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A Primeira Misericórdia: Reflexões sobre a Queda de Adão Pete Jermann Em meio a uma pesquisa para um ensaio acadêmico sobre o tema da misericórdia, minha filha perguntou-me recentemente sobre a suposta ausência da misericórdia de Deus no episódio da queda de Adão. É uma questão que merece ser levada em conta. Conseguimos, no Ano da Misericórdia, enxergar a atuação da misericórdia divina na queda de Adão e Eva? Pode um mundo que equipara amor a bons sentimentos começar a entender por que um Deus de amor não estirou seus braços em torno do casal errante e o convidou de volta ao Éden? Em vez de reconfortar o casal, fortalecendo sua autoestima, as palavras divinas de adeus a Adão e Eva prometeram-lhes dor, labuta e o retorno ao pó (Gen 3:16-19). É difícil imaginar que essas são palavras de amor e misericórdia. Deus até mesmo zomba de Adão como um pretenso usurpador com pretensões à divindade (Gen 3:22). Por que Deus seria tão cruel, se amor era tudo de que o casal precisava? Por que teve o homem de esperar centenas de anos para que Jesus oferecesse a redenção? Onde estava Jesus quando Adão e Eva precisaram dele? Onde estava o amor? Onde estava a misericórdia? As respostas encontram-se no princípio, na criação do homem mesmo. A criação é um ato de amor, um amor que não pode ser contido. A criação do homem é um ato de amor como nenhum outro. O homem foi criado por sua própria causa. Diferentemente dos animais que vivem por instinto, Deus criou um homem e uma mulher capazes de se referirem a si mesmos na primeira pessoa, como sujeitos de próprio direito, com vontade própria. Gaudium et Spes nos diz que “o ser humano é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma”. Em Amor e Responsabilidade, Karol Wojtyla, o futuro Papa João Paulo II, explica que “a ninguém é lícito usar de um ser humano para um fim: nem ao homem, nem ao próprio Deus, o Criador”. Ao mesmo tempo em que a vontade do homem não é um fim em si mesmo, ela permanece como uma característica essencial de toda criatura criada à imagem de Deus. Deus, sendo amor, criou o homem como uma criatura capaz de amor, capaz de uma comunhão com Deus. Mas o

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A Primeira Misericórdia: Reflexões sobre a Queda de Adão Pete Jermann

Em meio a uma pesquisa para um ensaio acadêmico sobre o tema da misericórdia, minha filha perguntou-me recentemente sobre a suposta ausência da misericórdia de Deus no episódio da queda de Adão. É uma questão que merece ser levada em conta. Conseguimos, no Ano da Misericórdia, enxergar a atuação da misericórdia divina na queda de Adão e Eva? Pode um mundo que equipara amor a bons sentimentos começar a entender por que um Deus de amor não estirou seus braços em torno do casal errante e o convidou de volta ao Éden? Em vez de reconfortar o casal, fortalecendo sua autoestima, as palavras divinas de adeus a Adão e Eva prometeram-lhes dor, labuta e o retorno ao pó (Gen 3:16-19). É difícil imaginar que essas são palavras de amor e misericórdia. Deus até mesmo zomba de Adão como um pretenso usurpador com pretensões à divindade (Gen 3:22). Por que Deus seria tão cruel, se amor era tudo de que o casal precisava? Por que teve o homem de esperar centenas de anos para que Jesus oferecesse a redenção? Onde estava Jesus quando Adão e Eva precisaram dele? Onde estava o amor? Onde estava a misericórdia?

As respostas encontram-se no princípio, na criação do homem mesmo. A criação é um ato de amor, um amor que não pode ser contido. A criação do homem é um ato de amor como nenhum outro. O homem foi criado por sua própria causa. Diferentemente dos animais que vivem por instinto, Deus criou um homem e uma mulher capazes de se referirem a si mesmos na primeira pessoa, como sujeitos de próprio direito, com vontade própria. Gaudium et Spes nos diz que “o ser humano é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma”. Em Amor e Responsabilidade, Karol Wojtyla, o futuro Papa João Paulo II, explica que “a ninguém é lícito usar de um ser humano para um fim: nem ao homem, nem ao próprio Deus, o Criador”.

Ao mesmo tempo em que a vontade do homem não é um fim em si mesmo, ela permanece como uma característica essencial de toda criatura criada à imagem de Deus. Deus, sendo amor, criou o homem como uma criatura capaz de amor, capaz de uma comunhão com Deus. Mas o

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amor somente é possível se também for possível não amar. Somente pela criação de um homem livre para rejeitar o amor poderia Deus criar um homem livre para escolher o amor. Sem um livre arbítrio que pudesse ser exercido além do alcance da autoridade divina, o homem seria um peão no tabuleiro divino; não uma criatura capaz de amor, mas uma peça movida pela vontade de outrem.

Não estou certo de que, neste mundo, podemos compreender inteiramente um Deus que cria seres à Sua imagem. Mas um homem existiu, no início da história humana, que, tendo andado com Deus, face a face, no paraíso, pôde compreender tal coisa. Adão começa como sócio minoritário de Deus, participando do amor pela criação como seu protetor, nomeando os animais e cuidando do jardim. Mas Deus percebe que pode dar a Adão muito mais, e o recria como Adão e Eva, duas partes de um todo.

Com a humanidade recriada em um homem e uma mulher, Adão passa a participar integralmente da criação de Deus - ele pode agora amar de uma maneira que, até então, só Deus podia. Como Deus, Adão e Eva juntos criariam outros seres por um ato de vontade: eles gerariam filhos, pessoas criadas por sua própria causa. Esses filhos cresceriam (à sombra de Adão, como Adão cresceu à sombra de Deus) para serem livres para amar. Ele não seria dono desses filhos; ele lhes daria a vida, os guiaria, e então os libertaria, respondendo, desta maneira, ao convite divino para amar. Quando Adão pela primeira vez viu Eva, conheceu um amor inimaginável; conheceu um Deus que, de boa vontade, partilhara com uma de suas criaturas o presente da criação. Na união entre Adão e Eva, Deus criou a humanidade à Sua imagem, dando ao primeiro casal tudo o que podia dar. Em sua união, tornaram-se um com Deus. Nessa união, o que viram, o que conheceram e entenderam, poderia ser explicado em três palavras: Deus é amor. Nesta comunhão entre o Homem e Deus reside o paraíso do Éden.

O Éden termina com a oferta da serpente a Eva: “Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como deuses, sabendo o bem e o mal.” (Gen 3:4-5). É comum prestarmos mais atenção à primeira mentira, “não morrereis”, apontando a morte corporal e espiritual de Adão e Eva. Mas Satanás é o príncipe das mentiras. Presumir uma meia-verdade, quando nenhuma existe, é nadar em águas perigosas. A mentira brutal é a segunda, “se abrirão os vossos olhos, e sereis como deuses, sabendo o bem e o mal.”

Ao aceitarem a mentira da serpente, Adão e Eva tornaram-se menos parecidos com Deus; não mais conheciam o bem, e seus olhos se abriram para o mal. Conhecer o mal não é conhecer mais, mas menos, porque o mal é algo menos que o bem. É a ausência de algo que era. Em sua cegueira, não mais viram o belo, mas o feio, e procuraram por folhas de figueira para cobrir a ausência de beleza. Sua cegueira não era parcial, mas completa. A mentira da serpente, uma mentira escondida por trás da ilusão de um conhecimento prometido, desafiava a própria existência de Adão no Éden. Tudo o que Adão sabia por aquelas três palavras, “Deus é amor”, era negado por aquela mentira. A oferta da serpente implicava que a doação de Deus de Si mesmo não era completa nem gratuita; implicava a existência de uma reserva. Implicava que Adão e Eva não eram verdadeiramente livres. Como uma flecha bem dirigida ao alvo, a mentira atacou a confiança e o livre arbítrio, atingindo o próprio cerne do amor. A serpente convidou Eva para um mundo novo, um mundo onde Deus não era amor.

Uma transformação seguiu-se imediatamente à violação da árvore proibida. A artimanha da serpente rompeu a comunhão entre Adão/Eva/Deus. Adão/Eva tornaram-se Adão e Eva, constrangidos por sua nudez e vulneráveis diante um do outro. A descoberta de sua nudez os

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envergonhou também diante de Deus. Eles agora temiam a presença da fonte mesma do paraíso. Um mundo onde “Deus não é amor” não pode coexistir com um mundo onde “Deus é amor”. Enquanto Deus caminhava pelo jardim, Adão e Eva acovardaram-se à luz da verdade e da beleza, escondendo-se de Sua vista. A serpente prometera uma nova visão, mas foi cegueira o que Adão e Eva receberam, uma cegueira para o amor em si. Ao aceitar o fruto, Adão e Eva não mais viram Deus como amor, como alguém em quem se podia confiar. Em vez disso, Deus tornou-se um poder a ser temido.

Adão perdeu mais do que a visão de um Deus que ama. Em reação ao pecado original, o casal original ofereceu o pretexto original: foi culpa da esposa e foi culpa da serpente. Isentando-se de responsabilidade, negaram seu livre arbítrio. Sem livre arbítrio, o amor não é possível. Adão não apenas deixou de ver Deus como amor; ele não podia ver a si mesmo como capaz de amor. Ele não apenas já não conseguia ver quem era Deus; ele não conseguia ver quem ele mesmo era.

E o Éden termina com uma saída ignóbil. Zombado e abandonado, o primeiro casal é expulso do paraíso por Deus, que lhes promete sofrimentos.

Onde estava a misericórdia?

Onde estava a acolhida afetuosa, o tapinha nas costas, o convite para retornar à casa? Onde estava Jesus? Onde estava a misericórdia?

Primeiro, é preciso entender que o Éden jamais foi realmente um lugar, embora possa existir um lugar que tenha sido o Éden. O Éden era, em vez disso, a comunhão entre o Homem e Deus. Sem essa união, nenhum lugar pode jamais ser o paraíso. Com essa união, qualquer lugar pode ser o paraíso. Não foi a mordida na maçã mítica que destruiu o Éden, mas a dúvida diante do bem. O paraíso do Éden já havia desaparecido antes da primeira mordida. A consumação proverbial da maçã foi simplesmente o ponto final de uma sentença já pronunciada.

Segundo, precisamos entender a criação do homem como um ato gratuito de amor, um amor no qual Deus nega até a si mesmo o poder de utilizar-se do homem para seus fins pessoais. O Éden somente poderia existir como um relacionamento de amor livremente escolhido entre o Homem e Deus. Deus não podia compelir Adão a amá-Lo. Nem podia destruir Adão e começar do zero um novo modelo. Anular a criação de Adão seria, ao mesmo tempo, contradizer a natureza de Deus e negar a humanidade de Adão como ser criado à imagem de Deus.

Somente pela mão de Deus estendida para ele poderia Adão retornar ao Éden. Somente pela confiança no amor de Deus a união do Éden poderia fazer-se de novo presente. Somente pelo reconhecimento, em si mesmo, da capacidade de amar, poderia o Éden renascer. Mas Adão não podia ver a mão de Deus, nem ver, em si mesmo, um ser capaz de aceitá-la. Como Adão viveu com Deus no jardim, viveu também com Jesus. Adão não seria capaz sequer de imaginar o que perdera. Jesus é a mão de Deus, e Adão não podia vê-Lo. Ele só conseguia ver que estava nu, que estava vulnerável.

Deus não retoma presentes por Ele doados; Ele só sabe dar mais. No Éden, um mundo em completa união com Deus, sequer se podia cogitar da misericórdia e da nudez. É somente à luz uma da outra que elas fazem sentido. Somente em um mundo em que existe a nudez a misericórdia se faz necessária. Estar nu é estar incompleto e vulnerável. A misericórdia é o dom que recobre e completa. É o presente que oferece um amante recusado para reaver um relacionamento. A misericórdia, um presente de Deus, foi imediata e infinita.

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Por que Adão permaneceu fora do Éden

Mas por que Adão permaneceu do lado de fora dos portões do jardim? Se toda a misericórdia de Deus estava ao alcance dele, por que não a aceitou? Duvidando do amor de Deus, Adão rejeitou o infinito pelo finito. Ele já não podia conceber um amor infinito e, assim, já não podia compreender o alcance da misericórdia de Deus. Adão só conseguia enxergar a misericórdia que ele escolhera receber. Ele não conseguia ver o seu pecado; conseguia apenas ver que estava nu. Não conseguia ver o Deus que rejeitara; conseguia apenas ver que não tinha roupas. Essa era a única misericórdia perceptível que Deus podia lhe conceder. Ele podia dar-lhe roupas para que cobrisse sua nudez: “E fez o Senhor DEUS a Adão e à sua mulher túnicas de pele, e os vestiu” (Gênesis 3:21). Essa foi a misericórdia que Adão pôde ver. Ele podia entender um Deus que tinha o poder de fazer roupas com as quais se cobrisse; não podia entender um Deus que pudesse perdoar.

Mas a misericórdia de Deus era mais do que as túnicas feitas de pele de animal; era mais do que Adão podia ver. Deus concedeu a Adão tempo. A misericórdia requer tempo, porque ela é um convite a mudar o que se quebrou; e a mudança só ocorre no tempo. Somente com o tempo poderia Adão retornar ao Éden. Somente com o tempo poderia Adão reaprender o amor e começar, mais uma vez, a ver Deus como amor e a si mesmo como alguém capaz de amar. Deus então legou a Adão um caminho pelo qual retornar, um caminho de dor e labuta - não porque sejam uma punição, mas porque, sem eles, não se aprende a amar. E Deus deu a Adão a morte, porque somente pela morte o retorno à eternidade seria possível. Por fim, Deus prometeu a Adão que, por meio de sua progenitura, a Serpente seria esmagada, e o bem por último prevaleceria.

Mas por que levou tanto tempo para a vinda de Jesus? Adão, escravizado pelo orgulho, não podia ver o seu pecado. Em sua cegueira, já não via a si mesmo como capaz de amor, nem a Deus como amor. Adão, que conhecera a Jesus no jardim, já não podia reconhecê-Lo. Porque um cego não pode transmitir o que não pode ver, os descendentes de Adão não podiam saber das coisas que ele mesmo já não podia ver. Somente com o passar do tempo pôde o Homem ver novamente um Deus que, devido ao pecado original, era então inimaginável.

A história do Antigo Testamento é a história da misericórdia se presentificando pelo tempo, de Deus se revelando a Si mesmo como amor, enquanto ensinando ao Homem que os homens eram capazes de amor, e não escravos. É a história de um Deus cujo rosto estava coberto porque o Homem não podia compreender um rosto descoberto. Talvez aquela face somente pudesse ser descoberta quando alguns homens estivessem prontos para vê-la. Ou, talvez, a revelação da face de Deus tenha esperado apenas por uma mulher, uma mulher que conhecia aquilo que Adão e Eva haviam outrora conhecido: que Deus é amor. Apenas pelo tempo, por milênios multiplicados, pôde Maria vir à existência. Maria não é um ato arbitrário de Deus no tempo, mas a culminação da graça de Deus atuante na história. O seu fiat restaura a confiança perdida e o livre arbítrio negado pela queda de Adão. Em uma única pessoa, cheia de graça, a cegueira do pecado original de Adão desfalece diante da visão beatífica de Homem e Deus reunidos mais uma vez.

Adão fechou os portões do Éden atrás de si, fechando lá dentro Deus, e Maria reabre os portões, convidando Deus a encarnar-se no tempo. Por Maria nasce Jesus, e Deus remove o véu que cobria a Sua face. Vemos um homem que, como Adão, foi zombado e abandonado; com a diferença de que Adão havia deixado para trás o jardim, enquanto Jesus nele entrava. Adão deixou para trás a árvore da vida. Jesus agarrou-se à árvore da vida. Em seu ato perfeito

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de misericórdia, Deus torna-se homem e assume inteiramente o fardo de Adão - não para transformá-lo ou rejeitá-lo, mas para mostrá-lo à luz do amor como misericórdia, do amor como caminho de volta para casa. Deus/Jesus mostra-se a Si mesmo não como um poder que zomba do Homem, mas como um Deus que participa dos sofrimentos do Homem. Em Jesus, vemos um Deus que se reduz à condição humana para elevar o Homem à condição de Deus. Em Jesus, renova-se o convite ao amor; n’Ele vemos o aceno que nos chama de volta ao Éden.

A misericórdia é o amor que refaz relacionamentos, restaura a unidade entre os homens e entre o Homem e Deus. É a infinita renovação do convite de Deus para o amor; um convite que podemos recusar, mas jamais perder. Em Jesus, vemos Deus às portas do Éden sob uma nova luz. Vemos, não o Deus que Adão conseguia ver, mas o Deus que ele não mais podia ver. Talvez possamos ver o oferecimento das vestimentas, na história de Adão e Eva, como um convite a um novo relacionamento. Mas, talvez, neste Ano da Misericórdia, possamos também ver o que Adão não podia ver: que a dor, a labuta e a morte não são punições, mas misericórdia, o convite a um renovado Éden. O convite somente poderia acontecer com o tempo, porque somente com o tempo pode se restabelecer um relacionamento rompido. Não que Deus precisasse de tempo; o Homem, por sua vez, sim. Quando Adão deixou o Éden, a misericórdia de Deus seguiu com ele história adentro.

Nota do Editor: A imagem acima é um detalhe da obra “A Expulsão de Adão e Eva”, pintada por Domenichino em 1628.

Tags: Adão e Eva, misericórdia, A Queda, Ano da Misericórdia (2016)

Por Pete Jermann

Pete Jermann é um artesão autônomo e um pai homeschooler.

Do original: “First Mercy: A Reflection on Adam’s Fall”, publicado em: http://www.crisismagazine.com/2016/first-mercy-a-reflection-on-adams-fall