#15 Tédio

46
des umb iga n.º 15, janeiro de 2009 distribuição gratuita

description

15ª edição da Desumbiga, revista de um núcleo autónomo da AEFML.

Transcript of #15 Tédio

Page 1: #15 Tédio

desumbiga

n.º 15, janeiro de 2009distribuição gratuita

Page 2: #15 Tédio

2 d e s u m b i g a

aula de anatomia

feditorial

p3

temap5

janela de expressão

p17

babilóniap33

peregrinaçãop41

sorriso amarelo

sem página

Page 3: #15 Tédio

3d e s u m b i g a

editorial

tenHo medo de umbigos.Nem nos meus piores pesadelos eu podia prever isto. Eu sei que o proble-

ma é meu, mas desde pequeno que me lembro de ter medo de médicos e de ter pavor de umbigos. Caramba. Ainda hoje acho isto inacreditável.

A minha mãe contou-me que eu, quando era pequeno, fui levado para o hospital de Coimbra porque a médica achava que “os canais do meu umbigo ainda não estavam fechados”. Continuo a não saber o que raio isto significa. A minha mãe contou-me que os senhores doutores puseram-me nitrato de prata no umbigo. Perguntei à minha mãe o que era nitrato de prata. Ela explicou-me que era o mesmo líquido que estava nos rolos de fotografia. A minha imagem é de um médico a abrir um rolo de fotografia e... a deitar o nitrato de prata para o meu umbigo.

É claro que a minha mãe me contou o episódio de Coimbra por ter reparado que eu detestava que me tocassem no umbigo. Devia ter uns cinco anos e tinha pesadelos terríveis: sonhava que proas de barcos me penetrava pelo umbigo adentro; berbequins; naves espaciais, como aquela do Tintim, com antenas gigantes. E, mais tarde, a capa do CD dos Pink Floyd, The Dark Side of the Moon. O pavor que aquele prisma me provocava.

A psiquiatria é capaz de explicar isto. Mas vou ser bastante claro relati-vamente à psiquiatria: acho que é uma treta. A psiquiatria não existe. Já sei que vou levar nas trombas por dizer isto, mas estou aqui para vos apontar os meus argumentos.

O medo pelos médicos é fácil de explicar. Uma vez tive uma unha encra-vada e houve uma enfermeira que tratou de todo o estrago à moda antiga. É óbvio que à moda antiga significa - sem anestesia. Uma única anestesia. Graças à colaboração nesta revista, pude saber que uma pequena cirurgia daquelas leva, normalmente, duas anestesias.

Não é que eu seja contra a classe médica; nada disso. Tive um professor que, através de dotes de oratória brilhantes, nos demonstrou que o jornalis-mo conseguia ser mais importante que a Medicina. A esta altura, o pessoal que faz parte da redacção e que está a ler o editorial já está furioso por me ter concedido este espaço. Mas estejam descansados que vocês, médicos, continuam a ser a nata da sociedade. Ainda bem que conheço o grupo de pessoas que se esmera por fazer esta revista. De outro modo teria de dizer que, vocês, classe médica em geral, possivelmente poderiam ser o iogurte estragado.

Convém dizer-te que eu sou o tipo que faz o grafismo e a paginação desta DESUMBIGA. Por muito medo que eu tenha de médicos e de umbigos, sou eu quem, estranhamente, agarra nos textos da malta e os coloca nestas pági-nas, para que os possas ler. Espero que te agrade esta pequena oxigenação que fizémos no design da revista.

Era isto que vos gostava de dizer. Eu sei que quando penso em berbe-quins a furar-me o umbigo, normalmente tapo o meu umbigo com uma das mãos. Mas é impensável fazê-lo enquanto pagino. Por muito que me custe. |||

samuel FialHos a m u e l . f i a l h o @ g m a i l . c o m

FicHa técnica

redacçãoantónio caetanobernardo mourac. figueiredocarolina freitaselisa dawnflávia polidofrancisco coelhogui santoshugo bastoslara lopeslaura viegasmepmicaela santosmaurício martinspedro pereirapedro teias da egateresa martins

capasamuel fialho

graFismosamuel fialho[ilusionistas crónicos][email protected]

tiragem600 exemplares

impressãoeditorial aefml

contactosrevista desumbigaassociação de estudantes da facul-

dade de medicina de lisboa, hospital santa maria - piso 01

avenida prof. egas moniz1649-035, [email protected]@yahoogroups.com

desumbiga

Page 4: #15 Tédio

4 d e s u m b i g a

Page 5: #15 Tédio

5d e s u m b i g a

tema

a longa marcha de i. u notas sobre a síndrome amotivacional u ode a quem sofre o trabalho u não me (en)tédio

Page 6: #15 Tédio

6 d e s u m b i g a

era o último dia de aulas antes das férias de Natal. Na sala de alunos, as festividades televisivas do Natal dos

Hospitais davam a todo o dia um aspecto surrealista e kitsch. No serviço onde estava, seguíamos a efeméride pela TV no quarto dos doentes enquanto nos fingíamos

tema

a longa marcHa de i.

Page 7: #15 Tédio

7d e s u m b i g a

úteis a tirar uma história clínica. Estávamos naquele serviço desde

o início do semestre. O começo dos tão promissores anos clínicos. A partir de ali é que ia ser bom e íamos saborear o prazer da Medi-cina ensinada pelos sábios de bata branca.

Aprendemos depressa que a nossa presença era mais ou menos irrisória. Uma das turmas no nosso serviço sentava-se a manhã inteira numa mesa à entrada e de lá não os vi sair o semestre inteiro. Nós éramos sete para um tutor (e mesmo assim só víamos um doente por dia, o que fazia o pobre coitado suportar sete palpações abdomi-nais, sete auscultações…) e quando faltava um ninguém dava por nada. Uma vez faltámos todos e também ninguém notou.

A fAculdAde de excelêNciA.Vimos de tudo. Desde uma

doente com uma infecção urinária já diagnosticada que quando viu a médica berrou como se fosse ser torturada: “Não me bata no sítio, já sabe que me dói!” “Sim, sim.” E à primeira oportunidade o murro no local certo. E à segunda, outra. E à terceira também não se fez rogada. E assim, os petizes viram o que era o sinal de Murphy.

Éramos tantos alunos naquele serviço que nem fazia sentido. Cheguei a contar, com médicos e enfermeiros, quarenta e uma pesso-as de bata a tentarem caber todos nos quartos para a visita médica. Obviamente, nem um terço das pessoas ouvia o que se passava. Mas tínhamos de lá estar, mesmo que não ouvíssemos porque estáva-mos longe demais. O rei ia nu. Ou de bata, como preferirem.

Tudo era surreal, contra lógico. A prova que aquela conversa para atrasados mentais com que nos recebem no primeiro ano: “Vocês são os melhores, vocês são a elite

que cá conseguiu chegar.” é só para nos incharem daquele orgulho absurdo que sobe à cara quando as tias que não vemos há muito tempo e para as quais nos estamos a cagar, exceptuando o Natal e outras alturas em que nos possam dar dinheiro, perguntam: “Já sabes que especialidade queres?”. E assim defendermos todo aquele que for desta “elite” pelo corporativismo mais básico.

De um doente que era constan-temente internado por descompen-sação de uma das suas múltiplas patologias (e que sempre que entrava levava com sete alunos a tirarem-lhe a história, a fazerem o exame objectivo…) ouvi dizer “Não há uma maneira de mudar-mos a morada deste gajo para nos livrarmos dele?”. Mas não era uma piada ou um desabafo perfeitamen-te normal. Era uma sugestão, uma ideia, um plano.

Mas nessa manhã do Natal dos Hospitais, deu-se algo do mais extraordinário que já víramos. O episódio que passou a ser, entre nós que partilhámos esse estágio, o “ás de trunfo” quando se trata de demolir a pedagogia na FML e a ética médica prática.

I. era um doente russo. Não falava português. Cirrótico, com outras patologias que não me recordo. Estava internado desde que lá chegáramos. I. não estava claramente bem. Qualquer aluno do quarto ano o conseguia ver. Mas nessa manhã, não por milagre de Natal, mas por uma incompetência visceral, teve alta.

I., de camisa aos quadrados e calças de ganga, com uma fita a pendurar-lhe as chaves ao pescoço, caminhava para a sua alta. Babava-se. Babava-se mesmo muito, de forma confrangedora para quem via. I. demorou a manhã inteira a atravessar o corredor do

serviço. A sua longa marcha para a alta. Horas. Os pés rastejavam, arrastavam-se como se presos ao chão. Uma lentidão absurda e um olhar completamente perdido. Nós, especados, olhávamos incrédulos. As enfermeiras aproximavam-se e diziam “Então vai para casa, senhor I.? Ai, que bom! `Tá todo bonito!” I. não respondia, parecia mesmo nem ouvir. Babava-se sem parar.

E enquanto o serviço se pre-parava para o almoço de Natal, I. lá foi. Todo bonito. A babar-se. A espelhar, na sua longa caminhada, ao que isto chegou.

Hoje, quando ouço alunos do primeiro ano a gritar “Santa Maria, olé!” nas praxes ou a pomposidade dos professores que dizem, também eles babados, “esta casa” como se de uma Igreja se tratasse, lembro-me de I. arrastando-se. Nesta casa.

E assim são os anos clínicos. Também tive a sorte de ter bons tutores. Mas em pouco tempo vi tantas coisas inacreditáveis. E ouvi outras tantas. Acabou por se tornar normal (no sentido gaussiano).

Mais nojento é não poder dizer nada. Sermos obrigados a calar e a comer (são nossos superiores, não é?) e a muitas vezes ter que os de-fender e dar a cara por eles à frente dos doentes e familiares. É opres-sivo. Várias vezes violento. Dizem que tem de ser, que é inevitável e também seremos assim. Nojo.

I., soubemos mais tarde, morreu. Foi novamente internado depois de ter sido encontrado caído ainda dentro dos portões do Hospital. A sua longa marcha nem conseguiu fazê-lo sair desta casa, enquanto o Natal dos Hospitais fazia a sua caridadezinha. |||

avisenad e s 1 b i g a @ g m a i l . c o m

tema

Page 8: #15 Tédio

8 d e s u m b i g a

tema

foi por essas tardes de chuvinha nervosa, que passávamos no café a ou-vir Radiohead e Portishe-ad, que me emprestaram

«A Náusea». O existencialismo em edição de livro de bolso da Europa-América, lido e relido, com notas a lápis à margem. Havia um perso-nagem, o Autodidacta, que Sartre elegeu para representar o patético e o repugnante. Iniciara a leitura sistemática dos autores clássicos, por ordem alfabética, e assim passava os dias na biblioteca, de Balzac a Zola.

Na orfandade da adolescência restava-nos assumir o patético e o repugnante, porque a socieda-de para tal nos elegeu. E assim passávamos os dias a escrever diários, a desenhar clones suicidas de séries de animação japonesa e a desencantarmo-nos do mundo. À noite jogávamos Trivial Pursuit na máquina-de-jogo de um bar de jazz

que raramente tinha músicos ao vivo. Cada momento tornava-se a convalescença do anterior, ninguém melhor nos entendia dos que os existencialistas e ninguém melhor do que nós entendia o significado da expressão “tédio existencial”.

Nenhum dos nossos heróis fora muito além das duas décadas de vida, e neste tempo sem generais-sem-medo, o caminho era sermos os heróis de nós próprios. A brevidade não era uma preocupação, porque cada tarde demorava mil anos a pas-sar. O tempo era como uma torneira a pingar água fria na minha nuca.

Talvez pudesse ter passado as tardes e as noites a ler sobre a experiência chilena, a guerra civil espanhola ou as realidades e ensi-namentos da revolução cubana, não fora a ilusão patética de construir em abstracção um sistema político perfeito, quiçá um remake do sonho anarquista, sem líderes despóticos, vicissitudes consumistas, dispari-dades e outros disparates. Depois do submarino amarelo e da nossa querida revolução, a solução para a liberdade e para a paz pareciam ser as festas de trance, como se fôsse-mos só a ressaca da heroinomania

e do cavaquismo oligofrenizante da geração que antecedeu a nossa.

Ainda hoje tenho a inquietante sensação de ter perdido o melhor do século XX. Tão divertido me parece usar os espartilhos e vestidos armados do tempo da monarquia como descobrir os jeans, tanto fazia ter tido tranças de menina como rastas de afrocentrista, matar o rei ou ser maoísta quando estava na moda sê-lo. Mas até para o grunge cheguei atrasada, o Kurt Cobain era um matulão com uma guitarra que fazia uma chinfrineira sem causa aparen-te. Pelo menos para uma miúda de cinco anos preocupada com as suas dificuldades em desenhar os dedos da mão humana com a devida pre-cisão para quem ainda está indecisa entre um futuro promissor de prima ballerina ou de pintora realista. |||

teresa martinst m a rt i n s @ g m a i l . c o m

notas sobre a síndrome amotivacionalCecilia was the first. Therese took sleeping pills. Bonnie hung herself in the basement. Mary stuck her head in the gas oven,

and Lux died of carbon monoxide poisoning by leaving the car engine running in the garage.

Page 9: #15 Tédio

9d e s u m b i g a

tema

E se ninguém sofresse?

ode a Quem soFre

Não havia religião!Se ninguém sofresseToda a prece seria em vãoMas, oh! Não teríamos a quem dar a mão...E não haveria idiota que a desse!!

Não havia vontade para fazer o que ninguém fezQuem tivesse dois braços teria doisQuem não tivesse três, não teria três!À quarta é que era de vezE depois à quinta, e à sexta... Era na próxima pois!

O horizonte seria sempre o mesmoTal e qual, verdinho e recortadoCombina bem com o meu cinismoHeróis, vitórias, tragédias e comédias, caía tudo no abismoAté o fado enfadava e se punha de lado!

“Coração despedaçado, o que é isso?Que fazer com este e aquele pedaço?”Dar? Roubar?... Ninguém alinhava nisso!O amor era um folie tolo e castiçoMas ninguém dava o nó por sentimento tão lasso

Conversar, conversar para quê? Et porquoi?A paciência colava-se a cada momento“A mulher vai boa? E a amante? Quê? A trois?”Mais cedo ou mais tarde seria só bonjour e au revoirE o tempo mais lento, sempre mais lento...

A pintura seria natureza morta por inteiroToda a música escorregava dez oitavas abaixoNa rima as letras perdiam-se pelo meioLá se ia a arte, pois tudo se via em tom ligeiro...E o que seria desta folha e do que me queixo?

Se ninguém sofresse Não havia gratidão e ingratidãoNão havia boa vontadeNem vontade para ser boa pessoaNão havia ternuraNão havia curaNem doençaNem quem acudaNem pedido de ajuda

A pouco e pouco as pessoas de bem desapareciamE as de mal e menos bem, as que não sofriamEssas... Nunca mais sorriam.|||

antónio caetano

Page 10: #15 Tédio

10 d e s u m b i g a

tema

O trabalho liberta, diziam em Auschwitz.Liberta? Aliena. (Pílula azul)O trabalho escravo do capital, a quem sustenta, só cria o Trabalhador que não sonha, apenas produz. Produz a vida, de viver consumindo, consumindo o produto.

A democracia vigente actua paralelamente.Dos seus representantes fala-se na TV,No real é interdita, como inscrição proibida.Vivem-se eleições, mas não há manifestações.

A moral do mérito vive desta política,E difamam-na, para que não se descontrole.Homens da ciência desdenham-na, como alienaçãoE não se apercebem da sua própria prisão.

O humanista consequente não tenta humanizar sozinhoSe o ser material nos liga, não somos nunca livres, únicos.Dependemos, precisamos, dividimos tarefas para sobreviver.Enchem-se de mérito alguns, pela parte que desempenham.Detêm benefícios, vida, prazer, baseados na subjectividade criadaarbitrariamente.

E controlam a comunicação de toda a comunidade,A realidade.

Parar para pensar. Ouvir. Falar. Decidir em conjuntoTornar a dividir as tarefas da vida. Planificar.A economia desenvolve-se na medida da vontadeE esta, livre, tem mais com que se ocuparPara além do trabalho.

Por isto, a revolução!

|||

Hugo bastos

o trabalHo

Page 11: #15 Tédio

11d e s u m b i g a

tema

então é sobre o tédio. Que conveniente. Uma transmissão de pensa-mento entre todos os entediados, desencan-

tados, aborrecidos, frustrados e de uma forma geral anti-“beautiful people” que arrastam os passos por aí.

Vamos todos, falar sobre tédio. Sobre cansaço. Neura. Vómito. Rostos fechados. Sorrisos que são esgares forçados. Olhos baços. Soluços engolidos. Ilusões desfeitas. E refeitas. E desfeitas. E refeitas. E desfeitas. Chega! Não me prome-tam mais vezes. Não nos prometam mais vezes. Façam-no em silêncio ou não o façam…em silêncio. Não prometam que não prometem para depois prometerem. Não prometam que agora que prometeram vão cumprir. Não digam que quando prometeram não mentiram. E que agora, que não podem ou não que-rem cumprir, gostariam de poder cumprir. E não prometam outra vez. Não prometam que nunca mais vão faltar às promessas. Porque vão. E vocês sabem disso. E nós também. Que tédio. Todos sabem e todos fingem que não sabem.

Estou cansado. De muita coisa. De tudo e de nada em concreto. De me levantar de manhã. Com a sen-sação que a noite não passou. Ou que a noite é tudo o que resta o dia todo. De repetir gestos entediados. Duche. Goles de sumo (que fazem doer ao atravessar o esófago porque o estômago está cansado de sumo). Duas voltas à chave. Passos conta-dos até ao comboio. Jornal gratuito

desfolhado. Para quê ler mentiras logo de manhã? Comboio (ou lata de sardinhas?) a baloiçar gente entediada. Cansada ao raiar do dia. Como não estarão daqui a 8 ou 10 horas? Emprego. Hora de almoço. Emprego. Clica, fecha, abre, clica, tecla, tecla, tecla, fecha, levanta,

senta, senta, levanta. E tu não me sais do coração negro. Da alma contorcida. Clica, fecha, abre, clica, tecla, tecla, tecla, fecha, levanta, senta, senta, levanta. Mais um sus-piro fundo. Comboio a baloiçar para o outro lado. Noite. Passos contados até casa. Duas voltas à chave. Não

há mensagens a perguntar como foi o dia. Já não há. Não há telefone-mas cheios de saudades. Já não há. Não há segundos contados até ao fim de semana onde te esperava com ansiedade, para dias de felici-dade pura. Deixou de haver. Talvez para sempre.

Estou cansado. De teorias. De argumentos. De conversa redonda. Não estão? Entediados de serem importunados pelas mesmas coisas de sempre? A publicidade nas caixas de correio lá do prédio? Com super hiper mini maravilhosos trabalhosos, gloriosos descontos? Do spam na caixa do e-mail? De verem todos os dias o e-mail? De não fala-rem com as pessoas? De teclarem o dia todo em MSN, SMS e mais uma porrada de siglas estranhas que resumem serviços estranhos que nos “aproximam”? Eu acho que nos afastam. E afastam tanta coisa boa do coração das pessoas. Queres vir ter comigo? Não, mando SMS. Não queres falar pessoalmente? Hoje não me apetece, vem ter ao MSN. Então, nunca mais disseste nada! Eh pá, temos trocado SMS…contei as novidades por MSN…mas se quiseres, manda-me um e-mail.

Não estão entediados de ligar a televisão e verem as mesmas notícias de há 20 anos? Na política nacional o partido A discorda do partido B. Mas o B diz que quando o A estava no governo concordava com o que o partido B está agora a fazer. O C, o D e o E, falam sempre mal…nunca estão no governo portanto falam sempre mal. Na política internacional, há

não me (en)tédio

Page 12: #15 Tédio

12 d e s u m b i g a

tema

guerra onde sempre houve guerra. Há fome onde sempre houve fome. Um ex-militar toma o poder numa espécie de território pseudo-nacional e enriquece à custa dos recursos desse país com a ajuda do Ocidente desde que toda a gente (menos os que interessam) saiam devidamente compensados. Depois as coisas comuns. O tiro não sei onde. O acidente de carro não sei quê. A rede de pedofilia desmon-tada. Os pacotes de droga deste mês apreendidos. Os impostos. Os miúdos mal comportados. O stress. Os gordos. Os magros. O Benfi-ca que perdeu. O FC Porto que ganhou (agora é assim, há 20 anos era o inverso, mas pouco importa). Novelas sobre vidas que não exis-tem, mas que toda a gente queria ter. Desligamos tudo. E deitamo-nos na esperança que isto seja um pe-sadelo. Que possamos abrir os olhos no outro dia e ela diga: “O que foi?” “Nada…estava a sonhar”…e ela nos

abrace como só ela sabe, fazendo-nos correr lágrimas teimosas pela cara.

Ah que tédio! Que tédio de sonharmos sonhos a prazo. De não sabermos o que queremos fazer. De não podermos fazer o queremos fa-zer. De todas estas regras e prisões. Deste “aceitar as coisas como elas são”. Eu não quero aceitar as coisas como elas são! Não quero que me digam, foi bom enquanto durou. É melhor teres tido pouco tempo do que nunca teres tido! Mas temos de nos contentar com migalhas do pão que nos vendem e ainda sorrir pelo facto das migalhas nos terem caído?

Estou cansado. De gente que pensa que sabe o que é a vida. De gente que me diz que não pode ser. De filmes com finais felizes. De an-ti-depressivos. Não estão cansados de anti-depressivos? De sessões de terapia dadas por gente que te leva o dinheiro em troca de uma hora de

pachorra para ouvir o teu lixo. Não estão cansados de dinheiro? De ser tudo pelo dinheiro? E de centros comerciais? Estou farto de centros comerciais. Desta vidinha ridícula. De pagar impostos. De ter de cozi-nhar. De ter fome. Estou cansado de todos os dias ter que matar a fome. Se eu não me apetecer matar a fome o meu corpo recusa-se a funcionar. Estou cansado de ter de cumprir ordens de toda a gente. De ter de obedecer a mim mesmo. Porque é que não ficaste? Porque é que não gostas de mim como dizes querer gostar? Porque é que gostas de quem não deves? Porque não podemos escolher de quem have-mos de gostar? Porque é que não podemos escolher nada? Que tédio ter de fingir que podemos fazer as nossas escolhas. Porque não choras com a minha ausência? Porque raio não choras com a minha ausência? Que tédio não podermos amar…não podermos se amados…que tédio

termos de fingir que não queremos amor…estou cansado que me digam que posso amar, para depois me dizerem que o tempo de poder amar acabou…estou cansado de não poder ser bom. Os Bons são Parolos. Os Bons dão-se mal…estou cansado de ser mau. De ter de ser mau para não sofrer…não estão todos cansados de sofrer? De não poderem ser quem são? Ah…de que fala este gajo? Eu sou quem quero…claro que sim…continuem a repetir isso todas as noites ao espelho. Continuem a repetir, até fingirem que acreditam…

Quero ser Teias da Ega…quero ser João da Ega…quero ter forças para um dia, com quarenta anos, correr atrás de um táxi no Rossio…e acreditar genuinamente que o con-sigo apanhar. Quero que voltes…mas que tédio…como vou funcionar enquanto não voltares? Estou can-sado de estar cansado. Amo-te. |||

pedro teias da ega

Page 13: #15 Tédio

13d e s u m b i g a

levantados do cHão

o direito a não trabalhar

sa

mu

el f

ialh

o

Page 14: #15 Tédio

14 d e s u m b i g a

o direito a não trabalHar

(ou “O Direito à Preguiça”1 adaptado)

levantados do cHão

Page 15: #15 Tédio

15d e s u m b i g a

e se o tédio desta vida monótona, casa-tra-balho-casa, revoltasse os personagens deste infeliz quadro, ao ponto

de se recusarem a trabalhar? Quem disse que o trabalho dava saúde e que a preguiça é um pecado?

Em primeiro lugar, a quem será que interessa este “fervor pelo trabalho”, esta ideia propagada que gastando todas as nossas energias vitais, seríamos moralmente menos condenáveis?

Strindberg, que se afirmava “so-cialista, niilista, republicano, enfim (…) tudo o que possa ser contrário aos reaccionários”, defendia, no seu livro “Breve Catequese para a Classe Oprimida” que a Moral não era mais que um “sentimento de rectidão, imposto pela classe supe-rior, com o único fim de conduzir a classe baixa a um modo de vida sossegado”. Toda a gente sabe que a moral em si mesma não é uma, mas várias, condenadas a serem o reflexo de uma determinada so-ciedade, num determinado período histórico, ditadas por quem detém a força e o controlo dessa mesma sociedade. Se assim não fosse, como se justificaria ser moralmente aceitável para os gregos existirem escravos e hoje em dia isso ser tão claramente condenável?

Pois então, a Moral que vigora hoje em dia é aquela que nos diz que um cidadão responsável cons-trói a sociedade com o seu traba-lho. Alguém condena o trabalhador, que passa o dia inteiro na fábrica, ou na caixa de supermercado, sem tempo para se distrair ou para ver os filhos, se isso implicar um parco aumento no salário ao fim do mês?

“Um grande número de pessoas sem bens próprios, sempre à míngua, são obrigadas a trabalhar como animais de carga, a desempe-nhar tarefas que não lhes agradam nada, para as quais são empurradas pela tirania da necessidade, tirania devastadora, demente e degradante. (…) Da sua força colectiva a huma-nidade retira uma grande prosperi-dade material enquanto que, por si, o homem pobre não tem importân-cia absolutamente nenhuma. Não

é senão o átomo infinitesimal de uma força que, longe de o respeitar, o esmaga, além de que o prefere esmagado, porque assim será mais submisso”2.

Para além de contribuir para a manutenção da sociedade, o homem que necessita de trabalhar por falta de dinheiro, e que o faz afincadamente por que assim o educa a Igreja, o Governo, os Em-presários, renega, ao mesmo tempo, à sua condição de ser humano, de ser pensante, capaz de conceber ideias e transformá-las em novida-des. Renega à sua humanidade, ao não fazer nada mais do que tentar manter-se vivo, seja a Vida algo interessante ou não. Tudo para “extirpar a preguiça e curvar os sentimentos de orgulho e indepen-dência”1.

Em segundo lugar, já pararam para pensar sobre a necessidade de trabalhar? Ou seja, o que acontece no mundo por existirem pessoas a trabalhar?

Facilmente responderão que o trabalho produz os bens essenciais à sobrevivência dos indivíduos, que sem ele a sociedade não subsistiria. Concordo. Mas será necessário tan-to trabalho suado de muitos, quan-do tantos estão desempregados (em Portugal, a taxa de desemprego no último trimestre de 2007 era 7,8%) e outros vivem do trabalho alheio?

Eu diria que não. Vivemos na Era da Técnica, quase tudo é possível realizar por máquinas e, havendo tantas mãos para trabalhar, facilmente se reduziria o desemprego e o horário semanal de trabalho, repartindo as tarefas. Não sou Cristã, nem acredito em Jeová, mas para aqueles que neles acredi-tam, já dizia Paul Lafargue “Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade”.

Porque é que é importante manter pessoas desempregadas? Se acham que é uma impossibilidade, porque as empresas não poderiam contratar o dobro das pessoas, para trabalharem metade do tempo, mantendo os salários iguais, pois

não teriam lucro, pensem melhor.Desde que existe propriedade

privada e pessoas a ganhar dinheiro à custa do trabalho de outras, que o salário não é mais que o dinheiro necessário para manter vivo o trabalhador. Mesmo que variem as horas de trabalho executadas, não varia esta necessidade. Se não houvesse trabalhadores (ou seja, se eles morressem porque o salário não lhes bastava) não havia transformação das matérias-primas em produtos consumíveis. E isso não interessa ao dono da fábrica ou da empresa.

O preço da mercadoria provém do tempo de trabalho socialmente necessário para a produzir, que só é passível de ser reduzido quando existem avanços técnicos que permitem fazer o mesmo produto em menos tempo. Ora, se um trabalhador precisar de 500 euros para sobreviver, tem que produzir o equivalente em trabalho para o patrão, por exemplo 500 euros em parafusos (que este vende), contabi-lizando o custo das matérias-primas e das máquinas necessárias. A questão que importa é que a pro-duzir esses 500 euros mensais ele só precisava de trabalhar 30 horas semanais. No entanto, ele trabalha 35 ou 42 horas. Para quem vai esse excesso de horas de trabalho? Para o patrão. E a isto chama-se lucro (não, o lucro não é o valor acres-centado ao produto final, depois de ter sido estabelecido o seu preço de produção).

No final, facilmente se com-preende porque é que se insiste tanto nesta ideia de que é preciso trabalhar…

E o desemprego mantém-se porque, mantendo pessoas ne-cessitadas de trabalho para terem comida e roupa, se aproveita a lei da oferta e da procura, aplicando-a aos trabalhadores como se fossem mercadorias. Quem tem trabalho, sabendo que pode ser despedido e substituído por outro, não con-testa o baixo salário, assim como quem precisa de emprego aceita qualquer condição (porque existem outros tantos a oferecerem-se para trabalhar).

“Trabalhem, trabalhem, proletá-rios, para aumentar a fortuna social e as vossas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, tornando-vos mais pobres, tenham mais razão para trabalhar e para se-rem miseráveis. Eis a lei inexorável da produção capitalista”1.

E por tudo isto, não deixa de ser irónico que, aquele que gasta as mãos no fabrico de toda a espécie de bens de consumo, seja aquele que menor acesso tem a esses produtos.

Para quem acredita que isto são tudo politiquices, aqui fica um ex-certo da peça “Comida”, de Miguel Castro Caldas, que esteve em cena o ano passado, no Bar do Teatro Maria Matos:

“Eles não me dão nada.Dão-me tudo o que eu preciso.

Dão-me comida.Mas isso não é dar. Porque para

dar tem de se perder não é assim, e eles não perdem nada ao me darem tudo o que eu preciso.

Só se dá quando se perde. É uma conta simples.

De subtrair. Vai de um lado para o outro.

O dador perde a coisa dada.Ora, eles quando me dão, em

vez de perderem, ganham, eles ganham quando me dão tudo o que eu preciso, porque sabem que se demorassem muito tempo a dar-me comida eu podia a pouco e pouco ir mudando, e eu por mim não quero mudar, mudar para quê, mudar é ficar calado.

É dar à boca num filme mudo, numa casa cheia de mobília.

Eu não preciso de mais nada, desde que me dêem comida.

Pronto, também umas roupas para o frio.” |||

Flávia polido

f l av i a p o l i d o @ g m a i l . c o m

(endnotes)1 O Direito à Preguiça, Paul

Lafargue, 1883, Prisão de Sainte-Pélagie.

2 A Alma Humana, Oscar Wilde.

levantados do cHão

Page 16: #15 Tédio

16 d e s u m b i g a

a pensão parreirinHa está FecHada Há várias décadas. as suas paredes arruínadas contam milHares de Histórias de viajantes perdidospor portugal.

conta-nos a tua viagem, na pensãocinco estrelas para os teus textos.

Page 17: #15 Tédio

17d e s u m b i g a

janela de expressão

o bobo u des1bigo-me u vagabunda u as incríveis aventuras de greardo serraltaum só tom u sem título u o tecido do silêncio humano u música ensurdecedora u alice

sa

mu

el f

ialh

o

Page 18: #15 Tédio

18 d e s u m b i g a

janela de expressão

Tinha um ar estranho e servilAcocorava-se junto ás fontes escurasJunto á água lavadaDos rios que espreitam Não tinha rugas em torno dos olhosMas círculos concêntricos na ponta das pálpebrasUsava uma chama e um cigarroPara enganar o sol que nascia e depois se punhaA noite que crescia de um grito e com o silêncio se iaTinha abandonado os palcosA própria arte o expulsaraEle era a arte sem a arte O vício sem o vícioA realidade sôfrega e sozinha Os sonhos embalavam as cinzasQue derretidas enchiam o chãoE a ausência do dedo

Não lhe fazia a confusão dos demaisSentava-se tantas vezesA lamber as suas feridasQue a própria alma Era uma desorientação de fibras Uma mescla de força cosidaViu uma vez a tristezaMagra, A soluçar baixinhoAvisou-a que tinha alergia a tudo quanto tivesse salCorreram para o desertoEla morreu sem sedeE ele de sede.|||

mep

[Março de 2008]

o bobo

sa

mu

el f

ialh

o

Page 19: #15 Tédio

19d e s u m b i g a

janela de expressão

Vou-me embora… que sou de loiça.

Vou chegar à beira daquele Mundo e atirar-me todo por ali abaixo. E porra! porra! porra! se assim não me quebrar. Já não vis-lumbro outra forma de o conseguir.

O meu problema foi acordar tarde. Muito tarde. Se demasiado ainda não sei. Passei um quarto de século à seca no quarto. Primeiro uma infância sem “zás pás trás”, uma meninice aborrecida que nem fez por merecer um tabefe… E ago-ra bem que me apetecia um estalo valente! Que me quebrasse.

Proponho-me então recomeçar hoje mesmo e por isso vou-me embora. Vou andar a nascer por todo este Mundo que tenho aqui à minha beira. Espera-me um parto

difícil, mas não quero cá epidu-rais. Quero as dores todas! “Faça força, força!” Ai faço pois faço, com prazer, oh Dr.! Toda a força que for preciso. Para me quebrar.

O meu bilhete de identidade renovadinho diz-me que já passei anos e anos, o que para mim é no-vidade. Tudo me pareceu o mesmo dia, repetido milhares de vezes, na minha constante espera de um clique, o clique. Sempre a mesma ânsia por um estalido que me abris-se ao Mundo. Caramba, que ideia estúpida; até me envergonha. As pessoas não têm interruptores! Ou pelo menos premir o meu umbigo não resultou.

Vou-me embora… que regresso gente. |||

micHael Karneiro

desumbigo-me

Page 20: #15 Tédio

20 d e s u m b i g a

janela de expressão

sou vagabunda. Não sou, como gostaria de ser, vagabunda dos tempos antigos. Aliás, vagabundo, que ser

mulher nos tempos antigos era coisa aborrecida e, pior, degradan-te; fazia rugas a mais no coração e circunvoluções a menos no cérebro. Não, para sofrer degradação, que a sofram os pés, que muito caminham, que a sofra a pele, que muito Sol apanha.

Caminhar assim, vagabundo dos tempos antigos, sob o Sol escaldante, sob a chuva fria, sob a neve gelada, fustigado pelos ventos do Norte, acarinhado pelos ventos do Sul. Dar grandes passadas montanha acima, montanha abaixo, através da planície, pelas terras de ninguém, que não há gente que chegue para um Mundo tão grande, dormir numa cama de musgo, num leito de palha, num casebre abandonado, num celeiro de agri-cultor solidário, Dá-me guarida esta noite, Dou, parece pessoa honesta, Obrigado, Fique esta noite, fique o Inverno todo, Que posso fazer, Cor-te lenha, que o frio aperta. Caçar de vez em quando, roubar um pomar quando calhar, tomar banho quatro vezes por mês, mudar de roupa duas vezes por ano, quando puder curtir peles e coser tecidos que dêem para isso. Caminhar, assim, vagabundo solitário, correndo todas as cidades, percorrendo todos os caminhos, conhecendo gente aqui e ali, visitar, de vez em quando, velhos amigos, que são mais conhe-cidos que amigos, Não os vi muita vez, não estive com eles muito

tempo, Caminho sozinho, caminho mais que descanso, Se calhar é quando caminho que descanso, se calhar descanso apenas quando morrer. Caminhar, assim, nos tem-pos antigos, metendo o nariz em todas as fendas, erguendo todas as pedras, não me demorando o tempo suficiente para criar raízes em lado algum, não escavando nunca o solo em busca do que se esconde por baixo.

Mas não, eu sou apenas vaga-bunda – dos tempos modernos, ain-da por cima. Não posso andar por aí a caçar, a dormir onde me ape-tecer, a meter-me a corta-mato e a seguir os trilhos que quiser, agora tudo tem dono, o que não tem dono é de todos mas não se pode mexer, se mexer descobrem-me logo, há-de haver sempre impressão digital ou vestígio de ADN que me denuncie. Não, a minha vagabundagem é pseudo-vagabundagem, tenho tecto, tenho cama, tenho mesa, O que é queres mais, Não quero nada, Tens muita sorte, Tenho. Sou vagabunda a fingir. Vagabundeio, fingindo, em cidades desconhecidas, ou finjo, vagabundeando, em cidades novas. Gosto mais delas quando têm rio ao meio, rasgando-as, faz lembrar fecho éclair em casaco de remendos. Umas vezes, o rio brilha e parece dizer, Sim, humanos, construam as vossas cidadezinhas nas minhas margens à vontade, quando me apetecer seco, ou então saio borda fora, aí logo vêem quem é que manda, ou recuo, enganando-vos, e volto como uma vaga enorme e engulo-vos a todos, e aí sim, aí saberão qual é o vosso lugar.

Outras vezes, o rio brilha e parece dizer, Anda aqui para o pé de mim, senta-te aqui na minha margem, eu embalo-te no regresso a casa, não sabes onde é, eu levo-te lá, pode ser aqui, pode ser longe, havemos de lá chegar. O brilho é o mesmo, o rio também e, como todos os rios, tem dúvidas, só ele saberá o que lhe passa pela cabeça e que pen-samentos navegam nas suas águas inconstantes.

Pior de entender que o rio são os humanos, não se percebe o que pensam, não se percebe o que querem, mais vale não perguntar nada e observá-los apenas, quais formigas, e imaginar a partir das rugas dos seus rostos a dor que os consome e a partir do brilho dos seus olhos a alegria que os move. Aquela senhora ali, anafada, de lenço preto, tem vários filhos, um

deles morreu, foi uma mota que o levou, essas coisas modernas, essas coisas do Diabo, olha o olhar que ela lança às estradas, parece dizer, A mim não me levam, não, mas é capaz um dia de se deixar apanhar de propósito. Aqueles dois ali, enlaçados, não se percebe onde começa um e acaba o outro, ou é ao contrário, ou são os dois um, um ser único com quatro olhos, olhos que olham para a Lua e se admiram porque nunca a imagina-ram tão grande como está hoje, Isto é impressão ou quê, é impressão de bicho com quatro olhos, para todos os outros bichos a Lua sempre foi desse tamanho, e isto é quando olham para a Lua, é quando não estão a olhar um para o outro, aliás, para si próprio, que aquilo é bicho único, tem é quatro olhos.

Caminho entre essas pessoas

vagabunda

Page 21: #15 Tédio

21d e s u m b i g a

janela de expressão

que não conheço e que não me conhecem a mim, oiço bocadinhos das suas conversas que entendo mal, porque caminham nos passos de outra língua, porque são condi-mentadas com outro sotaque, por-que, simplesmente, não me demoro que chegue para perceber de que falam, e elas também não percebem que conversas discorrem dentro da minha cabeça, tudo o que elas percebem e tudo o que eu percebo é Hola, É por aqui, Oui, Arigato, No problem, Ciao, Auf wiedersehen. Caminho por ruas que nunca antes vi e às quais jamais voltarei, ruas que cheiram a peixe frito, a gases de escape, a bolos de chocolate, a fumo, a ananás, a suor, a pão acabado de sair do forno, a vinho, a chuva, a churrasco, a carros, a mijo de gato, a merda de cão. Caminho por entre, através de, por cima de,

por baixo de, no meio de, lado a lado com, fingindo que sou parte de tudo, fingindo que não sou de lado nenhum, fingindo que pertenço ali, fingindo que não me importo de não pertencer.

Que diabo, se quiser pertencer, pertenço, não é mentira alguma. Ruas há-as por toda a parte, em qualquer parte do Mundo há ruas que serpenteiam e ziguezagueiam, umas que se esticam, outras que se desenrolam, umas que sobem, outras que descem, todas vindo de algum lado, todas indo dar a lado algum, provavelmente Roma, é o que dizem. Em toda a parte há pessoas, todas elas falam, todas elas pensam, todas elas sentem. Falamos em línguas diferentes, mas todas utilizamos vogais e consoan-tes. O tom da nossa pele escurece e embranquece, mas o sangue é

sempre vermelho. Os curto-circuitos que me congestionam o cérebro são iguais aos que congestionam o cérebro daquele árabe. As hormo-nas que andam aos saltos dentro do meu organismo são do mesmo tipo das hormonas que andam aos saltos dentro do organismo daquele japo-nês. Quando nos apaixonamos, os químicos são os mesmos e a agonia também. Quando morremos, é triste em todo o lado, há esperança em todo o lugar, vamos todos para o mesmo sítio, provavelmente para o Universo, é coisa engraçada, no Universo já nós estamos, talvez isso de morrer seja mentira para nos fazer correr contra o tempo, talvez isto de viver seja sonho de alma penada. Somos todos iguais; só se nota alguma diferença (coisa pouca) quando se chega ali para os lados dos chimpanzés, mas até esses enganam, faz parecer que são pes-soas, ou fazem elas parecer que são chimpanzés. Posso ir mais longe e dizer que todas as pessoas que falam, pensam e sentem são iguais a todas as ruas que serpenteiam e ziguezagueiam, não é mentira alguma. Tudo isso são electrões e quarks, tudo isso é Universo, todo o Universo é electrões e quarks, e outras partículas que tais, é coisa engraçada, tudo é feito da mesma coisa, dizem que essa coisa é Deus, tenho pena desse Deus, todo Ele é electrões e quarks, todo Ele se perde em orbitais atómicas e todo Ele anda a colidir consigo próprio. Não admira, pois, que Ele não faça sentido nenhum, que nada do que Ele criou faça sentido algum, que nada do que Ele é parte e nada do

que Dele é parte não faça qualquer sentido. É tudo aleatório.

Aleatória estou eu, perdi-me nas palavras deste texto como me perdi nas ruas do Mundo, se é que alguma vez estive achada, se é que alguma vez alguém esteve, se é que isso é possível. Sem sentido estou eu (nem direcção, já que falo nisso), não venho de lado nenhum, não vou para lado nenhum, não tenho princípio, não tenho fim, nem o meu texto tem introdução ou conclusão. Eu estou tudo e não sou nada, tal como o meu texto fala de tudo e não diz nada, ele e eu so-mos um, andamos de mãos dadas, misturando sangue e palavras, suor e letras, vagabundeando por esse Universo fora, esse Universo vaga-bundo, esse tudo que não é nada.

Calcorreio, confundida e con-fundindo, as ruas das cidades e os caminhos dos campos, complicando o que devia ser simples. As coisas não foram feitas para ser pensadas, mas eu acho que foram, só não fo-ram feitas para serem solucionadas e compreendidas. A única coisa que não é confusa é a verdade pura, nua e crua que é o facto de as paisagens, sempre diferentes, serem sempre belas. Que, lá no fundo, tudo seja igual a tudo, é coisa que não se vê à superfície. E eu, que não crio raízes, dou-me por satisfeita por poder indagar as profundezas das coisas, mas não ter a obrigação de as descobrir mais do que elas deixam. Sou vagabun-da, como apenas as migalhas que me dão, nunca estarei satisfeita, também não sei se quero estar.|||

laura viegas

s a m u e l f i a l h o

Page 22: #15 Tédio

22 d e s u m b i g a

janela de expressão

sons difusos de páginas a serem viradas, alguém que sussurra muito baixo.

O rapaz estava a estudar na biblioteca. estava lá há mais de 5 horas, e estava cansado.

O stress dos exames, o cansaço de um idioma diferente, o medo de não ter sucesso nas suas provas… tudo… começava a fatigá-lo. Tinha sono o tempo todo. desejava, sobretudo, um único momento de magia, um momento de beleza, que lhe mostrasse que todo o seu esforço tinha algum significado.

Não sabia ao certo o que é que queria, mas queria alguma coisa. Queria que um estranho falasse com ele, queria que uma rapariga deixasse cair todos os seus papéis e ele tivesse oportunidade de ir ajudá-la, queria que todas as pes-soas que estavam na biblioteca com ele começassem espontanea-mente a dançar e a cantar.

Queria ter a coragem de provo-car estas coisas ele mesmo.

em vez disso, começou a escre-ver. era uma forma de escapismo, ele sabia que sim. Sabia que mais tarde se arrependeria do tempo perdido, mas, naquele momento, escrever era a coisa mais importan-te do mundo.

inevitavelmente, voltou às aven-turas do seu Herói.

Greardo Serralta recostou-se na sua poltrona de veludo púrpura, pousou a pena de Fénix com a qual estava a escrever, e permitiu-se um sorriso de satisfação enquanto

bebia o seu café fumegante. “Estou a apanhar-lhe o jeito.” pensou ele. “Nunca vai ser popular,” continuou, mais realisticamente “as pessoas não gostam de fantasia…”.

Olhou para o grande relógio de parede em mogno, e reparou que o ponteiro de prata estava a apontar directamente para “Café com a Mó-nica Escarlate”, por isso levantou-se relutantemente da poltrona. Vestiu

o seu casaco de pêlo de wookie, pegou na sua Espada Mágica, encostada à secretária de carvalho onde estava a escrever, e foi prepa-rar o seu cavalo alado.

Algum tempo depois, tendo sobrevoado a Cordilheira de Ferro e a Planície do Terror, aterrou em frente à estalagem “O Dragão Ver-de”. O fumo que saía da chaminé, e a luz calorosa das suas janelas, convidavam-no a sair da neve que o rodeava e a entrar e a beber algu-

ma da melhor cerveja do condado.Enquanto amarrava o seu cavalo

alado a um poste, ouviu alguns ba-rulhos furtivos à sua volta, abafados pela neve espessa. Desembainhou a sua Espada Mágica e olhou em volta, através do bafo da sua respi-ração naquela noite escura.

“Mais uma vez nos encontramos, hein, Serralta?” disse uma voz maviosa e cheia de ameaça.

Greardo virou-se e viu sair das sombras um homem alto, muito magro, vestindo um manto escuro por cima de uma armadura de cabedal, luvas negras e um chapéu que lhe cobria grande parte da cara. “Franzibaldo Dargasso! Não esperava encontrar-te aqui!” excla-mou Serralta.

“É claro que não esperavas! Há meses que te manipulo para te trazer aqui, a este lugar, esta noite! Não tens fuga possível Serralta, a tua Espada será minha!” disse

calmamente Franzibaldo Dargasso, enquanto limpava as unhas com um punhal de aspecto doloroso.

“O quê?” perguntou Greardo “Isso significa que quando o dinossauro comedor de lixo se engasgou, e eu tive de o ir substituir…”

“Sim… fui eu.” admitiu Franzibal-do com triunfo.

“E quando a minha Namorada teve uma infecção de …”

“Hein?” replicou Dargasso, since-ramente espantado.

“Não..?”“Eugh! Não tive nada a ver com

isso!!!” disse ele, repugnado “De qualquer modo… Entrega-me a tua Espada Mágica, senão os meus Ninjas encarregam-se de ti!”

Respondendo à sua deixa, cerca de vinte Ninjas saem das sombras, brandindo espadas e zarabatanas com dardos envenenados.

“Ouve, Franzibaldo, agora não me dá jeito massacrar os teus

As Incríveis Aventuras de Greardo Serralta

a espada mágica

Page 23: #15 Tédio

23d e s u m b i g a

janela de expressão

Ninjas…” respondeu Greardo, com constrangimento.

“Usarei os poderes da tua Es-pada Mágica para roubar o Cálice Sagrado do Castelo dos Franceses!” continuou Franzibaldo, ignorando Greardo.

“Quais poderes?” perguntou o Herói.

“Com o Cálice eu – como assim quais poderes?”

“A minha espada não tem pode-res.” Insistiu Greardo

“Claro que tem!” exclamou Franzibaldo, com um toque de preocupação na voz “É uma Espada Mágica! Não é…?”

“É, mas…” Greardo desembai-nhou a espada que libertava uma aura azul na noite “Para além de brilhar no escuro nunca a vi fazer nada…”

“Mas… mas…” balbuciou

Franzibaldo “É a Espada Mágica do Greardo Serralta… com ela vou roubar…”

“Lamento, Franzibaldo.” disse Greardo, dando-lhe uma palmadi-nha no ombro “Vou andando para dentro, sim?” e avançou para a porta do Dragão Verde, contornando os Ninjas.

“Então como é que te tens sentido?” perguntou-lhe Mónica Escarlate, enquanto beberricava o seu café

“Razoável…” respondeu Greardo, com um sorriso vago e mantendo a atenção no vapor que se escapa-va da sua chávena de café e se enrolava à volta da sua Espada Mágica, que estava depositada sobre a mesa.

A mulher pirata pôs a sua mão gentilmente no queixo dele, e obrigou-o a olhá-la nos olhos “Mes-mo?” insistiu ela.

“Eh…” voltou a fixar as espirais de nata que se revolviam no café escuro, com dois cubos de açúcar, tal como ele gostava “… tenho escri-to!” disse ele.

“Tens escrito?” perguntou Móni-ca Escarlate, intrigada.

“Sim. Umas histórias de fanta-sia… São sobre um rapaz que está a estudar.”

“É um feiticeiro…?”“Hum… não… É mesmo fantasia!

Ele só… estuda.”“Porquê?”“Ele também não tem a certeza!

É isso que eu gosto na persona-gem, ele sabe que quer fazer o curso, mas –”

“Não, porque é que estás a escrever?” interrompeu Mónica.

Greardo não conseguiu esconder uma expressão de desalento. Resig-nadamente, disse “Nunca sentiste… que precisavas de mais?”

“Mais?” questionou ela, confusa.“Sim… mais! Mais fantasia, mais

beleza… Algo mais do que batalhas com gigantes de duas cabeças, ou o salvamento de príncipes em castelos pantanosos. Algo diferente, algo especial!” Greardo travou-se, tinha-se deixado entusiasmar.

“Greardo…” disse-lhe Mónica, voltando a beber do seu café, “tu preocupas-me, homem…”

“É…” respondeu-lhe o Herói, também ele voltando a dar atenção ao seu café.

“Não servimos o tipo deles aqui!!!” ouviram eles alguém a voci-ferar agressivamente. Olharam para o balcão do Dragão Verde, e viram Franzibaldo Dargasso a discutir com o dono do bar por causa dos Ninjas.

“Serve o homem, Sanchez Sujo, não sejas chato!” gritou Mónica.

Mas o homenzinho imundo virou as costas a Franzibaldo e foi limpar

copos com um pano encardido. Franzibaldo manteve-se no bar, com um ar perdido.

“Raios…” murmurou Mónica “DARGASSO! Aqui!” chamou ela.

“Não!” sussurrou-lhe Greardo “Não o chames, nós…”

Mas Franzibaldo já se tinha aproximado, e estava a puxar uma cadeira para se sentar com eles.

“Então homem, como é que estás? Não estás com boa cara!” perguntou Mónica a Franzibaldo, dando-lhe uma palmada nas costas.

Greardo fazia os possíveis para ignorar a presença de Dargasso.

“É que eu… Eu tenho de tentar roubar o Cálice Sagrado, percebes? É isso que… eu faço! Mas para isso preciso da Espada Mágica do Serralta!” exclamou ele, apontando para a Espada, que estava sobre a mesa.

“E ele não ta pode emprestar?” perguntou-lhe Mónica, passando-lhe uma chávena de café.

“Ela não faz nada!” respondeu-lhe Franzibaldo, exasperado.

“Não?!” exclamou Mónica, olhan-do para Greardo.

“Não olhes para mim! A culpa não é minha se a única coisa que a Espada Mágica tem de especial é ser fluorescente!” disse Greardo, voltando a sua atenção para um bloco de notas, onde começara a escrevinhar.

“E ainda por cima agora tenho vinte ninjas a enregelarem lá fora…” disse Franzibaldo, beberri-cando resignado o seu café. “Eles só vestem uma espécie de pijama, sabem?”

“Deixa lá,” confortou-o Mónica, “de certeza que vais encontrar alguma solução.”

“…este café está mesmo bom” concluiu Franzibaldo

Só mesmo a proximidade de um exame, e a fadiga de várias horas de estudo é que conse-guiam fazer com que o Rapaz bebesse café.

estava numa máquina automá-tica, a beber um café queimado a partir de um copinho de plástico. Apesar disso estava a prolongar a pausa o mais possível. Até beber café era preferível a ter de voltar ao estudo, mas ele sabia que isso era inevitável.

O Rapaz não conseguiu deixar de sorrir perante a ironia. ele detestava café.

|||

gui santos da _ n e e l @ h ot m a i l . c o m

Page 24: #15 Tédio

24 d e s u m b i g a

janela de expressão

Espero todas as manhãsQualquer coisa que me acorde,Que me faça crer que isto não é ainda o pesadelo.Uma energia secreta, cá de dentro,Um espírito misterioso, lá de longe,Uma vibração, desconhecida do meu coração,Quem sabe, a morte da razão...

Desespero todas as noitesPassou-se mais um dia.Mais um dia e Não acordei.Não descobriNem sequer vi,Não vibreiNem sequer sonhei,Não senti,

Não vivi.

Angustio-me a cada tardia hora que passaCusto a pegar no sono profundo.Não estou exaustaNem sequer cansada.Passeei pelo dia,Deambulei pelas horas,Vagueei pelos momentos,Mas isso com a energiaDe quem dorme.Estou exausta de repousoTão exausta que, adormecida,Não consigo adormecer.|||

carolina Freitas

um só tom

Page 25: #15 Tédio

25d e s u m b i g a

janela de expressão

Andas por aí vagando ao relentoandas em qualquer lado sem contentamento,fuçando o manjar que te corrói o estômago de ausênciaraspando o chão sem qualquer vergonhaporque só te é dada a amar a decadência.Agracias o desprezo por não te perturbar as noitese foges da perseguição cruel que te amachuca os dias.Andas sozinho nas ruas que ninguém querDormindo nos sítios onde calharComendo o que a todos lhes sobrarSem te sobrar dignidade que possas venderPorque até a pele do corpo já rifasteAté as unhas dos pés penhorastePara te embriagares todo o diaem álcool podre e desordeiropara esqueceres o mundo que te esqueceu primeiro.Fazes amor com qualquer vadiasem pudor, sem qualquer maniaFumas os arbustos em mortalhas de lixoe depois de tudo isto,

ainda te ris de todos,porque nenhum deles sabe que existesPorque todos pensam que o mundo é só deles.Ah, que estupidez a da burguesia,que mesmo se quisesse nada disto fariaque nos armários guardam o desconhecimento do mundoPorque no fundo são podres como os restos que comes.Mas tu sabes tão bem enganá-los,tu sabes tão bem como usá-los,que agora nem a tua mãe te trairia,porque até ludibriar-lhe o útero poderias.És o auge perfeito do egoísmo,obra-prima da sociedade de consumo,depósito máximo dos excedentes de produção.Quando no fim de contas és apenas um cão.

You gotta sleep on your toes, and when you’re on the street,/You gotta be able to pick out the easy meat with your eyes closed. Pink Floyd in “Dogs” |||

micaela santos

sem título

mic

ael

a s

an

tos

Page 26: #15 Tédio

26 d e s u m b i g a

janela de expressão

FotograFia a preto e vermelHo

lar

a l

op

es

a mulher nem sempre viveu na escuridão. Alias, para louca disfarça bem.

O apartamento da mulher estava bem decorado. A luz preenchia as paredes brancas e es-palhava-se na mesa de vidro da sala. Os sofás brancos estavam sempre limpos e a madeira clara do chão era tratada todas as semanas para que estivesse sempre brilhante. Todos os fins-de-semana a mulher tinha convidados em casa, desde colegas do liceu e do curso de fotografia a pessoas com quem trabalhava. A mulher considerava-se uma artista.

Page 27: #15 Tédio

27d e s u m b i g a

janela de expressão

O emprego como fotógrafa no Depar-tamento de Criminologia da Polícia Judiciária era um trabalho a curto prazo, só para ter um ordenado fixo durante alguns meses.

A início a mulher pensava que era até interessante fotografar cadáveres. Ela saboreava o espanto na face dos estranhos que descobriam o seu trabalho. Como artista que era, a mulher apreciava a sua obra. Mais do que apreciar, a mulher estava obcecada com a sua obra. E por isso as mudanças que ocorreram na sua vida foram demasiado lentas para que a mulher se apercebesse delas. Os amigos apareciam menos, como é natural visto que a mulher andava ocupada. O chão foi ficando baço até ficar negro, mas isso era por falta de tempo. O sol deixou de entrar na casa que ficou sempre escura, mas a mulher só estava em casa durante a noite. Uma noite a mulher pensou que com tanto negro os sofás brancos não ficavam bem na sala preta. Sujou-os com a cinza preta que estava acumulada há anos na lareira.

A única luz a iluminar a casa derramava-se vermelha da cozinha. Sombras dos novos mortos que se formavam na película.

A mulher era o tipo de pessoa que guardava tudo. Ao longo dos anos todas as suas fotografias de gente morta foram sendo guardadas em grandes dossiers. As fotogra-fias das quais mais se orgulhava encontravam um cantinho especial afixadas na parede da sala. Um dia todas as paredes da sala já não eram

suficientes. Um dia o tecto e o chão de toda a casa estavam cobertos com mortos de duas dimensões.

Ela ia para o trabalho e voltava para casa. Em casa era onde toda a acção se desenrolava. A início era só a mulher a olhar as fotos e a imaginar as histórias daquela gente. A mulher deitava-se em cima das fo-tografias e olhava-as seriamente. Os mortos olhavam-na e estudavam-na. Viam como ela limpava a loiça. Viam como ela se virava na cama. Os mortos sorriam-lhe na almofada ao lado. A mulher começou a desejar-lhes boa noite.

Numa das noites em que a mulher já não dormia e passeava-se na sua pequena galeria a apreciar o seu trabalho, apercebeu-se das conversas entre as várias fotografias. Comentavam o enquadramento umas das outras e a cor desta e daquela. Falavam das suas histórias tristes. Pouco tardou para que a mulher conversasse com as imagens. Eram os seus novos amigos. Eram mais do que isso. Eram a sua nova família.

Uma das mortas que estava na casa à mais tempo era uma menina de oito anos. Tinha cabelos loiros quase brancos que encaracolavam nas pontas. Tinha uns totós cor-de-rosa que combinavam com a malinha a tiracolo. Tinha um fio de sangue que lhe escorreu pelo ouvido, após o traumatismo craniano fatal. O miúdo de quinze anos responsável por este drama não teve qualquer castigo. O rapaz não queria matar a menina, só a quis violar. Estes rapazes ricos de hoje em dia não

sabem o que fazem, mas não será com correctivos que iram certamente aprender.

Essa menina ocupava grande parte do tempo da mulher. A mulher penteava-a, e ajeitava-lhe a cami-sola. A menina era muito espevi-tada e fazia-lhe muitas perguntas. Perguntava-lhe porque é que as pessoas tinham cinco dedos e não seis. Perguntava-lhe porque é que não constroem pontes entre os vários continentes. Perguntava-lhe porque é que a mulher gosta de fotografia.

Porque é que a mulher gosta de fotografia. Essa pergunta era fácil de responder. A mulher gosta de fotografia desde a sua infância. Mas isso não é porquê. A mulher gosta de fotografia porque sempre quis focar todos os momentos especiais. A mulher gosta de fotografia porque sempre quis gravar toda a cor do mundo. A mulher gosta de fotografia porque queria captar toda a vida. E isso fez a mulher ficar calada. Em todos os seus anos de trabalho não tinha ainda encontrado o momento certo. O momento especial que englobasse o expoente máximo de vida. Por muitas fotografias que tivesse tirado a sorrisos de crianças, a jovens acabados de casar ou a festivais de verão, nunca captava a essência da vida. O empenho da mulher no seu trabalho no Depar-tamento de Criminologia também não deixou que ela alcançasse este objectivo em particular. A mulher tirava fotografias a expressões huma-nas já apagadas com o tempo. Tirava fotografias ao espanto que já lá não

está. Tirava fotografias ao terror que já passou. Tirava fotografias à luta pela vida já travada.

E foi aí que percebeu. O momento em que há maior expressão da vida é na luta pela sobrevivência. As suas caras mortas a esboçar gritos e a esquissar medo tinham já tido antes toda a força que podiam manifestar para viver. Todos os mortos na sua parede tinham explodido vida.

Ela só tinha chegado tarde demais.

O tempo gasto no Departamento de Criminologia não tinha sido em vão, mas sim um estágio. Com os locais do crime, com as discussões dos inspectores e com as perguntas que foi fazendo, a mulher aprendeu tudo o que precisava para tirar a fotografia perfeita. Teve que planear tudo durante dias, para ter o enqua-dramento certo e a luz certa.

Na noite planeada a rua escura que a mulher tinha escolhido estava vazia como sempre. A mulher deixou passar um senhor idoso e viu chegar meia hora mais tarde um rapaz jovem e magro que ela facilmente conseguiria atirar ao chão. Preparou a máquina para disparar repetida-mente. Apertou a faca de cozinha com força na sua mão. No segundo seguinte a máquina apanhou expres-sões de vida, expressões de horror. Expressões de morte eminente numa rua escura com uma faca de cozinha. A cor das fotografias era tão viva, tão vermelha de sangue. |||

lara lopesl b l o p e s @ g m a i l . c o m

Page 28: #15 Tédio

28 d e s u m b i g a

janela de expressão

Acho o silêncio hediondo. A ansiedade basal por detrás da emergência. Na verda-de não é o silêncio que é hediondo mas as recordações, ou nem sequer as recordações mas a sua ausência.

Demoro trinta minutos a escolher a ca-neta com que iniciarei a descrição do meu silêncio. Mas passados os trinta minutos não é sobre o silêncio que falo nem sobre o que ele esconde. São apenas os trinta minutos (tic tac) que falhei no objectivo de alcançar a esperança de um tecto.

De que falamos? Ah sim, desse fardo hediondo, sempre presente por debaixo de tudo o que se apaga. Acho que finalmente percebo, recuso-me a ter duas vidas, recu-so o código que me incita à vida eterna e no entanto por ele recuso... (por debaixo de tudo que se apaga).

São três as camadas de ocultação que se desenrolam ao longo dos trinta

minutos em que escolho a caneta. Sou eu que diligente no trabalho estou só, mas apenas à escala de todas as vidas que me possuem, uma após outra ou em simultâ-neo, ocultas no tecido do silêncio humano. Tudo se deslumbra na consciência que não conhece o passado ou o futuro: Apenas a narrativa tardia de todo o tempo em simultâneo.

Não faço sentido, eu explico: Persigo os segredos do mundo para fugir à evidência de que preciso de iludir os meus sentidos. Acabo no entanto por iludi-los de outra forma. E o silêncio retorna, impiedoso, para me lembrar que existe e que existo, por debaixo de todas as formas.

Um dia vou-me apagar, e comigo o desejo de acender para sempre, aquilo que um dia se acendeu em mim. |||

maurício martins

o tecido do silêncio Humano

Page 29: #15 Tédio

29d e s u m b i g a

janela de expressão

Já era tarde quando num soturno dia de Outubro fui chamado de urgência ao Instituto de Medicina Legal. Calculei

de imediato para que fosse. Deixei a minha sandes de pão de ontem e queijo de barra a meio, vesti o mesmo casaco de todos os dias e juntei-me à multidão agitada pelo aguaceiro que não tardou a vir. Enquanto apanhava um metro particularmente cheio, apenas pensava que todos à minha volta pareciam felizes. Quando estamos tristes toda a gente parece feliz, todo o gracejo e gargalhada são ofensas capitais para um ego ferido e carente de compaixão. Sentia que naquele dia até o cego (que em todos os outros dias suplica miseri-córdia e compaixão pela sua infeliz condição) entoava a sua cantiga de

modo mais alegre. Resisti (por pura estupidez e egoísmo, penso agora) ao reflexo de levar a mão à carteira e entregar o “meio-euro” à pobre personagem: estava triste, incon-solável, e quando as pessoas estão assim tão miseráveis sentem que todas as outras lhes devem prestar atenção, nem que fosse o pobre a dar-me uma moedinha.

Era aguardado à porta do edifício por um polícia que, insensível às minhas insistentes perguntas, me guiou como um Minotauro por um labirinto de corredores exactamente iguais até uma sala onde uma velha patologista aguardava pachorren-tamente pela chegada de alguém que a livrasse da aborrecida tarefa. Cumprimentou-me sem olhar nos olhos e em semelhante frieza (pos-sivelmente ganha através de anos de histórias infelizes) destapou um

cadáver de uma dúzia de macas lá presentes.

Foi a última vez que a vi. Talvez seja por isso que agora, sempre que penso nela lembro-me instinti-vamente de como a vi naquele maldito edifício. Reconheci de imediato o anjo caído perante mim: cabelo antes moreno, liso, com textura de seda, agora transfigurado numa pasta áspera de sangue seco, fragmentos de vidro e farrapos de roupa; olhos cor de avelã que antes brilhavam com centelhas da inteligência e agora, baços, fitavam vagamente o infinito em busca de algo para além da parede; pele de bebé, branca e pura, agora manchada por hematomas de cor mórbida, cravejada com a gravilha preta do alcatrão e dilacerada aqui e acolá por feridas profundas o suficiente para quase deixar

adivinhar o conteúdo do abdó-men; corpo de constituição alta e esguia, agora redefinido por curvas e ângulos bizarros bizarras que ignoravam os princípios básicos da anatomia humana; a restante integridade característica do Homo Sapiens, índole outrora perfeita e bela agora corrompida de tal forma que a memória e a imaginação eram desafiadas para que pudesse visualizá-la como Deus a criou.

“A vítima morreu atropelada por um autocarro. Sofreu grandes hemorragias, tanto internas como externas” - o discurso descritiva-mente frio da patologista ecoava na minha mente sem ser assimilado. Não tinha capacidade de absorver informação do presente; apenas me lembrava do passado.

Vieram-me à memória os sete últimos meses, onde a tinha conhe-

música ensurdecedora

lar

a l

op

es

Page 30: #15 Tédio

30 d e s u m b i g a

cido jovem, enérgica e naïve, que procurava à deriva nos placards da faculdade por um quarto onde ficar. Apontou rapidamente um número no telemóvel e partiu à descoberta do seu próximo destino, passando por mim com um sorriso malandro (mais tarde vim a saber que o sorriso se devera ao facto de ter ficado paralisado no tempo a olhar para ela). Enquanto vivia cada dia na tola esperança de que aquele número apontado fosse o meu, os dias foram-se passando e a tola esperança tornou-se em mais um sonho de criança vinte anos atra-sado. Mas como um pai que, com paciência infinita, faz a vontade ao seu infante sonhador, Deus fez com que uma semana depois do encontro uma voz feminina ligasse para mim, interessada no quarto que tinha para alugar. Era ela, que com o mesmo sorriso malandro de antes me cumprimentou e passou por mim. Após um “tour” de menos de cinco minutos declarou num tom que demonstrava alguma determi-nação “Gosto do quarto. Fico aqui”. Renasci por dentro. Rapidamente ficámos amigos, íamos juntos para a faculdade e depressa viemos a desenvolver uma saudável amizade colorida. Éramos putos de novo, pu-tos numa terra de doces e brinca-deira sem rei nem roque: fazíamos o que queríamos sem dar contas a ninguém, brincávamos, saltávamos e mais tarde, sem grande segredo (para que o resto do mundo soubes-se) namorávamos; transbordávamos de felicidade por termos descoberto a alma gémea um do outro.

“Várias testemunhas numa obra perto do local do acidente tentaram adverti-la do perigo gritando e

acenando, contudo a vítima não os ouviu porque estava a ouvir música de um leitor de CDs. As testemunhas relatam que quando se precipitaram para tentar salvar a vítima, ela fugiu deles acabando por embater na viatura de trans-porte de passageiros...” - relatava o polícia, numa voz rouca e arrastada. À medida que olhava para o seu cadáver, desligava-me do mundo em redor, incapaz de sentir algo mais que raiva e remorso.

Éramos completamente felizes e despreocupados numa terra sem rei nem roque à excepção de uma coisa. No final do quarteirão, uma manada de bestas trabalhava a meio gás para acabar mais outra construção bestial desta triste urbe. Construtores infelizes, mão-de-obra descaracterizada cujo único papel no mundo era criar enormes monumentos à sua descaracteriza-ção nos quais outra gente, também ela descaracterizada, viria a residir. Todos os dias eu e ela cruzávamos as ditas obras (ou oficinas de des-caracterização, como lhes chamava) em direcção à faculdade. Todos os dias excepto um, Sexta, em que ela partia sozinha para a faculdade e ao passar na dita obra era observada e apupada pelas bestas, cães rafeiros numa busca cega por cio. Por infortúnio a minha mãe adoeceu gravemente e tive de me ausentar de casa por uma semana. Agora teria de passar pelas obras sozinha. Ligou-me todos os dias da minha ausência em lágrimas: todos os dias

era assediada, odiava aquela gente, aquele caminho e começava a odiar o curso que sempre quis. Tentava reconfortá-la de longe mas pouco mais podia fazer senão dizer-lhe para não lhes ligar, que eram má gente e para os evitar. No último dia em que ela ligou tinha-lhe dito para levar o meu leitor de CDs ao mesmo tempo que lhe disse #Põe a música no máximo quando passares por eles, assim não tens de os ouvir”.

“Já contactámos os pais da vítima, que se encontram presente-mente no Reino Unido. Regressarão amanhã para acompanharem o ve-lório e o funeral. Soubemos através dos mesmos que o senhor e a viti-ma tinham uma relação amorosa e viviam juntos, daí necessitarmos de chamá-lo para que trouxesse os do-cumentos da falecida e confirmasse a sua identidade, para adiantar os papeis para a certidão de óbito e respectivo funeral...” - Continuou o oficial, mais ou menos por estas pa-lavras. Estava ausente da realidade, absorto no meu pensamento; não tinha percepção de mais nada.

Quando vim da terra para casa, ela não estava em casa. A sua car-teira, livros e tudo o mais estavam no seu quarto, portanto depreendi que não demoraria a chegar. Espe-rei horas e, do aborrecimento passei ao nervosismo e à preocupação. Onde estaria? Que teria aconteci-do? Tentei ligar-lhe mas o telefone estava desligado. Com o crescente das horas o meu coração mirrava.

Liguei a toda a gente e ninguém sabia dela

“Vamos precisar que assine estes papéis para confirmar a identidade da falecida…” – Falou a patologista, sem tom, como se ditasse uma ordem tão óbvia que eu a deveria ter adivinhado. “Deus dê vida e saúde a todos os que ama para que não tenha de passar pelo mesmo que eu” - respondi secamente e a patologista calou-se.

Assinar aquela identificação foi como assinar uma declaração de culpa. Nunca mais me consegui-ria perdoar. Saí do edifício sem conseguir conter uma torrente de lágrimas que me brotava dos olhos. Corri para casa, atravessando a tar-de soturna de Outubro, ignorando o aguaceiro que me fustigava o corpo. Quando cheguei a casa co-mecei a empacotar as coisas dela, com lágrimas nos olhos. Sentia-me assassino, idiota, raivoso, capaz de comer ferro ou de partir a cabeça numa parede. Deitei-me exausto na sua cama, tapei a boca com a almofada e gritei. Gritei por raiva, mágoa, frustração e loucura. Gritei e chorei até me deixar dormir, e aí só me lembro da última coisa que pensei: desejar que aquele fosse o meu último segundo de vida.

Nessa noite tive sonhos estra-nhos. Lembro-me de sonhar que viajava sozinho por uma terra de fantasia sem rei nem roque, saltando e brincando com grande desalento. A minha voz fazia eco no infinito; sentia a falta de alguém, mas não me lembrava de quem era. Apenas sabia que naquele lugar tinha de se brincar e saltar com a pessoa de quem se gostava mais. |||

Francisco coelHo

janela de expressão

Page 31: #15 Tédio

31d e s u m b i g a

janela de expressão

Porque o dia merece, sento-me à sombra do sobreiro para um desas-sossegado relato. Saco a lapiseira da algibeira

deslavada do velho. O bico está re-dondo e enerva o papel que escapa à cinza. Que sina malvada esta: até o lápis me exige cabeça fresca! Estava, então, um estorricante dia de sol. Lá na aldeia o povo abrigava-se do matreiro na tasca do Ti Jaquim, o único estaminé que tinha ar condicionado e umas quantas ventoinhas nos cantos. Vem da chofra o Zé do Pipo. Espera à porta até o olhar descobrir cadeira livre naquele acampamento de odores castiços. A ‘máquina do frio’, exactamente por cima da mona cal-va, esfria-lhe o sentido e arrepia-se. Levanto a mão dando-lhe sinal que

junto à minha lavra há lugar para traseiro abundante, como o do velho. Caminha dobrado em ponte, como que a pedir às crianças para saltar ao eixo, até atingir a cadeira em que se senta com dificuldade. Abana-se custosamente até arranjar cama jeitosa para o abundante assento (que criou à custa da comida do lar de dia, desde que a sua mulher foi para outros mundos) e, durante os aprontos, pergunto-lhe como vai a vida. Pior pergunta não podia ter sido acarretada pela minha vã inteligência. Escorre-lhe, enquanto o tinto cai pela garganta, a lista por-menorizada de queixumes agrestes (dos que haviam estado a fermentar desde os tempos em que me mudei para a terrinha). Isto tem sido um pará para burro. [funga, como que a encontrar consolo na sua tristeza] Cá

na minha chafarica já não nasce o sol há muito tempo. E, fitando com atenção, vejo as nuvens de inverno a nascer no olhar do velho. Depressa me arrependi da inocente pergunta. Mas ouvi. A médica está inclinada que esta dor que me morde seja a ciética. Isto ó-despois arremexe aqui com os mês entestinos. Interrompi-o para lhe dizer que o chouriço que comia todas as manhãs na tasca não adivinhava bons destinos para esses males, como que a tentar aconselhá-lo sem ferir susceptibilidades. Tire daí o sentido que eu não faço isso! Defendeu-se de arma em punho. E calei-me para ouvir novamente. É certo que a vida do pobre não era fácil. Pouco lhe caía na algibeira ao fim do mês. Mesmo contados os anos de trabalho explorado nos cam-pos do Alentejo, a força que roubou

às pernas a fazer queijo e, a somar, os últimos anos de esforço sobre as ordens da ‘cãmbra’ da cidade vizinha (quando os ossos já lhe pesa-vam). Todos sabem que a estrada de alcatrão até à terrinha havia sido obra principal do desgraçado. Já não me aguento nas canetas. Nem a cresta posso fazer! Minhas ricas abelhas, onde eu havia de chegar... A minha mulher cantava-lhes, sabia? Tinha-lhes muita estima. Agora de mim? Se lá volto um dia escaldam-me... Sou um monstrengo com um esgotamento no cérevro. Nesta fiquei perplexo. Nunca tive jeito para mais do que umas pancadas ligeiras nas costas, e foi o que fiz. Senti-me pequeno na minha escassa grandeza. |||

elisa [email protected]

as dores Que mordem (n)a velHice

Page 32: #15 Tédio

32 d e s u m b i g a

Page 33: #15 Tédio

33d e s u m b i g a

babilónia

que seca de filme u technology, entertainment and designslavoJ zizek

sa

mu

el f

ialh

o

Page 34: #15 Tédio

34 d e s u m b i g a

babilónia

Que seca de Filme!

Ou Porque é que alguns filmes são aborrecidos?

Page 35: #15 Tédio

35d e s u m b i g a

babilónia

em 1963 Andy Warhol realizou o filme Sleep. O filme consistia, apropriadamente, de um homem a dormir

durante cinco horas. Notem que o filme não tencionava ser uma repre-sentação do sono de um homem, nem entrava por uma exploração dos seus potenciais sonhos. Não. “Sleep” consiste em cinco horas de filme com um único plano contínuo: o homem a dormir.

Verdade seja dita, Andy Warhol nunca tencionou fazer uma grande obra-prima. O objectivo dele era fazer um anti-filme. Conseguiu-o de tal forma que o seu filme nunca foi exibido inteiramente, mas pronto. Se olharmos de esguelha e fizermos um esforço de imaginação até po-demos dizer que ele teve sucesso.

Mas na realidade cinco horas de um homem a dormir resultam num filme incrivelmente aborrecido. Estupendamente aborrecido. Tão aborrecido que a única menção possível ao filme é sobre quão comatosamente aborrecido é.

Mas será que há mais filmes aborrecidos? Vejamos:

2001: A SpAce OdySSey – StAn-ley KubricK, 1968.

“Baseado na obra homónima de Arthur C. Clarke, 2001 conta a história de de um monólito que primeiro está na terra e chateia ma-cacos, depois está na lua e chateia cientistas e depois há uma nave espacial que chateia astronautas. Muito lentamente! Era mesmo necessário fazer um filme de 140 minutos (na sua versão mais curta) para contar uma história que é basicamente incompreensível?

O filme é TÃO lento! Demoram quinze minutos para mostrar uma nave espacial a levantar voo, trinta minutos para o Dave fazer jogging, e cerca de duas semanas e meia para o Frank Poole ir consertar a unidade AE-35. Juro-vos que algu-mas sequências do filme são em

câmara lenta.É impossível gostar-se das

duas personagens principais, de tão anestesiantes que são as suas interpretações, e HAL, o compu-tador assassino, consegue ser tão monocórdico e lento quanto eles. Qualquer que fosse o interesse daquilo que as personagens possam ter a dizer, este perde-se comple-tamente pelo facto de o espectador não se conseguir manter acordado.

O filme acaba num espectáculo de luzes epilépticogénico que eu não estive para suportar até ao fim. Por isso parei o filme e fui tomar cocaína e anfetaminas para conseguir trazer a minha frequência cardíaca de volta ao mundo dos vivos.”

pride And prejudice – jOe Wright, 2005

“Baseado na obra homónima de Jane Austen, Orgulho e Preconcei-to, o filme conta a história de uma família inglesa com cinco filhas, cuja segurança e independência fi-nanceiras dependem de casamentos proveitosos. O MacGuffin do filme é a chegada à localidade de duas personagens completamente inúteis que trazem com elas o Mr. Darcy, que será o interesse amoroso das cinco filhas. Boatos, artimanhas, orgulhos e preconceitos seguem-se. Nada que não tenhamos já visto em dezenas de telenovelas mexicanas.

É verdade que escrever a pri-meira telenovela mexicana de todas tem o seu mérito, mas isso não faz um bom filme. Há razões para as pessoas não se interessarem com telenovelas mexicanas ou os seus congéneres britânicos: são desinte-ressantes!

Primeiro as duas personagens principais não gostam uma da outra, depois ela gosta dele, depois voltam a não gostar uma da outra, depois ele gosta dela, depois ela gosta outra vez dele, mas ele não, e depois gostam um do outro ao mesmo tempo e casam-se. Fim.

Pelo meio toda a gente se choca muito, toda a gente se ofende muito (mas eu nunca percebi por-quê) mas a realidade é que nunca acontece nada! São personagens a irem e a virem de casa umas das outras, com grandes conversas recheadas de comentários espiri-tuosos e chazinhos e scones, pelos quais eu simplesmente não consigo importar-me.

E no fim casam-se. E pronto, 129 minutos da minha vida desperdi-çados.”

rAiderS Of the lOSt Arch – Steven Spielberg, 1981

“O primeiro filme da saga India-na Jones, “Salteadores…” resume-se no seguinte: explodem coisas.

E pronto, é basicamente isso. Há muita testosterona, muitos chicotes e tiros e explosões, mas pouco mais. A personagem principal, Indiana Jones (que tem nome de cão) tem de salvar o mundo dos nazis que querem um artefacto reli-gioso. Eu repito: nazis que querem conquistar o mundo recorrendo a um objecto bíblico. Haverá história mais inane e desprovida de senti-do? E depois explodem coisas.

Ok, o Indiana é um grande herói que salva a rapariga e luta contra os nazis, enquanto vai dizendo one-liners e aliviando o prurido orqui-diano. E depois explodem coisas.

O espectador sofre repetida-mente de clichealgias (dor súbita e irritante que surge da exposição a clichés) ao mesmo tempo que tenta retirar uma única ideia coerente de todo o filme. Não há uma moral, não há uma mensagem, não há um discurso com conteúdo. Por outro lado, e numa tentativa de compen-sar isto, há explosões.

Depois de 115 minutos de filme fica-se com a sensação de que estivemos a matar neurónios num processo de descerebração auto-infligido. Não há nada a retirar de um filme como este. E depois explodem coisas.”

Agora, o que é que eu estou a tentar demonstrar com este texto que vai atrair ainda mais e-mails furiosos do que aqueles que eu costumo receber?

Todos os filmes são aborrecidos, e nenhum o é.

Depende de quem os vê, depen-de das expectativas do espectador.

As pessoas habituam-se a ver um determinado género de filmes e, por inércia, ficam dentro desse género. Os escritores e realizadores sabem sempre, perfeitamente, para que tipo de público estão a fazer os seus filmes. Os diálogos, o ritmo, o tom de cada filme é pensado para o público para quem é dirigido. É uma tolice tentar agradar a toda a gente, e sempre que um realizador o tenta (e já muitos o tentaram) o resultado são filmes que, pelo con-trário, desagradam a toda a gente.

Filmes como dogville (Lars von Triers, 2003) ou Planet Terror (Robert Rodriguez, 2007) nunca vão agradar a uma larga gama de es-pectadores. São demasiado diferen-tes, demasiado específicos na sua realização. No entanto são amados apaixonadamente pelas pessoas para quem foram pensados.

O grande desafio do cinéfilo está em desafiar os seus próprios gostos e ir ver filmes que, de uma forma natural, nunca iria ver.

Desafio ainda maior é tentar apreciar porque é que outras pessoas gostam de filmes que não gostamos, que aspectos desse filme apelam a outros públicos. Desafio maior ainda, é pegar em filmes de que gostamos e ver de que forma outras pessoas não gostariam deles, ou os veriam como totalmente aborrecidos.

Dito isto, sinto-me agora na obri-gação de ir ver empire, de 1964. Outro filme de Andy Warhol que consiste em oito horas de filmagem contínua do Empire State Building, em Nova Iorque. |||

gui santos da _ n e e l @ h ot m a i l . c o m

Page 36: #15 Tédio

36 d e s u m b i g a

babilónia

slavoj ŽiŽeKO filósofo que via melodramas

Page 37: #15 Tédio

37d e s u m b i g a

babilónia

escrevemos no Youtube “Zizek”. Há mais de 700 resultados. Invulgar este número para um filósofo. Abrimos um

dos primeiros vídeos e observamos a personagem. Não podemos deixar de reparar nas olheiras profundís-simas, na barba rebelde e num cabelo denso de corte rude. Logo a seguir vêm os seus gestos e a sua maneira de falar. Gesticula, mexe no nariz, no cabelo, obsessivamen-te, num frenesim que nos dirige para um caso psiquiátrico. A fala é ininterrupta e ciciada, num inglês com exuberante sotaque eslavo. Es-tamos presos a esta figura que diz “I’m not a human, I’m a monster!”. E vamos analisando o “monstro” na sua expressão e movimentação, sem mergulharmos nas suas teorias. Žižek diz piadas, mas não se ri delas; não há nele nenhuma du-plicidade, nenhum distanciamento do eu para depois o ironizar. Žižek é uma máquina argumentativa totalmente íntegra.

Slavoj Žižek é esloveno e tem 59 anos. Publicou o seu primeiro livro em inglês em 1989 e possui hoje já cerca de 30 títulos nessa língua. Em Portugal a primeira tradução foi publicada em 2006 e possui agora vários livros editados em português, maioritariamente pela Relógio d’Água.

Anteriormente a esta ascensão mediática ocidental nos anos 90,

Žižek foi pertencendo, com muitos altos e baixos, ao meio intelectu-al esloveno dentro da Jugoslávia governada por Tito.

Como se explica então que este seja considerado actualmente “o Elvis da cultural theory”, “a rockstar académica”? Precisamente pelo seu exotismo, transversal também às suas ideias e, principalmente, à maneira de as transmitir. Žižek é apresentado como filósofo, psi-canalista, crítico cultural, cinéfilo, marxista, etc. As suas principais influências são Hegel, Marx e Lacan. Aquilo que produz é a com-binação da crítica marxista com o desmascaramento psicanalítico dos vários efeitos da cultura e das ideologias sobre as populações. No seu discurso usa depois os filmes de Hollywood como alegorias para o que pretende transmitir. A sua obsessão pelo cinema é um traço famoso, tendo dado origem a um documentário The pervert’s guide to cinema (2006) no qual analisa originalmente uma lista extensa de películas, essencialmente ameri-canas e a vários ensaios escritos (compilados em português no livro “De lacrimae rerum”, da Orfeu Ne-gro). São comuns, nos seus livros, passagens como as seguintes: “Apocalypse Now Redux (2000), de Francis Ford Coppola, mostra muito claramente as coordenadas deste excesso estrutural do poder do Estado.” ou “O Protegido, de M.

Night Shyamalan, com Bruce Willis, representa o paradigma da oposição entre forma e conteúdo na conste-lação ideológica contemporânea.” (ambas retiradas de Bem-vindo ao deserto do real, Relógio d’Água). Uma elaboração densa sobre o real e o subjectivo pode ser ilustra-da por uma cena do filme “The Matrix”. Para além do cinema, o pensamento de Žižek serve-se tam-bém de outras imagens inauditas para o discurso de um académico reputado. É capaz de explicar as diferenças entre os sistemas filosó-ficos inglês, francês e alemão com base no design das sanitas desses países, ou de comparar a Bélgica ao Afeganistão como nações que são resultado do jogo de potências estrangeiras, sendo o chocolate e a pedofilia belgas o correspon-dente ao ópio e violência sobre as mulheres da responsabilidade dos talibans.

Žižek reflecte sobre uma grande variedade de assuntos. O interesse que gera vem da aplicação das suas ideias à realidade e cultura po-pular contemporâneas. A análise de ideologias é uma das suas tarefas favoritas. Para ele, um sistema ideo-lógico per si é uma ilusão dentro da qual as pessoas vivem e que quan-do dele têm consciência desapare-ce. No entanto, considera que hoje estamos já numa época pós-ideoló-gica em que gozamos com as nos-sas crenças embora continuemos a

praticá-las. Sendo, segundo ele, o capitalismo impossível de aceitar para alguém inteligente e honesto e a própria democracia um sistema muito susceptível à corrupção, o que o fragiliza perante as investidas da extrema-direita, onde estará a solução? Nisso Žižek é críticado pela falta de clareza. Costuma dizer que a acção política está fora dos seus planos, no entanto, em 1990 foi candidato às presidenciais na Eslovénia tendo perdido. Apesar de nunca desenvolver o que consi-deraria uma ordem social melhor, assume-se um marxista e comunis-ta, que critica a actual esquerda. Acredita que no actual cenário pós-moderno e pós-político, se deve proceder à “repolitização da política e da economia”. Tudo faz supôr, portanto, uma veia mais radical neste esloveno. Às suas palestras assistem muitas vezes centenas de pessoas, especialmente jovens. O fascínio pela figura tem crescido e é muito intenso, tal como pode ser verificado no documentário Žižek! (2005, disponível na íntegra no You-tube) elaborado por uma americana de 25 anos. Perante o seu falhanço na carreira política, quererá Žižek agora servir de inspiração a algum novo movimento? Desejará tornar-se o guru de uma próxima revolução?

|||

bernardo mourab e r n a r d o . m . m o u r a @ g m a i l . c o m

Page 38: #15 Tédio

38 d e s u m b i g a

babilónia

tecHnology, entertainment and design (ted): ideas wortH spreading

c.

fig

uei

red

o

Page 39: #15 Tédio

39d e s u m b i g a

este foi o título mais en-tediante que me ocor-reu. Hesitei ao conside-rar a hipótese de optar por um trocadilho fácil

utilizando a sigla “TED(io)”, mas a sobriedade acabou por prevalecer. Creio que ao fazer uma primeira desfolhagem pela revista poucos se irão deter nesta página, mas uma vez que já consegui a vossa atenção peço que não desesperem com a leve introdução histórica que se segue.

As “TED Conferences” come-çaram em 1984 por iniciativa de Richard Saul Wurman e Harry Marks. A sua ideia era reunir pensadores e especialistas de 3 áreas que ambos acreditavam es-tarem gradualmente a sobrepôr-se nos seus objectivos e métodos de trabalho – a tecnologia, o enterte-nimento e o design. Os encontros ocorriam anualmente em Monterey (California), estando o acesso limitado a 1000 convites feitos pela organização. Talvez esta selecti-vidade justifique as dificuldades que o evento teve em afirmar-se durante os primeiros anos da sua existência, uma vez que a sua divulgação ocorria em meios

relativamente restritos. Mas o facto é que gradualmente as “TED Conferences” ganharam prestígio no meio intelectual dos EUA. As temáticas foram-se diversificando, abrangindo múltiplos campos da ciência, educação, artes e psicolo-gia, entre outros.

Em 2001, algumas das interven-

ções mais interessantes passaram a estar disponíveis on-line, permi-tindo que “Ideas Worth Spreading” (expressão que serve de lema ao evento) fossem efectivamente divulgadas pela população graças à internet.

As conferências são relativamen-te curtas (entre 18 e 20 minutos), faladas em inglês, com uma boa qualidade de vídeo streaming. Regra geral, as apresentações são claras, simples, extremamente interessantes e com um toque mais ou menos humorístico. Não

posso deixar de aconselhar algumas intervenções que são do meu especial interesse, mas convido-vos a passarem algum do vosso tempo morto a explorar as possibilidades oferecidas em www.ted.com

Assim, recomendo vivamente:- Dan Gilbert – “Why Are We

Happy?” (um ensaio hilariante sobre a capacidade humana de sentir felicidade).

- Barry Schwartz – “The Paradox of Choice” (uma outra perspecti-va sobre o tema de Dan Gilbert, complementando-se ambas as apresentações).

- Sir Ken Robinson – “Do Scho-ols Kill Creativity?” (uma exposição sobre a criatividade infantil e o modo como os sistemas de ensino parecem não só negligenciar como esmagar a capacidade de imaginar).

- Jill Bolte Taylor – “My Stroke of Insight” (uma neurologista faz uma descrição quase paranormal da sua experiência pessoal ao sofrer um AVC e do impacto que teve sobre a sua forma de percep-ção do mundo).

Não custou nada, pois não? |||

c. Figueiredo c s m f i g u e i r e d o @ g m a i l . c o m

tecHnology, entertainment and design (ted): ideas wortH spreading

babilónia

Page 40: #15 Tédio

40 d e s u m b i g a

Page 41: #15 Tédio

41d e s u m b i g a

peregrinação

uma temPorada no fogo

ber

na

rd

o m

ou

ra

Page 42: #15 Tédio

42 d e s u m b i g a

peregrinação

todas as cidades deviam ter uma estrada em linha recta que partisse do seu centro e termi-nasse na cratera dum

vulcão. Seria um atalho para os deuses. Um vulcão numa cidade torna

o equilíbrio mais justo. O Homem apresenta a sua força à Natureza e a Natureza retribui. Juntos, vulcão e cidade, são o dímero que condensa este planeta. Por isso cada cidade devia ter o seu vulcão.

A via Etnea, na Catânia, é a

estrada que vai do centro da cidade até ao vulcão. Pelo menos na sua direcção. Quando a olhamos em toda a sua extensão rectilínea vêmo-la perder-se junto à encosta de três mil metros do Etna. Na verdade, está ainda a vários quiló-metros dele.

Estamos na Sicília, na sua segunda maior cidade, uma área metropolitana com cerca de um milhão de pessoas. Andrea nasceu nesta terra. Um rapaz de olhar vivo, perscrutador, cabelo encaracolado negro e uma barba esparsa. Andrea

diz “Eu não devia ter nascido aqui. As pessoas não trabalham. Queria ter nascido em Roma, Milão ou Paris.” E vai vertendo amargura enquanto conduz às guinadas o seu pequeno Mercedes pelo trânsito desordenado da cidade.

Por aqui são poucos os carros que se preservam livres de amol-gadelas ou arranhões. É como se os carros não fossem assim tão im-portantes, o que é normal num país que tanto os fabrica. O Mercedes de Andrea permanece surpreen-dentemente imaculado. Andrea não

devia ter nascido aqui.É uma manhã de Agosto e

movimentamo-nos pela cidade. Sem carro ou scooter, espera-se pelo autocarro. A espera pode ser longa, não existem horários, os motoristas só cobram bilhetes nalguns dias. E lá no fundo, nos últimos bancos, há um louco que vai falando. Sentamo-nos, ouve-se o discurso sem se entender, será em siciliano? Ou apenas aquele italiano áspero de sotaque carregado? O importante, como em qualquer sítio, é não olhar o louco nos olhos.

uma temporada no Fogo

catânia, impressões da Sicília

ber

na

rd

o m

ou

ra

Page 43: #15 Tédio

43d e s u m b i g a

ber

na

rd

o m

ou

ra

Page 44: #15 Tédio

44 d e s u m b i g a

Chegamos às praças do centro. Mantemos o contacto com o vulcão (de noite veríamos até a lava, impressões vermelhas suspensas no céu). Vai-se a pé, pelas pedras vulcânicas negras que amplificam o bafo quente de Agosto. E há as ruínas dum teatro romano antigo, um castelo medieval, a piazza del Duomo, com a catedral e a estátua do elefante, o símbolo da cidade, o teatro Bellini, os píncaros do Barro-co, as palmeiras, as casas de tintas gastas, criando novas cores. Como é de manhã podemos ir ao mercado de peixe da Catânia – a pescheria. O guia diz-nos que é uma das 25 coisas a não perder em toda a Sicília. Começa-se pela Piazza Duomo e vamos pelas entranhas da cidade. O mercado impressiona pela sua dimensão. E pela energia, porque a agitação é grande: uma multidão com vendedores e clientes de um lado para o outro, os pregões gritados a pulmões cheios, vindos de todo o lado. Há cabeças de espadarte enormes pousadas em várias mesas, muitas vezes servem para segurar um letreiro com pre-ços. Progressivamente, o mercado deixa de ser só de peixe e coisas do mar e passa a vender todo o tipo de produtos alimentares e mesmo outros utensílios domésti-cos. Se sairmos daqui e subirmos um pouco a via Etnea vamos ter a outro mercado de rua, completa-mente diferente, talvez ainda mais movimentado. Esse é uma feira de roupa e coisas electrónicas. Está aberto todos os dias.

Na Catânia podemos perceber a natureza desta ilha, a maior do Me-diterrâneo. É um isolamento, uma teimosia em permanecer igual. Um vulcão que dita um ritmo hipnótico de actividade. Cidades velhas e mal cuidadas, gente que nos trata como vizinhos ao primeiro contacto, quer para a simpatia como para a rudeza. É uma terra abandonada no mar, no centro da nossa civilização antiga. Tudo é tremendamente real. |||

bernardo mourab e r n a r d o . m . m o u r a @ g m a i l . c o m

peregrinação

ber

na

rd

o m

ou

ra

ber

na

rd

o m

ou

ra

Page 45: #15 Tédio

45d e s u m b i g a

Page 46: #15 Tédio

Possibilidadesprefiro cinema.

prefiro gatos.prefiro os carvalhos nas margens do Warta.

prefiro Dickens a Dostoievski.prefiro-me gostando dos homens

em vez de estar amando a humanidade.prefiro ter uma agulha preparada com a linha.

prefiro a cor verde.prefiro não afirmar

que a razão é culpada de tudo.prefiro as excepções.

prefiro sair mais cedo.prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.

prefiro as velhas ilustrações listradas.prefiro o ridículo de escrever poemas

ao ridículo de não os escrever.no amor prefiro os aniversários não redondos

para serem comemoradas cada dia.prefiro os moralistas,

que não prometem nada.prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.

prefiro a terra à paisana.prefiro os países conquistados aos países conquistadores.

prefiro ter objecções.prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.

prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.

prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.prefiro os cães com o rabo não cortado.

prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.prefiro as gavetas.

prefiro muitas coisas que aqui não disse, a outras tantas não mencionadas aqui.

prefiro os zeros à soltaa tê-los numa fila junto ao algarismo.

prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.prefiro isolar.

prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.prefiro levar em consideração até a possibilidade

do ser ter a sua razão

Wislawa Szymborska, Polónia

1923