um

sólido anticomunismo no Terceiro Mundo

dependiam do desenvolvimento económico e

de reformas políticas. Reinava a convicção

que os novos nacionalismos tinham de ser

encorajados ou tolerados, consoante os casos,

mas sempre apoiados por programas de assis‑

tência económica; e que a assistência militar,

a ser necessária, deveria limitar ‑se estrita‑

mente aos requisitos de ordem e segurança

interna.

Entre 1953 e 1955, a Administração

tentou aprofundar esta versão do containment.

Foi a época dos esforços para tentar atrair o

Egipto à projectada “Organização de Defesa

do Médio Oriente”; pensar numa solução

para o problema israelo ‑árabe; pressionar o

Xá do Irão para que reorientasse os seus

desígnios do esforço militar para o desenvol‑

vimento da economia, reformas sociais e

liberalização política; pôr fim à querela da

Caxemira; e travar as tentativas soviéticas de

penetrar na região.

Eisenhower e a sua equipa acreditavam

que os regimes tradicionais do Médio Oriente

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210 Washington, iniciando um processo em

que os EUA se foram achando cada vez

mais identificados com regimes autoritá‑

rios ou militares. Em termos de ajuda mili‑

tar e económica, o Irão e o Paquistão foram

os que mais benefícios recolheram, mas a

Jordânia, Arábia Saudita, Kuwait e outros

também beneficiaram. O receio de réplicas

do golpe de Bagdade trouxe novas e gran‑

des cautelas aos ímpetos reformistas. Em

1959 e 1960, Eisenhower flexibilizou a

abordagem aos estados do Terceiro Mundo,

alinhados e não alinhados, melhorando as

relações com a República Árabe Unida de

Nasser e com a Índia. A ajuda militar cons‑

tituía uma reacção pragmática aos aconte‑

cimentos de 1958, passando a ser vista

como um meio para abrir espaço para as

políticas reformistas e desenvolvimentistas

que Washington continuava a ter como

mais eficazes para sustentar regimes favorá‑

veis ao Ocidente.

Roby Barrett tem pouca paciência

para a Administração Kennedy, que “teve o

luxo de herdar um conjunto de políticas estáveis e

funcionais, coisas que Eisenhower só tinha adquirido

com muito esforço e por “trial and error”. Kennedy

é fulminado por não ter aprendido com os

desaires do seu antecessor, por precipita‑

ção e erro na apreciação da magnitude das

dificuldades encontradas, por culpar

Eisenhower e, especialmente Dulles, por

doutrinários e por erros políticos. “Kennedy

e o seu grupo acreditavam ser capazes de uma melhor

gestão e que uma política desenvolvimentista, poderia

obter resultados muito superiores. O resultado desta

atitude foi que a nova Administração adoptou muitos

dos objectivos e abordagens políticas que já haviam

sido experimentadas, sem sucesso e abandonadas.”

Barrett não se acanha de verberar o excesso

de confiança e a falta de apreciação ponde‑

rada das mudanças ocorridas no Médio

Oriente desde os anos 50, que teriam leva‑

do Kennedy e a sua Administração a repe‑

tirem muitos dos erros anteriores. Kennedy

centrou na República Árabe Unida o

melhor dos esforços para alcançar uma paz

entre os árabes e Israel, procurando miti‑

gar o radicalismo nacionalista do Cairo por

via da promoção do desenvolvimento eco‑

nómico? “Era vintage Eisenhower circa 1953”!

Procurar convencer o Xá do Irão a pôr de

lado a sua fixação com assistência militar

em prol do desenvolvimento económico?

“Era em tudo paralelo aos esforços de Eisenhower”.

Também com a Índia, Kennedy tentou pro‑

mover uma melhoria de relações e obter

uma orientação mais pró ‑ocidental por

intermédio da ajuda económica e promes‑

sa de ajuda militar, com vista a uma reso‑

lução da questão do Caxemira, “acabando

surpreendido” com a invasão de Goa. Com

o Paquistão, Kennedy, como o seu anteces‑

sor, achou ‑se enleado com o regime de

Carachi, tanto pela posição ‑chave que este

detinha na estrutura de alianças ocidentais,

como pelo acesso a locais de observação e

recolha de informação directa da URSS que

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211continuava a facultar à defesa estratégica

americana.

Dadas as semelhanças, quais eram as

verdadeiras diferenças? O lado activista da

política de Kennedy é o que mais contraria

Barrett, para quem o Médio Oriente exige

uma atitude de ”esperar para ver”, “deixar

acontecer”. A atitude voluntarista de

Kennedy criou um imperativo de aborda‑

gem proactiva, com o resultado de diversas

posturas e políticas agressivas da Adminis‑

tração muitas vezes provocarem resultados

opostos ao pretendido. Pressionar Nasser

para um acordo com Israel tornou o líder

vulnerável à crítica dos seus rivais árabes,

inclusive de estados árabes favoráveis ao

Ocidente; apesar dos avisos do Embaixador

em Teerão, uma política de apoio ao gover‑

no iraniano levou à excessiva identificação

dos EUA com o regime do Xá; a retórica

eleitoral advogando o apoio à Índia forçou

Kennedy a demonstrar a importância do

Paquistão para os EUA, o que por seu turno

desacreditou Washington aos olhos de

Nehru. A credibilidade da Administração

foi ainda mais ferida pelas “tentativas descara-

das” de procurar utilizar a guerra de fron‑

teiras com a China para levar a Índia a um

compromisso na Caxemira: “Um desejo desme-

dido de acção, de obter resultados concretos, no terreno,

causou uma série de erros de avaliação que na verdade

diminuíram a estatura dos EUA e a sua influência

quando comparado com os ganhos de Eisenhower entre

1958 e 1960. Pode dizer -se que nos finais de 1963,

a posição dos EUA no Grande Médio Oriente tinha

recuado de forma clara sobre a que detinha no final da

era Eisenhower”.

Para Barrett, o erro máximo da políti‑

ca de Kennedy esteve no apoio concedido a

Israel. Eisenhower e Dulles basicamente

concordavam com o Secretário de Estado

George Marshall, que o reconhecimento de

Israel fora um grave erro político de

Truman, e que tal erro estava confirmado

como uma dificuldade nas relações dos

EUA com os Árabes. Daí que a política fosse

neutralizar Israel como obstáculo à melho‑

ria desses relacionamentos. Eisenhower

acreditava que uma paz dos árabes com

Israel era possível se os EUA adoptassem

uma postura neutral e levassem árabes e

israelitas a focar a atenção no desenvolvi‑

mento económico; e, em 1953, Dulles

dizia ter “a convicção de que o Egipto era a melhor

esperança de liderança árabe para melhoria de relações

com Israel e com o Ocidente”.

Ao longo de todo o livro, o teor das

referências a Israel leva a entender que

Roby Barrett partilha claramente da opi‑

nião que considera o reconhecimento de

Israel e a aliança dos EUA como uma des‑

vantagem estratégica. Esta corrente alega

que Truman só reconheceu Israel porque a

sua eleição dependia do voto dos judeus.

Porém, este argumento foi sempre desmen‑

tido por Clark Clifford, o conselheiro de

Truman mais directamente responsável pela

sua reeleição como Presidente e pelo reco‑

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212 nhecimento americano do Estado de Israel:

“Como, na altura, um número muito significativo de

judeus americanos se opunha ao sionismo, nem o

Presidente nem eu acreditávamos que o reconhecimento

do novo estado por parte dos EUA tivesse um impacto

significativo no voto judaico. Em 1948, a chave para

o voto judaico estava no empenho continuado nas polí-

ticas de esquerda, sobretudo económicas e de continua-

ção do New Deal. Na verdade a escolha do Presidente

[a favor do reconhecimento] vinha de ele sentir que a

Declaração Balfour representava um compromisso há

muito assumido, que ele aceitava como bom, e que

tinha chegado a hora de cumprir a promessa, que

aquele povo estava habilitado a ter o seu estado e que

merecia o apoio das potências. Porém a abordagem dos

militares que, creio, era reflectida pelo General

Marshall, era exactamente a oposta. O petróleo no

Médio Oriente era um factor militar de crucial impor-

tância. Era possível que a URSS andasse à procura de

vantagens nesse sector e os nossos militares estavam

preocupados com a possibilidade de os soviéticos fica-

rem com todas as nações árabes como aliados e nós

ficarmos com aquele pobre daquele país minúsculo.”3

Se, em lugar de uma hagiografia de

Eisenhower e da apologia de um alegado

realismo político, Roby Barrett estivesse

interessado em analisar os constrangimentos

da política americana para o Médio Oriente,

poderia ter evocado material de arquivo e

literatura de referência que demonstram

como entre 1945 e 1948 a Administração

Truman conheceu tensões dramáticas entre

o anti ‑sionismo do Depar tamento de Estado,

e um grupo de conselheiros pró ‑sionistas na

Casa Branca, e como essas tensões produzi‑

ram políticas ambíguas, inconsistentes e

reactivas aos acontecimentos no território

sob mandato britânico. Se, como argumenta

Peter L. Hahn, colocarmos a batalha pelo

reconhecimento do estado judaico no con‑

texto das crises da Guerra Fria – a par, p. ex.

da ponte aérea para Berlim – então já é mais

possível seguir a interpretação que Truman

colocou o containment anticomunista acima de

uma resolução do caso israelo ‑árabe per se,

tornando ‑se assim mais compreensíveis os

moldes da abordagem americana ao Médio

Oriente, e respectiva durabilidade e consis‑

tência4.

Se Truman deu o passo inicial do reco‑

nhecimento do Estado de Israel, foi Kennedy

que transformou essa relação numa aliança.

Daí talvez a displicência que Barrett reserva

à política médio oriental de Kennedy. Na

historiografia da política dos EUA para o

Médio Oriente e conflito israelo ‑árabe, a

Administração Kennedy nem sempre tem

recebido uma atenção cuidada. Regra geral,

a tendência é resumir o assunto ao facto de

ter aprovado a primeira venda de armas

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3 Truman Library – Clark Clifford Oral History http://www.trumanlibrary.org/oralhist/cliford.htm#subjects.4 Peter L. Hahn. Caught in the Middle East: U.S. Policy toward the Arab-Israeli Conflict, 1945–1961. Chapel Hill: University

of North Carolina Press. 2004

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213importante dos EUA a Israel. É pena que em

tão vasta pesquisa, neste ponto em que as

duas Administrações divergiram, Barrett não

tenha alcançado maior recolha de arquivos e

que aflore o assunto apenas levemente.

Haveria que falar de três grandes linhas na

política de Kennedy: primeiro, das tentativas

falhadas de melhorar a relação com o Egipto,

contrariadas pelo envolvimento deste na

guerra do Iémen, o Vietname de Nasser; um

segundo aspecto seria a decisão de Kennedy

de passar mísseis Hawk a Israel, venda de

magnitude superior a qualquer outra, ante‑

rior, dos EUA, e que arrastou mudanças

políticas importantes; e por fim, explorar as

dificuldades da Admi nistração em assegurar

informação correcta sobre o programa

nuclear de Israel. Convém mais uma vez

lembrar o limite que os cálculos de política

interna desempenharam na Administração

Kennedy e na sua política para o Médio

Oriente e evitar remeter as complexidades

da gestão de interesses de uma superpotên‑

cia com responsabilidades globais a inter‑

pretações valetudinárias de opacidade expli‑

cativa, como seja o fabuloso poder do

“lobby israelita” nos anos 50 e 60.

Para além da mística, Kennedy terá

sido um político realista e calculista, mais

um Presidente americano que, uma vez

eleito, se achou “prisioneiro do contexto”,

e encontrou grandes dificuldades em equi‑

librar os interesses contraditórios que a

América tem na região.

churchill's promised laNd: zioNism aNd statecraft

de Michael MakovskyEditora: New Haven: Yale University Press

2007, 342 p.

Churchill’s Promised Land: Zionism and

Statecraft não pretende analisar as complexi‑

dades da Palestina, Israel, ou Médio Oriente,

nem questões de segurança nacional ou

desígnios imperiais britânicos. Doutorado

em História Diplomática por Harvard, espe‑

cialista em questões de recursos energéti‑

cos, actualmente director de Política Externa

do Bipartisan Policy Center, em Washington

DC, Michael Makovsky pretende apenas

examinar a relação de Churchill com o

movimento sionista: o homem e o movi‑

mento, duas carreiras praticamente simultâ‑

neas e ambas com características lendárias

na política britânica.

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214 O conjunto, vasto, de estudos sobre a

atitude de Winston Churchill quanto à

“Questão Judaica” tende a retratá ‑lo como

um sionista impenitente, cuja posição no

assunto – substancialmente diferente da

maior parte dos seus contemporâneos –

adviria do foro sentimental: admiração e

afecto pelo povo judaico. Michael Makovsky

não contraria esta leitura, mas chega a uma

avaliação mais matizada, retratando o sio‑

nismo de Churchill como secundário dian‑

te das suas prioridades políticas e da per‑

manente avaliação da grande estratégia

imperial britânica. Assim o quadro traçado

é que o apoio de Churchill à causa sionista

não foi consistente, sendo claramente uma

prioridade menor quando contradizia os

seus interesses políticos após a I Guerra

Mundial, ou quando o associava ao bolshe‑

vismo que desprezava, assumindo relevân‑

cia na sua agenda quando não estava em

funções nos anos 30, ou depois de 1948,

quando via Israel como potencial parceiro

estratégico para o Ocidente.

Afinal, Churchill era um político bri‑

tânico, um político cuja posição pessoal era

por vezes ténue, frágil, frequentemente ao

sabor das pressões e das oportunidades,

especialmente no princípio da carreira, ou

quando, após o desastre de Gallipoli, a sua

vida política parecia liquidada. Mas, mesmo

como Primeiro‑Ministro, foi obrigado a

enfrentar os limites das realidades políticas

e ceder às resistências que encontrava den‑

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tro do seu próprio governo durante a II

GM, ou na Guerra Fria, quando chamado a

reconciliar ‑se com a diminuição dos pode‑

res do Império Britânico e a necessidade

crescente de trabalhar com os EUA.

Como qualquer livro sobre Churchill,

sempre se descobrem novas perspectivas

sobre as questões mais coriáceas. “Com‑

parada com a Alemanha, a Russia é menor;

comparando com a Rússia, a Turquia é

insignificante” declarava Churchill ao

Primeiro‑Ministro Lloyd George em 1920.

O que seria a Palestina? Decerto muito

abaixo do trivial, para desgosto de Churchill

que, em 1921, apenas conseguira alcançar

o lugar de Secretário das Colónias. Um

lugar onde não teria autoridade sobre os

assuntos que considerava de relevo.... mas

onde as questões de segunda que o espera‑

vam acarretavam riscos políticos conside‑

ráveis, num momento de grande vulnera‑

bilidade política. Do cargo anterior,

Secretário da Guerra, já trazia uma profun‑

da antipatia pelas “novas províncias”: “Fiz

os possíveis para cumprir o compromisso

assumido por Lorde Balfour com os

Sionistas, em nome do Gabinete de Guerra

e pelo PM na Conferência de San Remo”;

“Não procurei este odioso enleio da

Mesopotâmia; e só o assumi pela vontade

de ajudar onde é preciso”. Na preocupação

fundamental de reduzir as despesas com os

Mandatos e na ideia de que, no pós‑guerra,

uma federação de estados árabes e sionista

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215poderia ser o interlocutor privilegiado,

Churchill gabava ‑se de ter oferecido a

Transjordânia ao Emir Abdullah “numa

bela tarde, em Jeru salém”.

A política externa de um país nunca é

matéria científica. Concebida no turbilhão

dos factos e sob a pressão das urgências

quotidianas, comporta sempre uma boa

quota de ignorância, irrelevância ou

mesmo incompreensão. Uma vez alcança‑

das as vantagens e garantidos os interesses

para que foi concebida, a política externa

tende a mover ‑se para o objectivo seguin‑

te. Regra geral é uma política que tende a

não sofrer excessivamente dos males da

reflexão. Todavia, quando uma política se

mantém através dos tempos, praticada, tra‑

balhada e modificada pelos governos e

pelos homens de estado, provocando deba‑

tes apaixonados e tremendos, alcança, a

pouco e pouco, vida própria: torna ‑se

dogma e passa a governar os espíritos e o

pensamento. A ideia de que os homens são

aperfeiçoáveis, que pouco a pouco a sua

condição pode e deve melhorar, que o pro‑

gresso é uma lei que rege todas as socieda‑

des são algumas das partes do dogma. E o

princípio de que a “reforma”, isto é, um

refundar da sociedade e do estado em mol‑

des europeus é desejável, produtivo e

necessário no Oriente, permanece, até

hoje, como princípio orientador na políti‑

ca internacional.

Assim é o legado de 200 anos de polí‑

tica inglesa e americana para o Médio

Oriente, tema dos três livros que aqui se

recenseiam e que em comum têm porven‑

tura o único ponto consensual em toda esta

questão: é um debate apaixonado que não

ameaça esmorecer.NE

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219Novas aquisições para a Biblioteca do Ministério dos

Negócios Estrangeiros

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223Diálogo

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225Comentário ao artigo de Anton Bebler publicado na

Revista Negócios Estrangeiros n.º 14

Duško Lopandic*

Dear Sir,

i read With interest the article of Mr. A. Bebler, published in the last volume of your

review, under the title “What to do about the Western Balkans?” (Negócios Estrangeiros,

Abril 2009, Number 14, pp. 40‑53). While the author has some interesting conclu‑

sions with regard to the future process of integration of Western Balkans into the

European Union, the section of the article dealing with The Kosovo problem and its interna-

tional implications needs some particular comments.

I would like, first, to point out that the author has omitted some of the major

aspects of Kosovo problem, such as the precarious situation of the Serbian Community

in the Province of Kosovo, which is (legally) still administered by the provisions of UN

Security Council Resolution 1244/99. Indeed, it is more than strange that in his pre‑

sentation of historical and contemporary aspects of Kosovo question Mr. Bebler does

not even mention at all the existence of Serbian people in Kosovo. However, the issue

of interethnic relations between Christian Serbs and Muslim Albanians has been for

centuries at the heart of problems in the region of Kosovo (this province, by the way,

never existed as particular entity until its recent creation as an Autonomous Province

of Serbia in the communist Yugoslavia, in 1945).

The presentation by Mr. Bebler of the history of Kosovo in particular, is utterly

biased, reproducing mainly the new revisionist history mostly produced by present day

Kosovo Albanian representatives. It contains some very gross deformation of establish‑

ed historical facts. As it has been often said, one of the major victims in every conflict

has been the truth, including the historical truth.

It is well known that, since the Middle Ages until the last part of the XIX century,

Christian Serbs were the majority people in the Kosovo area. During the XIX Century –

the period of liberation in the Balkans from the Ottoman rule – Moslem Albanians were

* Embaixador da Sérvia em Lisboa.

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226 used by sultans (and later by imperialist powers, such as Austro‑Hungary and Italy) as

chief instrument of policy in crushing the liberation movements of Serbs and other

peoples in the Balkans. Repression against Serbs has been especially ruthless in the

period after the Berlin congress (1878) until the Balkan wars (1912‑1913). It is esti‑

mated that more then 400.000 people have fled the oppression from then Ottoman

territories (which included Kosovo vilayet) into (then) the Kingdom of Serbia. But even

then, before the 1st world war, the Christian population in Kosovo was almost equal

to the Albanian one. After liberation of this area by Serbia in 1913, a feudal system was

abolished, as well as discrimination of people based on religion. It is therefore a non‑

sense to call the liberation of Kosovo area by Serbia in 1912‑1913 a “colonial” con‑

quest, as it is done by Mr. Bebler’ s article.

The author is very critical against the behaviour of successive Serbian regimes in

Kosovo and we can agree with him in condemning outright the irresponsible Milosevic

regime. However, Mr. Bebler omits mention to the role of Albanian repression against

Serbs during various periods of the XX Century, including especially during the

Second World war, when the Kosovo region has been incorporated into “Greater

Albania”, under fascist supervision. It has been estimated that about 100.000 Serbs

have been expelled from Kosovo, while around 75.000 Albanians migrated from

Albania into the Kosovo area in the period 1941‑1945. In fact, the constant process of

Serbian emigration in the XIX and XX centuries under physical, social and demogra‑

phic pressures, combined with constant immigrant inflows from Albania and the high

birth – rate of Albanian Muslims have contributed to the present demographic situa‑

tion in Kosovo. The proportion of population between Serbian and Albanian ethnic

groups in Kosovo was constantly changing in favour of Albanians: in 1871: 64% Serbs,

32% Albanians; in 1899: 44% Serbs, 48% Albanians; in 1921; 26% Serbs, 66%

Albanians; in 1991: 11% Serbs and 82% Albanians. Therefore, the ethnically‑based

secession in the Serbian province of Kosovo has been the end result of a long history

of violence and persecution against the Serbian autochthonous population, coupled

with wars.

Mr. Bebler has also completely omitted to mention even the most recent acts of

repression and of ethnic cleansing of Serbian population by Albanian extremists since

the NATO intervention in Kosovo. I would like to recall that more than half of Serb and

non‑Albanian population (i.e. Gipsies) have been obliged to leave Kosovo under phy‑

sical threats since 1999. More than 2000 persons are still missing today. There are also

around 250.000 internally displaced persons from Kosovo living today in Serbia. In

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227the city of Pristina alone, where 30.000 Serbs used to live, there are today less than a

hundred persons of Serbian origin. A similar situation exists in other cities of the

Kosovo Province historically inhabited by Serbs, such as Pec, Prizren, Djakovica, etc. If

this is not the perfect example of a successful ethnic cleansing, which one is? A so

called “humanitarian intervention” of NATO forces brought also a huge destruction of

Christian heritage in Kosovo. Since 1999, and especially during violence in March

2004, more than a hundred Christian Orthodox churches have been burned or des‑

troyed by Albanian extremists. It is curious that those facts have not been given any

attention by Mr. Bebler.

I also completely disagree with Mr Bebler stating that “The problem of Kosovo status was

formally resolved by a unilateral declaration of independence…” In fact, not only Serbia, but the

overwhelming number of UN member States considers (despite the political pressures

coming from some important Western countries) that the issue of Kosovo status is still

open. The debate on the legality of the unilateral act of independence by Pristina is

before the international Court of Justice by now. We can expect the outcome of the

debate by 2010. Far from concerning only Serbia, the debate concerns some crucial

issues of international legality and possible future European and World order. The fun‑

damental question is this one: can an ethnically‑based secession, including the change

of an internationally recognised border, be unilaterally imposed on a small country

against its will and without any agreement?

It is important to mention that Serbia has reacted peacefully to the fact that Kosovo

Albanians have left the negotiation table in 2006 and unilaterally declared the so‑called

“independence”. The case of Kosovo is only one in a number of similar cases, as Mr. Bebler

has rightly pointed out in his article. I can agree with him on the statement that “…

most EU and NATO member states acted inconsequently when they honoured the principle of self-determin-

ation by one case and disregarded in others”. It is in particular difficult to understand why

Albanians in the Balkans would be entitled with two States, while such a principle is

not applied to any other population in the same region.

Serbia will keep the principle of international law and ask that the same principle,

including the respect for sovereign rights, the right to self‑determination and respect

of borders, should be applied to all in the same manner.NE

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229Comments on Ambassador Duško Lopandic’s letter

concerning the Kosovo issue

Anton Bebler*

amBassador duško lopaNdic of Serbia (D.L.) reacted to my article in Journal Negócios

Estrangeiros with a rather long letter. It contained numerous unfounded assertions

about Kosovo’s past and omitted crucial historical facts which contradict Serbian

official propaganda.

Contrary to often repeated Serbian claims the Serbs are not the oldest population

in Kosovo and Kosovo was not ‘the cradle’ of the medieval Serbian state. The first two

Serbian Kingdoms were established in Zeta (today’s Montenegro) and in Raška (today’s

Sandzhak). Serbian rulers conquered Kosovo more than a century later, possessed it in

XIII‑XV centuries, in total for less than 250 years. After about 450 years of the subse‑

quent Ottoman rule the Serbian control over Kosovo in XX century lasted, with two

interruptions in total less than 80 years. Contrary to D.L.’s claim the Serbs “lost” Kosovo

demographically already by the beginning of the XIX century, due to their mass exodus

led by the Serbian Orthodox Church and to much higher fertility among the Albanians.

In 1912 Serbia attacked the Ottoman Empire, conquered and occupied Northern

Albania, including Kosovo. The chief objective was not national liberation but a colo‑

nial conquest of predominantly Albanian‑inhabited lands in order to assure Serbia’s

territorial access to the Mediterranean through the sea port Durres. Kosovo served then

only as a collateral objective and propaganda cover. The official Serbian justification for

the occupation of Kosovo was based on the following claims: the moral right of a more

civilized people; the historic right derived from the medieval Serbian kingdoms; the

former Serb majority in the population of Kosovo. The Serbian conquest of Kosovo

against the will of its majority Albanian population was accompanied by massacres and

grave mass violations of the International Humanitarian Law. These atrocities were

vividly described by Leon Trotsky (then a Russian correspondent in the Balkans) and

were thoroughly documented by the Carnegie Foundation. Kosovo was not even prop‑

erly legally annexed to Serbia, according to the valid Serbian constitution of 1903. At

* Professor na Universidade de Ljubljana, Eslovénia.

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230 the time of the Serbian occupation in 1913 the local ethnic Serbs constituted a distinct

minority in Kosovo’s population. All subsequent attempts by violence and pressure to

redress the ethnic balance in Kosovo in favor of the Serbs failed.

The third Serbian conquest of Kosovo in 1944 was again accompanied by armed

violence and followed by its annexation to “federal Serbia”. The act of annexation was

passed in April 1945 under the conditions of martial law, by an unelected “Kosmet

Regional People’s Assembly”, by acclamation, without a vote and a single speech (let

alone a debate). The composition of the Assembly was utterly unrepresentative (142

members, among them only 33 Kosovar Albanians). All appointed deputies were

Communists and mostly Serbs, representing then only about 20% of Kosovo’s popula‑

tion. There was no preceding election or a referendum. This communist act of annexa‑

tion thus totally lacked democratic legitimacy.

Serbia lost her political right to rule Kosovo in 1989 when it violated the Yugoslav

constitution of 1974 and fundamental freedoms, abolished Kosovo’s autonomy, subju‑

gated its majority population to a regime of arbitrary and harsh police oppression and

excluded the Kosovar Albanians from all state and public institutions. In 1991‑99 the

Federal Republic of Yugoslavia (Serbia and Montenegro) had thus grossly violated the

key principles contained in the CSCE/OSCE “Paris Charter for New Europe” and

UNSCR 1199. In 1999 Serbia lost its moral right to rule Kosovo when Serbian autho‑

rities attempted to uproot and expel from Kosovo province’s entire Albanian popula‑

tion, which was tantamount to a crime of genocide. Between 1989 and 1999 the

Serbian military and police forces committed numerous crimes against the Kosovar

Albanians. In 1998‑1999 these included causing death of several thousand Kosovars.

According to UNCHR about 350.000 Kosovars and Turks were forced by the Serbian

authorities to leave Kosovo in 1998 and about 770.000 in 1999. Serbia never apolo‑

gized and no high Serbian official was brought so far to trial in Serbia for these crimes.

The change of the regime does not absolve the Republic of Serbia of its responsibility

for grave violations in 1989‑1999 of its obligations as member of the Council of

Europe and of the United Nations.

At the time of NATO’s 1999 intervention there were no more than 200.000 Serbs

in Kosovo. This figure tallies with D.L.’s figure of 11% of the total population of Kosovo

in 1991. As there are today still around 100.000 Serbs in Kosovo(less than 5% of the total

population) there could be no 250.000 displaced persons from Kosovo living today in

Serbia, as D.L. claims. Many of these Serbs and Roma fled to Serbia out of fear for

reprisals for their active participation in crimes against the Kosovars in 1998‑1999.

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231When conducting in December 2006 a referendum on a new Serbian constitution

and subsequently a general parliamentary election in January 2007 the Serbian autho‑

rities did not even try to carry them on most of Kosovo’s territory. Only a relatively

small number of Kosovo Serbs took part in these two events. Serbia thus de facto gave up

her claim to exercise administrative authority over most of Kosovo. Since summer

1999 Serbia has lacked three key elements of sovereignty over Kosovo: control over its

territory, control over its population, control over its borders, Serbia has also had a

separate constitutional, legal and economic system and a different currency.

Serbian representatives still publicly maintain that the proclamation of Kosovo’s

independence in 2008, without Serbia’s consent and without a UN SC approval con‑

stituted an act of violence and a “grave violation of International Law.’’ These claims are

contestable for the reasons stated above and also because:

– The proclamation was carried out in a peaceful, orderly and civilized manner.

The only acts of violence were committed then by the Serbs and mostly in

Serbia

– Kosovo’s proclamation was fully in line with the UN GA Declaration on granting

independence to colonial peoples;

– It was consistent with the VIII principle contained in the Helsinki Final Act

which allows for peaceful change of state borders on the basis of democratically

expressed self‑determination.

– Annex II of the UNSCR 1244 envisaged the settling of the future status of

Kosovo on the basis of the will of its people. R. 1244 did not mention Serbia

and did not contain a commitment to return to the now non‑existing FRY

sovereignty over Kosovo

– Serbia and Russian Federation have recognized many changes of state borders in

Europe and on the territory of ex‑SFRY, also those which occurred without a UN

SC authorization and without Serbia’s and Montenegro’s consent. This applies

i.a. to Serbia’s present borders with Croatia and Bosnia and Herzegovina.

– Deeper in the historical past the Serbs liberated themselves by unilaterally

proclaiming their independence of the Ottomans. The same applies to the

Swiss, Portuguese, Dutch, Russians, Americans, Greeks, Belgians, Norwegians,

Albanians, Finns, Czechs, Slovaks, Slovenians, Croats and many other nations.

Since 1216 the Serbian rulers have conquered Kosovo five times and five times

their troops and officials vacated the country under foreign military pressure (Ottoman,

Austro‑Hungarian, Bulgarian, German, Italian, again Bulgarian and NATO). In July

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232 1999 they left Kosovo for good. Serbian rule in Kosovo in whatever form can never be

peacefully reestablished. Even if it were possible it would in several decades endanger

the Serbs’ majority on the territory of Serbia in its pre‑1999 borders. The comprom ise

solution for the Kosovo status that existed under the 1974 Yugoslav constitution was

annulled by Serbia in 1989.

Kosovo’s independence has been recognized to‑day by more than 60 states, includ‑

ing Portugal, twenty‑one EU members, three permanent members of the UN Security

Council and by all Serbia’s neighbors, except Bosnia & Herzegovina and Romania. It is

in Serbia’s, Serbia people’s and the Serbian minority’s in Kosovo objective interest to

acknowledge the reality of the loss of the former colony and to establish with the

neighboring youngest European state (not counting Abkhazia and Southern Ossetia)

normal diplomatic, economic and cultural relations. Serbia would thus tangibly con‑

tribute to the stability, security and prosperity in the Balkans and to friendly relations

among all nations in the region.NE

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233Cadernos de Arquivo

Transcrição de documentos efectuados por investigadores em arquivos nacionais e estrangeiros.

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235235

Bibliothèque Nationale de Paris, Cote: MS FR. 22787 Fol 22 et suivants.

le roi me fit l’honneur au mois d’avril de l’année de 1697 de me nommer son ambassadeur

auprès du Roi de Portugal à la place de l’Abbé d’Estrées fils du Maréchal de ce nom

qui en avait fait la fonc tion pendant cinq ans. S.M. m’ordonna en même temps de me

ren dre à la Rochelle au commencement du mois d’août pour m’embarquer sur le

vaisseau qui me serait destiné. Après avoir reçu mes instructions par Mons. le Marquis

de Torcy pour les Affaires Etrangères, et par Mons. de Pontchartrain pour les Affaires de

la Marine et du Commerce j’eus l’honneur de prendre congé du Roi à la fin du mois

de juillet. Je partis aussi tôt de Paris étant arrivé à la Rochelle je fut obligé d’y séjourné

pendant trois semaines pour atten dre un vent favorable. Enfin le 24 du mois d’août je

m’embarquait sur la frégate du Roi La Thétis de 46 pièces de canon commandée par Mr.

le Marquis de Contré Blenac capitaine de vaisseau. Je fus salué en arrivant à bord de 11

coups de canons. Les vaisseaux qui se trouvè rent pour lors en rade me saluèrent aussi,

les uns de neuf, les autres de sept coups de canons. Il leur en fut rendu autant. Pendant

le voyage Mr. le Marquis de Contré me défraya et toute ma Maison sur le compte que

j’en rendis depuis à la Cour. Il obtint une gratification de 4.000 lt. Après 28 jours de

navigation très fâcheuse j’arrivai le 22 septembre à Lisbonne fort incommodé, étant

tombé malade 8 jours après être embarqué. En passant devant le fort de Cascais le

vaisseau le salua de 7 coups de canons. Le fort en rendit cinq. C’est le salut établit entre

les vaisseaux du Roi et les forts du Roi de Portugal. Tous les vaisseaux français qui se

trouvèrent dans la baye de Cascais sa luèrent aussi et on leur rendit à tous le salut à deux

coups près. Il vint à bord un pilote du Roi de Portugal en voyé pour me faire entrer dans

la rivière de Lisbonne. Ensuite le fort de St. Julien fut salué de sept coups de canons,

il en rendit cinq, depuis le commandant ayant été avertit que j’étais dans le vaisseau il

fit saluer de nouveau de 13 coups de canons et le bâ timent lui rendit coup pour coup.

Journal des cérémonies de mon Ambassade au Portugal.

Par le Président Rouillé (copie de l'epoque)

José ‑Sigismundo de Saldanha*

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* Investigador. Doutor em História pela Universidade de Paris I, Pantheón ‑Sorbonne.

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236 Le fort du Bois avertit par les coups qu’avait tiré le fort de St. Julien salua aussi de 13

coups qu’on ne lui rendit point n’étant pas l’usage. Je mouillé sous le fort de Belém. Le

vaisseau le salua à l’ordinaire de sept coups de canons et le fort en rendit cinq. Ensuite

ce même fort salua pour moi de 13 coups de canons qui lui furent rendus coup pour

coup. Les bâtiments français qui se trouvèrent mouillés en cet endroit saluè rent tous

et furent salués à l’ordinaire. Aussitôt je reçus des com pliments de la part de plusieurs

personnes attachées à la Cour de France, le consul et beaucoup de marchands français

me vinrent voir. Mr l’Abbé d’Estreés qui avait eu ordre d’attendre mon arrivée vint à

bord. Il fut salué en entrant et en sortant de 11 coups de ca nons. Le lendemain 23 au

matin Manuel d’Azevedo commissaire gé néral de la Cavalerie me vint compli menter

de la part du Roi et fut salué en entrant dans le vaisseau de 13 coups de canons. Je

l’allais recevoir sous le gaillard. Je l’ai traité de seigneurie et je lui donnai la main. Je

le reconduisis jusqu’à l’endroi où je l’avais été le recevoir. Deux heures après vint le

Comte d’Aile (?) pour me prendre dans les brigantins du Roi. Il y en avait trois. Je

l’allai recevoir à l’échelle après être en tré dans le vaisseau il fut salué de 13 coups de

canons. En suite l’ayant ramené à l’échelle il commença à me donner la main que je

lui avait donné jusqu’alors. Je le traitait d’excellence, chose établie en Portugal entre

les Ambassadeurs et les personnes ti trées. Je montai avec lui dans le premier brigantin

où les gen tilshommes qui étaient avec moi prirent place. Mes domestiques se mirent

dans le second et dans le troisième. J’arrivai dans le port de Lisbonne à l’endroit où

j’abordai étaient trois carrosses du Roi. Je montais dans le premier avec le Comte

d’Ayle (?), mes gentilshom mes dans le second et mes officiers dans le troi sième. Je fut

conduit dans la Maison de Mr. l’Abbé d’Estrées qui devait être la mienne. Dès que j’y

fut, j’envoyai chez le Secrétaire d’Etat pour lui communiquer ma lettre de créance dont

il prit copie. J’envoyai aussi chez le Nonce du Pape et chez les plus considérables des

dames françaises. Je re çus par la suite beau coup de compliments et de visites. Le duc de

Cadaval me vint voir quoiqu’il fut Conseiller d’Etat et que les autres qui ont la même

qualité ne veuillent pas rendre la première visite aux Ambassadeurs. Mon incomodité

ayant continué quelques temps, le Roi m’envoya l’un des maîtres de sa chambre, qui

répond à la charge de Maître des Cérémonies en France, pour savoir de mes nouvelles.

La Reine m’envoya un de ses Ecuyers et la Reine d’Angleterre son premier écuyer pour

savoir des nouvelles de ma santé.

Il m’était ordonné par mon instruction de demander le plutôt que je pourrais une

audience par ordre du Roi. Je fus hors d’état de le faire qu’un mois après mon arrivée.

Le 29 octobre le Secrétaire d’Etat m’ayant écrit que le Roi me la donnerait, le lende‑

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237main je me rendit sur les onze heures du matin au Palais. J’y trouvai les gardes sous les

armes et l’on batit aux champs quand j’arrivais. Je fut reçu à la descente de ma litière

par un capitaine des Gardes et un maître des cérémonies. Je marchai entre eux deux et

je fus conduit dans la chambre d’audience. Le Roi était debout sous son dais ayant

auprès de lui son chancellier. A sa droite étaient rangées en assez grand nombre les

marquis et les comtes qui avaient été mandés. A sa gau che étaient les prin cipaux offi‑

ciers de sa Maison. Je fis une première révérence en entrant dans la chambre, une

seconde au milieu et une troisième en approchant du Roi. Il avança deux pas il se

découvrit et je me couvris ensuite en même temps que lui. Je lui remis la lettre de la

main du Roi que j’avais à lui rendre. Je lui parlai en français qu’il entend fort bien et

il me répondit en portugais. J’eus en suite au dience de la Reine à qui je parlai et qui

me répondit en français et le même jour, l’après midi, de la Reine douairière

d’Angleterre. Je lui parlai en français, elle me répondit en es pagnol.

Le dix novembre j’eus une seconde audience par ordre du Roi avec les mêmes

cérémonies. Je lui fis part selon l’ordre que j’en avais reçu du traité de paix conclu

entre la France, l’Espagne, l’Angleterre et la Hollande à Riswick.

La paix me mettant en état d’entrer en commerce avec les Ministres des Couronnes

avec qui elle était signée, j’envoyais faire part de mon arrivée à l’Ambassadeur

d’Espagne, à l’Envoyé d’Angleterre et au Résident de Hollande. Ils me vinrent voir

quelques jours après. Je donnai la main et la chaise à l’Ambassadeur d’Espagne et je les

pris sur l’Envoyé et sur le Résident.

Le 12 novembre un officier de justice ayant arreté une femme de vant la porte de

ma maison et le juge en ayant été informé, le fit met tre en prison d’où elle ne sortit

que lors que quelques jours après je demande sa liberté.

Le 20 novembre j’eus une autre audience par ordre du Roi dans la quelle je lui fis

part suivant l’ordre que j’en avait reçu du Traité de Paix conclu entre le Roi et

l’Empire.

Le 5 janvier 1698 les Mrs. de la Confrairie de la Chapelle de St. Louis des Français

me vinrent inviter de me trouver le len demain, jour des Rois, au service solonnel qui

se devait faire dans la dite cha pelle. Je m’y rendis avec toute ma Maison. J’y trouvai un

dais pré paré pour moi auprès de l’autel du côté de l’Evangile. Dessous était un tapis,

un fauteuil et un carreau. Je fus encensé à la messe après le sous ‑diacre . Le prédicateur

en commençant son sermon m’adressa la parole. Le 26 du même mois ayant été infor‑

mé que pen dant 24 heures que j’avais été à la campagne il était venu dans mon quar‑

tier un Alcaide et un écrivain pour arrêter et mener en prison la femme d’un de mes

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238 postillons sans m’avoir auparavant demander permission d’exécuter le decret dont ils

étaient chargés, je m’en plaignis à mon retour par une lettre que j’écrivis au Secrétaire

d’Etat, qui le lendemain me fit savoir par ordre du Roi que S.M. avait or donné qu’on

mit en prison l’Ecrivain qui n’avait pas voulu se reti rer comme avait fait l’Alcaide sur

la remontrance que mes do mesti ques leur firent. Deux jours après je fis demander sa

liberté au Roi qui l’accorda à ma prière.

Le 28 du mois j’eus audience du Roi et de la Reine pour leur faire part du maria‑

ge de Mr. le Duc de Bourgogne avec la Princesse de Savoie. Je leur remis les lettres de

la main du Roi qu’il leur envoyait sur ce sujet. Le même jour j’eus aussi audience de

la Reine douai rière d’Angleterre à qui j’avais eu ordre du Roi de faire part de la même

nouvelle. Je lui remis une lettre de Mgr. le Dauphin.

Le 30 je fus averti par une lettre du Secrétaire d’Etat que le Roi à qui j’avais fait

demander jour pour ma première audience publique avait marqué le six février pour

me la donner.Le trois du dit mois de février le Sr. Fernand de Souza l’un des inten dants

de la Maison du Roi, me vint prendre dans un carrosse de S.M., suivi de trois autres

pour ma Maison. Je fus conduit à une maison de campagne à une lieue de Lisbonne

ne s’étant point trouvé dans la ville de maison co mode. Je trouvai en arrivant un déta‑

chement de 14 gardes du Roi sous les armes. Ils se mirent toutes les fois que je sortis

et que je ren tris. La maison était meublée des meubles du Roi et remplie de ces

of ficiers. Il y avait un dais dans la seconde antichambre et un autre dans la salle desti‑

née pour manger. On m’y donna six repas fort magnifiques dans le goût du pays, sur

une table longue de 20 pieds et de deux et demi de large, également servie d’un bout

à l’autre. J’étais seul au bout du côté du dais. Fernand de Souza était à ma droite. Cinq

personnes qui avaient coutume de manger avec moi étaient pla cées à droite et à gau‑

che, il y avait des fauteuils pour tout le monde. Le troisième jour avant le dîner je fis

faire suivant l’usage la distri buition aux officiers du Roi, aux uns des chaînes d’or, aux

autres d’argent en espèce, jusqu’à concurrence d’environ deux milles li vres, suivant

l’état qui m’avait été donné de ce que cha cun d’eux avait coutume de recevoir en

pareille occasion. Le même jour après souper, on me rammena chez ‑moi et tous mes

officiers dans les car rosses du roi. Le lendemain six du même mois, le Marquis

d’Alegrette, conseiller d’Etat, me vint prendre sur les deux heures de l’après midi pour

me conduire au Palais. J’allai au devant de lui, dès qu’il m’aperçu descendant le degré

il descendit de carrosse, il s’avança vers moi et nous montâmes ensemble, moi lui

donnant la main jusqu’à ma chambre d’audience où je lui fis donner un fauteuil au

dessus du mien. En sortant de cette chambre il commença à me donner la main. Je

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239montai dans un des carrosses du Roi seul avec lui, et toutes les personnes de ma

Maison dans les trois autres car rosses de S.M. Après le carrosse dans lequel j’étais, sui‑

vait à cheval mon écuyer à droite et à sa gauche celui du Marquis d’Alegrette. Après

ve naient à pied mes estafiers au nombre de 16, suivis de 4 pa ges à cheval. Venait ensui‑

te ma litière et deux carrosses attelés cha cun de six mules, suivant l’usage du pays.

Après étaient les carros ses du Marquis d’Alegrette, le carrosse de l’Ambassadeur

d’Espagne et ceux d’un grand nombre de titrés, que le Roi avait fait avertir de les

envoyer précédaient ceux du Roi et celui de l’Ambassadeur d’Espagne étaient immé‑

diatement devant, qui est la place la plus ho norable. Il n’y avait point pour lors de

Nonce du Pape à Lisbonne. J’arrivai ainsi au Palais aux environs duquel était un régi‑

ment d’infanterie et un de cavalerie sous les armes. Je fut reçu à la des cente du carros‑

se par un des capitaines des Gardes du Roi et par Fernand de Souza intendant de sa

Maison. Je marchai entre le Marquis d’Alegrette et le Capitaine des Gardes. Fernand de

Souza al lait devant précédé de toute ma Maison et de quantité de français éta blis à

Lisbonne. Le Roi me reçut dans la salle destinée pour les au diences publiques. A sa

droite étaient sur une même ligne tous les ti trés qui se couvrent et se découvrent

comme les Ambassadeurs. A sa gauche étaient les officiers de sa Maison. Dans le reste

de la salle était un grand nombre de personnes. Le Roi était assis sous son dais dans un

fauteuil, derrière était son Chambellan, et son Chancellier à sa main droite. Dès que

j’entrai dans la salle le Roi s’éleva. J’approchai de lui en faisant les trois révérences

ordinaires d’espace en espace, quand je commençai à monter sur l’estrade où il était,

il avança deux pas. Je me couvris en même temps que lui, et je lui fis mon compliment

en français en ces termes:

Sire, j’approche de V.M. plein de respect et de confiance. Je sais avec quelle bonté

Elle reçoit les ministres qui lui sont en voyés par le princes ses alliés. L’accueuil oblige‑

ant qu’Elle a pour eux et les bons traitements qu’en toute occasion ils reçoivent d’Elle.

Si en cela V.M. satisfait au devoir établi entre les souve rains Elle suit aussi les sen timents

d’humanité, de justice et de générosité qui lui sont naturels. Ce sont Sire, ces qualités

dont V.M. donne des marques continuelles qui la font jouir d’un rêgne si tranquille et

si heureux. Le Roi mon maître a la satisfaction d’avoir contribué à le rendre tel. V.M.

sait avec quelle grandeur d’âme il a employé ses troupes, ses finances et tout ce qui

dé pendait de lui pour conserver à la Maison de Bragance une cou ronne qui lui appar‑

tient si légitimement et qu’on voulait lui enle ver avec tant d’injustice. Il est si persuadé

de la reconnaissance de V.M. que je puis l’assurer que ces mêmes secours lui seraient

en core acquit s’il lui devenait necéssaire.

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240 Le Roi mon maître après avoir terminé si sagement une guerre qu’il avait soutenue

avec tant d’avantage ne peut plus en visager de gloire que celle de soutenir ses alliés en

jouissant d’un repos que per sonne à l’avenir n’osera troubler.

Les marques d’amitié qu’il a jusqu’ici donnée à V.M. et la bonne correspondance

que je suis chargé d’entretenir avec Elle lui répon dent de ses dispositions. Elles me

mettent aussi en état d’espérer pendant que j’aurai l’honneur d’être auprès d’Elle tout

ce que les in térêts du Roi mon maître m’obligeront à demander pour lui.

Le Roi répondit en portugais. Après lui avoir remis ma lettre de créance, je me

retirai en faisant les mêmes révérences qu’en en trant. Après lui avoir fait ma seconde

révérence au milieu de la salle je saluai d’abord les personnes titrés et ensuite les offi‑

ciers de sa Maison. Le Roi était vêtu de noir. Il avait un juste au corps, un man teau et

un rabat. J’étais habillé de même.

Je fus ensuite conduit à l’audience de la reine. J’entrai dans la salle où elle était en

faisant les mêmes révérences que chez le Roi. Il y avait à sa droite plusieurs titrés et à

sa gauche étaient les dames du Palais et les filles d’honneur. Je me couvris quand com‑

mençais à lui parler et je me découvris aussitôt. Je la com plimentai en français et elle

me répondit en la même langue. Je lui remis la Lettre de créance que j’avais pour elle

. En me reti rant je saluai du milieu de la salle premièrement les dames et ensuite les

titrés. Je remontai en car rosse avec le Marquis d’Alegrette qui me ramena chez ‑moi. Il

me donna la main jusqu’à ma chambre d’audience et la reprit quand il en sortit. Je le

re conduisis jusqu’au carrosse.

Le lendemain la Reine douairière d’Angleterre, à qui j’avais fait demander audien‑

ce, m’envoya prendre dans son carrosse par M. de Sandis son premier écuyer qui me

conduisit chez elle. J’entrai dans la salle où elle me reçu faisant les mêmes révéren ces

que chez la Reine et je me retirai de même. Je lui parlais en français et elle me répon‑

dit en espagnol. Je n’avais point de let tre à lui rendre. Je fus ramené chez moi dans son

carrosse.

Quand le dit M. Sandis arriva chez moi, mes gens l’allèrent re ce voir à la descente

du carrosse et je l’attendis au haut du degré lui donnant toujours la main. Je le con‑

duisis ainsi dans la cham bre d’audience où nous fûmes assis. Quelque temps après

quoi nous des cendîmes et montâmes en carrosse. Au retour nous montâmes en semble

jusque dans la même chambre où nous prîmes encore séance après quoi je le recon‑

duisi jusqu’au haut du degré et mes gens jusqu’au carrosse.

Les jours suivants je rendis visite, ayant tous mes équipages et ma Maison, à Dona

Luiza, fille naturelle du Roi, mariée au fils du Duc de Cadaval, au cardinal de Souza, à

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241l’Ambassadeur d’Espagne, au Duc et à la Duchesse de Cadaval, au Marquis d’Alegrette,

qui m’avait conduit à l’audience, au grand Inquisiteur et à Fernand de Souza qui

m’avait accompagné les trois jours avant mon en trée. Je leur avais envoyé demander

audience. Suivant l’usage tous ceux que j’avais été voir ainsi me rendirent la visite avec

la même cérémonie et le Cardinal de Souza en Rochet et en Camail.

Le 24 février, jour de la naissance de l’Infante, j’allai au Palais faire mes compli‑

ments au Roi et à la Reine à l’heure qui m’avait été indiquée par la lettre du Secrétaire

d’Etat, en réponse de celle que je lui avais écrite le jour précédent pour demander

audience. L’on est admis à ces sortes de compliments qu’après avoir fait son entrée

pu blique. Jusque ‑là, dans les occasions qui se présentent on écrit une lettre au Secrétaire

d’Etat pour le prier de faire à leurs Magestés les excuses de ce que n’ayant point encore

fait d’entrée on ne peut s’acquitter en personne de ce devoir. On ne va jamais au Palais

pour pareille chose ni pour aucune autre fonction sans avoir demander et reçu le jour

et l’heure précise par la voie du Secrétaire d’Etat, à qui l’on écrit et qui répond de même.

Toutes les fois qu’on y va, la même céré monie s’observe. Un capitaine des Gardes et un

Maître de Cérémonies ou un intendant de la Maison viennent prendre l’Ambassadeur

qui ne sort point de sa litière qu’ils ne soient au près de lui. Ils le reconduisent de même

et ne se retirent point que quand la litière se met en marche.

Le 13 mars j’allai saluer le Roi et la Reine sur le jour de la nais sance de Don

António, second prince qui entrait ce jour là dans sa 4ème année.

Le 22 mars, Dimanche des Rammeaux j’assistais à la chapelle du Roi pour la pre‑

mière fois étant en fonctions, à laquelle l’on est admis qu’après l’entrée publique. Je

fus invité la veille, sui vant l’usage, par une lettre du Secrétaire d’Etat qui me marquait

l’heure. Je fus reçu à la manière ordinaire à la descente de ma litière par un capitaine

des Gardes et un maître des cérémonies. Ils me conduisirent dans un lieu destiné pour

attendre que le Roi passe pour aller à l’église. Dès que S.M. paraît on vient aver tir.

L’Ambassadeur sort pour se trouver à son passage. Le Roi lui fait un salut et l’invite en

même temps de se couvrir. Le Roi continue de marcher couvert, l’Ambassadeur le suit

de même immédiatement, n’ayant personne à sa droite, et à sa gau che le Grand

Chambellan. S’il y a plusieurs Ambassadeurs, ils mar chent ensemble sur la même ligne.

Quand on est arrivé à la chapelle, le Roi se met à sa place au bas des degrès de l’autel,

son prie Dieu et de côté son fauteuil (sic). De l’autre côté et vis ‑à ‑vis est la place des

Ambassadeurs. Ils ont des sièges pliants avec des car reaux dessus, en bas un tapis et

devant un banc couvert d’un au tre tapis. On se lève et on s’asseoit dans les mêmes

temps que le Roi. Après qu’on a en censé le Roi on encense les Ambassadeurs et on leur

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242 porte la paix de même. Quand il y a un cardinal, il a sur la même ligne et au dessus

des ambassadeurs un fauteuil et un prie Dieu. Le duc de Cadaval et son fils ont chacun

un tabouret du même côté que le Roi. Le fils est avant le père, depuis qu’il a épousé

une fille naturelle du Roi, les Marquis et les Comtes ont place au delà du balustre, qui

fait le cein tre de l’autel. Les pre miers sont assis sur des sièges pliants, les au tres sur des

bancs couverts de tapis. La chapelle finie on sort en même temps que le Roi, on monte

après lui le degré et on le suit jus que dans un lieu où il se retourne pour donner un

salut après lequel on se retire. Le jeudi suivant j’assistai encore à la Chapelle. L’après

dî ner j’allai à pied suivant ce qui se pratique à pareil jour et suivi de toute ma Maison

faire des stations en plusieurs églises. Elles sont pendant 24 heures d’une magnificen‑

ce extraordinaire. Je fus invité de me trouver encore à la chapelle le lendemain ven‑

dredi saint, mais je m’en dispensai parce que ce jour là toutes sortes de voitures sont

interdites et que ma maison était loin du Palais.

Le lendemain de Pâques 31 mars j’allai souhaiter les bonnes fêtes au Roi de

Portugal, à la Reine et à la Reine Douairière d’Angleterre qui m’avaient fait marquer

l’heure de l’audience.

Le 26 avril jour de la naissance de S.M. Portugaise, je fis de man der audience au

Roi et à la Reine pour leur faire mes com pliments. Le Secrétaire d’Etat m’écrivit que le

Roi irait à la chasse selon sa cou tume, la Reine me donna audience. Le Roi en tra ce

jour ‑là dans sa cinquante unième année.

Le 25 mai, jour de la naissance de l’Infant Don Francisco se cond prince, je deman‑

dai et j’eus audience pour faire les com pliments or dinaires au Roi et à la Reine. Il entra

ce jour ‑là dans sa huitième année.

Le 5 juin pour l’octave de la fête de Dieu, j’assistai à la cha pelle que le Roi tint

l’après ‑dîner et à la procession qui se fit dans la cour du Palais. J’avais été invité par

une lettre du Secrétaire d’Etat. Le 27 j’eus du Roi l’audience que j’avais de mandé pour

lui présenter M. le Chevalier d’Hautefort, Capitaine et les autres officiers d’une frégate

du Roi qui était entrée dans cette rivière. Je fis dans la suite la même fonction toutes

les fois qu’il entrait des vaisseaux du Roi dans la ri vière de Lisbonne. Dans la même

audience je demandais à S.M. Portugaise de bien vouloir me nommer un conférant

avec qui je pusse traiter doré navant les affaires qui se présenteraient. On en donne aux

Ambassadeurs quand ils en demandent, et tant qu’ils n’en ont point ils traitent avec le

Secrétaire d’Etat, qui équivaut à un mi nistre d’Etat en France,et il est établi qu’en ce cas

l’Ambassadeur lui rend la première visite. Quelques jours après le Secrétaire d’Etat me

donna avis par une lettre que le Roi m’avait donné le Duc de Cadaval pour conférant.

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243Le 2 juillet M. l’Ambassadeur d’Espagne ayant pris son au dience de congé du Roi,

de la Reine et de la Reine douairière d’Angleterre, vint chez moi pour le même sujet

après m’avoir demandé le jour et l’heure. Il était en habit de cérémonie et avec tous ses

équipages. Trois jours après je le retournai voir avec les mêmes cérémonies.

Le 4, jour de la fête de Sainte Isabelle Reine de Portugal, je fus in vité à la chapelle

que le Roi tint et j’y assistai.

Le premier du mois d’août, jour de la naissance de l’Infant Don Manuel, quatriè‑

me fils du Roi, je n’allai point au Palais faire les compliments ordinaires. Je m’en

excusai comme il est permis de faire par une lettre au Secrétaire d’Etat, qui répondit le

len demain, suivant la coutume à mon compliment par une lettre de remercie ments au

nom du Roi. Ce prince entra ce jour ‑là en sa deuxième an née.

Le 6 du même mois, jour de la naissance de la Reine, qui en trait en sa trente

unième année j’eus audience du Roi et de la Reine à qui je fis les compliments accou‑

tumés. Les 10, 12 et 15 de septembre il y eut des fêtes de taureaux. Quand elles sont

Royales comme dans les occasions de réjouissance, le Roi de Portugal invite les minis‑

tres étrangers et leur donne des fenê tres au même rang que celles où il est. Celles ‑ci se

faisaient par les soins de la Ville. Cependant S.M. Portugaise me fit dire qu’il y aurait

une chambre préparée pour moi dans son Palais. J’y allai pendant les trois jours.

Comme ce n’était pas fonction de céré monie je ne fus point reçu au bas du degré, je

trouvai seulement dans la salle des Gardes un officier subalterne pour me conduire

dans l’appartement du roi. Il y avait deux croisés à l’une des quels était un siège pliant

couvert de velours avec un car reau de même dessus pour m’asseoir. Il y avait plusieurs

officiers de S.M. Portugaise pour me servir de temps en temps des rafraîchisse ments.

Quatre d’entre eux me reconduisirent un soir que le spectacle finit plus tard, qu’à

l’ordinaire portant chacun un flam beau de cire blanche. Je les fis couvrir en chemin et

ils ne se retirèrent que quand je fus dans ma litière.

Le 22 octobre, j’eus l’audience du Roi et de la Reine à qui je fis les compliments

ordinaires sur la naissance du Prince qui en trait ce jour ‑là dans sa dixième année. C’est

ainsi qu’on nomme le fils aîné du Roi, à la distinction des puisnés, à qui l’on donne

le nom d’Infants et pour les distinguer l’on ajoute à ce nom celui de leur bapthême.

Par la lettre que j’avais écrite au Secrétaire d’Etat, j’avais demandé audience de leurs

Magestés et du Prince, mais comme le Prince n’en donnait point encore de son chef,

la Reine le fit venir à la sienne où je le saluai.

Le 5 novembre Mr de Conti, Archevêque de Tharse arriva à Lisbonne en qualité de

Nonce du Pape. Il m’avait écrit avant de partir de Rome pour me donner part de sa

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244 nomination. Dès qu’il fut des cendu chez lui il m’envoya faire un compliment par son

écuyer pour me donner part de sa venue. Une heure après je l’allai voir incognito. Il

me vint rendre ma visite aussi incognito. Quelques jours après j’allai lui rendre visite

en cérémonie, après lui avoir envoyé deman der audience, il me reçut en rochet et en

camail. Deux jours après il m’envoya demander audience et me vint voir dans le même

habit mais sans équipage parce qu’il n’avait point encore fait son entrée publique.

Le 9 novembre se fit la cérémonie d’un Auto de Fé ordonné par l’Inquisition.

L’Inquisiteur Général envoya un gentilhomme pour m’inviter d’y assister et me dire

qu’il y aurait une loge appe lée en portugais camarote, disposée pour moi et ceux de

ma suite. Je me rendis à l’heure que la cérémonie devait commen cer et je demeurai

pendant tout le temps qu’elle dura. Ma loge était joignante et au des sous de celle de

Mr. le Nonce.

Le 25 novembre, jour de la naisance de la Reine douairière d’Angleterre je lui

envoyai demander audience et je lui allai faire mes compliments. Elle entrait dans sa

cinquante sixième année.

Le 8 décembre, fête de la Conception et jour ordinaire de la cha pelle pour les

Ambassadeurs, je n’y fus point invité parce que le Roi ne pouvait y assister à cause

d’une incomodité qui lui était survenue.

Par la même raison S.M. Portugaise ne me donna point le len de main de Noèl

l’audience pour lui souhaiter les Bonnes Fêtes. La Reine ne me la donna pas non plus

parce qu’étant proche du terme pour accoucher, elle n’était pas en état de s’habiller

pour paraître en public. Le Secrétaire d’Etat m’écrivit au nom de LL.MM. une lettre de

compliments en réponse de celle que je lui avais écrite pour de mander l’audience des

bonnes fêtes. Je les allai souhaiter à la Reine douairière d’Angleterre qui me donna

audience en la manière ordi naire.

Le 6 Janvier 1699, jour des Rois auquel la Reine accoucha d’une princesse, j’en

fus averti aussitôt par un homme du Palais. J’allai dans le moment sans avoir demandé

audience. Cela se pratique ainsi en pareil occasion. Je montai sans avoir été reçu en bas

par les offi ciers, qui ont coutume d’y attendre les Ambassadeurs, parce qu’ils n’étaient

pas avertis. Le Roi me donna audience en la manière ordi naire. En sortant de son

ap partement j’allai à celui de la Reine m’informer de sa santé. J’entrai dans sa chambre

du dai, la dame d’honneur fut avertie que j’y étais. Elle vint recevoir mon compli ment,

en alla rendre compte à la Reine et me vint faire un remer ciement de la part de S.M..

Je fus reconduit à ma litière par un capi taine des Gardes et un Maître de Salle qui

m’était venu joindre au Palais dès qu’ils avaient su que j’y étais. Ils me conduisirent à

l’audience du Roi et ensuite chez la Reine.

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245Le 24 février, jour des années de l’Infante Dona Theresa qui en trait dans sa qua‑

trième année, j’écrivis au Secrétaire d’Etat pour demander audience au Roi et à la

Reine, et leur faire les compli ments ordinaires. Il me fit réponse par un compliment

de LL.MM. qui s’excusaient de me donner audience sur la cérémo nie du bap tême de

la princesse nouvellement née, qui devait être baptisée ce jour là. Le même jour le

Duc de Cadaval, mon conférant, m’écrivit que quoi qu’il n’y eu point de place pour

les Ministres étrangers à la cérémonie de baptême si je le voulais voir il y aurait une

place pour moi dans un endroit particulier. Cela me détermina à aller au Palais mais

sans cérémonie. L’on me conduisit à une tribune de la chapelle qui m’était desti‑

née.

Le 4 mars premier jour de Carême, j’assistai à la chapelle où j’avais été invité par

une lettre du Secrétaire d’Etat. Tout se passa avec les cérémonies ordinaires. Je pris des

cendres im médiatement après le Roi. L’année précédente je n’avais point été convié

parce que le Roi ne tint point chapelle.

Le 15 j’eus audience du Roi pour le complimenter sur les an nées de l’Infant Don

António. La Reine s’excusa de me la donner par la raison de quelque occupation

qu’elle avait ce jour là. Ce prince en trait dans sa cinquième année.

Le premier avril, Mr. Conti, Nonce fit son entrée publique. J’envoyai au cortège un

de mes carrosses avec deux de mes écuyers dedans. Il marcha immédiatement devant

ceux du Roi. Mr. le Nonce avait été pendant trois jours avant son entrée dans une mai‑

son de campagne à une lieue de la ville, défrayé par le Roi. Je l’avais été voir un de ces

trois jours. Le lendemain de son entrée il me vint rendre la visite de cérémonie avec

tout son Etat, c’est ‑à ‑dire avec tous ses équi pages et domestiques. Je la lui rendis de

même deux jours après.

Le 12, jour du dimanche des Rameaux et le 16, jour du Jeudi Saint, j’assistai aux

chapelles que le roi tint, y ayant été invité par let tre du Secrétaire d’Etat en la manière

ordinaire. Je ne le fus point à la chapelle du Vendredi Saint comme l’année précé dente.

Le 19, jour de Pâques, j’assistai le matin à tout l’office à Sainte Catherine, pa roisse de

ma maison, comme j’avais fait l’année précédente. Le curé vint me recevoir à la porte

de l’église et me donner de l’eau bénite. Il me reconduisit de même, et pendant la

messe me fit rendre le mê mes honneurs que reçoivent les Ambassadeurs dans la cha‑

pelle du Roi, choses auxquelles il avait manqué l’année précédente, faute d’être ins‑

truit.

Le 21 j’eus audience du Roi et de la Reine à l’occasion des bonnes fêtes. Les jours

suivants je reçu et je rendis les visites ordinaires en cette occasion.

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246 Le 26, jour des années du Roi je demandai audience de LL.MM. pour leur faire

compliments accoutumés. Le Roi s’en dispensa comme il fait ordinairement en pareil

jour et la Reine me la donna. Le Roi entra ce jour là dans sa 52 année.

Le 25 mai j’eus audience de LL.MM. au sujet des années de l’Infant Don Francisco

qui entra dans sa neuvième année.

Le 25 juin, jour de l’octave de la fête de Dieu, je fut invité à la cha pelle et à la

procession qui se fait ce jour là dans la cour du Palais et j’y assistai.

Le 4 juillet, fête de St Isabelle Reine de Portugal, je fus invité à la chapelle, où je

n’allai point.

Dans ce mois la Reine étant tombée malade j’envoyai tous les jours un écuyer au

palais savoir de ses nouvelles. La maladie ayant aug mentée, j’y allai moi même trois

fois. En pareille occasion les Ambassadeurs entrant dans la chambre d’audience de la

Reine, la dame d’honneur reçoit là leur compliment. Elle porta à la Reine et vint répon‑

dre de sa part.

Le 3 août, jour de la naissance de l’Infant Don Manuel, qua trième fils du Roi qui

entrait dans sa troisième année, je ne de mandai point audience à cause de l’extrémité

où se trouvait la Reine. Le quatre août la Reine mourut. Le lendemain j’écrivis une

lettre au Secrétaire d’Etat pour le prier de témoigner au Roi mes sentiments sur la mort

de cette princesse. En attendant que par ordre du roi mon maître je puisse lui donner

sur ce sujet des démonstrations publiques. Deux jours après le Secrétaire d’Etat répon‑

dit de la part du Roi à ma lettre en termes très honnêtes.

Le 25 de ce mois, jour de St. Louis j’assistai à la grande messe et au sermon dans

l’église de ce nom y ayant été invité par les officiers de la confrairie. Etant en charge,

il n’y eut point chez moi de feux ni d’illuminations, comme l’année précedente, et je

défendit que l’on ti rait des boîtes, ni des fuzées (sic), comme on a coutume de faire

de vant l’église de St Louis, pour ne pas don ner des signes de joie dans les présents

temps de la mort de la Reine.

Le 28 septembre, je fus invité par le Duc de Cadaval, mon confé rant, de me trou‑

ver le lendemain au Palais avec les Ministres du Roi de Portugal pour traiter d’une

affaire. Je m’y rendis à l’heure conve nue. Je trouvai au bas du degré un officier subal‑

terne de la chambre du Roi qui me conduisit dans le lieu destiné pour les conférences.

Le Duc de Cadaval et le Secrétaire d’Etat qui y étaient venus les pre miers, sortirent pour

venir au devant de moi. Le premier, un peu hors de la porte et le dernier plus avant.

Quand les autres furent ar rivés on prit séance à un bureau long couvert d’un tapis de

velours sur lequel il y avait un écritoire, du papier et une sonnette. Il n’y avait pour

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247chaises que des tabourets. Je pris ma place seul du côté supérieur du bureau. De l’autre,

vis ‑à ‑vis de moi étaient les minis tres de S.M. Portugaise. Au bout d’en bas était le

Secrétaire d’Etat. Quand on fut assis le Duc de Cadaval me présenta la sonnette pour

marquer de distinction et je la reçue. Après la conférence je fus re conduit hors la porte

du cabinet par les Ministres du Roi de Portugal, comme j’avais été reçu et jusqu’à ma

litière par l’officier qui m’avait conduit en arrivant. Il en a été depuis usé de même

dans toutes les autres conférences publiques, que j’ai eu avec les mi nistres de S. M.

Portugaise.

Le 22 octobre, jour de la naissance du Prince qui entrait dans sa 11ème année je

ne demandai point d’audience au Roi parce que je n’avais point encore fait les com‑

pliments de condoléances sur la mort de la Reine. N’en ayant pas reçu ordre de la Cour,

j’écrivis seu lement une lettre au Secrétaire d’Etat pour être montrée au Roi, et il y

répondit par une autre lettre de la part de S.M. Portugaise.

J’en usais de même le 25 novembre, jour de la naissance de la Reine douairière

d’Angleterre, et comme elle n’a point à Lisbonne de Secrétaire d’Etat (sic), j’écrivis à

son premier écuyer. Elle entrait ce jour là dans sa cinquante septième année.

Le 2 décembre, l’ordre m’étant venue de faire les compli ments de condoléances à

S.M. Portugaise, je demandai et j’eus audience à cet effet. Le même jour j’eus audience

de la Reine douairière d’Angleterre sur le même sujet. J’allai à ces deux au diences et

en suite à toutes les autres pendant l’année du deuil de la Reine de Portugal en mante‑

au long trainant que je ne me fis point porter dans le palais, n’étant pas l’usage de cette

Cour. Le Roi de Portugal ne fai sant pas même porter le sien.

Le 8 décembre, fête de la Conception de la Vierge, S.M. Portugaise tint Chapelle.

J’y fus invité et j’y assistai avec les cé rémonies ordi naires.

Le 26 décembre j’eus audience du Roi pour lui souhaiter les bon nes fêtes et ensui‑

te de la Reine douairière d’Angleterre.

Le 6 janvier 1700, jour des Rois, je fus invité à la chapelle et j’y assis tai.

Le 30 du dit mois, jour des années de l’Infante Dona Francisca qui entrait dans sa

deuxième année, S.M. Portugaise ne voulut point re cevoir de compliments à cause du

deuil de la Reine, non plus que dans toutes les autres occasions de réjouissance pen‑

dant l’année du deuil. Je ne laissai pas à chacune d’écrire au Secrétaire d’Etat pour le

prier de faire mes compliments au Roi et il me fit réponse à chaque lettre par d’autre

remerciement au nom de S.M. Portugaise.

Le 24 février j’assistai à la chapelle, étant le premier jour de ca rême. Je pris des

cendres après le Roi.

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248 Le même jour, l’Infante Dona Theresa entra dans sa cinquième année et le Roi n’en

reçus point de compliments. Il n’en reçut point non plus le 15 mars, jour de la nais‑

sance de l’Infant Don António, qui entrait dans sa sixième année.

Le 4 avril, jour des Rameaux et le Jeudi Saint suivant, j’assitai à la chapelle du Roi

ayant été invité.

Le 12 du même mois, je demandai et j’eus audience de S.M. Portugaise pour lui

souhaiter les bonnes fêtes.

Le 26, jour des années du Roi qui entrait dans sa cinquante troi sième année, il ne

donna point d’audience.

Le 25 mai l’Infant Don Francisco entra dans sa dixième année, et j’eus audience

du Roi pour lui faire mes compliments.

Le 14 juin, jour de la cérémonie de la fête de Dieu à la cha pelle du Roi, j’y fus

invité et je n’y pus pas assister.

Le 4 juillet, fête de St. Isabelle Reine de Portugal, j’y fus en core in vité et j’y assistai.

Le 6 juillet la Comtesse de Waldstein, épouse du comte de ce nom, nomé

Ambassadeur de l’Empereur auprès du Roi de Portugal et qui n’était pas encore arrivé,

s’étant rendue la pre mière à Lisbonne, m’envoya donner part de sa venue et le même

jour, je lui allai rendre visite.

Le 11 du même mois, le Comte de Waldstein arriva. Il m’envoya donner part le

lendemain de sa venue et je l’allai visi ter comme fit le Nonce du Pape. Je le trouvai au

milieu du degré venant au devant de moi et il me reconduisit jusqu’à ma litière.

Le 3 août, jour des années de l’Infant Don Manuel, S.M. Portugaise ne reçut point

de compliments. Ce prince entrait dans sa quatrième année.

Le 25, jour de St. Louis, j’assistai au service dans l’église des fran çais avec les céré‑

monies ordinaires.

Le 11 octobre, le Comte Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur, me rendit sa pre‑

mière visite, qu’il avait differé de me rendre aussi bien qu’au Nonce du Pape par des

raisons parti culières. Il vint sans cortège n’ayant point encore fait son entrée publique.

Il m’envoya demander l’heure comme j’avais fait à son égard et je le reçus chez moi

comme il m’avait reçut chez lui.

Le 22 du même mois, jour des années du Prince qui entrait dans sa douzième

année, j’eus audience de S.M. Portugaise à qui je fis les compliments accoutumés. J’eus

ensuite des Infants et c’est la pre mière que j’eus d’eux. Ils me reçurent dans

l’appartement de la feue Reine et dans la même chambre où elle donnait audience. Ils

étaient tous trois sous un dais, sous lequel il n’y avait qu’un fauteuil qui était censé

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249pour le Prince, comme étant déjà juré successeur à la Couronne. Derrière le fauteuil

était la gouvernante. Des deux côtés de la chambre, à la droite des princes, étaient

plusieurs seigneurs, à gauche, étaient les principaux officiers de la feue Reine qui

depuis sa mort servent auprès d’eux. Je fus conduit à cette audience et ensuite recon‑

duit à ma litière par les officiers du Roi qui m’avaient conduit à celle de S. M.

Portugaise. Je fis en entrant les mêmes révérences qu’on a coutume de faire quand on

est admis à l’audience du Roi. A chaque révérence les princes ôtèrent leurs chapeaux

et les remirent, quand j’approchai ils se découvrirent tout à fait, et ne se couvrirent

ensuite qu’en même temps que moi. J’adressai la parole au Prince et lui seul me répon‑

dit. Je fis en me retirant les mêmes révérences qu’en entrant et les princes se décou‑

vrirent de la même manière. Ils étaient tous en manteau et en rabats.

Le 28 du dit mois, Mr. le Nonce ayant eu avis par un exprès dépe ché de Rome de

la mort du Pape Innocent XII, il m’envoya son Secrétaire m’en donner part et je l’allai

visiter sur ce sujet.

Le 25 novembre, jour des années de la Reine douairière d’Angleterre, qui entrait

dans sa cinquante huitième année, elle me donna audience et je lui fis mes compli‑

ments.

Le 6 décembre, l’Embassadeur de l’Empereur ayant reçu la nou velle que la Reine

des Romains était accouché d’un prince, m’en donna part aussitôt par son M.... de sa

Chambre et je lui al lai rendre visite.

Le 8, jour de la fête de la Conception de la Vierge, je fus invité à la chapelle où le

Roi de Portugal assistait, mais je ne pus m’y trouver.

Le 20, Mr le Nonce reçut par un exprès la nouvelle de l’élection du Pape Clément

XI. Il envoya son Secrétaire m’en donner part et je lui en allai faire mes compliments.

Le 24, veille du jour de Noèl j’eus audience de S.M. Portugaise et je lui fis le com‑

pliment des Bonnes Fêtes.

Le 28, je fis le même compliment à la Reine douairière d’Angleterre.

Le 6 janvier de 1701, jour des Rois, le Roi n’ayant point tenu cha pelle, j’assistai le

matin à l’office dans l’église de St. Louis.

Le 16 janvier 1701, le Roi de Portugal devant partir le lende main pour aller à

Salvaterra, maison de chasse à dix lieues de Lisbonne, j’eus audience de lui pour lui

souhaiter un heureux voyage. S. M. Portugaise ayant demeuré à la campagne jusq’au 2

mai suivant, il n’y eut pendant ce temps là aucune fonction pu blique. Les ambassa‑

deurs n’ayant pas coutume de suivre ce prince hors de Lisbonne, mais le lendemain de

Pâques j’allai souhaiter les Bonnes Fêtes à la Reine douairière d’Angleterre.

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250 Le 25 mai, jour des années de l’Infant don Francisco qui en trait dans sa onzième

année j’eus audience de S.M. Portugaise, à qui je fis les compliments ordinaires en

pareil cas.

Le 2 juin, jour de l’octave de la fête de Dieu, je fus invité et j’assistai à la procession

qui se fait ordinairement ce jour là dans la cour du Palais.

Le 13 juillet, le Comte de Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur, fit son entrée

publique. Il m’envoya donner part au paravant du jour qui lui avait été marqué pour

cela, et me prier d’envoyer un de mes carrosses à son cortège, ce que je fis. J’allai aussi

le voir une fois dans la maison où il fut défrayé pendant trois jours avant son entrée,

aux dépens du Roi de Portugal. Trois jours après avoir fait son en trée, il me vint visiter,

ayant tout son état. Lui, étant en habit de cé rémonie avec manteau et rabats. Il avait

auparavant envoyé me de mander audience. Peu de jours après, je lui rendis la visite et

à la comtesse de Waldstein avec les mêmes cérémonies. Je les reçus chez moi au bas du

de gré et les reconduits jusqu’à sa litière. Il en usa de même chez lui.

Le 24, j’eus audience du Roi de Portugal, étant en grand deuil avec manteau long

trainant. Je lui donnais part de la mort de Monsieur le Duc d’Orleáns et lui remis une

lettre par ordinaire, que S.M. lui avait écrite à cette occasion.

Le 31, j’en donnai aussi part à la Reine douairière d’Angleterre dans une audien‑

ce publique que j’eus d’elle.

Le 3 août j’eus audience de S.M. Portugaise que je complimen tai au sujet des

années de l’Infant Don Manuel, qui entrait dans sa cin quième année. J’ai quité pour

cette fonction le grand deuil.

Le 25 , jour de la fête de St. Louis, j’assistai le matin à l’office dans l’église de ce

nom.

Le 22 octobre, jour des années du Prince, n’ayant pu aller faire les compliments

ordinaires au Roi, je m’en acquitai par une let tre au Secrétaire d’Etat. Ce Prince entrait

ce jour dans sa trei zième année.

Le Roi de Grande Bretagne, Jacques Second, étant mort et la Reine douairière

d’Angleterre, sa belle soeur, en ayant pris le grand deuil, j’eus de cette princesse une

audience publique le 6 novembre dans la quelle je lui fis les compliments de condoléan‑

ces. J’étais en deuil, mais sans manteau long. Le 25 du dit mois, jour des années de

cette princesse, j’eus d’elle une autre au dience dans laquelle je lui fis les compliments

accoutumés. Je quittai ce jour là le deuil que je portais pour la mort de Mr. le Duc

d’Orléans. Elle entrait dans sa cinquante neuvième année.

Le 8 décembre, jour de la Conception, je fus invité à la cha pelle que le Roi tenait

et j’y assistai.

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251Le 24, j’eus audience de S.M. Portugaise, dans laquelle je lui pré sentai plusieurs

officiers français envoyés ici par le Roi pour son ser vice.

Le 27, j’eus une autre audience de ce prince pour lui souhaiter les Bonnes Fêtes.

Le 29, j’allai souhaiter les Bonnes Fêtes à la Reine douairière d’Angleterre.

Le 6 Janvier 1702, fête des Rois je n’assistai point à la Chapelle mais j’y fus invité.

Le 30, jour des années de l’Infante Dona Francisca qui entrait dans sa quatrième

année, le Roi ne reçu point de compliments.

Le 24 février, jour des années de l’Infante Dona Théresa qui en trait dans sa septiè‑

me année, il en reçut, j’allai à l’audience de ce prince. Je fus ensuite conduit à celle des

princes et princes ses qui étaient ensemble dans la même chambre.

Le 25, le Comte de Waldstein, Ambassadeur de l’Empereur eut son audience de

congé du Roi. Il me donna part le jour aupara vant, par un gentilhomme, de l’heure

qui lui avait été marqué pour cette fonc tion et me pria d’envoyer mon carrosse au cor‑

tège, ce que je fis. Plusieurs seigneurs de la Cour y envoyèrent aussi les leurs en ayant

reçu l’ordre du Roi. Il demanda à Mr le Nonce et à moi de le dispen ser de nous venir

rendre la visite de congé jusqu’à ce qu’il soit prêt de partir et nous consentîmes.

Le 1er jour de mars, premier jour de carême, je fus invité de me trouver à la

Chapelle du Roi j’y assistai. Le Maître des Cérémonies qui est un ecclésiastique officier

de la Chapelle manqua de me venir prendre pour aller recevoir des cendres immédia‑

tement après le Roi. Suivant ce qui se pratique ordinai rement, ce prince s’en étant

aperçu lui fit après être sorti de la Chapelle une réprimande et lui ordonna de me venir

faire des excuses de la faute qu’il avait faite, à quoi il sa tisfit sur le champs.

Le 15, jour des années de l’Infant Don António, qui entrait dans sa huitième

année, m’étant trouvé incommodé j’écrivis au Secrétaire d’Etat pour le prier de faire

mes compliments au Roi. Il y répondit le même jour par écrit au nom de S. M.

Portugaise qui envoya D. Fernando de Souza, l’un des intendants de sa Maison savoir

des nou velles de ma santé.

Le 9 avril Dimanche des Rameaux, et le 13, jour du Jeudi Saint, ayant été invité à

la chapelle de S.M. Portugaise j’y assistai.

Le 17, j’eus audience de ce prince au sujet des Bonnes Fêtes et le 20 de la

Douairière d’Angleterre.

Le 26, jour des années du Roi de Portugal qui entrait dans sa cin quante cinquiè‑

me année, je lui fis mes compliments par une lettre que j’écrivis au Secrétaire d’Etat,

qui me répondit par or dre de S.M. qui ne donna point d’audience le jour de ses

années.

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252 Le 5 mai, Domingo Capecelatro nommé par S.M. Catholique pour son envoyé

auprès du Roi de Portugal, arriva à Lisbonne. Il me vint rendre visite aussitôt, sans avoir

envoyé me demander audience. Je pris sur lui la main, la porte et la chaise. Comme il

n’avait ordre de recevoir ce traitement que de moi, il ne visita point le Nonce parce

qu’il fut informé qu’il ne voulait pas le trai ter autrement que j’avais fait.

Le 15 mai, jour des années de l’Infant Don Francisco, j’eus au dience du Roi de

Portugal et des princes à qui je fis les com pliments accoutumés en pareille occasion.

Ce prince entrait ce jour là dans sa douzième année.

Le 22 juin, pour l’octave de la fête de Dieu je fus invité de me trou ver à la proces‑

sion qui se fait au Palais ce jour ‑là après midi et j’y as sistai.

Le 4 juillet, jour de St. Isabelle Reine de Portugal, je fus invité à la chapelle du Roi

à laquelle je n’assitai point.

Le 3 août, jour des années de l’Infant don Manuel qui entrait dans sa sixième

année, j’eus audience du Roi de Portugal et en suite des princes et je leurs fis les com‑

pliments ordinaires.

Le 22 octobre, jour des années du Prince qui entrait dans sa qua torzième année,

j’eus audience du Roi et des princes à qui je fis des compliments.

Le 25 novembre, jour des années de la Reine douairière d’Angleterre, qui entrait dans

sa soixantième année elle me donna aussi audience avec les cérémonies accoutumées.

Le 8 décembre, jour de la Conception de la Vierge, je fus in vité à la chapelle du

Roi et j’y assistai.

Le 27, j’allai au Palais pour souhaiter les Bonnes Fêtes à S.M. Portugaise.

Le 28, j’eus audience de la Reine douairière d’Angleterre pour le même sujet.

Le 26 (sic) Janvier 1703, fête des Rois, j’assistai à la Chapelle du Roi.

Le 30 du même mois, j’eus audience du Roi, des princes et prin cesses, à qui je fis

les compliments accoutumés au sujet des années de l’Infante Dona Francisca qui

entrait ce jour là dans sa cinquième année.

Le 2 février, jour de la Purification de la Vierge, je fus invité et j’assistai à la

Chapelle du Roi.

Le 22, jour des cendres, je fus invité à la chapelle du Roi et j’y as sistai.

Le 24 du même mois, je demandai et j’eus audience du Roi, des princes et des

princesses, à qui je fis les compliments ordi naires au sujet des années de l’Infante Dona

Théresa qui entrait dans sa hui tième année.

Le 15 mars suivant, j’eus audience et fis les mêmes compli ments au sujet des

années de l’Infant Don António qui entrait dans sa neu vième année.

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253Le 31 du dit mois, je pris mon audience publique de congé de S.M. Portugaise et

des princes. Je l’avais demandé quelques jours aupa ravant. M. le Marquis de Torci

m’ayant écrit que le Roi m’avait ac cordé mon congé que je solicitais depuis longtemps

et que S.M. avait nommé pour me succéder Mr. de Châteauneuf, auparavant

Ambassadeur à la porte, qui viendrait incessament me relever. Je fus conduit à cette

audience dans les carrosses du Roi par le Comte d’Alvor, l’un des conseillers d’Etat qui

me vint prendre chez moi où il me ramena. Il y avait trois régiments d’infanterie fai‑

sant 1800 hommes rangés en haie dans la grande place du Palais et dans le rues par où

j’y arrivais. Les officiers étaient à la tête de chaque com pagnie. Les enseignes étaient

déployés et les tambours battaient aux champs. Je fus reçu à la descente du carrosse par

l’un des capitaines des Gardes du corps et par un des Maîtres de cérémonies qui me

re conduisi rent de même. Les gardes bordaient le degré et les premières salles tenant

leurs hallebardes. Quand j’entrai dans la salle d’audiences, le Roi, qui était assis sous

son dais sur un trône élevé de trois marches, s’éleva et se découvrit à toutes les révé‑

rences que je fis avant que d’arriver à lui. Derrière son fauteuil était un des premiers

gentilshommes de sa chambre. En bas étaient les titrés à sa droite, et les officiers de sa

Maison à sa gauche, les uns et les autres placés suivant le rang qu’ils tien nent. Outre le

carrosse du corps du Roi, dans lequel je fus con duit, il y en avait quatre autres de S.M.

remplis d’officiers fran çais qui se trouvaient à Lisbonne et des gens de ma Maison, et

ils étaient précédés de ceux de la plus grande partie des seigneurs de cette Cour qui les

avaient envoyés pour faire cortège. Dans cette audience, j’eus l’honneur de parler à

S.M. Portugaise dans les termes suivants:

“ Sire, la fonction de venir prendre congé de V.M. est aussi triste pour moi qu’avait

été agréable celle de paraître la pre mière fois à son audience. J’avais regardé comme ma

plus grande fortune l’honneur d’être admis auprès d’Elle et je sens autant que je dois la

perte que je fais en me retirant. Aussi est elle involontaire et il ne fallait pas une raison

moins forte pour m’y résoudre que celle de connaître que par ma mauvaise santé je

pouvais devenir inutile en cette Cour au Roi mon maître. Je l’ai très humblement supplié,

plus pour le bien de son service que par rapport à moi de vouloir bien commettre à un

au tre le soin dont j’apprehendais de me mal acquiter, et il a eu la bonté de me l’accorder.

Je vais sire lui rendre compte du ministère dont il m’avait honoré, que n’aurais ‑je pas lui

dire des bons traite ments que j’ai reçus de V.M. pendant le cours de près de six an nées.

Je ne puis les reconnaître qu’en l’informant de l’honneur que V.M. m’a conti nuellement

fait d’autant plus que V.M. m’a continuellement fait, d’autant plus que quelque envie que

j’ai eu de les mériter, je ne dois les attribuer qu’au caractère dont j’étais revêtu. Des gran‑

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254 des qualités de V. M. il me restera sire peu de chose à lui apprendre. Elles lui sont con‑

nues depuis si longtemps et mes dépêches ont continué de les lui rendre si présentes

que le récit n’y ajoutera rien. Ce que je pour rais lui dire de plus agréable est que V.M.

m’a toujours paru plus per suadé de sa sincère amitié pour votre personne et de son

affec tion pour cette couronne, que j’ai reconnu dans toutes les occa sions. Que vous

répondrez parfaitement à ses sentiments et je croit sire que vous voudrez bien m’avouer

si je l’assure que l’amitié constante de V.M. maintiendra toujours une parfaite cor‑

respondance entre les deux Couronnes. Le zèle que je dois avoir pour le bien de ce

royaume où j’ai été comblé d’honneurs me fait souhaiter ardemment qu’elle ne soit

jamais interrompue. Je supplie V.M. d’être persuadée que j’ai profité autant que j’ai pu

des occasions que j’ai eues de travailler à l’augmenter et je compterai toute ma vie pour

ma plus grande gloire d’avoir eu le bonheur d’y contribuer”.

Je fus de l’audience du Roi à celle des princes avec les mêmes cé rémonies. Ils

étaient tous quatre debout sous un dais et j’adressais la parole à l’aîné. Du Palais je fus

reconduit chez moi par le comte de Alvor avec qui j’observai pour le recevoir et pour

le conduire les mê mes cérémonies qui avaient été pratiquées entre le Marquis

d’Alegrette et moi, lorsqu’il me mena à ma première audience publi que.

Le 10 avril, je pris audience publique de congé de la Reine douai rière d’Angleterre

qui m’envoya prendre dans son premier carrosse par le sieur Sandis, son écuyer et tout

se passa dans cette fonction comme dans celle de la première audience publi que que

j’avais eu de cette princesse.

Quelques jours après, j’allai faire à Mr. le Nonce la visite de congé, ayant envoyé

auparavant lui demander heure pour cela. Il vint au devant de moi jusqu’au dernier

degré, étant en camail et en rochet et il me conduisit jusqu’à ma litière qu’il vit mar‑

cher avant que de se retirer.

J’allai aussi visiter le Comte de Alvor qui avait été mon con duc teur de qui je reçu

le même traitement que de Mr. le Nonce, l’un et l’autre me rendirent ensuite la visite

et leur rendis le même traite ment que j’avais reçu d’eux. Après avoir satisfait à ces

visites de cé rémonie j’en rendis de.... aux seigneurs et dames que j’avais cou tume de

visiter pour prendre congé d’eux. La princesse Dona Luisa, fille naturelle du Roi, mari‑

ée depuis peu en secondes noces au se cond fils du Duc de Cadaval étant à la campagne

lorsque je pris mon audience de congé et n’étant re venue que quelque temps après je

ne pus prendre congé d’elle avant que de le prendre de Mr. le Nonce. Comme j’avais

fait sans cela et je remis à la faire à son retour. Depuis mon audience publique de congé

je restai à Lisbonne jusqu’au 5 octobre sui vant, ayant eu ordre d’y attendre celui qui

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255serait nommé pour me succeder. Pendant ce temps j’eus plusieurs audiences de S.M.

avec les cérémonies accoutumées.

Le 3 septembre M. de Châteauneuf qu’avait été nommé pour me relever arriva par

terre à Lisbonne, où il fut reçu avec les honneurs établies en pareil cas. Je le reçus dans

la maison que j’occupais qui devait aussi par la suite être la sienne.

Pendant un mois que nous fûmes ensemble, je lui donnais tou tes les instructions

et lui remis tous les papiers qui concernaient les af faires du Roi en cette cour.

Huit jours avant mon départ, j’eus une dernière audience par or dre du Roi de

Portugal pour prendre congé de lui et une sem blable de la Reine douairière

d’Angleterre. Le lendemain un offi cier de S.M. Portugaise m’apporta de sa part une

attache de dia mants du prix de six mille livres ou environ et me remit la lettre de

récréance de ce prince.

Le 5 je partis de Lisbonne pour me rendre en France par terre.

A une lieue d’Estremoz deux compagnies de cavalerie du Roi de Portugal vinrent

au devant de moi et me conduisirent dans cette place où je fus reçu au bruit du canon.

Dès que j’y fus arrivé le gou verneur et les principaux officiers des troupes qui y

étaient, me vin rent visiter et je leur rendis leurs visites. Le gou verneur m’envoya une

garde composée d’un sergent et de dix soldats que je renvoyai, ne retenant que deux

soldats pour gar der mon bagage. Le lendemain je fus salué en sortant de sept coups de

canon comme je l’avais été en entrant. Deux autres compagnies de cavalerie me recon‑

duirent jusqu’à une lieu de la place. En approchant Elvas je rencontrais cinq compag‑

nies de cavalerie qui venaient pareillement au devant de moi. Je fus re çus dans cette

place comme je l’avais été à Estremoz. Quand j’en sortis les mêmes troupes montèrent

à cheval et le Comte das Galveas, capitaine Général dans la province de Alentejo, me

con dui sit dans son carrosse jusqu’à une demie lieue de la place l’ayant prié de ne pas

aller plus loin. En arrivant à Badajoz je fus rencontré par le gouverneur qui venait au

devant de moi et je montai dans son car rosse. Il me conduisit au couvent des Augustins

où je fus défrayé avec toute ma Maison aux dépens de la ville, pendant un jour que j’y

restai. Quand j’en sortis Don Francisco Fernandes de Cordova Capitaine Général de

l’Estremadure me reconduisit à deux lieues de la place et fit monter à cheval plusieurs

compagnies de cavaliers. Le 17, du dit mois j’arrivai à Madrid. J’allai descendre chez

Mr. l’Abbé d’Estrées, Ambassadeur de France. J’y séjounai pendant 12 jours, pendant

lesquels j’eus l’honneur de voir plusieurs fois le Roi et la Reine d’Espagne. Je leur fus

présenté la première fois par M l’Abbé d’Estrées. Je pris congé de leurs Magestés au

Buen Retiro où elles étaient allées passer l’après dîner et où elles me permi rent d’aller,

quoique personne n’y fut admis.

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256 Je partis de Madrid le 29 et j’arrivai à Pampelune le 5 novem bre. Dès que j’y fus,

j’envoyai faire un compliment au Viceroi, fils du Comte de St. Estevan. Il vint aussitôt

me rendre visite et me mena voir la citadelle où je fus salué en entrant et en sortant de

7 coups de canon. Il me conduisit ensuite chez lui où il m’avait fait préparer un appar‑

tement que je n’acceptai point. Le soir il m’envoya à l’hotellerie où j’étais logé, plu‑

sieurs rafraîchisse ments. Le lendemain quand je sortis de la ville je fus salué de 7 coups

de canon. J’arrivai à Bayonne le 7 Novembre fort tard.

Le lendemain, le commandant de la place me vint visiter. Il me mena à la citadel‑

le où en entrant et en sortant, je fus salué de 9 coups de canon. Le corps de la ville me

vint complimenter en habit de cé rémonie. Quand je partis le lendemain je fus salué de

7 coups de ca non de la ville.

Le 10 j’arrivai à Bordeaux. J’allai le lendemain au château Trompette où je fus

salué en entrant de neuf coups de canon.

Le 14 j’arrivai à Versailles. Je descendis chez M le Marquis de Torcy qui me propo‑

sa de me présenter au roi le lendemain. Je le priai de vouloir bien me différer cet

honneur de deux jours, pour me don ner le temps de venir à Paris pour reprendre mon

habit ordinaire.

Le 21, j’eus l’honneur de saluer le Roi à l’entrée du conseil et deux jours après

S.M. m’honora d’une audience particulière de 5 quarts d’heure.

Dans le cours de mon Ambassade j’avais conclus plusieurs trai tés avec les commis‑

saires nommés par S.M. Portugaise, pour traiter de sa part avec moi, et j’avais observé

de signer dans tous les dits traités et de mettre le seau de mes armes dans l’endroit le

plus honorable, tant dans l’expédition qui devait être pour le Roi, que dans celle qui

devait demeurer pour S.M. Portugaise.

Depuis l’avènement du Roi Philippe V à la Couronne d’Espagne, j’avais été chargé

pendant un an et demi de l’execution de ses ordres à la Cour de Portugal où il n’avait

point de ministre, et j’avais signé pour ce prince, en vertu de ses pleins pouvoirs, deux

traités avec les ministres de S.M. Portugaise. Lorsqu’il m’envoya sa ratification de ces

traités il me fit l’honneur de l’accompagner d’une lettre obli geante et de son portrait

enrichi de diamants de la valeur d’environ 15.000 livres.NE(non signé)

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257257

Publicam‑se aqui os documentos que definem a missão do Principal D. António

Francisco de Saldanha da Gama à Corte de Paris. O primeiro encontra‑se guardado

entre os avulsos da chamada série “do Reino” do Arquivo Histórico Ultramarino; os

restantes, no núcleo do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Arquivo Nacional

da Torre do Tombo. Trata‑se de um conjunto especialmente interessante por dar a

conhecer as alternativas de composição no quadro do sistema europeu, além de

ilustrar um pequeno episódio cerimonial aparentemente desconhecido da historio‑

grafia, mas relevante para a compreensão da actividade desenvolvida pela Secretaria

de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra durante a segunda metade do sécu‑

lo XVIII.

O Principal de Saldanha foi nomeado embaixador à Corte de Paris mais ou

menos no mesmo momento em que também terminava em Lisboa a missão do

Conde de Baschi (1754‑1756)1. Apesar deste último ter incorrido no desagrado d’el

Rei D. José, a instrução que abaixo se transcreve permite perceber o empenho do

governo português em explorar a possibilidade de uma relação política e comercial

com a Coroa de França, que contrapesasse o mal‑estar então existente com a Espanha

e com a Inglaterra.

Os registos da Torre do Tombo permitem saber que D. António de Saldanha da

Gama saiu de Lisboa a 27 de Setembro de 1756, determinado a fazer o caminho por

mar2. No início de Outubro, aportou na Galiza, onde parece ter conhecido dificul‑

dades de navegação e decidiu concluir a viagem por via terrestre. Já em Paris, deu a

entender ao Introdutor de serviço que apenas levava consigo cartas de crença parti‑

culares, na esperança de assim conseguir evitar “a insuportável despesa” de uma

* Centro de História de Além‑Mar da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores (CHAM/FCSH‑

‑UNL).1 Descriptive list of the State Papers Portugal 1661-1780 in the Public Record Office London, Lisboa, Academia das Ciências de

Lisboa, 1979, Vol. II, p. 332.2 A.N.T.T., MNE, Lº 362 (1752‑1779), fl. 21.

A embaixada de D. António de Saldanha da Gama à Corte

de Paris: instrução secreta e cartas de crença (1756)

Tiago C. P. dos Reis Miranda*

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258 entrada formal. As audiências que houve em Versalhes foram, portanto, de cunho

privado. E ambas as cartas de chancelaria que, na verdade, omitira, nunca chegaram

às mãos do governo francês3.

O jogo de forças políticas no mundo da Corte e os constrangimentos da Guerra

dos Sete Anos cedo tiraram sentido à missão planeada. Meses mais tarde, sendo

necessário mandar a Madrid um novo ministro de primeira grandeza, foi outra vez

escolhido o mesmo prelado da Patriarcal. Logo que recebeu a notícia, D. António de

Saldanha da Gama pôs‑se a caminho de Compiègne e teve a sua audiência de despe‑

dida a 13 de Julho de 17574.

Nas transcrições que se seguem, actualizam‑se a ortografia e a pontuação, despre‑

zando‑se os trechos claramente corrigidos ou cancelados. Mantêm‑se, porém, as solu‑

ções construtivas originais, os vocábulos arcaicos ou não consagrados, e as maiúsculas

relacionadas com a dignidade de certos actores. Especificamente no que respeita à

instrução, a autoria de algumas emendas será objecto de estudo noutro local.

* * *

[post. 1756, Junho], [Belém]

iNSTrUÇÃo secreta (minuta) para [o Principal D. António francisco de Saldanha

da gama], nomeado Embaixador de D. José i à Corte de Paris.

A.H.U., Reino, Cx. 107 (1718-1817), doc. s/nº.

Instrução Secretíssima

Nenhum ministro público pode fazer passo regular na Corte a que vai dirigido

sem um completo conhecimento do verdadeiro estado da Corte que o manda. Por

isso os Príncipes escolhem para semelhantes lugares pessoas da sua inteira confiança;

3 A.N.T.T., MNE, Cx. 564 (1754‑1756). Ofícios do Principal de Saldanha para o Secretário de Estado dos

Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Luís da Cunha Manuel, Baía de Vigo, 8.10.1756; Santiago de

Compostela, 13.10.1756, e Paris, 29.11, 6 e 13.12.1765. 4 A.N.T.T., MNE, Cx. 655 (1757‑1758). Ofício do Principal de Saldanha para D. Luís da Cunha Manuel,

Compiègne, 17.07.1757.

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259porque a verdadeira e completa noção do estado interior de uma Corte envolve

matérias tão perigosas para transpirarem fora do Gabinete, que a relaxação do segre‑

do delas traria após de si a última ruína.

E havendo Sua Majestade posto a Sua régia e ilimitada confiança no embaixador

que se acha próximo a partir para a Corte de Paris, lhe manda declarar sem a menor

reserva que o estado em que deixa esta Corte (para pelo conhecimento dele dirigir

com acerto as suas negociações) é o seguinte.

Deve‑se prenotar5 como princípio certo que Sua Majestade não foi destinado

para sucessor deste reino; mas sim para fundador dele; tirando‑o do caos a que o

reduziram os oito anos da sempre deplorável enfermidade do Senhor Rei Dom João

V que Deus chamou à Sua Santa Glória.

A impossibilidade a que foi reduzido aquele grande monarca pela ocorrência do

temível e insuperável mal de que foram oprimidas as suas admiráveis e invejáveis

forças naturais e políticas no dia 10 de Maio de 1742, manifestando‑se a todos os

estados deste reino pelas muitas pessoas que depois daquele funesto dia se introdu‑

ziram no interior do Paço contra o que antes se tinha praticado, animou logo a

ambição dos diferentes partidos, de que se seguiram necessariamente as convulsões

que o corpo político do reino padeceu, por todos aqueles anos, e que depois deles

se procuraram sustentar pelos mesmos partidos, sendo entre eles os mais principais

e dignos de remédio os que abaixo se referem.

Primeiro partido

Abusando a Corte de Madrid da insuficiência do embaixador que nela residia da

parte do dito Monarca, servindo‑se nesta Corte de todos os meios que a malícia do

Ministério espanhol lhe pôde sugerir, e vendo inconsistente e dilacerado o Governo

deste reino, se animou a propor e teve arte para conseguir o tratado de limites das

conquistas, com cujos enganos meditou conquistar a América Portuguesa sem pól‑

vora nem bala, e o outro tratado de comércio com que também tinha conquistado

o continente do reino, sem remédio humano.

Achando pois El‑Rei Nosso Senhor as coisas neste deplorável estado quando se

lhe devolveu o governo do reino, foi necessariamente obrigado a desconcertar todos

aquelas perigosas medidas do Ministério espanhol, desviando a conclusão do tratado

5 Ocorrência que adianta cerca de duas décadas a datação sugerida no Dicionário de Antônio Houaiss.

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260 de comércio e procurando emendar nas instruções dos comissários que deviam exe‑

cutar o outro de limites, que ficara ratificado, os enganos que ele envolvia, tanto que

sem o romper cabia no possível.

Viu‑se o Ministério de Madrid pelas negociações ordenadas por Sua Majestade

a estes santos e necessários fins inibido para sustentar os enganos que tinha maqui‑

nado; viu‑se ao mesmo tempo tão compreendido como o costuma ser o coração de

todos os que enganam quando erram o golpe; viu‑se no máximo perigo de ser des‑

mascarado na presença da Senhora Rainha Católica, e por consequência perdido;

viu‑se, digo, enfim, nestes apertos: e movido pelos dois estímulos de sustentar os

enganos que tinha maquinado em benefício dos interesses de Espanha e de se cobrir

na presença da Senhora Rainha Católica, recorreu do meio de formar um partido

contra o Ministério de Sua Majestade para lhe tirarem na presença do mesmo Senhor

e da dita Senhora o crédito com que embaraçava aqueles perniciosíssimos intentos.

Segundo partido

Para assim o conseguir o Ministério espanhol se valeu ductilmente da mesma

insuficiência do Embaixador de Portugal na Corte de Madrid. Achou‑se o dito

Ministério na certeza de que o referido Embaixador não havia compreendido coisa

alguma das lesões enormíssimas que os referidos tratados envolveram. Tinha um claro

conhecimento da suma vaidade e desmedida arrogância do tal Embaixador. Sabia que

lhe tinha já introduzido a falsa crença de que os tais Tratados são para este reino de

grande utilidade e para a memória dele Embaixador da maior honra. E servindo‑se

com desteridade de todas estas armas capacitou inteiramente o tal Embaixador de que

o Ministério d’el Rei Nosso Senhor era seu inimigo e que como tal impugnava a sua

glória na execução e no efeito dos ditos tratados, movido pela inveja de os não haver

feito. De tudo resultou unir‑se o mesmo Embaixador de Sua Majestade com o

Ministério de Madrid que o tinha enganado e ainda enganava, para ambos em causa

comua cooperarem para a ruína do Ministério d’el Rei Nosso Senhor na presença da

Senhora Rainha Católica e nesta Corte, concitando para este fim o dito Embaixador

todos os seus parentes, amigos e apaniguados, como foi e ainda é manifesto.

Terceiro partido

Ao mesmo tempo em que estas intrigas ferviam em Madrid e em Lisboa, foi Sua

Majestade obrigado a ir reparando moderadamente as ruínas totais em que achou o

comércio do reino inteiramente absorvido pelos Ingleses, que naqueles últimos oito anos

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261calamitosos do reinado próximo pretérito acabaram de exaurir os últimos restos das

faculdades políticas deste reino. Conheceu perfeitamente o hábil inglês Keene, Embaixador

na Corte de Madrid, que as medidas que Sua Majestade ia tomando para regular o comér‑

cio de Portugal haviam de desconcertar precisamente as outras medidas com que

Inglaterra nos havia precipitado na sua sujeição. Havia este hábil negociante ganhado

todo o espírito do referido Embaixador, abusando também da sua insuficiência para o

mover conforme ele servia. E achando a seu favor estas disposições e as que lhe dava o

mesmo Ministério da Corte de Madrid, do qual ele abusava tanto quanto o dito Ministério

abusava do Embaixador de Portugal, lhe foi fácil unir‑se com o Enviado Castres, e arma‑

rem ambos outro partido com negociantes ingleses desta Corte, fomentados pelos paren‑

tes e amigos do mesmo Embaixador de Portugal, para se arruinar o Ministério de Sua

Majestade e com ele os meios de serem executadas as Suas reais ordens.

Quarto partido

Nestas escabrosas circunstâncias foi necessário que Sua Majestade optasse entre

os dois extremos: de um rompimento com Castela, se negasse a execução ao tratado

de limites das conquistas; e de expedir para o Brasil as ordens necessárias para a tal

execução. A necessidade de preferir o segundo extremo fez também indispensável

descobrir‑se o segredo do plano que haviam formado os religiosos da Companhia de

Jesus para abarcarem as duas Américas (Portuguesa e Espanhola) pela república que

nelas tinham estabelecido, e pelas colónias, que tinham plantado e prosseguido

desde o Maranhão até o Uraguai. Trabalharam estes religiosos infatigavelmente para

desfigurarem estas verdades aos olhos dos dois Monarcas, das duas Cortes e do

mundo. Foram porém repelidos e desmacarados com desenganos que tiveram na

Corte de Madrid pela despedida do Padre Ravago do confessionário de Sua Majestade

Católica e pelos outros decisivos desenganos de que as incomparáveis Luzes d’el Rei

Nosso Senhor estão [?] inacessivelmente superiores às pias fraudes das suas suges‑

tões. De tudo resultou formarem estes padres outro declarado partido contra o

governo de Sua Majestade, caluniando‑o em toda a parte, a fim de o enfraquecerem

pelo maquiavélico e detestável meio de lhe arruinarem a reputação, alma de todos

os estados e menina dos olhos de todos os Soberanos.

Quinto partido

Cada um dos partidos assim declarados procurou gerar da sua corrupção os

diferentes insectos que achou mais susceptíveis das suas impressões, assim nas

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262 Cortes estrangeiras como na própria Corte de Sua Majestade, fazendo‑os antever para

precipitá‑los que das ruínas do Governo do mesmo Senhor sairiam Secretários de

Estado de todas as espécies, de sorte que, achando as disposições que antes do suces‑

so se não podiam crer, conseguiram estes heresiarcas da honra e da fidelidade arrui‑

nar o Serviço de Sua Majestade nas Cortes de Roma e Paris. Tentaram Viana de Áustria

sem efeito. E chegaram à suma temeridade de formarem uma conjuração dentro na

própria Corte d’el Rei Nosso Senhor, composta das diferentes figuras que se tem

manifestado e de outras até agora ocultas.

Sendo pois esta a presente situação da Corte d’el Rei Nosso Senhor, já se vê que

o principal objecto de Sua Majestade e o primeiro e mais urgente entre os interesses

do mesmo Senhor é o de debelar todos os referidos partidos, destruindo e aniqui‑

lando a conjuração, que deles resultou, de sorte que não fiquem vestígios de seme‑

lhante peste dos quais possa tornar a renascer tão infame contágio.

A principal cura para o extinguir conhece com superiores Luzes El‑Rei Nosso

Senhor que é a dos remédios caseiros que sempre foram os mais eficazes em seme‑

lhantes casos: por uma parte, porque do castigo de semelhantes delinquentes resulta

excrementarem‑se os vassalos para se não atreverem a empreender semelhantes

insultos, e inibirem‑se os estrangeiros para não acharem quem os sirva a tão custoso

preço; e pela outra parte, porque vendo os ditos estrangeiros um governo unido,

consistente e sólido sem haver nele brecha por onde possam entrar as duas mortais

enfermidades da corrupção e da intriga, e perdendo assim a esperança de atacarem

a seu salvo com estas armas curtas e aleivosas, vêm a ficar na precisa necessidade de

declararem uma guerra para nos ofenderem; guerra que é sempre muito dificultosa

porque para se declarar é preciso combinar os interesses das diferentes Cortes em

quem a mesma guerra sempre tem influência necessária, como sucederia no caso em

que estamos a respeito das Cortes de Paris e de Viana de Áustria, se a de Londres ou

a de Madrid, em particular ou em comum, quisessem atacar‑nos à cara descoberta.

Donde resulta que o juízo mais provável que se pode fazer neste caso é o de que

com o castigo dos que entraram na tal conjuração e com a consolidação do Ministério

de Sua Majestade hão‑de cessar todos os efeitos daquela causa, perdendo os

Ministérios de Londres e Madrid toda a esperança de perturbarem o governo de Sua

Majestade com as intrigas que até agora fomentavam, e não se atrevendo a intentar

a outra via da força descoberta, pelo justo receio de que Sua Majestade recorra às

alianças d’el Rei de França e da Imperatriz Rainha e de que ambas estas duas grandes

potencias absorvam em si o comércio deste reino e dos seus domínios com uma

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263quase total e irreparável ruína do comércio de Inglaterra e do crédito público da

Bolsa de Londres, em que consiste a força principal da Grã‑Bretanha.

Porém, sendo axioma certíssimo e indispensável nas matérias de Estado que

nelas se devem sempre figurar os piores sucessos, para que metendo‑se estes em

linha de conta se tomem as medidas que respeitam ao futuro com uma inteira segu‑

rança; considerando‑se desde agora Espanha e Inglaterra unidas para nos atacarem,

se deve prevenir ou antes desviar este golpe na maneira seguinte.

Primeiramente se faz necessário cultivar muito séria e cuidadosamente a Corte

de Paris unindo a boa inteligência d’el Rei Nosso Senhor com El‑Rei Cristianíssimo

quanto possível for; ouvindo com bom modo as proposições que provavelmente

há‑de fazer a dita Corte na matéria do nosso comércio, porque é o único equivalen‑

te que tem para se compensar do que Inglaterra lhe usurpou no último tratado que

fez com Espanha pela mediação do Visconde de Vila Nova de Cerveira: e declinando

sempre a pretensão deste pretendido tratado até se descobrirem os sucessos que o

tempo futuro pode trazer consigo, para que no caso em que necessitemos da aliança

d’el Rei Cristianíssimo a possamos achar disposta pela negociação que se abrir ao

preço do comércio que connosco estão fazendo os Ingleses, e que em tal caso deve‑

rá ficar exclusivo a favor dos Franceses, ainda que não perpetuamente, mas pelo

termo limitado em que se ajustar. E digo que deve ficar exclusivo este comércio,

porque sendo o único equivalente que Sua Majestade pode dar pela aliança que lhe

for necessária, seria o mesmo dividir o seu comércio do que debilitar com o inte‑

resse do futuro aliado a aliança que com ele fizesse, e habilitar na divisão diferentes

potências para nos fazerem vexações, sem nenhuma delas ter interesse bastante para

nos ajudar a repeli‑las.

Finalmente tudo isto deve verter sobre dois princípios certos e infalíveis no siste‑

ma dos actuais interesses de Sua Majestade. O primeiro é que sendo o aliado mais

natural deste Reino o de Inglaterra não devemos deixar a sua aliança senão no caso de

extrema necessidade, em que há pouco o fez a Casa de Áustria; isto é, quando virmos

que não há na prudência política meio de evitar que este nosso aliado obre contra o

sossego e contra os interesses de Sua Majestade como se fosse um irreconciliável ini‑

migo; porque neste caso além de que as ofensas que vem da parte dos amigos só têm

a diferença de serem mais sensíveis e mais escandalosas, acresce que sendo tão vários

os sucessos dos Estados, é neles máxima inconcursamente6 seguida preferir sempre as

6 Castelhanismo. Inconcussamente.

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264 urgências presentes a todos os receios futuros; em razão de que nas primeiras insta

a necessidade pública que constitui Lei Suprema, e nos segundos favorece o espaço

do tempo para se dar lugar a que se busquem os meios de desviar os mesmos peri‑

gos que se temem, ainda sendo grandes.

O segundo princípio é o de que não havendo nas Cortes coisa que menos persu‑

ada e mais prostitua do que a necessidade, se deve guardar um profundíssimo silêncio

a respeito de todos os motivos que ficam ponderados e que no futuro puderem acres‑

cer para fazerem necessária a El‑Rei Nosso Senhor a aliança d’el Rei Cristianíssimo,

negociando‑se esta sempre de sorte que pareça (enquanto for possível) que condes‑

cendemos fatigados das grosserias de Inglaterra, e não que suplicamos destituídos de

remédio; porque neste segundo caso se costuma abusar da indigência para se gravarem

os socorros com tais e tão duras condições, que não são aceitáveis. Por isto será sempre

o melhor dispor as coisas de sorte que as proposições venham sempre da parte dos

Franceses, como é natural que hão‑de vir: 1.º pela grande inveja que França teve sem‑

pre de Inglaterra a respeito do comércio que faz em Portugal; 2.º pela vingança que

deseja tomar dos Ingleses haverem suplantado os mesmos Franceses do comércio de

Espanha no último tratado que fizeram com a Corte de Madrid; 3.º e enfim porque

com ambos estes dois urgentes motivos propôs já secretissimamente o Duque de Duras

ao Conde de Unhão na Corte de Madrid o tratado de comércio acima indicado, e se

faz verosímil que agora prossiga aquela abertura da Corte de Paris.

1756, Setembro, 13, Belém

Carta de gabinete (registo) de D. José i a luís XV.

A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 52.

Muito Alto, Muito Pedroso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.

Para que seja mais aceito de Vossa Majestade D. António de Saldanha da Gama,

Principal desta Igreja Patriarcal, que envio por meu Embaixador a Vossa Majestade,

lhe ordeno que ponha na Real mão de Vossa Majestade esta carta particular quando

chegar à Sua Presença. Como ele vai instruído da firmeza com que desejo cultivar a

estimação e amizade que professo a Vossa Majestade, espero que saberá expor com‑

pletamente estes meus sentimentos e me será muito agradável que ele saiba merecer

a aceitação de Vossa Majestade, a quem peço que acredite tudo o que ele exprimir

em meu Nome, e especialmente a respeito da constante e sincera vontade que con‑

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265servo de concorrer para tudo o que for da satisfação de Vossa Majestade. Muito Alto,

Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso Senhor

haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua Santa Guarda.

Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.

Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade

José

Sobrescrito

Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, El‑Rei de França e

Navarra, meu muito amado e prezado bom Irmão e Primo.

1756, Setembro, 13, Belém

Carta de gabinete (registo) de D. José i para a rainha de frança, Maria

leszczynska.

A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 52v.

Muito Alta, Muito Pedrosa e Cristianíssima Princesa, minha Boa Irmã e Prima. O

Principal desta Igreja de Lisboa Dom António de Saldanha da Gama, que mando

residir nessa Corte com o carácter de meu Embaixador, explicará a Vossa Majestade

os sentimentos da minha propensão e amizade e dos desejos que tenho que elas se

aumentem cada dia mais pelos ofícios do mesmo Embaixador. Ele o testificará assim

amplamente a Vossa Majestade, a quem espero que o façam tão bem aceito as suas

boas qualidades, muito própria do seu distinto nascimento. E que Vossa Majestade

creia tudo o que ele lhe significar da minha parte, principalmente no que respeita à

grande e sincera vontade que tenho de concorrer para tudo o que for do agrado de

Vossa Majestade. Muito Alta e Cristianíssima Princesa, minha Boa Irmã e Prima.

Nosso Senhor haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua

Santa Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.

Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade

José

Sobrescrito

À Muito Alta, Muito Poderosa e Cristianíssima Princesa, Rainha de França e

Navarra, minha muito amada e prezada boa Irmã e Prima.

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266 1756, Setembro, 13, Belém

Carta de gabinete (registo) da rainha D. Maria Ana Vitória a luís XV.

A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 53.

Muito Alto, Muito Pedroso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.

Havendo ordenado El‑Rei meu Senhor que parta para essa Corte D. António de

Saldanha da Gama, Principal desta Santa Igreja Patriarcal de Lisboa, com o carácter

de seu Embaixador, e devendo eu aproveitar todas as ocasiões que se oferecem de

reiterar a Vossa Majestade as expressões da estimação que faço da sua Real Pessoa,

encarrego o dito Embaixador de pôr esta carta nas Reais Mãos de Vossa Majestade,

significando‑lhe com ela de viva voz toda a extensão destes meus afectuosos senti‑

mentos, e dos grandes desejos que tenho de comprazer a Vossa Majestade. Muito

Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso

Senhor haja a Real Pessoa, Casa e todos os Estados de Vossa Majestade em sua Santa

Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.

Boa Irmã e Prima de Vossa Majestade

Maria Ana Vitória

Sobrescrito

Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, El‑Rei de França e

Navarra, meu muito prezado bom Irmão e Primo.

1756, Setembro, 13, Belém

Carta de Chancelaria (registo) de D. José i a luís XV.

A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 53v.

Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.

Eu Dom José por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves etc. envio muito saudar

a Vossa Majestade como aquele que muito amo e prezo. Mando assistir a Vossa Majestade

com o carácter de meu Embaixador a D. António de Saldanha da Gama, do meu

Conselho, e Principal desta Igreja Patriarcal de Lisboa. Ele exporá a Vossa Majestade os

grandes desejos que cultivo de que entre nós se conserve a constante harmonia que é

correspondente à nossa recíproca amizade. Espero que o mesmo Embaixador saiba

merecer o agrado de Vossa Majestade, pelas boas qualidades de que é ornado; e que

Vossa Majestade lhe dê um inteiro crédito em tudo o que lhe propuser da minha parte,

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267especialmente nas expressões que fizer da firmeza do meu afecto e da sincera vontade

que tenho de comprazer a Vossa Majestade. Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo

Príncipe, meu Bom Irmão e Primo. Nosso Senhor haja a Pessoa de Vossa Majestade em

sua Santa Guarda. Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.

Bom Irmão e Primo de Vossa Majestade

El Rei com guarda

D. Luís da Cunha

Sobrescrito

Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe Luís XV, Rei de França

e de Navarra, Meu Muito Amado e Prezado Bom Irmão e Primo.

1756, Setembro, 13, Belém

Carta de Chancelaria (registo) da rainha D. Maria Ana Vitória a luís XV.

A.N.T.T., MNE, lº 265 (M.f. 6401), fl. 54.

Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom Irmão e Primo.

Eu Dona Maria Ana Vitória por graça de Deus Rainha de Portugal e dos Algarves etc.

envio muito saudar a Vossa Majestade como aquele que muito prezo. Partindo para

essa corte com o carácter de Embaixador d’el Rei, D. António de Saldanha da Gama,

Principal desta Igreja Patriarcal de Lisboa, lhe encomendo exponha a Vossa Majestade

os verdadeiros sentimentos da grande estimação que faço da sua Real Pessoa. Espero

que a prudência e mais qualidades que concorrem no dito Embaixador, em tudo

conformes ao seu distinto nascimento, contribuam para lhe conciliarem o agrado de

Vossa Majestade, a quem peço acredite todas as expressões que ele lhe fizer da minha

sincera amizade. Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe, meu Bom

Irmão e Primo. Nosso Senhor haja a Pessoa de Vossa Majestade em sua Santa Guarda.

Escrita em Belém a 13 de Setembro de 1756.

Boa Irmã e Prima de Vossa Majestade

A Rainha

D. Luís da Cunha

Sobrescrito

Ao Muito Alto, Muito Poderoso e Cristianíssimo Príncipe Luís XV, Rei de França

e Navarra, Meu Muito Prezado Bom Irmão e Primo.NE

NegóciosEstrangeiros . N.º 15 Dezembro de 2009 pp. 257-267

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LINHAS DE ORIENTAÇÃOOs trabalhos devem ser inéditos e ter entre 10 a 30 páginas e deverão ser entregues no Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, acompanhados dos seguintes elementos:

– versão electrónica em Word para Windows;

– resumo até 10 linhas em inglês, eventualmente com 4 ou 6 palavras‑chave;

– versão final pronta a publicar, devidamente revista.

À parte, deverá ser entregue a identificação do autor, CV resumido, a instituição a que per tence, morada completa e contacto.

Quando os trabalhos incluírem materiais gráficos ou imagens, devem fazer‑se acompanhar pelos originais em bom estado, ou ser elaborados em computador e guardados em formato gráfico.

Em sistema de peer-review, os trabalhos serão apreciados pelo menos por um avaliador externo anónimo. Quando publicados, responsabilizarão apenas os seus autores. O envio de um traba‑lho implica compromisso por parte do autor de publicação exclusiva na revista Negócios Estrangeiros, salvo acordo em contrário. Os trabalhos enviados serão apreciados dentro de um prazo razoável e a sua devolução não fica assegurada.

GUIDELINES TO CONTRIBUTORSThe works to be published shall consist of between 10 and 30 pages and shall be delivered to the Diplomatic Institute of the Ministry of Foreign Affairs accompanied by the following:

– electronic version in Word for Windows;

– a 10 line abstract, with 4 or 6 key‑words;

– final version, ready to publish and duly revised for possible typing errors.

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