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SUMRIO

PROPOSTA PEDAGGICA ........................................................................................ 03 Um Mundo de Letras: prticas de leitura e escritaMaria Anglica Freire de Carvalho e Rosa Helena Mendona

PGM 1 LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA ....................................................... 11O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizao Luiz Carlos Cagliari

PGM 2 TEXTO: LEITURA E PRODUO DE SENTIDOS .......................................... 26Texto: leitura e produo do sentido Ingedore G. Villaa Koch

PGM 3 GNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO ............................................. 41Gneros como objetos de ensino: questes e tarefas para o ensino Sandoval Nonato Gomes-Santos

PGM 4 COMPREENSO E PRODUO DE TEXTOS ................................................ 63Leitura e escrita: produo de sentidos Mnica Magalhes Cavalcante

PGM 5 A GRAMTICA NA ESCOLA ............................................................................80Lngua Portuguesa: o ensino de gramtica Luiz Carlos Travaglia

UM MUNDO DE LETRAS: PRTICAS DE LEITURA E ESCRITA.

2.

PROPOSTA PEDAGGICA

UM MUNDO DE LETRAS: PRTICAS DE LEITURA E ESCRITAMaria Anglica Freire de Carvalho1 Rosa Helena Mendona2

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto at aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um vu todo acabado, por trs do qual se mantm, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), ns acentuamos agora, no tecido, a idia gerativa de que o texto se faz, se trabalha atravs de um entrelaamento perptuo; perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele qual aranha que se dissolvesse ela mesma nas secrees construtivas de sua teia3.

Com os estudos da Lingstica Textual4, o texto passou a ser tomado como objeto central de ensino. Assim, nas aulas de Lngua Portuguesa, as atividades de leitura e de produo de textos ganharam mais espao. Entretanto, a abordagem precisa ser ampliada, no sentido de entender-se o texto, tambm, como objeto de interao e, portanto, de aprendizagem, para alm do contexto escolar e para alm, claro, das aulas de Lngua Portuguesa.

Pensar a forma como se organizam os enunciados e como interagimos com os mais variados interlocutores nas prticas sociocomunicativas fundamental para um fazer pedaggico produtivo. Por essa razo, importante trazer, mais uma vez, como temtica para o programa Salto para o Futuro, idias que fundamentam o texto como objeto de ensino e de aprendizagem.

As prticas de leitura e de escrita estiveram presentes nas discusses temticas que compuseram inmeras sries do Salto para o Futuro, ao longo dos quinze anos de exibio do programa. Com o propsito de ampliar as reflexes sobre tais prticas, mais uma vez, elas so o mote de uma srie que enfatiza o texto como unidade de ensino, ao abord-lo sob a

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perspectiva da oralidade e da escrita, atentando para os mltiplos ngulos de observao, tanto em relao sua constituio, estrutura e linguagem, quanto ao seu entendimento compreenso/interpretao5 pelo leitor/ouvinte.

As dificuldades apontadas, em geral, tanto pelos professores quanto pelos alunos, no dia-a-dia escolar, em relao s atividades com o texto, destacam-se como o grande n para um saber-fazer pedaggico. E a forma de lidar com o texto, seja para a sua escrita, seja para sua inteleco, em suma, para a produo de sentidos, que permitir desenvolver uma aprendizagem significativa com a linguagem na escola.

O domnio da escrita, favorecido pelo contato com diferentes textos nas classes de alfabetizao, por exemplo, estende-se a todos os segmentos de ensino, aprimorando-se por meio das prticas sociais com a linguagem e legitimando-se por meio de um trabalho pedaggico que tome o texto como fonte e ferramenta de ensino desde as sries iniciais.

Esse trabalho dever desenvolver-se de modo a considerar o texto alm da sua estrutura organizacional, englobando a linguagem que o caracteriza, o contexto de produo, os espaos de circulao e os possveis interlocutores. Uma abordagem significativa para o texto em sala de aula, portanto, dever compreend-lo como uma proposta de sentidos suscetvel s interaes.

Um problema que se pode destacar em relao s prticas de leitura e de escrita no ambiente escolar a artificialidade com que, muitas vezes, se trata a relao autor-texto-leitor e, ainda, o ensino da gramtica tomando-a como um fim em si mesma. Exemplos de prticas que abordam o texto somente sob o ponto de vista estrutural, desvinculado de um contexto de produo e de circulao, e que no levam em conta a sua proposta comunicativa podem resultar num trabalho com a escrita e com a leitura meramente formal, distanciado de uma concepo de texto como unidade de ensino e como forma de interao.

Escolher determinadas peas de linguagem e no outras e, do mesmo modo, privilegiar uma dada forma composicional em relao s inmeras possibilidades de apresentao dos

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enunciados6 so estratgias do produtor que direcionam a construo de sentidos. Essas escolhas so realizadas pelo produtor do texto, levando em conta conhecimentos partilhados, ou presumidamente partilhados, pelo leitor. So tarefas esperadas do leitor: a identificao de: tais estratgias e, ainda, a articulao dos contedos apresentados no texto, de modo a se aproximar de um sentido7 pretendido pelo produtor.

O texto, assim visto, concebido, portanto, como espao de interao, constituindo-se por meio dos processos de coeso, construdos sob sua articulao escrita, e tambm leitora8, e de coerncia que se estabelece nos diferentes contextos comunicativos e pelos diversos interagentes.

Apresentar aos alunos esses caminhos de contato/interao com as prticas de letramento contribui para que o processo de autoria9 se construa no ambiente pedaggico, abrangendo as diferentes disciplinas escolares. Reconhecer as marcas constituidoras da textualidade, aceitar tais marcas como provocaes de sentidos e identificar os propsitos comunicativos so passos necessrios para a produo de textos, tanto para a leitura quanto para a escritura, pois, conforme nos lembra Marcuschi (1998, p. 4), produz sentidos tanto quem escreve quanto quem l textos10.

Em suma, escolher determinadas marcas lingsticas em meio a muitas outras oferecidas pela lngua, apresent-las, sistematiz-las, adequ-las aos usos de linguagem, ao cotidiano e norma, inscrev-las nos variados contextos de significao so compromissos de uma prtica que pode, e deve, sistematicamente ser vivenciada na escola. Inclui-se, tambm, nesse compromisso, desenvolver estratgias de domnio da ortografia, da gramtica da lngua/texto, por meio de atividades significativas com a linguagem, visando descoberta de caminhos para o desenvolvimento da competncia textual dos alunos. Para isso, necessrio um trabalho de seleo e de combinao dos elementos lingsticos no universo das inmeras possibilidades que a lngua oferece.

Nessa perspectiva, o trabalho com textos nas aulas de Lngua Portuguesa oferecer subsdios para que a relao do aluno com o texto nas outras disciplinas escolares se amplie, de modo

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que os processos de compreenso/interpretao possibilitem a construo de conhecimentos e o desenvolvimento da autoria, princpios caros a uma prtica pedaggica que se pretende crtica e participativa.

Ao considerar os aspectos apresentados, a srie Um Mundo de Letras: prticas de leitura e escrita11 toma, ao longo dos cinco programas, o texto como eixo norteador das prticas com a linguagem na escola, desde a aquisio da escrita, numa perspectiva de alfabetizao por meio de textos, prticas de letramento, ao seu domnio e habilidade leitora, processos que se expressam no exerccio da autoria, tanto nas prticas de escrita quanto nas de leitura de textos.

A srie compreende tambm pontos de encontro e de desencontro na abordagem dos registros oral e escrito no fazer pedaggico: a transposio de marcas da oralidade para a escrita, o que comum na aquisio deste sistema; dificuldades na aprendizagem da ortografia; adequaes necessrias e importantes na construo dos mais variados gneros discursivos e seus contextos: do cotidiano aos usos literrios, tecnolgicos e cientficos nas prticas comunicativas. Essas prticas constituiro assuntos para debates que se pretendem enriquecedores, sem o objetivo de esgotar a complexa discusso sobre a linguagem no cotidiano escolar, seus mltiplos aspectos e o domnio normativo.

Ao longo dos cinco programas, sero discutidos temas como, por exemplo: (i) a cultura da oralidade e a sua importncia para o desenvolvimento da escrita; (ii) a leitura de textos como atividade interativa altamente complexa de produo de sentidos; (iii) os gneros discursivos no cotidiano escolar; (iv) a produo de textos e o domnio das estratgias de organizao da informao e da estruturao textual; (v) a aula de Lngua Portuguesa: ensino e gramtica .

Esta srie pretende, enfim, oferecer aos professores, de diferentes segmentos de ensino e de reas do saber, conhecimentos e reflexes que se podem ampliar sobre um fazer pedaggico, bem como sobre alternativas e sugestes para um trabalho que considere o aluno, antes de tudo, como sujeito de aprendizagem que, essencialmente, inscreve sentidos na sua relao constante, colaborativa e co-construtiva na e pela linguagem.

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Pontos para reflexo ao longo da srie:

Que concepo de lngua/linguagem subjaz s prticas de ensino de Lngua Portuguesa?

De que forma oralidade e escrita perpassam as prticas sociais e escolares de linguagem? Como considerar as peculiaridades do ensino/aprendizagem da escrita, tomando como questo poltico-pedaggica o fato de grande parte dos alunos das escolas pblicas ser oriunda de comunidades em que a cultura oral o trao predominante? Como conceituar alfabetizar e letrar? O que significa alfabetizar letrando? O que significa tomar o texto como elemento central das prticas de ensino?

Qual a importncia de, ao se trabalhar com o texto na escola, enfoc-lo com um todo formado de elementos constitutivos que precisam ser analisados em suas especificidades? De que forma contemplar, nas prticas escolares, textos de diferentes gneros/tipos, preservando o debate sobre seus contextos sociais de circulao?

Temas que sero discutidos na srie Um Mundo de Letras: prticas de leitura e escrita, que ser apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC de 16 a 20 de abril de 2007: PGM 1 Linguagem: oralidade e escritaOs objetivos do primeiro programa so: descrever prticas de linguagem, especificando as caractersticas dos registros oral e escrito; destacar os usos de linguagem nos variados contextos comunicativos, os gneros que deles resultam. Neste programa, pretende-se

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enfatizar a cultura da oralidade e a sua importncia para o desenvolvimento da escrita, discutir a aquisio do registro escrito como um processo que se d ao longo das sries iniciais e que se estende s prticas sociais com a linguagem e, ainda, ressaltar a relao entre usos de linguagem e norma lingstica: variaes lingsticas e ensino da lngua.

PGM 2 Texto: leitura e produo de sentidosNo segundo programa da srie, a proposta conceituar texto, enumerando seus aspectos constitutivos e destacar sua importncia como espao de interao social. O programa visa, tambm, abordar mecanismos de coeso e de coerncia textual, diferenciar os tipos de intertextualidade, apresentar os processos de escrita e leitura sob contextos diversos de produo e de uso, estabelecer uma comparao entre as principais teorias sobre texto e leitura, enumerar estratgias lingsticas que esto em jogo na produo de sentidos (escrita e leitura) e promover uma discusso sobre as prticas de ensino da leitura, compreenso/interpretao de textos.

PGM 3 Gneros textuais: objetos de ensinoO terceiro programa se prope a destacar os diversos usos de linguagem, a constituio dos gneros discursivos e estabelecer uma distino entre gneros discursivos/textuais e tipologia textual, assinalando o enfoque terico. E, ainda, enfatizar os domnios da estrutura composicional e do estilo como recursos importantes para a escrita dos mais diferentes textos, refletir sobre as prticas atuais de linguagem, ressaltar a presena dos gneros digitais, destacar o uso da linguagem nos gneros digitais (televiso, internet) e refletir sobre a sua concepo na prtica pedaggica.

PGM 4 Compreenso e produo de textosO quarto programa tem como proposta apresentar estratgias de referenciao discursiva nos diferentes gneros e o seu funcionamento na produo de textos (escrita e compreenso).

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Sugerir atividades de sala de aula que levem em conta a diversidade constitutiva dos gneros, bem como as particularidades da linguagem. Objetiva, tambm, ressaltar a importncia da diversidade de gneros para um trabalho com a produo de textos na escola, tanto para a escrita quanto para a inteleco. Enfatizar a presena de textos literrios na escola e o trabalho com a multiplicidade de sentidos e, ainda, identificar a ambigidade como recurso lingstico em gneros como, por exemplo, publicitrio e humorstico (piadas).

PGM 5 A gramtica na escolaNo ltimo programa da srie, os debates vo focalizar a estruturao de uma abordagem pedaggica de gramtica a partir das trs concepes bsicas mecanismo internalizado, descritiva e normativa , que se adeqe ao ensino de lngua que toma o texto como unidade de ensino. Esta concepo pedaggica privilegia a dimenso significativa no ensino de gramtica. Pretende-se apresentar o trabalho com a gramtica da lngua em suas diferentes variedades (inclusive a variedade oral e escrita) por meio de quatro tipos de atividades de ensino de gramtica: uso, reflexiva, normativa, terica. O programa visa, ainda, discutir sobre as concepes de erro e de adequao no ensino de gramtica para a produo/compreenso textual, tendo em vista a situao concreta e especfica de interao comunicativa em que se insere o ato de produzir/compreender textos e, conseqentemente, como pode/deve acontecer a interveno do professor para orientar os alunos na seleo de recursos lingsticos para a constituio de sua fala e escrita.

Notas: Doutora em Lingstica pela UNICAMP. Analista Educacional do programa Salto para o Futuro/TVEscola/SEED/MEC. Professora Adjunta de Lngua Portuguesa do Centro Universitrio Tecnolgico Estadual da Zona Oeste/UEZO Campo Grande/Rio de Janeiro. Consultora desta srie. Mestre em Educao pela PUC-Rio. Supervisora Pedaggica do programa Salto para o Futuro/ TVEscola/SEED/MEC. Consultora desta srie.2 3

BARTHES, Roland. O prazer do texto, So Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 82-83.

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Trata-se de um ramo da Lingstica que se desenvolveu na Europa, especialmente, na Alemanha e que tem como objeto de estudo o texto. Os estudos da Lingstica do Texto vm

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se expandindo e ganhando destaque no s na Cincia da Linguagem, pois estabelecem dilogos com outras cincias como, por exemplo, Filosofia da Linguagem, Psicologia Cognitiva e Social, Antropologia, Cincias da Computao, entre outras. Para aprofundamento, sugerimos a leitura de KOCH, Ingedore Grunfeld Villaa. Introduo Lingstica Textual: trajetria e grandes temas. So Paulo, Martins Fontes, 2004.5

Nesta proposta no fazemos uma distino entre compreenso e interpretao, tal como prope a Anlise do discurso, cincia que tem como objeto de estudo o discurso, seus processos e condies de produo, entendemos os processos como interdependentes. Uma distino para esses conceitos encontra-se no livro ORLANDI, Eni Pulcinelli. Anlise do discurso: princpios e procedimentos. Campinas, So Paulo, Pontes, 5 ed., 2003: (...) A interpretao o sentido pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. (...) No entanto, a compreenso muito mais do que isso. Compreender saber como um objeto simblico (enunciado, texto, pintura, msica, etc.) produz sentidos. saber como as interpretaes funcionam. Quando se interpreta j se est preso em um sentido. A compreenso procura a explicitao dos processos de significao presentes no texto e permite que possam escutar outros sentidos que ali esto, compreendendo como eles se constituem (p. 26).6

Bakhtin, em seu livro Esttica da criao verbal, prope a classificao dos gneros, formas mais ou menos estveis de enunciados, em primrios aqueles que fazem parte da esfera cotidiana da linguagem e que podem ser controlados diretamente na situao discursiva, tais como: bilhetes, cartas, dilogos, relato familiar..., e secundrios - textos, geralmente, mediados pela escrita, que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem; dentre eles, o romance, o teatro, o discurso cientfico... que, por essa razo, no possuem o imediatismo do gnero anterior. BAKHTIN, Mikhail. Os gneros do discurso. In: ---, Esttica da criao verbal, [trad. francs. Maria Ermantina Galvo; reviso, Marina Appenzeller], 3 ed. So Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 279-287. importante destacar que, como tem evidenciado KOCH em vrios de seus trabalhos, no h o sentido para o texto, mas sentidos possveis que se partilham no curso de interao. O produtor, por meio das escolhas lingsticas, orienta o leitor na construo do(s) sentido(s) que se d em variadas direes contando com informaes textuais e extratextuais.7

A coeso no se estabelece somente por meio de articuladores e/ou elementos encadeadores explicitados na superfcie textual, mas tambm por meio da construo de inferncias, isto , estratgias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou o leitor, partindo da informao veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido amplo), constri novas representaes mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informao explcita e informao no explicitada no texto. KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. So Paulo, Cortez, 2002, p. 50.8 9

Para que o sujeito se constitua autor, ele deve ser capaz de organizar seu discurso extrapolando os aspectos formais e as regras que condicionam o texto, deve imprimir ao texto suas marcas, isto , sua singularidade, sua expressividade enquanto produtor de sentidos. Sobre esse assunto sugerimos a leitura: POSSENTI, Srio. Indcios de autoria, Revista Perspectiva, Florianpolis, v.20, n01, p. 105-124, jan./jun. 2002. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Aspectos lingsticos, sociais e cognitivos na produo de sentido. Texto apresentado por ocasio do GELNE, 2-4 de setembro, 1998. Mimeografado.10

Esta proposta origina-se da srie Um Mundo de Letras exibida pela TV Escola, canal da Secretaria de Educao a Distncia (SEED/MEC), em cinco programas sob os ttulos: Um mundo imerso em palavras; O poder das histrias; O som das palavras ; As normas da lngua; Caminhos para ler o mundo, respectivamente. A srie original trata de questes relativas alfabetizao, letramento e cidadania, levando em conta as diferenas culturais e regionais do Brasil. Na srie, os programas traam um panorama de experincias propondo novas maneiras de abordar o processo de alfabetizao e incentivar a prtica da leitura.11

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PROGRAMA 1

LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizao

Luiz Carlos Cagliari1

1.

Introduo

O processo de alfabetizao depende de muitos fatores, porm, o principal deles como uma pessoa consegue ler. O segredo da alfabetizao est, pois, na leitura. O termo leitura tem muitos sentidos, aplicando-se a muitas reas e a habilidades diferentes, como ler o mundo, ler um quadro, fazer uma leitura de um fato ou de um lugar, etc. Na escola, o significado mais usual e mais importante saber interpretar. A leitura algo que traz uma mensagem que precisa ser entendida. Para se chegar a essa habilidade, preciso percorrer um longo caminho de estudos e praticar o ato de ler inmeras vezes, em inmeras circunstncias e com inmeros tipos de material escrito. Esse o ponto de chegada. Mas, para alcanar esse objetivo, preciso dar os passos iniciais. A alfabetizao , exatamente, os primeiros passos dessa caminhada. Mal comparando, a alfabetizao se assemelha ao engatinhar de uma criana e seus primeiros passos na vida. Andar e correr so habilidades que vm depois.

2.

Definindo o que a alfabetizao

As consideraes acima nos permitem definir o processo de alfabetizao como a habilidade de saber ler no sentido primeiro do ato de ler, que decifrar o que est escrito. O resto vem depois.

A definio de alfabetizao tem estreita ligao com o objetivo da escrita, que permitir a leitura. Todos os sistemas de escrita tm esse objetivo. Desse modo, nenhum sistema de

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escrita transcreve a fala de uma pessoa ou de grupo social, mas simplesmente a representa. Esta a razo pela qual cada um l em seu dialeto. Um paulista l uma revista em seu dialeto, mas a mesma revista lida por um carioca, um gacho, um nordestino, um portugus, um angolano em diferentes dialetos. Seria ridculo que todos fossem obrigados a ler numa nica variedade. Diante disto, a escola precisa saber que seus alunos iro ler cada qual em seu dialeto. A leitura no dialeto padro uma habilidade que vem mais adiante.

3. A linguagem oral e a linguagem escrita

Todo falante de uma lngua fala comumente em seu dialeto, mas ouvinte de todos os outros que encontrar. A variao lingstica, entre outras caractersticas, traz marcas geogrficas (paulista, carioca, nordestino, portugus europeu, angolano, etc.), marcas sociais (dialeto dos letrados, dos ricos, dialeto das classes pobres, dos advogados, dos jovens, dos idosos, etc.) e marcas de estilo (dialeto padro, estilo formal, informal, gria, jargo, etc.). Essas marcas representam regras diferentes de falar, regras gramaticais e regras de uso social. A variao nas regras gramaticais no mostra um despreparo, uma deficincia, um descuido, mas um sistema bem estabelecido. Somente a comparao de um sistema com outro que mostra as variaes de uma mesma lngua. Com os usos, a variao adquire valores sociais, atribudos pela sociedade e no pelo sistema gramatical. Quando algum acha que uma pessoa das classes mais desfavorecidas fala errado, est emitindo um juzo falso lingisticamente, porque essa pessoa usa seu sistema gramatical com perfeio. Isto ocorre com todos os dialetos. Na sociedade, porm, preciso, s vezes, falar o dialeto padro do lugar, para mostrar aos outros que a pessoa tem estudos e cultura e sabe se comportar de modo adequado aos costumes do lugar. por isso que a escola vai ensinar o dialeto padro a quem no sabe, dando a esses alunos uma chance a mais de ter melhores oportunidades na vida em sociedade.

Como a escrita uma marca da cultura da sociedade, obviamente, adota uma variedade culta da linguagem oral para sua forma escrita. No escrevemos no nosso dialeto, mas no dialeto padro. Isso no um empecilho, pelo contrrio, faz com que a escrita cumpra seu objetivo maior, que permitir a leitura, deixando que cada falante leia em seu dialeto ou no dialeto padro.

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4. Comear sem saber

As crianas que comeam a se alfabetizar sabem falar uma variedade (dialeto). Grande parte delas sabe ouvir e entender o dialeto padro, mas no o usam, porque sua vida na comunidade no exige isso. Portanto, o processo de alfabetizao precisa comear usando a variedade dos alunos e no uma variedade que eles no falam.

5. A ortografia organiza a leitura

Para a escrita conseguir seu objetivo, ela teve que inventar a ortografia. Sem a ortografia, nosso sistema iria trazer incontveis formas diferentes de escrever uma mesma palavra, porque as pessoas falam de modos diferentes (cf., por exemplo, compremu, compramos, compramu; acharo, acharu; dentro, drentu; mais, maich; caldo, caldu, cardo, cardu, carrdu, etc.). Com isto, descobrimos que quem manda no sistema de escrita a ortografia e no o princpio alfabtico (letra = som e vice-versa). Uma letra representar tantos sons quantos ocorrerem para ela em todas as palavras da lngua; para todos os falantes, a letra A tem o som de A em andamos; o som de E em andemu; o som de U em andaru, etc.

6. A categorizao grfica organiza o visual da escrita

A primeira coisa que uma pessoa precisa fazer para decifrar uma escrita reconhecer quais caracteres esto escritos, que letras a palavra tem. Dependendo do tipo de letra (fonte, estilo), a pessoa pode ter srias dificuldades. Se ela no souber que letra est escrita, como poder proceder leitura? Todos ns j passamos pela experincia de no saber ler o que algum escreveu, porque no identificamos as letras. As letras de frma, sobretudo maisculas, so as de mais fcil identificao. As letras minsculas, menos, mas, como estamos familiarizados, esses dois tipos so os melhores. Letra cursiva muito difcil para o principiante, porque ele no sabe onde comea uma e acaba outra. importante salientar que as dificuldades iniciais de um alfabetizando so muito diferentes das dificuldades que aparecem ao longo dos estudos. No comeo, a escrita parece o que, para ns, seriam rabiscos; depois, formas geomtricas; depois, letras. As diferentes formas de escrever uma mesma letra tambm so

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uma fonte de grandes perplexidades por parte de alguns alunos. Um rabisco torna-se letra quando adquire uma funo no sistema de escrita, isto , representa um som numa palavra. Nesse momento, a letra torna-se uma unidade abstrata. Por isso, podemos variar sua forma grfica que suas funes permanecem as mesmas (cf. a - a; E - e; B - b; R - r, etc.).

7. O princpio acrofnico um bom comeo

Para se identificar as letras, principalmente na escrita cursiva ou como atividade inicial do alfabetizando, recorremos identificao da palavra. A palavra a principal unidade de todos os sistemas de escrita, inclusive o alfabtico. Identificada uma palavra (possvel, verdadeira ou falsa dependendo da adivinhao), o leitor passa a atribuir palavra as letras, seguindo seus conhecimentos da ortografia. Se o aluno no souber a ortografia, seu processo de adivinhao total e ter mais chances de errar. Feita a identificao das letras, passa-se interpretao da palavra. Neste caso, o contexto em que ela se insere de grande ajuda, porque o seu significado precisa se encaixar em meio a outros significados.

Dadas essas dificuldades, comum, na alfabetizao, que o professor diga de qual palavra se trata para, em seguida, analisar quais letras tem, como se combinam e, assim, decifr-la pela anlise das letras. Por razes de motivao, muitos professores comeam a alfabetizar usando os nomes das crianas. pelos nomes de pessoas e de objetos que os pais tambm procedem, quando querem comear a alfabetizar seus filhos.

8. A categorizao funcional o que vale

Apesar das dificuldades do sistema de escrita, os procedimentos de identificao grfica das letras e de sua associao com alguns sons possveis (princpio acrofnico) fazem com que o processo de alfabetizao d a partida suavemente e coloque o processo em acelerao. Como o objetivo da alfabetizao saber ler, levando-se em conta outros fatores pressupostos (cf. os

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alunos sabem falar, sabem refletir minimamente sobre a linguagem em seu aspecto fontico e semntico...), uma boa metodologia consiste em desenvolver no aluno a habilidade de ler, identificando letras e palavras. Em pouco tempo, os alunos so desafiados a ler uma variedade de palavras e isso lhes d autoconfiana.

O grande problema do processo de alfabetizao est no outro lado da moeda: escrever. Ningum se alfabetiza escrevendo apenas. Basta copiar chins, para aprender chins? Basta fazer hipteses sobre a escrita chinesa para aprend-la? Muitos conhecimentos so necessrios, muitas regras precisam ser aprendidas na teoria e na prtica. Quando se l, a palavra j vem pronta na sua escrita ortogrfica. Quando se vai escrever, preciso partir da fala (do dialeto); analisar quais sons (vogais e consoantes) a palavra tem; buscar uma correspondncia entre sons e letras, no comeo, por um processo, em parte, de adivinhao (princpio acrofnico); passar os sons para letras; checar o resultado (ortografia ou algum tipo de escrita permitido). Esta uma habilidade altamente complexa, que o aluno consegue comear e desenvolver somente depois que adquiriu certa prtica de leitura decifrativa, isto , depois de adquirir certa prtica de manuseio de letras, sons e palavras. A conscincia da variao dialetal na leitura ajuda o aluno, no caminho de volta, a no se assustar com as diferenas entre fala e escrita, indo diretamente para as formas ortogrficas ou semiortogrficas.

O fato de uma letra referir-se a muitos sons, por causa da variao dialetal, porm exercer uma mesma funo no sistema ortogrfico chama-se categorizao funcional das letras. a alma do negcio.

Com o desenvolvimento de algumas habilidades de reconhecimento 1) da forma grfica das letras (categorizao grfica); 2) de algumas relaes entre letras e sons (princpio acrofnico); 3) da funo ortogrfica que gerencia as relaes entre fala e escrita (categorizao funcional) o alfabetizando, em pouco tempo, aprende como proceder para saber ler e escrever. A sofisticao dessas habilidades requer tempo, prtica e dedicao. Para isto, necessria a ao do professor, no somente a do aluno.

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9. A prtica do professor

H muitos mtodos de alfabetizao. H muitas teorias. H prticas diferentes. Todavia, em nenhum caso se dispensa o professor, que deve ter uma formao bem feita, que lhe d o instrumental terico e prtico para conduzir o processo de alfabetizao. Como em todas as atividades da vida, a competncia tcnica faz a diferena. Quanto mais o professor souber sobre a linguagem oral e escrita, melhores chances ele ter de ensinar e de orientar seus alunos para que superem suas dificuldades e atinjam os objetivos propostos. O modo como o professor ir trabalhar o princpio acrofnico (tambm chamado de princpio alfabtico), a categorizao grfica e a categorizao funcional, isto , ensinar a reconhecer letras, montar palavras na leitura e na escrita, enfim, sua programao de atividades, uma questo que tem de ser deixada para o professor resolver, porque, afinal, ele quem conhece a classe de alunos que tem e quais suas habilidades como professor. O mtodo o professor, mas os conhecimentos tcnicos precisam ser buscados na cincia, no caso, na Lingstica. Grandes problemas advieram Educao neste pas, quando substituram o professor pelos mtodos prontos (da alfabetizao universidade). O ser professor exige dele cincia e arte: cincia para tratar cientificamente de tudo que ensina e arte para interagir com seus alunos e orientlos no processo de aprendizagem.

10. A prtica na prtica

Sem querer substituir o professor por um mtodo predeterminado e por aes definidas passo a passo, a prtica de ensino em sala de aula acaba sugerindo procedimentos metodolgicos que, devidamente adaptados a cada professor, ajudam o processo de ensino e de aprendizagem. As sugestes abaixo esto voltadas para os trs pontos tericos destacados.

Categorizao grfica:

Usar um painel com o alfabeto de letras de frma maisculas, incluindo , K, Y, W. Ensinar o nome das letras (um pouco por vez).

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Falar sobre o mundo da escrita, histria da escrita, variao no aspecto grfico das letras, sem fazer exerccio; bastam os exemplos comentados. Mais adiante, ensinar as letras de frma minsculas comparadas com as maisculas.

Princpio acrofnico (alfabtico): Mostrar a relao entre letra e som, usando a primeira letra dos nomes dos alunos, de pessoas conhecidas e de objetos. Mostrar rimas e destacar as letras iguais nas palavras.

Descobrir letras dentro de palavras. Usar pares de palavras em que h a variao de apenas uma letra/som (pares mnimos do tipo pata lata; boi - foi). Descobrir sons em diferentes contextos de palavras e quais as letras que os representam. Categorizao funcional: Discutir com os alunos a questo da variao dialetal, pronncias diferentes para uma mesma palavra. Discutir a questo da ortografia, como forma de neutralizar a variao dialetal. Escrita espontnea de palavras, de frases, de histrias. Correo ortogrfica comentada.

Exemplos de estratgias de escrita

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Tentativa da Jlia de escrever um bilhete para sua amiga Carol. Apesar de conhecer a forma grfica de algumas letras isoladas (comeou a escrever seu nome), o texto manuscrito se mostra com uma forma grfica diferente, uma seqncia de laos. Aqui falta o conhecimento da categorizao grfica das letras. A criana escreve assim por causa da maneira como interpreta o gesto mecnico de escrita do adulto, que mantm o lpis fixo ao papel constantemente.

Outra estratgia de escrita de uma histria. O primeiro exemplo mostra um uso de letras de frma maisculas e o segundo, de escrita manuscrita cursiva. Os dois alunos aprenderam a forma grfica de algumas letras e escreveram seqncias de letras. Aqui falta o conhecimento da categorizao funcional das letras. Quando esta prtica se repete, o aluno fica completamente perdido, porque ele sabe que no sabe ler.

Conhecendo a forma grfica das letras, a criana capaz de escrever palavras cujas letras so ditadas por um adulto [HOMEM DA LUA]. Esse ditado-cpia no suficiente para que a criana aprenda a ler, mas pode ser um bom comeo. O fato de um aluno decorar a escrita

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de algumas palavras e de identific-la lendo ajuda-o a refletir sobre a categorizao funcional, ou seja, a relao entre letras e sons. Quando, porm, a memorizao mecnica ou simples cpia, a reflexo do aluno desaparece.

Os antigos e modernos ditados podem perpetuar a dificuldade que o aluno tem com a categorizao funcional, mesmo quando adquirem excelente caligrafia. No adianta pedir para a criana pensar, fazer hipteses: ela precisa mesmo de explicaes detalhadas. Analisar com os alunos como se l e como se escreve uma palavra vale muito mais do que muitos ditados tradicionais.

Alguns alunos no chegam nem mesmo a aprender a categorizao grfica, apesar de escreverem ocasionalmente algumas letras. Esta tentativa de escrever o prprio nome revela isso. A variao no traado mostra que a aluna poderia ser uma boa copista, mas s isto no basta. Ela sabe que a simples cpia no a leva a escrever por iniciativa prpria o que desejar; ento, comea a fazer tentativas estranhas. A questo da programao de contedo e das estratgias de ensino e de aprendizagem, na alfabetizao, assume um papel muito importante. A alfabetizao no pode ser feita de qualquer jeito.

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Com poucos conhecimentos, um aluno j pode tentar escrever suas histrias. Os erros de ortografia vo aos poucos sumindo e sobram poucos. Ao tentar escrever com os prprios recursos, aparecem muitas hipteses de como os alunos acham que as palavras so escritas (ortografia) e de como se pode contar um fato (organizao do texto). Grande parte do processo de alfabetizao dedicada a isso. Veja: Oca chorro / caxorro [cachorro]; mimodeu [me mordeu]; no so [no cho]. Se o aluno s escreve, sem o professor analisar, discutir e corrigir, - com o tempo, o aluno acha que pode escrever de qualquer jeito.

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O menino guardinnha O menino ele apredeu ser um guarda iele eraosje iele mondava todo os quardas ida cidade para ve sino tei ladro sitifer eles prede sino tifer ele no prede ieles jegara com um labral qui eu mandei [no prende e eles chegaram com um ladro que eu mandei] Mais eles pegaro o homen erado ieu fale i o nome dele iera dodal mente erado o nome dele era Artur muito erado easim acaba aestoria fin

O professor no precisa ter medo de ver textos escritos assim. Eles mostram que o aluno j aprendeu a ler (est alfabetizado) e est muito adiantado na habilidade de passar da fala para a escrita. Muitos problemas de escrita podem se reduzir a dificuldades ortogrficas, porm, esses problemas se corrigem com o tempo.

As hipteses que as crianas fazem quando aprendem a ler e a escrever, ou seja, o que costuma acontecer durante o processo de alfabetizao

1. Diferena entre desenho e escrita: desenho representa o mundo, escrita representa palavra. A escrita pode ser figurativa (pictogramas) ou geomtrica (letras)

SOL

AMOR TELEFONE BICICLETA

CHUVA

2. Como a escrita representa a fala e permite a leitura, qualquer rabisco pode assumir o valor de escrita, como as assinaturas e os rabiscos que as crianas fazem para escrever. Esse sistema, porm, no pode ser usado para todas as finalidades da escrita.

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3. Aprendendo a forma grfica das letras do alfabeto, a criana passa a escrever usando seqncias de letras aleatrias: ASPTLMONSPTOA [era uma vez um macaco chamado Mico]. Aluno que escreve assim sinal de alerta para o professor: est indo para o caminho errado. preciso usar palavras curtas para explicar as relaes entre letras e sons.

4. Quando o aluno exposto escrita manuscrita cursiva, pode interpretar erroneamente a forma grfica das letras. Com essa dificuldade no saber, depois, relacionar letras com sons. Um aluno que v escrito prato pode pensar que essa palavra tem as seguintes letras: j s c a t i e ou que rato comea com a letra c.

5. Aluno no corrige e vai escrevendo o que acha que precisa. Assim, uma palavra como pai acaba recebendo a seguinte escrita: APAAIPAI e sapato: SABAPATO. A escrita est correta, mas veio com os erros da tentativa de escrita. Isto muito comum, mas alguns professores no se do conta disso.

6. Ao relacionar letras com sons, alguns alunos usam o nome das letras e no o valor alfabtico. Assim, escrevem HRA para agora. CAMLO para camelo, etc.

7. Seguindo o modelo das cartilhas, alguns alunos, em vez dos nomes das letras, usam as famlias de letras (BaBeBiBoBu) e escrevem LT para lata; OA para bola.

8. Aparecem as mesmas escritas acima, quando o aluno repete vrias vezes uma slaba para perceber sua maior salincia: LA LA LA BOOOO LAAAA: tem o O e o A. TA TA TA: tem o L e o T; ou prolonga a slaba:

9. Eventualmente, alguns alunos escrevem palavras ou letras de forma espelhada. Um pouco de exerccio de escrita espelhada e no espelhada, feito pelo professor, mostra o contraste e o uso da direo da escrita.

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10. Nas escritas espontneas iniciais, depois que o aluno aprendeu a usar letras relacionadas com sons, a primeira dificuldade que aparece de como separar as palavras da fala em escrita. A falta de segmentao ou a segmentao indevida aparecem. Isso deve ser tratado como erro de ortografia, que se corrige com o tempo.

Ex.: erumaveis [Era uma vez]; sitifer [se tiver]; aestoria [a estria]

oca choro [o cachorro]; dodal mente [totalmente]; nucei [no sei]

11. A troca de letras tem muitas causas: variao, murmurar os sons, ateno, etc.

bargi [balde]; acharo [acharam]; comprano [compando]; mecadio [merdadinho]; tele [dele]; latro [ladro]; pola [bola]

13. Na alfabetizao, ocorrem muitos casos de hipercorreo: o aluno corrige uma forma errada e, depois, generaliza uma regra que no se aplica em outros contextos. Ele escreve MEDECO, corrige para MDICO e, depois, passa a escrever DECE em vez de DISSE; corrige POLA, escrevendo BOLA e, depois, escreve BETE para PENTE.

14. Alguns alunos misturam letras (quando estudam vrios estilos ao mesmo tempo):

caCHorro; casTeLo.

15. Ao aprender ou ver algumas marcas da escrita, como acentos, til, alguns alunos comeam a colocar tais marcas em lugar errado: petec; la; rb, pde.

16. Erros de ortografia podem mostrar uma variedade de casos. No fundo, erro de ortografia erro de ortografia. Com relao grafia das palavras: ou se sabe ou no se sabe; ou se escreve certo ou errado. Por isso, o aprendizado da ortografia exige tempo, muita leitura e muito exerccio de escrita sob a superviso do professor. Os erros de ortografia costumam chocar

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muito os professores e demais adultos, mas, na alfabetizao, um estgio inevitvel de aprendizado.

17. No confundir simples erro de ortografia com outros tipos de erros que tm causas mais graves, revelando que o aluno no aprendeu a categorizao grfica ou funcional das letras. Os erros de ortografia tm uma relao com uma possvel dvida ortogrfica e no simplesmente uma escrita estranha. Assim, se o aluno escreve MIGODE em vez de BRINCO DE no um simples erro de ortografia. Mas, se escreve BICO em vez de BRINCO pode revelar uma simples dificuldade com a ortografia, no incio. A falta de letras mais grave do que o uso estranho de certas letras em certos contextos.

18. Superadas as dificuldades acima, a partir de ento, os alunos podem escrever textos livres, espontneos ou motivados pelo professor. A passagem do texto oral internalizado na mente do aluno para o texto escrito, expresso no papel, apresenta algumas dificuldades e problemas especficos. O sucesso da produo de bons textos depende crucialmente do modo como o professor leva seus alunos a produzirem textos. Se o modelo de frases soltas, o resultado ser textos desconexos. Se o aluno tiver mais liberdade para expressar na escrita o que poderia dizer falando, o resultado ser textos mais bem elaborados.

11. Bibliografia comentada

Alfabetizao e Lingstica (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, So Paulo, 10 ed. 2006 1 ed. de 1989). O livro apresenta uma viso geral dos problemas de linguagem oral e de linguagem escrita, que aparecem no processo de alfabetizao. Acompanha um cartaz sobre a histria das letras. Obra essencial para quem precisa de informaes lingsticas aplicadas prtica de alfabetizao.

Alfabetizando sem o Ba Be Bi Bo Bu (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, So Paulo, 1998). Alm de apresentar as questes tericas que constituem os conhecimentos tcnicos

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lingsticos de que um alfabetizador precisa, traz comentrios sobre mtodos e metodologias, bem como sugestes de atividades.

Diante das Letras: a escrita na alfabetizao (de Gladis Massini-Cagliari e Luiz Carlos Cagliari, Editora Mercado de Letras, Campinas, 1999). Coletnea de artigos sobre diferentes aspectos da linguagem oral e escrita, como categorizao grfica, funcional, ortografia, histria do alfabeto e o que preciso saber para ler, decifrando a escrita.

Nota: Professor Adjunto MS-5, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, campus de Araraquara, SP. Desenvolve pesquisas nas seguintes reas: Lingstica, com especialidade em Fontica; Alfabetizao; Sistemas de escrita; Ensino e aprendizagem; Letramento.

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PROGRAMA 2

TEXTO: LEITURA E PRODUO DE SENTIDO Texto: leitura e produo do sentidoIngedore G. Villaa Koch1

Neste texto tomo, como pressuposto bsico, a concepo de que o texto lugar de interao de sujeitos sociais que, dialogicamente, nele se constituem e so constitudos. E, ainda, que esses sujeitos ao operarem escolhas significativas entre as mltiplas formas de organizao textual e as diversas possibilidades de seleo lexical que a lngua lhes oferece constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, por meio de aes lingsticas e sociocognitivas. A esta concepo subjaz, necessariamente, a idia de que h, em todo e qualquer texto, uma gama de implcitos, dos mais variados tipos, somente detectveis pela mobilizao do contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais.

Em decorrncia, fica patente que a leitura de um texto exige muito mais que o simples conhecimento lingstico compartilhado pelos interlocutores: o leitor , necessariamente, levado a mobilizar uma srie de estratgias tanto de ordem lingstica, como de ordem cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipteses, validar ou no as hipteses formuladas, preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construo do sentido. Dessa forma, autor e leitor devem ser vistos como estrategistas na interao pela linguagem.

1. Concepo de leitura

Fala-se, constantemente, sobre a importncia da leitura na nossa vida, sobre a necessidade de cultivar o hbito de leitura entre crianas e jovens, sobre o papel da escola na formao de leitores competentes. Mas, no bojo dessa discusso, cabe levantar uma srie de questes, como: O que ler? Para que ler? Como ler? Evidentemente, as perguntas podero ser

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respondidas de diferentes modos, cada um deles revelando uma concepo de leitura, dependendo da concepo de sujeito, de lngua, de texto e de sentido que se adote.

1. 1. Leitura: foco no autor

Sobre essa questo, afirmei em Koch (2002) que, concepo de lngua, como representao do pensamento, corresponde a de sujeito psicolgico, individual, dono de sua vontade e de suas aes. Trata-se de um sujeito visto como um ego que constri uma representao mental e deseja que esta seja captada pelo interlocutor exatamente da maneira como foi mentalizada.

Nessa concepo de lngua como representao do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas aes e de seu dizer, o texto visto como um produto lgico do pensamento (representao mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor seno captar essa representao mental, juntamente com as intenes (psicolgicas) do produtor, exercendo, assim, um papel totalmente passivo.

A leitura, assim, entendida como a atividade de captao das idias do autor, sem que se levem em conta as experincias e os conhecimentos do leitor, a interao autor-texto-leitor com propsitos constitudos socio-cognitivo-interacionalmente. O foco de ateno , somente, o autor e suas intenes. Da as perguntas que, freqentemente, so feitas: Foi isso mesmo que o autor quis dizer? Ser que o autor realmente pensou nisso?

1.2. Leitura: foco no texto

Por sua vez, concepo de lngua como estrutura corresponde de sujeito determinado, assujeitado pelo sistema, caracterizado por uma espcie de no conscincia. O princpio explicativo de todo e qualquer fenmeno e de todo e qualquer comportamento individual repousa sobre a considerao do sistema, quer lingstico, quer social.

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Nessa concepo de lngua como cdigo portanto, como mero instrumento de comunicao e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, o texto visto como simples produto da codificao de um emissor, a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do cdigo utilizado.

Conseqentemente, a leitura vista como uma atividade que exige do leitor o foco no texto, em sua linearidade, uma vez que tudo est dito no texto. Se, na concepo anterior, ao leitor cabia o reconhecimento das intenes do autor, nesta concepo cabe-lhe somente o reconhecimento do sentido das palavras e estruturas do texto: basta-lhe conhecer o cdigo (a lngua), que ter a chave para a interpretao. Em ambas, porm, o leitor caracterizado como passivo, por realizar uma atividade de reconhecimento, de reproduo.

1.3. Leitura: foco na interao autor-texto-leitor

Em contraposio s concepes anteriores, na concepo interacional (dialgica) da lngua, os sujeitos so vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que dialogicamente se constroem e so construdos no texto, considerado o prprio lugar da interao e da constituio dos sujeitos da linguagem. Desse modo, h lugar, em todo e qualquer texto, para toda uma gama de implcitos, dos mais variados tipos, somente detectveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interao.

Nessa perspectiva, o sentido de um texto construdo na interao texto-sujeitos e no algo que preexista a essa interao. A leitura , pois, uma atividade interativa altamente complexa de produo de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos lingsticos presentes na superfcie textual e na sua forma de organizao, mas que requer a mobilizao de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Isto :

a) a leitura uma atividade na qual se levam em conta as experincias e os conhecimentos do leitor;

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b) a leitura exige do leitor bem mais do que o conhecimento do cdigo lingstico, uma vez que o texto no apenas o produto da codificao de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo.

esta a concepo scio-cognitivo-interacional de lngua que privilegia os sujeitos e seus conhecimentos em processos de interao. O lugar mesmo de interao o texto, cujo sentido no est l, mas construdo, considerando-se, para tanto, as sinalizaes ou pistas textuais fornecidas pelo autor e os conhecimentos do leitor que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude responsiva ativa (Cf. Bakhtin, 1992, p. 290). Em outras palavras, espera-se que o leitor concorde ou no com as idias do autor, complete-as, adapte-as, etc., uma vez que toda compreenso prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forosamente, a produz (Bakhtin, 1992, p. 290).

2. A interao: autor-texto-leitor

Pela consonncia com essa posio, destacamos aqui um trecho dos Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa (1998):

A leitura um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construo do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a lngua: caractersticas do gnero, do portador, do sistema de escrita, etc. No se trata simplesmente de extrair informao da escrita decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreenso. Qualquer leitor experiente que conseguir analisar sua prpria leitura constatar que a decodificao apenas um dos procedimentos que utiliza quando l: a leitura fluente envolve uma srie de outras estratgias como seleo, antecipao, inferncia e verificao, sem as quais no possvel rapidez e proficincia. o uso de procedimentos desse tipo que permite controlar o que vai sendo lido, tomar decises diante de dificuldades de compreenso, arriscar-se diante do desconhecido, buscar no texto a comprovao das suposies feitas etc.

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Nesse trecho, encontra-se reforado, na atividade de leitura, o papel do leitor enquanto um construtor de sentido, utilizando-se, para tanto, de uma srie de estratgias, entre as quais a seleo, antecipao, inferncia e verificao.

2.1.

Estratgias de leitura

Assim, espera-se que o leitor processe, critique, contradiga ou avalie a informao que tem diante de si, que a aceite ou a conteste, que d sentido e significado ao que l (cf.: Sol, 2003, p. 21).

Essa concepo de leitura, que pe em foco o leitor e seus conhecimentos, em interao com o autor e o texto, para a construo de sentido, vem j h algum tempo merecendo a ateno de estudiosos do texto e alimentando muitas pesquisas sobre o tema.

Na qualidade de leitores ativos, estabelecemos relaes entre nossos conhecimentos anteriormente constitudos e as novas informaes contidas no texto, fazemos inferncias, comparaes, formulamos perguntas relacionadas com o seu contedo. Mais ainda: processamos, criticamos, contrastamos e avaliamos as informaes que nos so apresentadas, produzindo sentido para o que lemos. Em outras palavras, agimos estrategicamente, o que nos permite dirigir e auto-regular nosso prprio processo de leitura.

2.2. Objetivos de leitura

claro que no devemos nos esquecer de que a constante interao entre o contedo do texto e o leitor regulada, tambm, pelo propsito com que lemos o texto, pelos objetivos da leitura. De modo geral, podemos dizer que h textos que lemos para nos manter informados (jornais, revistas); h outros que lemos para realizar trabalhos acadmicos (dissertaes, teses, livros, peridicos cientficos); h, ainda, aqueles cuja leitura realizada por prazer, por puro deleite (poemas, contos, romances); os que lemos para consulta (dicionrios, catlogos), os que somos obrigados a ler de vez em quando (manuais, bulas), os que nos caem em mos

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(panfletos), ou os que nos so constantemente apresentados aos olhos (outdoors, cartazes, faixas).

So, pois, os objetivos do leitor que nortearo o modo de leitura, em mais tempo ou em menos tempo; com mais ateno ou com menos ateno; com maior engajamento ou com menor engajamento, enfim.

3.

Leitura e produo de sentido

Se, portanto, a leitura uma atividade baseada na interao autor-texto-leitor, nesse processo faz-se necessrio considerar a materialidade lingstica do texto, elemento sobre o qual e a partir do qual se constitui a interao. E, por outro lado, preciso tambm levar em conta o autor e o leitor, com seus conhecimentos e vivncias, condio fundamental para o estabelecimento de uma interao com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade.

3.1. Leitura e ativao de conhecimento

por essa razo que falamos de um sentido para o texto, no do sentido do texto, e justificamos essa posio, visto que, na atividade de leitura, preciso ativar lugar social, vivncias, relaes com o outro, valores da comunidade, conhecimentos textuais (cf. Paulino et al., 2001).

3.2.

Pluralidade de leituras e sentidos

A pluralidade de leituras e de sentidos pode ser maior ou menor dependendo, por um lado, do texto, do modo como foi constitudo, do que foi explicitamente revelado, e do que foi implicitamente sugerido; por outro lado, da ativao, por parte do leitor, de conhecimentos de natureza vria, bem como de seus objetivos e de sua atitude perante o texto.

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Assim, considerar o leitor e seus conhecimentos e que esses conhecimentos so diferentes de um leitor para outro implica, necessariamente, aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relao a um mesmo texto.

claro que, com isso, no preconizamos que o leitor possa ler qualquer coisa com base em um texto, pois, como j afirmamos, o sentido no est apenas no leitor, nem no texto, mas na interao autor-texto-leitor. Por isso, de fundamental importncia que o leitor considere, na e para a produo de sentido, as sinalizaes do texto, alm dos conhecimentos que possui.

4. Fatores de compreenso da leitura

A compreenso de um texto varia, portanto, segundo as circunstncias de leitura e vai depender de vrios fatores complexos e inter-relacionados (Alliende & Condemarn, 2002).

Embora tais fatores estejam intimamente relacionados na compreenso da leitura, cabe chamar a ateno para os casos em que fatores relativos ao autor/leitor, por um lado, ou ao texto, por outro lado, podem interferir no processo, de modo a dificult-lo ou facilit-lo.

4.1.

Fatores relativos ao autor/leitor

Esses fatores referem-se ao conhecimento dos elementos lingsticos (uso de determinadas expresses, lxico antigo etc.), esquemas cognitivos, bagagem sociocultural, circunstncias em que o texto foi produzido.

Em outras palavras, podemos dizer que os conhecimentos selecionados pelo autor na e para a constituio do texto criam um leitor-modelo. Desse modo, o texto, pela forma como constitudo, pode exigir mais ou menos conhecimento prvio de seus leitores. Isto , um texto no se destina a todo e a qualquer leitor, mas pressupe um determinado tipo de leitor e exclui outros.

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Em nosso dia-a-dia, deparamo-nos com inmeros textos veiculados em meios diversos (jornais, revistas, rdio, TV, internet, cinema, teatro), cuja produo orientada para um determinado tipo de leitor (um pblico especfico), o que, alis, vem evidenciar o princpio interacional constitutivo no apenas do texto, como do prprio uso da lngua.

4.2.

Fatores relativos ao texto

Alm dos fatores da compreenso de leitura ligados ao autor e ao leitor, h os relacionados ao texto, que dizem respeito sua legibilidade, podendo ser materiais, lingsticos ou de contedo (Cf.: Alliende & Condemarn, 2002).

Dentre os aspectos materiais que podem comprometer a legibilidade, os autores citam: o tamanho e a clareza das letras, a cor e a textura do papel, o comprimento das linhas, a fonte empregada, a variedade tipogrfica, a constituio de pargrafos muito longos... E, em se tratando da escrita digital, a qualidade da tela e o uso apenas de maisculas ou de minsculas, bem como o excesso de abreviaes.

Alm dos fatores materiais, h fatores lingsticos que podem dificultar a compreenso, tais como: a seleo lexical; estruturas sintticas muito complexas, caracterizadas pela abundncia de elementos subordinados; oraes supersimplificadas, marcadas pela total ausncia de nexos para indicar relaes de causa/efeito, espaciais, temporais; ausncia de sinais de pontuao etc.

Uma bula, por exemplo, conhecida como um texto de difcil leitura por seus aspectos materiais, lingsticos e de contedo, a tal ponto que j existe em andamento uma proposta oficial para resolver o problema.

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5 . Escrita e Leitura: contexto de produo e contexto de uso

Depois de escrito, o texto tem uma existncia independente do autor. Entre a produo do texto escrito e a sua leitura, pode passar-se muito tempo, de modo que as circunstncias da escrita (contexto de produo) podem ser absolutamente diferentes das circunstncias da leitura (contexto de uso), fato esse que interfere na produo de sentido. O mesmo acontece tambm quando o texto vem a ser lido num lugar muito distante daquele em que foi escrito ou quando foi reescrito de muitas formas, mudando consideravelmente o modo de constituio da escrita com o objetivo de atingir diferentes tipos de leitor.

6. Texto e Leitura

Cabe, assim, reiterar que a leitura uma atividade que solicita intensa participao do leitor, pois, se o autor apresenta um texto lacunoso ou incompleto, por pressupor a insero do que foi dito em esquemas cognitivos compartilhados, preciso que o leitor o complete, produzindo uma srie de inferncias.

Assim, no processo de leitura, o leitor aplica ao texto um modelo cognitivo (frame ou esquema), baseado em conhecimentos que ele tem representados na memria social.

A hiptese inicial pode, no decorrer da leitura, confirmar-se e se fazer mais precisa; ou pode exigir alteraes, maiores ou menores. Em certos casos, torna-se necessria, at mesmo, a reformulao total dessa hiptese, que ter de ser descartada.

Assim, o texto um exemplo de que o autor pressupe a participao do leitor na construo do sentido, considerando a (re)orientao que lhe dada. Nesse processo, ressalta-se que a compreenso no requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coincidam, mas que possam interagir dinamicamente (Alliende & Condemarn, 2002, p. 126-7).

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7. E a produo de textos?

Relativamente prtica de produo de textos, podem-se destacar as seguintes afirmaes dos PCN:Um escritor competente algum que sabe reconhecer diferentes tipos de texto e escolher o apropriado a seus objetivos num determinado momento (...). Um escritor competente , tambm, capaz de olhar para o prprio texto como um objeto e verificar se est confuso, ambguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja: capaz de revis-lo e reescrev-lo at consider-lo satisfatrio para o momento. , ainda, um leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar fontes escritas para a sua prpria produo.

Assim, no que diz respeito produo do sentido, defendem os PCN que o trabalho de anlise epilingstica em sala de aula importante, por possibilitar a discusso sobre os diferentes sentidos atribudos aos textos e sobre os elementos discursivos que validam ou no essas atribuies, propiciando, inclusive, a construo de um repertrio de recursos lingsticos a ser utilizado quando da produo textual.

A Lingstica Textual vem trazendo ao professor subsdios indispensveis para a realizao das atividades acima sugeridas, visto que ela tem por objeto o estudo dos recursos lingsticos e condies discursivas que presidem construo da textualidade e, em decorrncia, produo textual dos sentidos, o que vai significar, inclusive, uma revitalizao do estudo da gramtica: no mais, claro, como um fim em si mesma, mas com o objetivo de evidenciar de que modo o trabalho de seleo e combinao dos elementos lingsticos nos textos que lemos ou produzimos, dentro das variadas possibilidades que a gramtica da lngua nos pe disposio, constitui um conjunto de decises que vo servir de orientao na nossa busca pelo sentido.

Assim sendo, preciso que os produtores de textos dominem uma srie de estratgias de organizao da informao e de estruturao textual. A continuidade de um texto resulta de um equilbrio varivel entre dois movimentos fundamentais: retroao e progresso. Desta

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forma, a informao semntica contida no texto vai distribuir-se em (pelo menos) dois grandes blocos: o dado e o novo, cuja disposio e tambm dosagem interferem na construo do sentido. A informao dada (ou melhor, aquela que o produtor do texto apresenta como dada) tem por funo estabelecer os pontos de ancoragem para o aporte da informao nova. A retomada desta informao opera-se por meio de remisso ou referncia textual, que leva formao, no texto, de cadeias referenciais anafricas. Estas cadeias tm papel importante na organizao textual, contribuindo para a produo do sentido.

A informao nova introduz-se por meio das diversas estratgias de progresso textual, entre as quais as de contigidade semntica (emprego de termos pertencentes a um mesmo campo de sentido), progresso temtica, progresso tpica e articulao textual.

8. A importncia do contexto

J foi salientado que o recurso ao contexto indispensvel para a produo e a compreenso e, deste modo, para a construo do sentido. O contexto engloba no s o co-texto, como a situao de interao imediata, a situao mediata (entorno scio-poltico-cultural), o contexto acional e, portanto, o contexto sociocognitivo dos interlocutores. Este ltimo, na verdade, subsume os demais. Ele rene todos os tipos de conhecimentos arquivados na memria dos actantes sociais, que necessitam ser mobilizados por ocasio do intercmbio verbal: o conhecimento lingstico propriamente dito, o conhecimento enciclopdico, o conhecimento da situao comunicativa e de suas regras (situacionalidade), o conhecimento superestrutural ou tipolgico (gneros e tipos textuais), o conhecimento estilstico (registros, variedades de lngua e sua adequao s situaes comunicativas), bem como o conhecimento de outros textos que permeiam nossa cultura (intertextualidade).

Nesta acepo, portanto, v-se o contexto como constitutivo da prpria interao pela linguagem. neste sentido que se pode dizer que certos enunciados so gramaticalmente ambguos, mas o contexto se encarrega de fornecer condies para uma interpretao unvoca.

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Admite-se, pois, que:

1. O contexto desambigisa;

2. O contexto permite preencher as lacunas do texto (o contexto completa - cf. Dascal & Weizman, 1987; Clark, 1977, que fala em estabelecer os elos faltantes - missing links-, por meio de inferncias-ponte);

3. Os fatores contextuais podem alterar o que se diz (o contexto modifica ironia, etc.);

4. Tais fatores se incluem entre aqueles que explicam por que se disse isso e no aquilo (o contexto justifica). De qualquer maneira, sob essa perspectiva, falar de discurso implica considerar fatores externos lngua, alguma coisa do seu exterior, para entender o que nela dito, que por si s seria insuficiente.

As relaes entre informao explcita e conhecimentos pressupostos como partilhados estabelecem-se, como dissemos, por meio das estratgias de sinalizao textual, por intermdio das quais o locutor, por ocasio do processamento textual, procura orientar o interlocutor no recurso ao contexto.

por isto que o sentido de um texto, qualquer que seja a situao comunicativa, no depende to-somente da estrutura textual em si mesma (da a metfora do texto como um iceberg). Os objetos de discurso a que o texto faz referncia so apresentados em grande parte de forma lacunar, permanecendo muita coisa implcita. O produtor do texto pressupe, da parte do leitor/ouvinte, conhecimentos textuais, situacionais, culturais e enciclopdicos e, orientandose pelo Princpio da Economia, no explicita as informaes consideradas redundantes. Ou seja, visto que no existem textos totalmente explcitos, o produtor de um texto necessita proceder ao balanceamento do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode permanecer implcito, por ser recupervel via inferenciao (cf. Nystrand & Wiemelt, 1991; Marcuschi, 1997). Na verdade, este o grande segredo do locutor competente.

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O leitor/ouvinte, por sua vez, espera sempre um texto dotado de sentido e procura, a partir da informao contextualmente dada, construir uma representao coerente, por meio da ativao de seu conhecimento de mundo e/ou de dedues que o levam a estabelecer relaes de causalidade, temporalidade etc. Levado pelo Princpio da Continuidade de Sentido (Hrmann, 1976), ele pe em funcionamento todos os componentes e estratgias cognitivas que tem disposio para dar ao texto uma interpretao adequada. Esse princpio se manifesta, pois, como uma atitude de expectativa do interlocutor de que uma seqncia lingstica produzida pelo falante/escritor possa ser considerada coerente (cf. Grice, 1975, Princpio da Cooperao).

Verifica-se, assim, que o uso da linguagem, quer em termos de produo, quer de recepo, repousa visceralmente na interao produtor texto ouvinte/leitor, que se manifesta por uma antecipao e por uma coordenao recprocas, em dado contexto, de conhecimentos e estratgias sociocognitivas e interacionais.

Tanto em textos escritos como em textos orais, o produtor, visando produo de sentidos, faz uso de uma multiplicidade de recursos que vai muito alm das simples palavras que compem as estruturas. Em obedincia Mxima da Relevncia (Grice, 1975) e com base em seu modelo do interlocutor, o falante/escritor verbaliza somente as unidades referenciais e as representaes necessrias compreenso e que no possam ser deduzidas sem esforo pelo leitor/ouvinte, por meio de informaes contextuais e/ou conceituais (Princpio da Seletividade).

Mencione-se, a ttulo de exemplo, o emprego de uma expresso referencial anafrica, que implica uma pressuposio de conhecimento partilhado e obriga o interlocutor a uma busca no contexto, cognitivo ou situacional. Visto que o produtor do texto procede seleo daquela expresso que se mostra mais adequada ao seu projeto de dizer, seu emprego vai exigir do interlocutor a percepo do porqu da escolha feita, no contexto dado, com vistas construo do sentido.

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Verifica-se, desta forma, a justeza da definio de Van Dijk (1997): contexto o conjunto de todas as propriedades da situao social que so sistematicamente relevantes para a produo, compreenso e funcionamento do discurso e de suas estruturas.

Todos os fatores aqui mencionados, que intervm nos processos de leitura e produo de textos, so responsveis pela produo de sentidos.

Referncias bibliogrficasAlliende, Felipe; Condemarn, Mabel. A leitura: teoria, avaliao e desenvolvimento. Porto Alegre: Artmed, 2005. Bakhtin, Michail. Esttica da Criao Verbal. So Paulo: Martins Fontes, 1992 [1952], p. 290. Brasil. Ministrio da Educao. Secretaria do Ensino Fundamental Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa. Braslia: SEF/MEC, 1998. Clark, Herbert. Bridging. In: Wason, P.; Johnson-Laird, P. Thinking: Readings in Cognitive Sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1977, pp. 417-20. Dascal, M.; Weizman, E. Contextual exploitation of interpretation clues in text understanding: an integrated model. In: Verschueren, J; Bertucelli-Papi, M. (eds.), The pragmatic perspective Selected papers from the 1985. International Paragmatic Conference. Amsterdam: J. Benjamins, 1987, pp. 31-46. Grice, H. P. Logic and conversation.In: COLE, P.; MORGAN, J. L. (orgs.), Sintax and Semantics, n.3, Speech Acts. New York: Academic Press, 1975. Hrmann, H. Meinen und Verstehen. Grundzge einer psychologischen Semantik. Frankfurt: Suhrkamp, 1976. Koch, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. So Paulo: Cortez, 2002.

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Marcuschi, Luiz A. Contextualizao e explicitude na relao entre fala e escrita. 1997. mimeo. Nystrand, M.; Wiemelt, J. When is a text explicit? Formalist and dialogical conceptions. Text 11, 1991, pp. 25-41. Paulino, Graa et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001. Sol, Isabel. Ler, leitura, compreenso: sempre falamos da mesma coisa?. In: TEBEROSKY, Ana et al. Compreenso de leitura: a lngua como procedimento. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 21. Van Dijk, Teun A. Cognitive context models and discourse. In: Oostendorp, H. van ; Goldman, S. (eds.) The construction of mental models during reading. Hilldsdale, N.J.: Erlbaum, 1997.

Nota: Mestre e doutora em Lngua Portuguesa pela PUC/SP e Livre-docente pela UNICAMP. Professora-titular do Depto. de Lingstica do IEL - Unicamp. Autora de diversos livros sobre lngua, linguagem e ensino. Tem inmeros trabalhos publicados em revista e coletneas, no pas e no exterior.

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PROGRAMA 3

GNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO

Gneros como objetos de ensino: questes e tarefas para o ensino

Sandoval Nonato Gomes-Santos1

PARA

INCIO DE CONVERSA

Quase uma dcada vai se completar desde a publicao dos Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa para o Ensino Fundamental. Hoje, parece que j temos, reunidos, alguns elementos importantes para avaliar os efeitos das diretrizes curriculares que foram expostas nesse documento nas prticas de ensino-aprendizagem da disciplina Lngua Portuguesa. Principalmente, as implicaes que as discusses sobre um currculo centrado nos gneros (textuais ou discursivos) produziram e tm produzido na escola, em diferentes regies do pas.

Desde a publicao do documento at hoje, s cresceu o interesse em compreender as possibilidades e os desafios do conceito de gnero, tanto para o currculo da formao inicial e a pesquisa na universidade, quanto para as polticas pblicas de formao continuada do professor e de avaliao-distribuio de livros didticos, e, principalmente, para as prticas didticas de ensino de lngua na escola. Atualmente, com certo distanciamento em relao s discusses iniciais (anteriores mesmo publicao dos PCN em 1997-1998), possvel retomar certas preocupaes e algumas indagaes que vm marcando a apropriao da proposta de trabalho com gneros como objetos de ensino nas prticas escolares de ensinoaprendizagem da Lngua Portuguesa.

Sem o constrangimento de que um currculo centrado no ensino-aprendizagem de gneros pudesse significar apenas mais um modismo da Universidade, imposto para a escola por

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intermdio da lei, podemos agora avaliar o dilogo institucional estabelecido entre as vrias instncias envolvidas com o tema do ensino-aprendizagem de lngua na escola: o dilogo entre pesquisadores do campo dos estudos da linguagem e professores (em aes de formao inicial e continuada); entre os professores-alunos de cursos de graduao e ps-graduao e professores-pesquisadores da universidade (no ensino e na iniciao pesquisa); entre esses professores-pesquisadores e o mercado editorial (por meio de consultorias elaborao e mesmo da elaborao de livros didticos) etc. Desse dilogo, ainda em andamento, questes iniciais retornam e outras, novas, aparecem.

Algumas dessas questes foram apontadas com bastante preciso por Rojo (2000), em um texto no por acaso intitulado Modos de transposio dos PCNs s prticas de sala de aula: progresso curricular e projetos. Ao discutir a proposta curricular que toma o gnero como objeto de ensino e o texto como unidade de ensino, a autora enfatiza que a apropriao da proposta curricular expressa nos PCN pelas prticas escolares de ensino-aprendizagem requer um esforo que envolve trs eixos de atuao: a) a construo de currculos plurais e adequados a realidades locais, b) a elaborao de materiais didticos que viabilizem a implementao destes currculos e c) a formao inicial e continuada de professores e educadores (p. 28).

Para contribuir no dilogo instigado pelas percepes de Rojo, proponho enfocar, neste texto, questes relativas realizao do currculo em sala de aula, ou seja, s prticas de ensinoaprendizagem de gneros, considerados objetos de ensino. Suponho que um primeiro passo para refletir sobre essas prticas seja reconhecer que elas tm uma histria, que elas so construdas no seio daquilo que Chervel (1998) descreveu como cultura escolar2.

Assim, quando ouvimos, por exemplo, que hoje devemos ensinar gneros, que a gramtica deve ser contextualizada ou que preciso trabalhar a oralidade, essas afirmaes no so feitas por acaso. Elas testemunham que h uma demanda de reflexo sobre o ensinoaprendizagem de gneros pelo professor, nos mais diversos contextos socioculturais pelo Brasil afora. Na base dessas questes est uma indagao primeira, de to familiar s vezes deixada em segundo plano: o que, para que e como se ensina quando se pretende ensinar a

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lngua? nesse trip que proponho localizar a discusso sobre o ensino-aprendizagem de gneros na escola. Ou seja, proponho que essa discusso enfoque trs eixos:

As finalidades da escola como agncia de produo-recepo de gneros;

Os gneros como objeto de ensino em um projeto curricular;

O investimento na elaborao didtica dos gneros como objetos de ensino.

1. Gnero e forma escolar

Um dos passos principais na construo de uma proposta curricular para o ensinoaprendizagem da Lngua Portuguesa o reconhecimento de que a Lngua Portuguesa uma disciplina escolar. Uma disciplina escolar no aparece ao acaso. Para Soares (2002) 3, sua constituio resultado de motivaes socioculturais e histricas: aquilo que supomos ser a disciplina Lngua Portuguesa e seu ensino no definido pela ao isolada de cada professor, mas est ligado quilo que se pretende ensinar (quais os objetos de ensino visados?), s finalidades do ensino (para que ensinar?) e aos meios de ensino (como ensinar?).

Ao se apropriar de objetos de saber e de prticas variadas de linguagem que se constroem na sociedade, a escola os transforma em objetos a serem ensinados. Quando falamos de um currculo centrado no ensino-aprendizagem de gneros, podemos ento pensar na escola, como muito bem sugeriu Schneuwly (2006) 4, como uma agncia inventora de gneros, os chamados gneros escolarizados. Assim, os gneros, ao se tornarem objetos a serem ensinados (ao adquirirem uma forma escolar, no dizer de Schneuwly), no se configuram de modo igual quele modo com que aparecem nas prticas do cotidiano, embora estejam vinculados intimamente a essas prticas. Um relatrio da visita ao museu, por exemplo, produzido por crianas da 3. srie do Ensino Fundamental, necessariamente ser diferente do esboo produzido por um jornalista que visa, a partir de suas anotaes, produo de uma

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reportagem sobre o museu. Ser diferente, ainda, do relatrio do bilogo que faz uma pesquisa sobre zootecnologia. Ser diferente porque o gnero, uma vez escolarizado:

i) apropriado em uma situao diversa daquela em que seria apropriado fora da escola, ou seja, a forma escolar implica certa ruptura com o quotidiano;

ii) torna-se passvel de segmentao em dimenses que podem ser objeto de ensinoaprendizagem;

iii) integra um desenho curricular mais amplo, que inclui uma determinada programao de contedos, alm de procedimentos e instrumentos de avaliao;

iv) adquire uma forma textualizada (em geral, um carter escritural), ou seja, ele se materializa em textos que permitem sua circulao e seu reconhecimento pblicos.

A escola pode ser considerada inventora de gneros tambm pelo fato de criar seus prprios gneros: os chamados gneros escolares. Alguns, entre eles, so criados para servir ao prprio funcionamento da instituio escolar como histrico escolar, dirio de classe, plano de aula, requerimento escolar etc. , e outros so tornados objetos a serem ensinados. O exemplo mais representativo, nesse caso, a dissertao escolar.

Esses dois modos de inveno de gneros pela escola podem ser considerados, para um determinado discurso pedaggico, um artificialismo, uma forma pela qual a escola reduz o conhecimento, corrompe-o, ou um mascaramento, uma forma de a escola escamotear as reais necessidades dos alunos quanto aprendizagem de prticas de linguagem efetivamente autnticas.

Entretanto, com base no pressuposto de que a linguagem dilogo (tal como props Bakhtin) e de que a prtica de ensino-aprendizagem constitui-se na interao entre indivduos em um determinado contexto sociocultural e histrico (como enfatiza a psicologia de base

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vigotskiana), possvel pensar que a inveno de gneros pela escola condio para a insero dos indivduos em determinadas prticas de letramento (de leitura-escuta e produo de textos), especialmente em se tratando daquelas prticas em que circulam gneros de que os alunos no se apropriariam se no estivessem na escola, como o caso, por exemplo, de alguns gneros orais formais pblicos (solicitao de informaes, debate, conferncia, entrevista para emprego etc.). A tarefa da escola na apropriao desses gneros implicaria no apenas a garantia do acesso a eles, mas, principalmente, o desenvolvimento de uma postura reflexiva sobre as prticas em que eles circulam.

Em sntese, se considerarmos, com Bakhtin (1929, 1952-3), que os gneros se constituem e vo-se diversificando historicamente nas prticas sociais e que sua apropriao se d sempre em relao intrnseca com essas prticas, a principal contribuio da escola e a finalidade do trabalho de ensino seria inserir os alunos em prticas de letramento das mais simples s mais complexas, transformando seus modos de agir pela linguagem, de forma que possam no apenas usar a linguagem adequadamente como se costuma dizer , mas tambm desenvolver, ao longo da escolaridade formal, uma postura de reflexo sobre ela, sobre as implicaes, os efeitos das aes de linguagem na prpria construo da sociedade e da cultura5.

2. Os gneros como objeto de ensino em um projeto curricular: por que um currculo centrado no trabalho com gneros?

Uma das questes iniciais que sempre retorna quando se prope um currculo que tem como porta de entrada o trabalho com gneros como objetos de ensino e com textos como unidades de ensino : j no trabalhamos com textos na sala de aula? O que muda com a proposta de ensino de gneros? No so apenas os nomes dos contedos que mudaram? Essas questes so significativas porque apontam para o fato de que, para se discutir o currculo que se almeja construir para a disciplina Lngua Portuguesa, necessrio reconhecer que j temos um lastro de prticas de ensino construdas historicamente. Por exemplo, um pressuposto comum, bastante freqente entre os professores de Lngua Portuguesa, diz respeito necessidade de se trabalhar uma diversidade de textos e necessidade de adequao das aes

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de linguagem aos vrios contextos de uso. A questo, nesse caso, parece ser: como transformar esse pressuposto em orientao curricular na prtica didtica?

Podem ser apontadas diversas motivaes para a opo por um currculo com base no trabalho com gneros. Do ponto de vista histrico, pode-se dizer que essa opo vai-se consolidando com o prestgio de uma perspectiva terica que concebe a linguagem como prtica social, e o processo de ensino-aprendizagem como construdo na interao dos trs plos do chamado tringulo didtico: o professor, os alunos e os objetos de ensino, em um dado contexto sociocultural.

Essa perspectiva ganha visibilidade crescente a partir do final dos anos 1970 e incio dos anos 1980, no Brasil. A partir desse momento, propostas curriculares foram divulgadas, investigaes sobre o ensino-aprendizagem se diversificaram, livros didticos transformaramse. Rojo & Cordeiro (2004) apresentam um percurso bastante interessante dos modos com que se vm trabalhando as prticas de leitura e produo de textos na tradio escolar brasileira a partir dos anos 1980. Segundo as autoras, a proposta de trabalho com gneros distingue-se de outros dois modos de conceber o trabalho com o texto na escola:

i) Inicialmente, o texto visto como material ou objeto emprico que, em sala de aula, propiciava hbitos de leitura, de produo, de anlise lingstica. O texto tomado, portanto, como objeto de uso, mas no de ensino;

ii)

Mais tardiamente, o texto visto como suporte para o desenvolvimento de

estratgias e habilidades de leitura e de redao.

Uma terceira possibilidade de trabalho com o texto aquela chamada pelas autoras de enunciativo-discursiva. Nessa terceira via, o texto tratado em articulao ao gnero a que ele pertence. Mesmo no escolarizado, o indivduo capaz de reconhecer, apropriar-se e produzir determinados gneros, a depender do modo com que se integra s prticas em que esses gneros circulam.

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Assim, uma criana que participa da prtica de conversao em sua famlia, ocasio em que se contam histrias e piadas, ou da prtica de leitura de cartas, provavelmente reconhecer os gneros piada e carta pessoal com certa facilidade. Se no exercita a prtica de discusso coletiva de questes polmicas, por hiptese ter mais dificuldade de produzir o gnero debate quando for solicitada para isso. Isso no significa dizer que os gneros so uma frma, uma camisa-de-fora que determina por completo cada ao de linguagem do indivduo. So formas flexveis de materializao dos textos.

Vejamos um exemplo (Gomes-Santos, 2003) que ilustra o modo com que construmos dilogo por meio dos gneros, tanto com outros locutores, quanto com outros textos. Aps leitura e comentrio da verso de uma lenda amaznica a Lenda da Cobra Grande o professor apresenta aos alunos de 2. srie do Ensino Fundamental a proposta de produo escrita recontar a lenda por meio das seguintes instrues:

Produo de Texto

Como voc percebeu, na Lenda da Cobra Grande o encanto s pode ser quebrado se um corajoso guerreiro cortar a ponta do rabo da cobra, fazendo com que ela volte a ser uma ndia bela e atraente. E voc, que outra soluo arrumaria para quebrar o encanto da cobra? Conte-nos esta histria.

Respondendo tarefa, um dos alunos escreveu:

Para Quebrar o fentio que o caador colocou na ndia precisa pegar um faco e cortar o rabo da cobra grande, e depois liberta a ndio do fentio que o cassado colocou, eu mesmo Fbio vol cortar o rabo da cobra grande. (Texto: Quebra o encanto da cobra grande) Outro aluno atendeu mesma tarefa assim escrevendo: Era uma vez uma ndia muito bela e o Paje trasformou ela em uma cobra muito grande e para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra e o ndio deu um beijo na nele

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tornou uma bela india denovo e se casaram e viveram felizes para sempre. (Texto: A bela ndia)

No primeiro caso, o aluno estabelece dilogo com as instrues do professor, que orientam para que outra soluo deveria ser encontrada para quebrar o encanto da cobra. Na apropriao que faz do gnero lenda, ele se representa como figura textual, agente da quebra do encanto eu mesmo Fbio. Ao fazer isso, busca, de certo modo, satisfazer a injuno da instruo, que exige uma resposta do escrevente questo apresentada. Nesse caso, a resposta do aluno, ao enunciar eu mesmo, pode remeter seqncia interrogativa da instruo iniciada por E voc.

J no segundo caso, a soluo para a quebra do encanto da cobra constituda em referncia aos contos de fadas. Nesse texto, a remisso aproxima-se do conto A Bela Adormecida, j que para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra, o que ocasionaria a quebra do encanto e, por conseguinte, o happy end do casal: tornou uma bela india denovo e se casaram e viveram felizes para sempre.

Esses enunciados de escrita infantil testemunham o carter dialgico do processo de produo-recepo dos gneros no interior de uma determinada prtica social.

3. A elaborao curricular dos gneros como objetos de ensino

Os critrios para a organizao e seqenciao dos contedos curriculares, conforme os PCN, teriam que levar em conta os eixos USO REFLEXO USO, princpio que deve atravessar toda a escolaridade e que implica compreender que tanto o ponto de partida como a finalidade do ensino da lngua a produo/compreenso de discursos (PCN 1o. e 2o. ciclos [nota de rodap], p. 44). Trata-se, assim, de um princpio curricular em que se pretende que, progressivamente, a reflexo se incorpore s atividades lingsticas do aluno de tal forma que ele tenha capacidade de monitor-las com eficcia(PCN 1o. e 2o. ciclos, p. 48).

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Uma proposta de trabalho com o gnero como eixo norteador do currculo de Portugus exige que se defina uma entrada para o ensino que conjuga a abordagem do texto por meio, principalmente, das condies em que ele produzido e circula. Nessa direo, muito mais do que o ensino de estruturas globais dos textos ou de seqncias tipolgicas (narrao, descrio, argumentao etc.), enfocam-se os sentidos neles construdos. Isso porque o texto considerado em seu processo de significao, com base nos componentes que caracterizam o gnero a que ele pertence: finalidades reconhecidas, estatuto dos interlocutores, coordenadas espao-temporais, suporte material e organizao textual (ver Maingueneau, 2004).

Com base nesse princpio geral, a entrada curricular pelos gneros:

i) Amplia o repertrio de textos tornados unidades de ensino, incluindo-se aqueles ligados a gneros orais (especialmente os formais pblicos) e aqueles ligados s novas tecnologias de comunicao-informao (os gneros digitais);

ii)

Aborda os contedos gramaticais, em articulao com o trabalho com os gneros

selecionados para o ensino;

iii)

D lugar ao tratamento de fenmenos de variao, relativos modalidade,

norma e ao registro da lngua.

Essa entrada curricular pelos gneros distingue-se de pelo menos dois outros modos de organizar o currculo de Portugus. Vejamos:

(a) a entrada pelos objetos gramaticais: o foco um objeto gramatical (encontro de letras, tonicidade, classes de palavras, sujeito e predicado etc.) e os textos (poemas, trava-lnguas, quadrinhas, contos, receita culinria etc.) que so selecionados e trabalhados em sala de aula, em funo do ensino do tpico gramatical escolhido.

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(b) a entrada por temticas relacionadas a datas cvicas e comemorativas (Dia da Ptria, Tiradentes, Abolio da Escravatura, Semana do Folclore, Dia do ndio, Natal etc.) ou a questes de cunho sociocultural (violncia, drogas, famlia etc.). Os textos (poemas, lendas, cantigas, causos, notcias de jornal, contos etc.), nesse caso, so pretexto para a discusso da temtica que est em foco. No raro, a opo pelas temticas seguida pelo retorno aos tpicos gramaticais.

Embora a diversidade textual seja considerada em ambas as entradas, o que indica, conforme mencionei, que ela um ponto em comum nos modos como se busca encaminhar o ensino, uma questo continua a merecer discusso: qual a natureza do material textual selecionado? Tanto em uma quanto na outra entrada, os textos selecionados costumam ser aqueles ligados a gneros escritos (ou que se materializam geralmente na modalidade escrita). A oralidade parece ser tratada com base em pelo menos trs procedimentos:

como modo de motivar para a aula ou como introduo a exerccios escritos (leitura oral e coletiva de comandos de questo dos exerccios etc.);

como oralizao dos textos escritos selecionados (leitura oral);

como c