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MARCELINO RODRIGUES DA SILVA

O MUNDO DO FUTEBOL NAS CRNICAS DE NELSON RODRIGUES

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras - Estudos Literrios. rea de Concentrao: Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: Literatura e outros Sistemas Semiticos Orientadora: Professora Doutora Vera Lcia de Carvalho Casa Nova Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 1997

Dissertao defendida e aprovada, em

21 de maro de 1997, pela banca

examinadora constituda pelos professores:

_______________________________________________________________ Professora Vera Lcia de Carvalho Casa Nova - Orientadora

_______________________________________________________________ Professor Lauro Belchior

_______________________________________________________________ Professor Maurcio Salles de Vasconcelos

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Agradeo a todos que de alguma forma contriburam para a realizao deste trabalho, e, especialmente, s seguintes pessoas e instituies:

-Vera Casa Nova, por todo o empenho, competncia e amizade demonstrados ao longo deste perodo em que estive sob sua orientao; -CNPQ, pelo acesso ao seu programa de bolsas; -Arquivo Pblico Mineiro, pelo acesso a algumas das fotos utilizadas no trabalho; -Mauro Srgio Frana e Jos Ricardo Faleiro, pela sugesto de tomar o futebol como objeto de estudo e pelo acesso aos seus arquivos sobre o tema; -Cludio Viera Rocha, pela reviso do texto; -Soraya Almeida Belisrio, pela motivao para o retorno vida acadmica; -Hlio e Irene, meus pais, pela dedicao de toda a vida, que permitiu que eu chegasse at aqui.

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"O que procuramos no futebol o drama, a tragdia, o horror, a compaixo." Nelson Rodrigues

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SUMRIO

PONTAP INICIAL.....................................................................................................07

CAPTULO 1: O MUNDO DO FUTEBOL E A CRNICA ESPORTIVA......................16 1.1 1.2 Jogo, espetculo e significao..........................................................16 A crnica no mundo do futebol...........................................................28

CAPTULO 2: NELSON RODRIGUES NA OUTRA DIMENSO DO FUTEBOL........40 2.1 2.2 Nelson versus "os idiotas da objetividade"..........................................40 O futebol como drama.........................................................................45

CAPTULO 3: O PAS DO FUTEBOL NAS CRNICAS DE NELSON RODRIGUES.58 3.1 3.2 3.3 3.4 "A ptria em chuteiras"........................................................................58 "O complexo de vira-latas"..................................................................65 "O triunfo do homem"..........................................................................74 A epopia do futebol brasileiro............................................................97

CAPTULO 4: O JOGO RETRICO DE NELSON RODRIGUES..............................102 4.1 4.2 "O orador canastro"..........................................................................102 "O verdadeiro ingls"..........................................................................108

FINAL DA PELEJA....................................................................................................114

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..............................................................................120

5

RESUMO

Este trabalho um estudo semiolgico em que, atravs da anlise das crnicas de futebol de Nelson Rodrigues, investigamos os processos pelos quais foram produzidos os sentidos que o imaginrio coletivo brasileiro atribui aos personagens, instituies e acontecimentos do universo futebolstico. Partindo de algumas reflexes tericas sobre o funcionamento do futebol como sistema de significao, propomos que a crnica esportiva, por combinar a autoridade e a referencialidade da escrita jornalstica com as liberdades "literrias", um lugar privilegiado para a construo e a cristalizao desses sentidos. Examinamos, ento, as crnicas de Nelson Rodrigues, tentando demonstrar como atravs delas so produzidos e colocados em circulao uma srie de sentidos que hoje fazem parte de um repertrio coletivo atravs do qual o futebol interpretado no Brasil. Nessa anlise, ganham destaque os seguintes aspectos dos textos de Nelson: a concepco do futebol como drama, atravs da qual esse esporte tomado como uma forma de representao; a leitura da trajetria da conquista do tricampeonato mundial pelo Brasil como um drama pico atravs do qual o cronista procura projetar um destino venturoso para a nao e fixar uma imagem positiva do homem brasileiro; os procedimentos retricos utilizados pelo cronista para operar determinados deslocamentos em sentidos que j eram associados ao futebol pela opinio pblica brasileira.

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PONTAP INICIAL

"Muitos leitores desconfiados e maldosos, vendo que eu trato do nobre jogo de futebol com distanciamento, tdio e (at mesmo) m vontade, no deixaro de insinuar a vulgar suspeita de que no amo o futebol porque, na verdade, o futebol nunca me amou (...) Nunca ter havido suspeita mais lucidamente fundada." Umberto Eco

O futebol no apenas um esporte. Se procurarmos pela definio do significado da palavra "esporte", encontraremos: "conjunto de exerccios fsicos praticados com mtodo, individualmente ou em equipes";1 "conjunto de exerccios fsicos que se apresentam sob a forma de jogos individuais ou coletivos e do vez competio";2 e outras definies semelhantes. A idia de esporte, portanto, est ligada prtica competitiva de exerccios fsicos em modalidades organizadas, e o futebol , evidentemente, mais do que isso.

Mais do que a prtica extremamente difundida de uma modalidade esportiva, o que j no pouco, o futebol envolve tambm a presena de grandes pblicos nos estdios, de pequenos pblicos nos campos de vrzea, a audincia fiel de milhes de espectadores de TV e ouvintes de radio, etc. Se para alguns o futebol uma prtica esportiva (sem falar naqueles para quem ele uma profisso ou um empreendimento econmico), para a maior parte das pessoas ele , principalmente, um espetculo, um entreterimento, algo que para ser visto (ou ouvido), e no para ser praticado.1Novo

dicionrio Aurlio da lngua portuguesa. p.708. de lngua portuguesa - Larousse Cultural.p.176.

2Dicionrio

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Alm disso, o futebol tambm um complexo fenmeno de comunicao de massa em que o espetculo esportivo ponto de partida para uma intensa produo de discursos: os cantos e gritos de guerra das torcidas, as "conversas de botequim", o discurso verbal do jornalismo impresso, radiofnico e televisivo, a iconografia impressa dos jornais e revistas, o discurso imagtico da televiso e do cinema, etc. Discursos que so produzidos e consumidos diariamente por um grande nmero de pessoas e que ocupam um espao bastante significativo em nossa cultura.

Podemos dizer, ento, que o futebol (assim como outros grandes espetculos esportivos) , no mnimo, um fenmeno cultural bastante complexo, que no se limita ao mbito esportivo e envolve outros aspectos, tais como o carter de espetculo e de fenmeno de comunicao de massa.

***

Em uma cultura como a brasileira, em que se pratica o chamado "futebol arte" e em que a assimilao desse esporte foi to intensa que ele passou a ser reconhecido como uma manifestao tipicamente nacional (o Brasil "o pas do futebol"), torna-se claro que o futebol possui tambm um carter semitico. Esse carter semitico no , no entanto, uma exclusividade do futebol, nem tampouco do futebol no Brasil. Ao contrrio, ele inerente a todas as prticas esportivas, mesmo aquelas que no se tornaram espetculos nem fenmenos de comunicao de massa. Pois, como tm demonstrado a antropologia e a semiologia, os mais variados sistemas culturais (como a moda, a culinria, o mobilirio e os sistemas de parentesco) funcionam tambm como sistemas de

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significao. Ou seja, como sistemas em que os elementos tm a faculdade de remeter a outras coisas que no eles prprios, funcionando como signos e possibilitando o processo de produo de sentidos.

E o esporte, que nas suas origens estava bem prximo do ritual, certamente traz consigo um pouco do simbolismo dos antigos jogos sagrados: a representao da luta contra a morte, contra os elementos, contra as foras hostis, e da luta do homem consigo mesmo, contra seus medos, fraquezas, dvidas, etc.3 No caso do futebol e dos demais esportes jogados com bola, poderamos pensar ainda em alguns dos muitos significados mitologicamente relacionados s formas circular e esfrica - simbolos do cosmo (e, conseqntemente, das foras naturais e sociais a que o homem est submetido) e do sol (que por sua vez smbolo do alimento, da fertilidade, das foras csmicas, etc)4 -, que reforam a idia do esporte como representao da luta do homem pela vida.

Mas, no caso do fenmeno futebolstico brasileiro, em que as dimenses de espetculo e de fenmeno de comunicao de massa atingiram grandes propores, esse aspecto semitico do esporte se torna particularmente evidente. O simbolismo primitivo do jogo d lugar a um intenso processo em que novos sentidos so produzidos: os jogadores tornam-se grandes dolos populares, encarnando desejos e aspiraes da coletividade; os clubes se identificam com certas parcelas da populao e passam a represent-las (os "times da elite", os "times da massa", os clubes ligados a colnias de imigrantes, etc); os jogos e campeonatos so tomados como representao de3CHEVALIER 4CHEVALIER

e GHEERBRANT. Dicionrio de smbolos.p.518. e GHEERBRANT. Dicionrio de smbolos.p.250,388,836.

9

conflitos sociais; as histrias das vitrias nas competies internacionais se transformam em grandes picas de exaltao da nao; etc. Enfim, os personagens, instituies e acontecimentos do universo futebolstico so permanentemente investidos de uma variada gama de sentidos, o que torna o futebol um sistema de significao extremamente dinmico e especialmente relevante dentro do universo cultural brasileiro. De uma perspectiva semiolgica cumpriria, portanto, descrever esse sistema: estabelecer os sentidos atribudos aos personagens, instituies e acontecimentos do universo futebolstico brasileiro (pelo menos os mais importantes e

cristalizados) e o modo como tais relaes se articulam e so produzidas.

***

Esse aspecto semitico do fenmeno futebolstico brasileiro tem sido de certa forma abordado por diversos estudiosos, especialmente no campo da antropologia. bastante conhecido, por exemplo, o ensaio "Futebol: pio do povo ou drama de justia social", em que o antroplogo Roberto DaMatta interpreta o futebol como uma "dramatizao" atravs da qual a sociedade brasileira se representa e "pe em foco" seus "dilemas". A complexa interao entre os atores da cena futebolstica funcionaria, para DaMatta, como uma "metfora da prpria vida". Assim, "o futebol praticado, vivido, discutido e teorizado no Brasil seria um modo especfico - entre outros - pelo qual a nossa sociedade fala, apresenta-se, exibe-se, deixando-se descobrir".5

Um outro estudo antropolgico em que se alude a essa dimenso semitica do fenmeno futebolstico brasileiro o texto "O futebol no Brasil", de Anatl5DAMATTA.

Exploraes. p.101-120.

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Rosenfeld, um alemo que viveu aqui e analisou em profundidade alguns aspectos da cultura brasileira. Para Rosenfeld o futebol , no Brasil, uma forma de "expresso simblica", ou "representao organizada" de impulsos primitivos e tenses da vida social. E o interesse despertado por ele nas massas se deve a um fenmeno catrtico pelo qual, atravs do futebol, a sociedade sublima e expia esses impulsos e tenses.6

Nesses dois trabalhos fica bastante clara a percepo de que diversos sentidos so atribudos pelo imaginrio coletivo brasileiro aos acontecimentos, personagens e instituies do universo futebolstico. Roberto DaMatta diz, por exemplo, que "a derrota para o Uruguai [na final da Copa de 50] foi tomada como uma metfora para as 'derrotas' da prpria sociedade brasileira", e que a conquista do tricampeonato mundial, em 70, foi "uma espcie de vingana nacional", em que a sociedade experimentou a superao desse destino perdedor. E, para Rosenfeld, os dolos negros e mulatos do futebol brasileiro encarnam "um dos mais altos valores ideolgicos do Brasil: o da democracia de raas".

A tarefa de investigar o fenmeno futebolstico brasileiro de um ponto de vista interessado em seu carter de significao tem sido, portanto, parcialmente realizada por trabalhos como os de DaMatta, Rosenfeld e uma srie de outros. Especialmente nesses ltimos anos, em que um bom nmero de textos sobre o futebol tem sido produzido e publicado.

***

6ROSENFELD.

Negro, Macumba e Futebol. p.73-106.

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Um aspecto do processo de significao envolvido no fenmeno futebolstico brasileiro, no entanto, nos parece no ter recebido a ateno necessria. Esse aspecto, que diz respeito diretamente ao campo da Semiologia, o prprio funcionamento do futebol como sistema de significao. No se fez, ainda, uma anlise mais cuidadosa dos processos atravs dos quais se produzem os sentidos relacionados ao futebol no Brasil.

Na introduo do livro Elementos de Semiologia, Roland Barthes nos diz que "perceber o que significa uma substncia , fatalmente, recorrer ao recorte da lngua" e que "sentido s existe quando denominado, e o mundo dos significados no outro seno o da linguagem"7. Se atravs do "recorte da lngua" que o sentido existe, foroso reconhecer que a anlise do funcionamento do futebol como sistema de significao passa

necessariamente pela anlise dos discursos que a sociedade produz a partir do jogo de futebol. O processo atravs do qual se produzem os sentidos relacionados ao futebol no Brasil , justamente, essa intensa produo de discursos, dentre os quais destacamos os discursos da imprensa esportiva. Avalizada pela autoridade conferida por nossa cultura escrita, a imprensa esportiva , necessariamente, um lugar privilegiado para a produo e a cristalizao dos sentidos que o imaginrio social brasileiro atribui aos acontecimentos, personagens e instituies do mundo do futebol.

Nos estudos sobre o futebol encontramos com freqncia referncias s manifestaes das torcidas, ao jornalismo radiofnico, televisivo e escrito, etc. Mas essas referncias so feitas, na maior parte das vezes, a ttulo de exemplo para o desenvolvimento de teses de carter mais geral, que procuram

7BARTHES.

Elementos de Semiologia. p.12.

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explicar o fenmeno futebolstico brasileiro como um todo. O discurso sobre o futebol, salvo algumas poucas excees, no ganhou o centro da cena, no foi analisado em seu funcionamento e em suas relaes com o prprio jogo. Foi apenas interpretado, tratado como um sintoma e utilizado como fonte auxiliar, no como objeto central de estudo. A compreenso do fenmeno futebolstico brasileiro do ponto de vista da significao fica, portanto, carente de estudos que tomem como objeto o discurso sobre o jogo, e que procurem estabelecer, a partir dele, os processos de produo de sentido.

Por isso escolhemos como objeto desta dissertao o discurso sobre o jogo de futebol. A variedade de discursos que produzida no universo futebolstico brasileiro , no entanto, muito grande. Optamos ento por nos concentrar em um nico segmento dessa variedade de discursos: a crnica esportiva. E, dentro do universo da crnica esportiva, no trabalho de um cronista: Nelson Rodrigues. Um cronista que foi por muitos anos um dos mais lidos do jornalismo esportivo brasileiro, e que volta a ser lido e consagrado como um dos maiores cronistas de futebol do Brasil com a recente publicao de dois volumes que renem suas crnicas: sombra das chuteiras imortais e A ptria em chuteiras. As crnicas reunidas nesses dois volumes sero o nosso "corpus" de anlise.

***

No primeiro captulo da dissertao, levantaremos alguns elementos que orientaro nossa anlise das crnicas de futebol de Nelson Rodrigues. Em primeiro lugar, partindo da noo de jogo e de algumas reflexes antropolgicas e semiolgicas sobre ela, discutiremos teoricamente a idia de

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que um esporte como o futebol possa funcionar como um sistema de produo de sentidos. Em seguida, faremos um breve histrico da crnica de futebol no Brasil e, com base em estudos de crtica literria sobre o gnero cronstico, tentaremos estabelecer a especificidade da atuao do discurso da crnica esportiva no processo de produo de sentidos a partir do futebol. Nesse duplo movimento, apresentaremos uma hiptese para a explicao do processo atravs do qual se produzem os sentidos relacionados ao futebol pelo imaginrio coletivo brasileiro. Uma hiptese que atribuir crnica esportiva um funo privilegiada.

A partir dos elementos levantados no captulo inicial, desenvolveremos nosso trabalho de anlise das crnicas de futebol de Nelson Rodrigues. Nessa anlise, buscaremos indicar o modo como esses textos contribuem para a produo e para a cristalizao de uma srie de sentidos que hoje fazem parte de um repertrio coletivo atravs do qual a sociedade brasileira interpreta o futebol, demonstrando assim a hiptese lanada no primeiro captulo.

No segundo captulo, analisaremos o modo como, ancorado pela vinculao rubrica "crnica", Nelson entendia o trabalho jornalstico e seu prprio trabalho de cronista esportivo como uma recriao produtiva, e no como a revelao objetiva dos fatos. Em seguida, nos dedicaremos anlise da concepo rodrigueana do futebol, que construda a partir da relao entre o futebol e o teatro, demonstrando como ela lhe permite recriar os fatos esportivos segundo a lgica da representao.

No terceiro captulo analisaremos as crnicas em que Nelson Rodrigues comenta as participaes brasileiras nas competies internacionais,

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especialmente as Copas do Mundo. Nessa anlise, indicaremos alguns dos sentidos que o cronista relaciona aos personagens e acontecimentos esportivos envolvidos nessas competies, destacando o modo como, atravs das crnicas de Nelson, determinados momentos, fixados em imagens exemplares, se tornam marcos que estruturam uma memria nacional, fazendo da trajetria da conquista do tricampeonato mundial pelo Brasil uma grande narrativa pica da nao brasileira.

E finalmente, no quarto captulo, analisaremos alguns procedimentos tpicos do texto de Nelson Rodrigues (os procedimentos retricos), atravs dos quais o cronista opera determinados deslocamentos nos sentidos que o imaginrio coletivo j atribua aos elementos do universo futebolstico, levando produo de novos sentidos.

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CAPTULO 1 - O MUNDO DO FUTEBOL E A CRNICA ESPORTIVA

"O jogo em s, sobretudo quando bom, deveria bastar. Mas, no basta. (...) invencvel o nosso movimento de recorrer ao rdio, mais tarde televiso, ao vdeo, ou, j no dia seguinte, ao jornal, ao comentrio escrito." Octavio de Faria

1.1

Jogo, espetculo e significao

A noo fundamental para que possamos compreender o futebol como um sistema de significao e os processos atravs dos quais se produzem os sentidos relacionados a ele no Brasil a noo de jogo. Pois, como demonstra Johan Huizinga em seu livro Homo Ludens, o esporte se desenvolveu a partir dos antigos jogos rituais das culturas primitivas. E, a despeito das diferentes funes que assumiram em culturas e momentos histricos diversos (por exemplo, as funes educativa, socializadora, circense, de treinamento para a guerra, etc), as prticas esportivas sempre conservaram os elementos fundamentais da estrutura formal do jogo: competio, limitao espaotemporal, finalidade intrnseca, regras livremente aceitas, etc. " evidente que as formas bsicas da competio esportiva se mantm constantes atravs dos tempos. (...) como nas corridas a p e de patins, de carros e de cavalos, no levantamento de peso, na natao, no mergulho, no tiro ao alvo, etc. ...todo aquele que no esquecer o princpio agonstico que as anima ter forosamente consider-las jogos no sentido pleno da palavra.(...) Alis, h outras formas de competio que se tornaram 'esportes' (...) como o caso dos jogos de bola."88HUIZINGA.

Homo ludens.p.218.

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Assim, a noo de jogo que melhor define o funcionamento do futebol (e de outros esportes) como sistema, ou seja, como um conjunto de elementos que se articulam de maneira estruturada. Alm disso, nas oportunidades em que tem sido objeto de anlise da antropologia, o jogo tem sido considerado, da mesma forma que o ritual, como uma atividade de natureza eminentemente simblica.9 O prprio Huizinga afirma que "o jogo uma funo significante" e que "todo jogo significa alguma coisa". Segundo o raciocnio desse autor, como nos primrdios de nossa cultura jogo e ritual se confundiam em um mesmo domnio cultural (o domnio do "jogo sagrado"), muitas das caractersticas de um se manifestariam tambm no outro. Entre essas caractersticas comuns estaria um certo carter "representativo" ou "significante". De forma que, para Huizinga, se o ritual a "representao de um acontecimento csmico", o jogo sempre "uma luta por alguma coisa ou a representao de alguma coisa", sendo que essas duas funes podem-se confundir, de modo que o jogo passe a "representar uma luta, ou, ento, se torne a luta para melhor representao de alguma coisa".10

Segundo esse raciocnio, poderamos estender ao futebol e aos demais esportes aquele simbolismo dos antigos jogos sagrados. Ao conservarem a estrutura formal do jogo, esses esportes seriam tambm a representao da luta do homem contra a morte (como nos jogos funerrios), contra os9Podemos

citar, por exemplo, a rpida referncia feita por Levi-Strauss em O pensamento selvagem, na qual os jogos so considerados semelhantes aos rituais por seu carter de representao mas distintos deles pelo modo como resolvem o conflito representado: enquanto no ritual parte-se de uma assimetria para chegar a uma simetria, no jogo parte-se de uma simetria (a igualdade diante das regras) para chegar a uma assimetria entre vitoriosos e derrotados. LEVI-STRAUSS. O pensamento selvagem. p52,53,54. Homo ludens.p.3,4,16.

10HUIZINGA.

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elementos (como nos jogos agrrios), contra as foras hosts (como nos jogos guerreiros), contra seus prprios limites, etc.11 Enfim, a representao da luta do homem pela prpria vida.

***

Mas a idia de que um certo carter semitico seja inerente a qualquer jogo no encontrou muita repercusso nos estudos sobre a linguagem e a significao. bastante frequente encontrar, especialmente na Lingstica, a comparao entre a linguagem e o jogo, mas essa comparao quase sempre se limita a certas caractersticas formais comuns aos jogos e organizao estrutural do plano significante da linguagem. Quanto a um provvel aspecto semntico inerente aos jogos, pouco se escreveu.

No Curso de Lingstica Geral, Saussure se utiliza diversas vezes da comparao entre a linguagem verbal e o jogo de xadrez para demonstrar algumas de suas idias sobre o sistema lingstico (por exemplo, o conceito de "valor lingstico" e o par "sincronia/diacronia")12. Por estar com sua ateno voltada exclusivamente para a linguagem verbal, Saussure no se preocupa em responder se o jogo de xadrez ou no um sistema de significao. Mas sua comparao entre ele e a linguagem verbal foi o mote para que, mais tarde, Hjelmslev e Jakobson fizessem algumas observaes sobre esta questo.

11CHEVALIER 12

e GHEERBRANT. Dicionrio de smbolos.p.518.

SAUSSURE. Curso de lingstica geral. p.31,104,128.

18

No captulo "Linguagem e no-linguagem" de seu Prolegmenos para uma teoria da linguagem, Hjelmslev estava interessado em delimitar o objeto de uma teoria da linguagem de carter mais geral, que pudesse se estender a outros sistemas alm da linguagem verbal. Partindo da distino, nos planos da expresso e do contedo, de dois extratos - forma e substncia13-, Hjelmslev considera que o que caracteriza um determinado sistema como semitico a "no conformidade" entre a forma da expresso e a forma do contedo. Assim, sistemas como a lgebra pura e os jogos no deveriam ser considerados semiticos porque so sistemas em que a forma da expresso (por exemplo, no caso do xadrez, as diferenas plsticas convencionais entre as peas) estabelece uma relao unvoca com a forma do contedo (as entidades convencionais reconhecveis atravs daquelas formas, que implicam numa denotao de valor e mobilidade prpria a cada pea). So sistemas em que, para Hjelmslev, existiria total "conformidade" entre os dois planos, j que as substncias, tanto da expresso quanto do contedo, no interessariam a uma teoria geral da linguagem. Os dois planos, por serem "conformes" um ao outro, poderiam, "por princpio de simplicidade", ser reduzidos a um s, e assim os jogos no deveriam ser considerados sistemas semiticos porqueem seu Elementos de Semiologia, faz uma breve descrio da distino de Hjelmslev, que reproduzimos aqui, como subsdio para a nossa discusso: "O signo , pois, composto de um significante e um significado. O plano dos significantes constitui o plano da expresso e o dos significados o plano do contedo. Hjelmslev introduziu uma distino importante talvez para o estudo do signo semiolgico (...); cada plano comporta, de fato, para Hjelmslev, dois strata: a forma e a substncia; (...)A forma o que pode ser descrito exaustiva, simples e coerentemente (...) para a Lingstica, sem recorrermos a nenhuma premissa extralingstica; a substncia o conjunto dos aspectos dos fenmenos lingsticos que no podem ser descritos sem recorrermos a premissas extralingsticas. Como estes dois strata se reencontram no plano da expresso e no do contedo, teremos ento: 1) uma substncia da expresso: por exemplo, a substncia fnica, articulatria, no-funcional, de que se ocupa a Fontica e no a Fonologia; 2) uma forma da expresso, constituda pelas regras paradigmticas e sintticas (observemos que uma mesma forma pode ter duas substncias diferentes, uma fnica, outra grfica); 3) uma substncia do contedo: por exemplo, os aspectos emotivos, ideolgicos ou simplesmente nocionais do significado, seu sentido 'positivo'; 4) uma forma do contedo: a organizao formal dos significados entre s, por ausncia ou presena de uma marca semntica." BARTHES. Elementos de semiologia. p.43.13Barthes,

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seriam "monoplanares". Em cada um dos planos dos sistemas semiticos, no entanto, as regras sintticas que governam as relaes entre os elementos seriam muito semelhantes s regras de funcionamento dos jogos14.

A posio de Jakobson semelhante de Hjelmslev. Segundo Holenstein, em seu livro Introduo ao pensamento de Roman Jakobson, para o lingsta russo as regras do jogo corresponderiam de maneira bastante razovel s regras sintticas da lngua. Mas o jogo se distinguiria da linguagem por ser "uma estrutura de uma s dimenso". Holenstein cita uma passagem dos Selected Writings, de Jakobson, em que, como comentrio comparao entre a linguagem verbal e o xadrez, se diz que "no s as regras do jogo, mas tambm as regras de substituio governam a estrutura lingstica, uma vez que os seus constituintes so ligados por leis de implicao e incompatibilidade inalterveis"15. Em outras palavras, Jakobson argumenta que, embora suas regras combinatrias de carter sintagmtico sejam comparveis s regras dos jogos, a linguagem verbal possui regras semnticas e lgicas (de

compatibilidade semntica entre os elementos) que determinam a variao paradigmtica. Regras essas que os jogos no possuiriam.

Poderamos dizer ento que para Jakobson, assim como para Hjelmslev, o que distinguiria os jogos dos sistemas de significao como a linguagem verbal seria a ausncia de "espessura" semntica. Os jogos se aproximariam dos sistemas de significao por suas caractersticas sintticas e formais, mas no possuiriam, como eles, a contrapartida semntica, invocada por Hjelmslev

14HJELMSLEV.

Prolegmenos a uma teoria da linguagem. p.117. Introduo ao pensamento de Roman Jakobson. p.173.

15HOLENSTEIN.

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atravs da estrutura biplanar e por Jakobson atravs da determinao semntica e lgica da variao paradigmtica.

Umberto Eco, no Tratado Geral de Semitica, retoma o debate em torno desses "sistemas que se dizem puramente sintticos e sem 'espessura' semntica aparente". Baseado nos conceitos de denotao e conotao, Eco se ope posio de Hjelmslev, que considerava os jogos como sistemas "monoplanares" e no semiticos. Para Eco, se uma determinada posio do jogo de xadrez (que corresponderia ao "plano da expresso") denota apenas a s mesma, ela conota "uma srie de movimentos possveis 'do lugar em que est'" (ou: "o destino estratgico total do jogo 'daquele ponto em diante'"). Assim, atravs desses significados conotados, a forma do contedo se diferencia da forma da expresso, e os jogos tornam-se sistemas biplanares e semiticos, mesmo pelo critrio de "no-conformidade" de Hjelmslev16.

O "plano do contedo", no entanto, continua sendo preenchido, na interpretao de Eco, por sentidos que dizem respeito unicamente ao universo referencial do jogo (como o "destino estratgico total" do jogo, por exemplo). Devemos lembrar que, entre as caractersticas formais do jogo descritas por Huizinga, est a limitao temporal e espacial, que lhe confere um total isolamento em relao "vida comum", como se ele se passasse em um universo particular17. Poderamos supor que essa caracterstica

corresponderia, no aspecto semitico, a um campo semntico particular estabelecido pelo jogo. O discurso sobre o jogo (que, se considerarmos vlida a hiptese de que os jogos so sistemas de significao, corresponderia ao16 17

ECO. Tratado geral de semitica. p.78. HUIZINGA. Homo ludens. p.12.

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"plano do contedo") estaria, ento, preso a esse campo semntico particular, que o universo referencial instaurado pelo jogo. Assim, a possibilidade de que um jogo como o futebol possa funcionar como um sistema de significao capaz de remeter a sentidos exteriores ao seu universo referencial (ou, nas palavras de DaMatta, como uma "metfora da prpria vida") continua sem uma explicao terica convincente.

***

No livro Mitologias, de Roland Barthes, encontramos um texto que pode nos indicar uma soluo para a questo. Nesse texto ( cujo ttulo "O mundo do catch"), Barthes faz uma anlise semiolgica do catch, uma espcie de lutalivre caricaturada, de carter circense, realizada em "salas de segunda classe" e frequentada por uma platia de origem popular. Para Barthes, "o catch no um esporte, um espetculo". Nele "pouco importa ao pblico que o combate seja falseado ou no" e "o espectador no se interessa pelo progresso de um destino", mas "espera a imagem momentnea de certas paixes".18 Em outras palavras, o que interessa ao pblico do catch no o jogo, no a luta pela vitria, mas a representao de determinadas situaes em que "certas paixes" (diramos: sentimentos, valores, papis sociais, etc) so significadas. A caracterizao dos lutadores e suas aes se completam para dar forma representativa a essas "paixes". Assim, as aes de um lutador, e mesmo a sua prpria imagem, podem significar a justia, a honra, a excelncia, enquanto as de outro podem significar a traio, a vingana, a baixeza moral, etc. Ou seja, as conotaes dos signos do catch no se restringem mais ao

18BARTHES.

Mitologias. p.12.

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universo referencial do jogo, mas atingem, por diversas fronteiras, um campo semntico mais amplo.

O texto de Barthes trata de um caso extremo, em que as caractersticas formais do jogo cederam espao a caractersticas que so, como nos mostra o autor, mais prprias do teatro. Mas certos esportes, entre eles o futebol, so, ao mesmo tempo, jogo e espetculo. E mesmo no caso do catch as

caractersticas formais do jogo no so totalmente deixadas de lado. O movimento traioeiro do lutador que faz o papel de vilo s faz sentido porque uma burla s regras do jogo, e o triunfo final do "justo" s funciona por atualizar a "vitria", o significante privilegiado do universo do jogo.

Embora Barthes no o formule dessa maneira, podemos dizer que o catch a teatralizao do jogo, j que, isolada no ringue e disciplinada por regras, a luta tambm um jogo. A situao agonstica, caracterstica do jogo, serve de "enredo" ao catch. Atravs de procedimentos como a nfase dos movimentos e o excesso na caracterizao dos lutadores, o catch sublinha determinadas situaes propiciadas pelo jogo, procurando extrair delas sua significao e seu efeito catrtico sobre o pblico. Mas para conseguir o mximo de efeito, ele acaba por deixar de lado duas caractersticas bsicas do jogo: a igualdade inicial entre os antagonstas e a disputa pela vitria. Por isso o catch no um jogo, e Barthes diz que ele no um esporte. Ele fingido, falseado, simulado.

Mas a situao agonstica na qual o catch se baseia absolutamente prpria do jogo, e ele s falseado em funo de uma economia formal prpria do seu carter de espetculo. Mesmo no texto de Barthes, que insiste no carter de espetculo do catch e no enfatiza a presena das caractersticas formais do

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jogo, est presente a idia de que o prprio jogo j possui um "simbolismo secreto", do qual o catch se apropria: "Diz-se que o jud contm uma parte secreta de simbolismo; mesmo na eficincia, trata-se de gestos contidos, precisos, mas curtos, desenhados corretamente, mas apenas traados, sem volume. O catch, pelo contrrio prope gestos excessivos, explorados at ao paroxismo da sua significao. No jud, o lutador mal aflora o cho, rebola sobre s mesmo, desvia-se, esquiva a derrota, ou, se esta for evidente, abandona imediatamente a luta; no catch, o lutador prolonga exageradamente a sua posio de derrota, cado, impondo ao pblico o espetculo intolervel da sua impotncia."19

Assim, o que o catch faz apenas explorar um potencial simblico que j existe no prprio jogo. A estrutura formal do jogo parece funcionar como um tecido de possibilidades de significao que os procedimentos teatrais do catch organizam, atravs de recursos como a nfase e o excesso, com uma "limpidez total". Dessa forma, mesmo tratando de algo que a rigor no um jogo, mas um simulacro do jogo, o texto de Barthes serve para nos mostrar que na estrutura formal do jogo esto inseridos uma srie de elementos com algum potencial de significao. O principal deles seria o prprio princpio agonstico, que possibilita a construo de uma srie de sentidos baseados na analogia com outras situaes competitivas e na identificao entre o pblico e os jogadores. Mas poderamos pensar tambm nas caractersticas particulares de cada jogo: os jogos com bola, que podem remeter a todos os significados mitologicamente associados esfera e ao crculo; os jogos individuais, como a corrida dos cem metros rasos e a maratona, que remetem luta do homem

19BARTHES.

Mitologias. p.12.

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contra os seus prprios limites; os jogos alegricos, como o xadrez, cujos elementos reproduzem determinadas relaes sociais; etc.

Enquanto praticado, no entanto, o jogo uma atividade intransitiva. Os antagonstas visam nica e exclusivamente fins internos ao seu universo particular, e toda a sua ateno est voltada para a disputa pela vitria. Nesse ponto, o jogo realiza uma srie de situaes que so potencialmente aptas a assumir um valor de representao, mas sua tendncia para o isolamento parece manter toda possibilidade de interpretao presa ao campo semntico particular instaurado por ele. Quando o jogo se transforma em espetculo, ele se torna algo mais do que uma atividade intransitiva. Ele passa a ser algo que para ser visto, ele se torna um "discurso" dirigido aos espectadores. Seus signos se oferecem vista do pblico, solicitam a interpretao e a metalinguagem.

Se no catch as caractersticas formais do jogo atrofiaram em funo de sua condio de espetculo, existem, como j dissemos, esportes que so, ao mesmo tempo e sem o comprometimento de nenhum dos dois aspectos, jogo e espetculo. Nesses espetculos esportivos, o potencial de significao do jogo vem tona, e aqueles significados bsicos, herdados dos antigos jogos rituais, so atualizados de forma contextualizada, so transformados em novos sentidos que se articulam com o contexto em que o jogo acontece e com o modo como ele jogado. Assim, os grandes espetculos esportivos, como o futebol, as lutas de boxe e os Jogos Olmpicos, tm sido frequentemente associados a uma grande variedade de sentidos, como as guerras, as identidades nacionais, as pretensas superioridades raciais, os impulsos animalescos do homem, valores como a fraternidade, a liberdade, a igualdade

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e a justia, etc. Para constat-lo, basta lembrar alguns episdios clssicos da histria recente do esporte: a criao dos Jogos Olimpicos Modernos, concebidos para serem a celebrao da paz e da solidariedade entre as naes; o triunfo do negro norte-americano Jesse Owens nas Olimpadas de Berlim, que foi interpretado como uma humilhao para o nazismo, que pretendia fazer daqueles jogos uma prova da superioridade da raa ariana; a trajetria do lutador de boxe Myke Tyson, considerado como um smbolo dos impulsos animalescos do homem e da violncia dos guetos urbanos; etc.

Conclumos ento que, se o jogo j possui uma certa capacidade de significao, sua transformao em espetculo oferece condies

extremamente propcias para que essa capacidade se manifeste e seja explorada. Atravs dos meios de comunicao de massa, os espetculos esportivos criam em torno de s uma enorme rede de discursos. Em todos esses discursos, o que se faz atualizar os significantes do jogo atravs de interpretaes verbais, impor ao discurso do jogo uma metalinguagem, produzir sentido a partir dele. Se no jogo enquanto prtica a tendncia para o isolamento funciona como um balizamento das possibilidades interpretativas, no jogo transformado em espetculo a proliferao de discursos funciona como uma fora centrfuga, que faz com que esse potencial de significao do jogo se manifeste e sejam explorado pela interposio incessante de novas interpretaes. Atravs dessas interpretaes, os significados originalmente inscritos na estrutura formal do jogo so recriados, transformados e multiplicados, fazendo com que os signos do jogo entrem em contato com um campo semntico mais amplo.

***

26

O caso do futebol no Brasil um exemplo claro de um jogo que, pela interpretao exaustiva decorrente de sua transformao em um grande espetculo esportivo, tornou-se um sistema de significao atravs do qual se produzem sentidos que extrapolam o seu universo referencial. Na estrutura formal do jogo de futebol podemos encontrar uma srie de elementos que tm algum potencial de significao: o princpio agonstico e todas as

possibilidades de analogia e identificao nele inscritas; a bola e o simbolismo mitologicamente associados a ela; o fato de que jogado sobre a grama, smbolo da terra, e em campo aberto, ou seja, sob o sol;20 o fato de que jogado com os ps que, contrapostos s mos - smbolos do trabalho e da civilizao -, podem assumir sentidos relacionados ao prazer e aos impulsos primitivos do homem;21 etc. Mas, se esses elementos tm tal potencial para serem tomados como signos, isso s acontecer a partir do momento em que esses sentidos forem de algum modo atualizados por novos significantes, no momento em que os elementos do universo futebolstico forem interpretados, recuperados atravs de alguma outra forma de discurso.

Transformado em um espetculo de grandes dimenses, o futebol foi exaustivamente interpretado no Brasil e, atravs do discurso sobre o jogo, ele se tornou sistema de significao extremamente dinmico, por meio do qual se produzem sentidos ligados a outras esferas da vida do homem. Nesse20A

partir das associaes mitolgicas entre a bola e o sol e entre o campo gramado e a terra, Jos Miguel Wisnik, em palestra realizada em Belo Horizonte no dia 16/06/94, por ocasio do Seminrio No pas do futebol, afirmou que o futebol possui "um fundamento arcico de natureza agro-pastoril, representando a luta do homem pela sobrevivncia". sugere que no incio do sculo o futebol, por ser jogado com os ps, adquiriu entre os negros e mulatos recm libertos da escravido uma conotao de liberdade: "Ainda aderia uma mancha a qualquer trabalho manual. Dar pontaps numa bola era um ato de emancipao." ROSENFELD. Negro, macumba e futebol. p.85.

21Rosenfeld

27

processo, como j dissemos, a imprensa esportiva tem naturalmente uma grande importncia, pois a escrita pereniza o discurso, propiciando uma gradativa cristalizao dos sentidos. E, dentre os discursos da imprensa esportiva, a crnica parece exercer um papel especialmente importante. Porque, ao mesmo tempo em que carrega consigo a autoridade da escrita, e mais do que isso, da escrita jornalstica, com o seu compromisso de verdade e fidelidade aos fatos que noticia, ela possui tambm determinadas

caractersticas que fazem dela um tipo de texto diferente dos outros textos da imprensa esportiva.

1.3

A crnica no mundo do futebol

Embora apaream algumas poucas vezes reunidas em livros, sobretudo nos peridicos jornalsticos que as crnicas de futebol encontram o seu lugar. para eles que elas so produzidas e neles que elas encontram a maioria de seus leitores, j que a circulao dos jornais e revistas, especializados ou no em esporte, geralmente bem maior do que a dos livros. Mas a crnica (no apenas a crnica de futebol, mas toda aquela variedade de textos que normalmente se classifica sob a rubrica "crnica") , no jornal, uma espcie de ovelha negra, um texto peculiar, radicalmente diferente dos outros textos.

Como na maior parte das outras sees do jornal, o que ocupa maior espao nas pginas de esporte (e tambm nas revistas e jornais especializados) so as matrias de cunho informativo. Nesses textos, que so marcados pelo ideal jornalstico de compromisso com a verdade e fidelidade aos fatos, encontramos uma linguagem que se pretende neutra, objetiva, imune s distores provocadas pelo ponto de vista de quem escreve. Uma linguagem

28

que encena, atravs da terceira pessoa gramatical e do tom impessoal, uma transparncia do real, como se ele no fosse produto do prprio discurso. Como se fosse possvel que os fatos se apresentassem, sem mediao, diante dos leitores.

Nas partes "srias" do jornal (poltica, economia, etc), encontramos tambm um outro tipo de texto, nos espaos dedicados opinio, como os editoriais, os artigos de fundo, as colunas de especialistas, etc. A, embora esteja presente a percepo de que se trata de um ponto de vista, de uma determinada interpretao dos fatos, o que predomina a lgica argumentativa, ancorada por uma linguagem que, se admite a presena do sujeito enunciador, encena tambm a objetividade. No a objetividade emprica da notcia, mas a objetividade do mundo visto atravs de uma moldura racional. Nas pginas de esporte esses textos encontram correspondncia nas colunas, assinadas geralmente por nomes de peso da cena esportiva, dedicadas opinio, ao comentrio ttico-tcnico (dos times, das partidas, dos campeonatos), s anlises da estrutura administrativa, etc. Textos que so s vezes chamados de "crnica", embora sejam de natureza bem diferente daqueles de que falaremos mais adiante.

Em ambos os tipos de texto, a matria informativa e o texto de opinio, o futebol normalmente tratado de forma objetiva, puramente factual. De modo geral, o jornalismo esportivo v o futebol unicamente como um esporte, e mesmo o evidente carter de espetculo explorado apenas em seus aspectos objetivos: a estrutura administrativa e econmica, a vida e a carreira dos jogadores, tcnicos e dirigentes, o comportamento das torcidas, etc.

29

Assim, a interpretao do futebol tende, nesses textos, a se restringir ao universo referencial do jogo e da estrutura objetiva do espetculo.

A crnica, ao contrrio, , por excelncia, o espao onde a interpretao do futebol se v livre para vos mais altos. Se nos outros espaos do jornal o tratamento dos acontecimentos esportivos objetivo e factual, na crnica a relao entre o texto e o acontecimento esportivo (que, alis, costuma dividir com ela o espao de uma mesma pgina do jornal) de um outro tipo. O gnero de textos de jornal conhecido como crnica, ao tomar como tema o futebol, trouxe consigo todo um conjunto de caractersticas que j faziam dele um ser de certa forma estranho linguagem de seu veculo. E so essas caractersticas que lhe conferem um papel diferenciado na interpretao do futebol.

* * *

Os historiadores da crnica registram o seu surgimento em meados do sculo passado, por influncia do jornalismo francs, nos espaos dos jornais denominados folhetins. Os folhetins eram espaos dos jornais, primeiro o rodap da pgina inicial e depois pginas e at mesmo cadernos inteiros, dedicados ao entreterimento. Nesses espaos cabiam diversos tipos de textos: do comentrio sobre o noticirio srio (poltico, econmico, policial) at as receitas de cozinha ou de beleza, passando pelo humor, pela critica teatral, pela coluna social, pela critica de moda, pelas narrativas de fico, etc. Nessas sees de variedades, que eram bastante frequentadas pelos nomes importantes do jornalismo e da literatura, surgiu o embrio do que conhecemos hoje como crnica. Desde os seus primeiros tempos, atravs de nomes como

30

Joaquim Manuel de Macedo, Jos de Alencar e Machado de Assis, a crnica veio desenvolvendo um conjunto de caractersticas prprias, que desembocou em uma slida tradio cronstica no jornalismo brasileiro. Uma tradio que inclui desde os j citados precursores at um Joo do Rio e um Lima Barreto, na virada do sculo, e depois Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, e muitos outros.

A crnica geralmente definida como um gnero "hbrido" ou "fronteirio", entre o jornalismo e a literatura, que d um tratamento "literrio" aos fatos que alimentam o noticirio dos jornais. Ela se caracteriza, portanto, por uma "referencialidade" temtica, pois trata geralmente de acontecimentos que so ou foram notcia, ou ento de pequenos episdios que foram vividos ou presenciados pelo autor. Qualquer assunto, por menos importncia que tenha, pode servir-lhe como tema. A crnica pode, inclusive, enveredar pela fico, mantendo, no entanto, a referencialidade ao inserir os acontecimentos fictcios em circunstncias que realmente ocorreram. Mas so sempre assuntos menores, fatos corriqueiros do dia-a-dia, que no servem como tema para gneros mais nobres. O princpio bsico da crnica , para Jorge de S, o "registro do circunstancial"22. Desse princpio se pode depreender o sentido do termo "crnica", que traz inscrito em si a idia de tempo. A crnica o "registro do tempo vivido", uma tentativa de fixar em palavras aquilo que se perde com o tempo, o circunstancial, a simples contingncia.

A linguagem da crnica a prosa livre, descompromissada, prxima da linguagem falada, encenando um "bate-papo" com o leitor. Essa oralidade e esse coloquialismo da crnica so, no entanto, de certa forma simulados,22S.

A crnica. p.6.

31

elaborados com cuidado pelo arteso da palavra. A crnica assume, assim, uma dimenso esttica, "literria", e, muitas vezes, um certo tom de lirismo. Ao invs da objetividade e da racionalidade, a crnica d lugar ao subjetivismo, ao impressionismo, reconstruo do real atravs do ponto de vista deformante do sujeito-autor. Registra-se ainda, como caracterstica da crnica, uma grande variedade e flexibilidade formal. Sob a rubrica "crnica" cabem tanto a narrao, que pode tender para a densidade do conto ou para a dissipao do caso contado em tom de "conversa de botequim", quanto o comentrio, srio ou satrico, a descrio de tipos curiosos, a prosa-lrica, etc. Mesmo a prosa, caracterstica de quase toda a crnica, uma regra que encontra exceo, por exemplo, nos poemas cronsticos de Olegrio Mariano.

importante assinalar que muitas dessas caractersticas da crnica so determinadas por seu veculo, o jornal. O prprio tamanho do texto (limitado pela diagramao do jornal), o curto espao de tempo que o autor tem para escrever (que impossibilita o trabalho mais minucioso com a linguagem), a referencialidade temtica e a simplicidade da linguagem so algumas das imposies feitas crnica pelas necessidades e caractersticas do jornalismo. De forma que, mais do que impor limites crnica, a insero jornalstica desses textos que os define, que faz com que eles existam e sejam como so.23

***

23Sobre

a crnica, suas caractersticas e sua histria, consultamos: ARRIGUCCI, Davi. "Fragmentos sobre a crnica". in: ARRIGUCCI, Davi. Enigma e comentrio. S, Jorge de. A crnica. CANDIDO, Antonio et al..A crnica; o gnero, sua fixao e suas transformaes no Brasil.

32

No incio deste sculo, quando o futebol dava os seus primeiros passos por aqui, a crnica j estava bem estabelecida na imprensa brasileira, especialmente no Rio de Janeiro, que viveu nessa poca um significativo crescimento da atividade jornalstica.24 Como as pginas de entreterimento haviam sofrido, com o tempo, uma certa especializao, com a rotinizao de alguns contedos ocupando espaos mais ou menos fixos (as sees de moda, crtica teatral e literria, o colunismo social, etc), haviam tambm as sees dedicadas aos esportes. Antes do futebol, frequentavam as pginas dos jornais o turfe, o remo, a pelota basca, o ciclismo, a patinao, tanto em textos meramente informativos quanto em textos cronsticos que comentavam os costumes da sociedade. Quando, na virada do sculo, o futebol surge, aparentando ser apenas mais uma moda esportiva dos jovens das classes abastadas, ele um assunto bastante prprio para ser tratado pela crnica. Assim, o surgimento da crnica de futebol em nossos jornais coincide com a prpria implantao desse esporte no Brasil. E, medida em que o futebol foi se popularizando e ganhando adeptos (praticantes e espectadores), a crnica de futebol tambm foi ganhando importancia e espao dentro do jornal.25

Tendo surgido, portanto, no incio do sculo, e tomado impulso com a progressiva popularizao do futebol, a crnica futebolstica desenvolveu uma verdadeira tradio dentro do jornalismo esportivo brasileiro. Se, como afirma Antnio Cndido, a crnica "sob vrios aspectos um gnero brasileiro"26, podemos dizer que a crnica de futebol um gnero tipicamente nosso. Mrio24

bastante significativa a coincidncia cronolgica entre o desenvolvimento da crnica e do esporte no Brasil. Os dois, de alguma forma, refletem o aburguesamento da vida da sociedade urbana brasileira do final do sculo passado e incio deste sculo pela importao de prticas culturais europias. "A crnica esportiva e o cronista de futebol". in: O olho na bola. p.5-11. "A vida ao rs-do-cho". in: CANDIDO et al. A crnica. p.15.

25PEDROSA. 26CANDIDO.

33

Filho, na "Nota ao leitor" da primeira edio de seu livro O negro no futebol brasileiro, aponta a dcada de 10 como o momento em que surgem os primeiros cronistas especializados no futebol: "Somente depois de 10 que o futebol, transformado em assunto jornalstico, permitiu que apaixonados do chamado esporte breto, cada um com seu clube, escrevessem crnicas, s vezes assinadas com iniciais"27.

Nas dcadas de 20 e 30, que marcam a transformao do futebol em fenmeno de massa (processo que culminou com a profissionalizao, em meados da dcada de 30), e na dcada de 40, quando se consolidam as transformaes e o crescimento da nossa imprensa esportiva28, a crnica se estabeleceu e se firmou como um espao dedicado liberdade no tratamento dos acontecimentos esportivos. , no entanto, no perodo que vai da dcada de 50 dcada de 70 que encontramos a maior parte da produo dos mais celebrados de nossos cronistas de futebol. Como exemplos, poderamos citar

27RODRIGUES 28Embora

FILHO. O negro no futebol brasileiro.

no seja pretenso deste trabalho realizar um levantamento minucioso da histria da crnica de futebol no Brasil, no poderamos deixar de registrar a importncia que teve, na formao de uma linhagem da crnica dedicada ao futebol, no crescimento da imprensa esportiva e na prpria popularizao do futebol no pas, o trabalho do jornalista Mrio Filho, irmo de Nelson Rodrigues. Reprter, redator, cronista, diretor e proprietrio de jornais, alm de promotor de eventos esportivos, Mrio Filho , sem dvida, o maior nome da imprensa brasileira ligada ao futebol. Para muitos ele o verdadeiro criador da imprensa e da crnica esportiva brasileira. Na direo das pginas de esporte de A Manh (1927), A Crtica (1928 e1929) e O Globo (1931 a 1942), e como proprietrio de O Mundo Esportivo (1931 e 1932) e do Jornal dos Sports (1936 a 1966), Mrio Filho revolucionou a imprensa esportiva brasileira, ampliando enormemente seus espaos, colocando os jogadores no centro da cena, publicando entrevistas, biografias e fotos dos atletas em ao, ao invs de poses em terno e gravata, etc. Em seus textos, Mrio Filho forjou a linguagem da crnica de futebol e abalou os costumes lingsticos de toda a imprensa esportiva. Os clubes passaram a ser chamados por seus nomes populares, o jargo futebolstico, at ento falado em ingls, foi abrasileirado e o futebol ganhou um tratamento lrico, dramtico e humorstico que at ento era indito. Alm do trabalho em jornais, Mrio Filho publicou vrios livros, entre eles o clssico O negro no futebol brasileiro, considerado uma das obras mais importantes da literatura futebolstica brasileira. CASTRO. O anjo pornogrfico.

34

Mrio Filho (cuja produo se estende at meados da dcada de 60), Armando Nogueira, Joo Saldanha, Stanislaw Ponte Preta e o prprio Nelson Rodrigues.

Na variedade de textos que compem essa tradio da crnica futebolstica brasileira podemos constatar a presena de praticamente todas aquelas caractersticas que definem o gnero cronstico. Do ponto de vista temtico, grande parte da flexibilidade atribuda crnica limitada pela prpria especializao no futebol. Trata-se sempre do futebol, seno do prprio jogo, pelo menos da vida de seus personagens (jogadores, torcedores, tcnicos, diretores, etc) e de suas instituies (clubes, campeonatos, federaes, etc). Mas, dentro do universo futebolstico, a liberdade na escolha dos temas total, podendo servir para assunto da crnica desde uma pelada num campo de vrzea em 1920 quanto a comoo das massas pela conquista do tricampeonato mundial. No entanto, permanece a referencialidade, pois fala-se sempre de algo que aconteceu, ou pelo menos que poderia ter acontecido em determinadas circustncias da vida futebolstica real. E, se a crnica tende a escolher como tema assuntos sem importncia, sem apelo literrio, o futebol um tema bem adequado para ela, pois, como jogo e espetculo, ele est desligado das esferas "srias" da vida. A leveza e liberdade da linguagem, o coloquialismo, o tratamento esttico e s vezes lrico dos acontecimentos, assim como a variedade e flexibilidade formal tambm esto presentes no universo da crnica de futebol. Para ficar apenas nos autores que j citamos, poderamos lembrar, como exemplos da presena dessas caractersticas: a prosa lrica de Armando Nogueira, que tenta recriar, atravs da palavra, a emoo esttica do espectador de futebol; o relato de viagem de Stanislaw Ponte Preta, s vezes herico, s vezes satrico; os episdios pitorescos, em tom de "conversa de botequim", de Joo Saldanha; o fluxo da memria de

35

Mrio Filho, reconstituindo as primeiras dcadas da histria do futebol brasileiro em tom lrico, dramtico ou humorstico, mas sempre numa linguagem simples, leve, que convida leitura; o debate inflamado de Nelson Rodrigues; etc.

***

Do nosso ponto de vista, interessado em estabelecer a especificidade do discurso da crnica no processo de significao que se d no universo futebolstico, um certo aspecto do gnero cronstico se torna especialmente relevante: a relao ambgua estabelecida entre a crnica e os fatos que lhe servem de referncia. Se, por imposio de seu veculo, a crnica toma como tema fatos que so ou foram notcia, ela tende a escapar da pura objetividade no tratamento desses fatos. Essa caracterstica da crnica foi diversas vezes registrada por nossa crtica literria. Tel Ancona Lopez, por exemplo, em seu texto "A crnica de Mrio de Andrade: impresses que historiam", reconhece na crnica um carter de negao da "obrigao puramente jornalstica de revelar objetividade". Para a autora, a crnica funcionaria como uma "brecha amena, sensvel, de tom pessoal, individual", "no meio do noticirio srio e pesado que marca o mundo de hoje"29. E Davi Arrigucci, no ensaio "Fragmentos sobre a crnica", afirma que "como parte de um veculo como o jornal, ela parece destinada pura contingncia, mas acaba travando com esta um arriscado duelo, de que s vezes, por mrito literrio intrnseco, sai vitoriosa". Esse duelo a tentativa de, atravs da linguagem, extrair o fato de

29LOPEZ.

"A crnica de Mrio de Andrade: impresses que historiam". in: CANDIDO et al..A crnica. p.167,169.

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sua moldura meramente contingencial e transform-lo em "uma forma de conhecimento de meandros suts de nossa realidade e de nossa histria"30.

Assim, ao se aproximar dos fatos corriqueiros desvencilhada da obrigao jornalstica de informar e investida de todas as liberdades "literrias", a crnica tende a ser, menos do que a narrao desses fatos, a sua interpretao, os fatos transformados pelo olhar do cronista. Um olhar que procura retirar os fatos de sua moldura meramente contingencial e enquadr-los numa moldura de sentido. Essa idia est presente em diversos comentrios crticos sobre o trabalho de cronistas como Machado de Assis, Rubem Braga, Mrio de Andrade, etc. Poderamos citar, por exemplo, um trecho de Jorge de S, em seu livro A crnica, em que, a propsito de Rubem Braga, se afirma que "o escritor no perde de vista que a sua situao particular s conta para o leitor na medida em que funciona como metfora de situaes universais"31; ou o comentrio de Sonia Brayner sobre a crnica de Machado de Assis, em que se diz que "Machado recolhe as notcias e (...) d-lhes um enquadramento de significao" e que "o narrador (...) procura sobrepor o enunciado literrio ao dado emprico, 'desqualificando' a transparncia do simples factual" numa luta "para dominar o puro factual da notcia"32. Ainda sobre a crnica de Machado de Assis, Davi Arrigucci afirma que "os pequenos fatos (...) adquirem uma ressonncia alegrica que os resgata at certo ponto da pura contingncia, transformando-os em ndices de um processo mais amplo, como se fossem meios de se tatear sobre a verdade histrica"33.30ARRIGUCCI. 31S.

Enigma e comentrio. p.53.

A crnica. p.14. "Um cronista de quatro dcadas". in: CANDIDO et al..A crnica. p.413. Enigma e comentrio. p.60.

32BRAYNER.

33ARRIGUCCI.

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O mesmo movimento acontece nos melhores momentos da crnica futebolstica. Negando a objetividade e a factualidade do jornalismo esportivo, ela se vale de sua liberdade "literria", que lhe permite a explorao esttica da linguagem e o tratamento subjetivo dos temas, e se transforma no lugar em que possvel uma interpretao mais produtiva do jogo de futebol. Assim como a crnica , para Tel Ancona Lopez, a "brecha amena" do jornal, a crnica futebolstica a "brecha" pela qual a interpretao do futebol pode abadonar o universo referencial do jogo e da estrutura objetiva do espetculo. A crnica futebolstica retira o futebol da moldura objetiva da notcia, que s v seus aspectos estritamente esportivos, para dar-lhe um "enquadramento de significao". Assim, a seu modo, ela trava tambm o seu "duelo" com a circunstancialidade e o factual do jornalismo. Atravs dela o futebol deixa de ser apenas um esporte e adquire uma dimenso de representao, uma "ressonncia alegrica", tornando-se uma "metfora de situaes universais".

Por isso dissemos que a crnica desempenha um papel diferenciado no processo de produo de sentidos a partir do futebol. A crnica o lugar em que a interpretao do jogo pode abandonar o seu universo referencial, e atraves dela, mais do que de outros discursos, que o jogo adquire aquela "espessura semntica" de que falamos anteriormente. Milton Pedrosa, na

orelha da coletnea de crnicas de futebol intitulada O olho na bola, por ele organizada, descreve da seguinte forma o trabalho do cronista de futebol:

" s vezes, uma frase condensa a sabedoria adquirida em centenas de partidas, resume o conhecimento de mil gramados e de mil craques. Para escrev-la, foi preciso ter visto Kuntz, Marcos de Mendona ou Castilho pegar uma bola, foi preciso ter-se extasiado diante um Domingos da Guia ou um Nilton Santos, haver

38

testemunhado um dos 1.329 gols de Friedenreich, ter visto Garrincha driblar, uma bicicleta do Diamante Negro, ter compreendido a nsia de perfeio de um Heleno de Freitas... Foi preciso ver um perna de pau numa pelada ou Pel na linha de seleo. Foi necessrio ouvir o silvo do apito na boca de Armando Marques, ter presenciado a torcida ululante de um time popular ou ouvido o choro do torcedor ferido de morte. Foi preciso ter visto mil feitos, festejado mil vitrias, sofrido mil derrotas. Foi preciso terse tornado no homem que olha a bola com o fascnio do menino que espia o pssaro encantado. Foi preciso aprender a amar o jogo e a sentir o gol (...) dando-lhe [ao leitor] cincia do que testemunhou, do que sentiu, do que sofreu, do que o emocionou e o alegrou - enquanto tinha o olho na bola."34

Como o sacerdote para o ritual, o cronista de futebol , para o jogo-espetculo, o intrprete privilegiado, iniciado em seus segredos, capaz de compreender o seu lado "misterioso" e "pattico" e de desvendar os seus sentidos.

34PEDROSA.

O olho na bola.

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CAPTULO 2 - NELSON RODRIGUES NA OUTRA DIMENSO DO FUTEBOL

"O campeonato uma espcie de romance policial. Da as surpresas que reserva. Um captulo escrito pelo Flamengo, outro pelo Vasco, outro pelo Botafogo..." Mrio Filho

2.1.

Nelson versus "os idiotas da objetividade"

As crnicas de futebol de Nelson Rodrigues so mais do que um exemplo desse processo pelo qual o texto cronstico torna-se um lugar privilegiado para a construo e cristalizao dos sentidos que o imaginrio coletivo brasileiro atribui aos acontecimentos, personagens e instituies do mundo do futebol. Nelson Rodrigues foi, ao lado de Mrio Filho, um dos grandes artfices da mitologia futebolstica brasileira. Talvez porque suas crnicas, extravagantes, polmicas e to apreciadas pelo pblico, sejam aquelas em que a interpretao do futebol se faz de forma mais radicalmente livre da objetividade jornalstica. Nas crnicas de Nelson revela-se, para alm dos aspectos objetivos, que ele chamava de "termos chatamente tcnicos, tticos e esportivos",35 toda uma outra dimenso do futebol: as interferncias do sobrenatural, o dramatismo dos grandes jogos, o lirismo do estilo dos craques, e todo um mundo particular em que os acontecimentos, personagens e instituies do universo futebolstico tornam-se signos de um universo mais amplo, que a prpria vida do homem.

35RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.13.

40

A vinculao rubrica "crnica" foi essencial para que Nelson desenvolvesse sua extravagante e rica interpretao do futebol e dos acontecimentos do mundo esportivo. A possibilidade de estabelecer com os fatos que serviam de referncia a seus textos uma relao ambgua, subjetiva e produtiva lhe permitiu criar uma concepo particular do mundo futebolstico, onde as peas se encaixam segundo uma lgica prpria, mais ou menos desligada da realidade objetiva. Em suas crnicas, os acontecimentos do mundo do futebol aparecem transfigurados, transformados pelo olhar do cronista, deslocados da moldura objetiva da notcia e inseridos em um "enquadramento de significao". Um movimento que, no mbito da imprensa esportiva, s possvel porque, sob a rubrica "crnica", o autor se encontra livre da obrigao jornalstica de revelar objetivamente os fatos.

Some-se a isso a prpria tradio jornalstica da famlia de Nelson, marcada pelo jornalismo sensacionalista e agressivo de seu pai, Mrio Rodrigues,36 e pelo frtil trabalho de seu irmo, Mrio Filho, tanto como cronista e jornalista esportivo quanto como produtor de eventos esportivos. Alis, Mrio Filho sempre foi, para Nelson, um mestre e um modelo a ser seguido. Segundo o prprio Nelson, havia nos textos de Mrio Filho "uma viso inesperada do futebol e do craque, um tratamento lrico, dramtico e humorstico que ningum usara antes".37 Em uma crnica de 75, Nelson d uma idia de sua admirao por seu irmo e da importncia que lhe atribuia na criao de uma mitologia futebolstica brasileira:36Mrio

Rodrigues, pai de Nelson, foi jornalista e proprietrio de jornais no Rio de Janeiro das primeiras dcadas do sculo. Seu trabalho se caracterizava, segundo Jos Sergio Leite Lopes, "pela arte de criar eventos, pela nfase com que tomava os polticos como alvo (...), pela importncia dada aos fatos criminais e pelo desenvolvimento da pgina de polcia". LEITE LOPES. A vitria do futebol que incorporou a pelada. In: Revista da USP: Dossi Futebol. "O homem fluvial". In: RODRIGUES FILHO. O sapo de Arubinha.p.9.

37RODRIGUES.

41

"Amigos, cada gerao devia ter um Mrio Filho, ou seja, um homem de larga vocao homrica. E, ento, eis o que aconteceria maravilhosamente: a histria de uma gerao passaria a outra gerao, assim como a chama do crio passa a outro crio. Mas Mrio Filho morreu e no ouvimos mais os grandes cantos do futebol."38

Enganava-se Nelson. Pois era ele prprio o herdeiro de Mrio Filho. Aquele que faria da mitologia futebolstica brasileira, que seu irmo comeara a criar, uma tradio. O cronista capaz de revelar a outra dimenso do futebol, de dar dele "uma viso inesperada (...), um tratamento lrico, dramtico e humorstico". O vate, ao mesmo tempo poeta e sacerdote, reinventando a notcia e revelando-lhe os sentidos.

Em uma crnica de 56, em que protesta veementemente contra a cobertura da vitria da seleo brasileira no Campeonato Pan-Americano daquele ano pela imprensa nacional (cobertura que ele chama de "pfia correspondncia, que nos enche de humilhao patritica e vergonha profissional"), Nelson define exemplarmente sua idia do que deveria ser o trabalho do cronista esportivo. Ele comea a crnica lamentando que "o Bilac dos tiros de guerra" no estivesse mais vivo para poetar a conquista brasileira. Numa referncia indireta a Mrio Filho, Nelson diz que "outrora, cada acontecimento tinha um Homero mo, ou um Cames, ou um Dante", e que "recheado de poesia, entupido de rimas, o fato adquiria uma dimenso nova e emocionante". Para Nelson, "um cronista apaixonado" deveria "retocar o fato, transfigur-lo, dramatiz-lo", deveria falar "com os arreganhos de um orador canastro". Mas nossos cronistas (o termo aqui se confunde com "jornalistas"), com "sua mania de

38RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.174.

42

justia e de objetividade", "cingiram-se a uma veracidade abjeta". No calor da polmica, Nelson d sua definio cabal para o trabalho jornalstico: "a arte jornalstica consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer forma, negar sua imagem autntica e alvar".39

Essa definio um tanto quanto extravagante do trabalho jornalstico serve perfeitamente para o seu prprio trabalho como cronista esportivo. Nelson Rodrigues o prprio "cronista apaixonado" a desgrenhar os acontecimentos esportivos, negando-se a se submeter aos limites da objetividade jornalstica. E seu tom eminentemente oratrio, com o uso abundante dos mais variados artifcios retricos, faz dele o "orador canastro" a retocar, transfigurar e dramatizar os jogos de futebol, conferindo-lhes "uma dimenso nova e emocionante". Uma crnica de 59 (em que se comenta um curioso episdio em que um bandeirinha, cujo apelido era "Caixa Econmica", teria-se distrado, entrado em campo e interferido no jogo, fazendo uma "tabelinha" involuntria com um dos jogadores) serve como exemplo desse procedimento, tpico do texto de Nelson Rodrigues:

"Dizem que a bola bateu, simplesmente bateu, no fabuloso bandeirinha. Amigos, sejamos mais lricos e menos objetivos. Vamos admitir que o "Caixa Econmica" deu um passe que caiu como uma luva, ou melhor, como uma meia no p de Henrique. Jamais Zizinho no apogeu, ou Jair, ou o divino Domingos da Guia conseguiram ser to percisos, exatos, perfeitos. (...) Vejam vocs a trama diablica: - 'Caixa Econmica' - Henrique - Dida!"40

39RODRIGUES. 40RODRIGUES

A ptria em chuteiras.p.11,12.

sombra das chuteiras imortais. p.78.

43

Ao mesmo tempo em que permitia a Nelson explorar aspectos inusitados do futebol, essa concepo do trabalho jornalstico lhe permitia tambm inserir-se com toda fora na lgica agonstica do jogo e assumir posies francamente subjetivas. O "cronista apaixonado" era tambm o torcedor inflamado e o jornalista assumidamente parcial. H uma crnica em que Nelson justifica uma de suas opinies dizendo: "porque, graas a Deus no sou um imparcial. Acho o imparcial um monstro de circo de cavalinhos e pior do que isso: - um vigarista."41 E o "orador canastro" era tambm o polemista inveterado, sempre a desafiar e provocar os colegas do jornalismo esportivo, chamados por ele de "idiotas da objetividade", "lorpas e pasccios da crnica esportiva", "entendidos" (com aspas no original), "cretinos fundamentais" e uma srie de outras denominaes, sempre em tom de violncia e deboche. Atravs desse tom polmico Nelson reproduz, no discurso sobre o futebol, a estrutura formal do jogo, travando um verdadeiro "duelo" com os adeptos do objetivismo jornalstico, do factualismo burro, que enxergavam no futebol apenas um esporte e no escrete apenas um time.

41RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.56.

44

2.2.

O futebol como drama

Mais do que um esporte, o futebol sempre foi, para Nelson Rodrigues, um espetculo, um "show delicioso"42 capaz de envolver o pblico em uma densa aura de tenses e de despertar nele as reaes mais apaixonadas. Em uma crnica de 55, em que faz uma "apologia do campo pequeno", Nelson demonstra sua preocupao com o aspecto de espetculo do futebol. O campo pequeno, no caso o estdio do Fluminense no bairro das Laranjeiras (RJ), , para ele, o espao ideal para o espetculo do futebol. Porque "a distncia [dos grandes estdios] desumaniza os fatos, retira das criaturas todo o seu contedo potico e dramtico". J no campo pequeno "todos os caminhos esto abertos para a emoo direta e integral". E no jogo a que assistimos em um campo pequeno "tudo adquire uma dimenso insuspeitada e terrvel".43 A base de sua apologia est na "nitidez", na "visibilidade" que os jogos em campos pequenos adquirem, pela proximidade entre jogadores e espectadores. , portanto, como espetculo, como algo que para ser visto e que capaz de emocionar o espectador, que Nelson Rodrigues v o futebol.

Para um autor que era sobretudo um dramaturgo (embora tenha vivido o cotidiano das redaes de jornal durante toda a sua vida), a idia de espetculo haveria de sugerir a relao entre o futebol e o teatro. Com efeito, toda a concepo de futebol desenvolvida por Nelson em suas crnicas est repleta de elementos do teatro. O futebol lhe atraa pelo que tem de trgico, de dramtico. Em uma crnica de 63, em que comenta a lendria vitria do

42RODRIGUES. 43RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.29. A ptria em chuteiras.p.9,10.

45

Santos sobre o Milan pelo mundial interclubes, Nelson sintetiza sua concepo do jogo de futebol:

"O que procuramos no futebol o drama, a tragdia, o horror, a compaixo. E o lindo, o sublime na vitria do Santos que, atrs dela, h o homem brasileiro com o seu peito largo, lustroso, homrico."44

O trecho acima uma aluso mais consagrada fonte da histria da dramaturgia, a Potica, de Aristteles, em que se diz que a tragdia tem por fim sucitar o "terror" e a "piedade", levando "purificao dessas emoes" atravs da catrse.45 Na Potica, Aristteles explica que a palavra "drama" tem no verbo "drn", que na lngua dos drios do Peloponeso significava o "fazer", uma de suas provveis razes etimolgicas. Assim, as composies dramticas receberiam esse nome "pelo fato de se imitarem agentes [drntas]". Se, para Aristteles, poesia "" (que significa imitao ou, segundo tradues mais recentes, representao), os dramas se distinguiriam de outras formas poticas, como a narrativa e a epopia (que seria uma forma mista, entre o drama e a narrativa), pelo modo como imitam (ou representam):

"com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalidade de outros, como faz Homero, ou na prpria pessoa, sem mudar nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas [na forma dramtica]."46

44RODRIGUES.

sombra das chuteiras imortais. p.104. Potica. p.110. Potica. p.106.

45ARISTTELES. 46ARISTTELES.

46

Tomando como modelo o teatro, Nelson Rodrigues v o futebol como se ele fosse uma encenao em que se representa o destino trgico ou herico do homem. As aes dos jogadores e dos demais atores da cena futebolstica valeriam pelas aes de outros agentes. A vitria dos jogadores do Santos valeria pela vitria do prprio homem brasileiro. Assim, atravs da comparao com o teatro, a concepeo de futebol de Nelson Rodrigues incorpora de forma explcita a representao como um de seus elementos centrais. O mundo do futebol, recriado por Nelson em suas crnicas, funciona segundo a lgica do drama, e seus elementos se ajustam em funo de seu carter de representao.47

Por isso, a relao com o conceito clssico do drama, estabelecida pelo prprio cronista, nos permite sistematizar uma srie de elementos dessa recriao do mundo futebolstico que Nelson faz em suas crnicas. Algumas das categorias estabelecidas por Aristteles para a descrio do drama, particularmente do gnero trgico (j que seu livro sobre a comdia se perdeu), podem ser utilizadas para a anlise das crnicas de futebol de Nelson Rodrigues, no intuito de revelar os mecanismos atravs dos quais o cronista explora essa dimenso de representao do futebol.

A maneira como Nelson toma livremente os acontecimentos do mundo futebolstico para recri-los segundo um lgica prpria nos permite dizer que, em suas crnicas, esses acontecimentos funcionam como um esquema, um argumento, uma seqncia de aes pr-estabelecida a partir da qual ele constri o seu drama. Assim, pela lgica da comparao com o teatro, a47Note-se

aqui a estreita relao entre a concepo rodrigueana do fuebol e as idias de DaMatta e Rosenfeld. Mais do que uma simples coincidncia, essa relao evidencia uma clara convergncia entre o cronista e os tericos na interpretao do fenmeno futebolstico.

47

estrutura formal do jogo e a maneira como ela se realiza em cada competio (a histria dos jogos e dos campeonatos) fazem, no drama do futebol, as vezes do "mito". Em Aristteles, o "mito" , justamente, a "trama dos fatos", a "imitao das aes", a "composio dos atos" que movimentam o drama (porque era dos antigos mitos orais que os poetas gregos retiravam os argumentos de suas tragdias). E a tragdia, sendo uma imitao de aes, tambm uma imitao de agentes, os quais, por suas palavras ("elocuo") e aes, revelam qualidades que definem o seu "carcter".48 Porm, se para Aristteles o "mito" , entre as "partes" da tragdia, a mais importante, e os personagens e seus "caracteres" devem existir somente em funo das aes que desempenham ("na tragdia, no agem os personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas aes")49, nas crnicas de Nelson Rodrigues a lgica se inverte. A trama, funo que desempenhada pelo desenvolvimento das aes em uma determinada partida, s interessa na medida em que capaz de revelar o homem que h por trs de todo jogador. "Se o jogo fosse s a bola, est certo, mas h o ser humano por trs da bola", o que diz Nelson, na mesma crnica de 63.50 E em outra crnica, esta de 64, sobre o famoso tapa dado por Nilton Santos em Armando Marques: "Ora, mil vezes mais grave, mais solene, mais hiertico do que o atleta o ser humano".51

Nos termos da descrio aritotlica da tragdia, diramos que para Nelson interessa mais o "carcter" (que diz respeito s qualidades do agente) do que o48ARISTTELES. 49ARISTTELES. 50RODRIGUES. 51RODRIGUES.

Potica. p.111. Potica. p.111.

sombra das chuteiras imortais. p.104. sombra das chuteiras imortais. p.116.

48

"mito".

Da

sua

admirao

pelo

estilo

dos

jogadores

trunculentos,

temperamentais e rudes como Almir, Amarildo ou Obdlio Varela. As qualidades reveladas pelos atletas em um jogo de futebol funcionam como signos das qualidades do prprio homem: "um jogador no pode ser, nunca, a antipessoa".52 Trunculncia, rudeza e comportamento temperamental, atitudes consideradas pelos "idiotas da objetividade" como "anti-esportivas", funcionam como signos de "caracteres" como bravura e coragem. Qualidades que, para Nelson, so necessrias, essenciais ao homem. Assim, em diversas crnicas ele se desdobra em elogios aos jogadores de estilo mais aguerrido, s vezes mesmo violento, capazes de "oferecer a cara ao bico adversrio".53 o cdigo de valores herico em pleno funcionamento, porque Nelson nunca perde de vista o parentesco entre o jogo e a guerra. "Durante noventa minutos, so onze brbaros contra onze brbaros".54 essa predileo pelos jogadores de estilo mais viril que est por trs de uma de suas mais extravagantes afirmaes: "Eis a verdade: - o que d charme, apelo, dramatismo aos clssicos e s peladas o foul. A poesia do futebol est no foul. E os jogos que fascinam o povo so os mais trunculentos".55 Como uma ao, o "foul" , sem dvida, um elemento do "mito", mas sua importncia vem justamente da capacidade de revelar, no agente, "caracteres" como bravura e coragem.

O mesmo se pode dizer das diversas vezes em que Nelson se manifesta (contra os "entendidos", que se punham em defesa do "coletivismo" no futebol) a favor do estilo eminentemente individualista dos jogadores brasileiros. Em52RODRIGUES. 53RODRIGUES. 54RODRIGUES. 55RODRIGUES.

sombra das chuteiras imortais. p.116. A ptria em chuteiras.p.180. sombra das chuteiras imortais. p.133. sombra das chuteiras imortais. p.133.

49

uma crnica de 66, por exemplo, Nelson polemiza com o tcnico Admildo Chirol, que em uma entrevista havia anunciado o fim "do homem-chave, do homem-estrela, do craque quase divino":

"Toda a experincia humana parece estar contra Chirol. Ningum admite uma f sem Cristo, ou Buda, ou Al, ou Maom. Ou uma devoo sem o santo respectivo. Ou um exrcito sem napolees. No esporte, tambm. Numa competio modesta de cuspe distncia, o torcedor exige o mistrio das grandes individualidades. No futebol, a prpria bola parece reconhecer Pel ou Garrincha e s falta lamber-lhes os ps como uma cadelinha amestrada. Ai do teatro que no tem uma Sarah Bernhardt ou uma Duse."

E, mais frente:

"No dia em que desaparecerem os pels, os garrinchas, as estrelas, enfim, ser a morte do futebol brasileiro. E, alm disso, no dia em que desaparecerem as dessemelhanas individuais - ser a morte do prprio homem."56

, como no caso do gosto pelo estilo dos jogadores virs, a nfase no "carcter", nas qualidades que fazem o agente. E a divergncia em relao recomendao de Aristteles para a construo da tragdia (a nfase no "mito") talvez no reflita uma diferena muito grande entre as duas concepes de drama. Porque essa nfase no "caractr" tem, nas crnicas de Nelson, uma funo especfica. Ela funciona como uma forma de por em relevo o aspecto representativo de que se investe o agente, destacando nele certas qualidades que podero remeter a determinados sentidos. E, em Aristteles, como se

56RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.129,130.

50

falava de teatro, e no de futebol, no havia dvidas sobre a presena da representao.

essa mesma lgica, a da pintura enftica do "carcter" com o objetivo de revelar sua dimenso representativa, que rege boa parte das crnicas publicadas na coluna intitulada "O personagem da semana", da qual foram retirados muitos dos textos reunidos nos volumes sombra das chuteiras imortais e A ptria em chuteiras. Trata-se, nessa coluna, segundo as palavras do prprio Nelson, de escolher entre as personagens do drama "a figura que possa traduzir o smbolo pessoal e humano da batalha".57 O "personagem da semana" sempre, dentre os atores da cena futebolstica, aquele cujas qualidades possuem um maior potencial representativo, e por isso melhor se prestam recriao dramtica. O corajoso, o nobre, o pusilnime, o vil, etc. Enfim, personagens que encarnam certos "tipos", e que por isso podero encontrar alguma correspondncia na vida extra-futebolstica.

Mas Nelson no perde de vista a importncia do "mito", da "trama dos fatos" que move o drama do futebol: o desenvolvimento do jogo, a marcha do placar. Em Aristteles o "mito" , como dissemos, o elemento primordial da tragdia, "pois a tragdia no imitao de homens, mas de aes e de vida, de felicidade [e infelicidade]".58 Pois justamente da seqncia das aes, do "transe da felicidade infelicidade ou da infelicidade felicidade",59 que vem a sua capacidade de lograr o "efeito trgico", sucitanto no pblico "o terror e a

57RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.47. Potica. p.111. Potica. p.114.

58ARISTTELES. 59ARISTTELES.

51

piedade" e levando "purificao dessas emoes" atravs do fenmeno catrtico.

No futebol, a "trama dos fatos" sempre uma moeda de dois lados, ou, como diria Aristteles, uma "tragdia de dupla intriga", "que oferece opostas solues para os bons e para os maus".60 Pois, no futebol, h sempre vencedores e vencidos. Para uns, o transe em direo felicidade, e para outros o contrrio. A crnica assumidamente parcial de Nelson Rodrigues, adotando na maioria das vezes o ponto de vista de um dos lados do jogo, est sempre a falar da vitria e da derrota e do modo como elas foram construdas. Em certos jogos a simples marcha do placar que oferece o elemento dramtico, capaz de sucitar as paixes e provocar sua expiao. Como no jogo entre Brasil e Espanha, pela Copa do Mundo de 62, vencido de "virada" (2x1) pelos brasileiros:

"O bonito, o sublime, o gostoso de Brasil x Espanha foi a angstia. Ns sabemos que o martrio que d a um jogo, seja ele um clssico ou uma pelada, um charme desesperador. Ora, a batalha com os espanhis teve todos os matadouros emocionais. Eis uma partida que ps em cada corao uma fluorescente coroa de espinhos. Fomos, at o primeiro gol [do Brasil], 75 milhes de cristos."61

A eminncia da derrota, aps o primeiro gol dos espanhis, foi o elemento que conferiu partida a sua dramaticidade, o seu charme, a sua beleza. Por isso, a vitria se tornou melhor, mais emocionante, mais envolvente. "O Brasil venceu. Somos milhes de reis." Teramos, aqui, um "mito simples", em que o "efeito

60ARISTTELES. 61RODRIGUES.

Potica. p.120.

A ptria em chuteiras.p.73.

52

trgico" (o despertar das paixes no pblico pela identificao com a dor dos personagens) provocado exclusivamente pelo plano principal da ao, sem a necessidade de episdios acessrios.

Mas em outros jogos no a marcha do placar que interessa, mas justamente o que o placar no mostra, certos detalhes que poderiam passar desapercebidos e sobre os quais o cronista lana o seu olhar. H uma crnica em que Nelson afirma: "Eu sempre digo que uma peleja no o seu placar. Muitas vezes, o que importa o que o placar no diz, o que o placar no confessa."62 s vezes um episdio quase imperceptvel que ganha importncia, como a "cusparada metafsica" dada por Dida (um jogador do Flamengo dos anos 50 e 60) sobre a bola, momentos antes da cobrana de um penalti, em uma partida contra o modesto Canto do Rio, em 57, e que teria evitado que o penalti fosse convertido em gol, revelando a presena do sobrenatural no futebol.63 s vezes um episdio mais complexo, como a bofetada dada por "um jogador qualquer" no juz, que acabara de repreend-lo por uma jogada violenta, em uma partida do Fluminense, tambm em 57. Esse lance foi, para Nelson, "o episdio inesperado, o incidente mgico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimenso nova e eletrizante", despertando no pblico o "horror" e envolvendo-o solidariamente na covardia do juz, que aps o tapa "correu como um cavalinho de carrossel".64

Temos, nesses dois exemplos, a presena de mais duas das categorias aristotlicas para a descrio das "partes da tragdia": o "reconhecimento" e a62RODRIGUES. 63RODRIGUES. 64RODRIGUES.

A ptria em chuteiras.p.30. sombra das chuteiras imortais. p.31,32. sombra das chuteiras imortais. p.13,14.

53

"peripcia". "Reconhecimento" e "peripcia" so considerados por Aristteles como "elementos qualitativos" que diferenciam o "mito complexo" e como "os principais meios por que a tragdia move os nimos". O "reconhecimento" definido como "a passagem do ignorar ao conhecer", e a "peripcia" como "a mutao dos sucessos no contrrio".65 No primeiro exemplo encontramos o "reconhecimento" porque o episdio da "cusparada metafsica" serve para revelar a presena do sobrenatural no futebol, e no segundo a "peripcia" porque a situao em que o juz deveria fazer valer sua autoridade sobre o jogador desencadeou justamente o efeito contrrio.

Quanto ao episdio da "cusparada metafstica", interessante notar que atravs dele Nelson afronta outra das recomendaes de Aristteles para a construo do drama trgico: o respeito verossimilhana. No captulo XV da Potica, Aristteles diz: "Tanto na representao dos caracteres como no entrecho das aes, importa procurar sempre a verossimilhana".66 (Em outro momento, no entanto, Aristteles reconhece lugar ao "maravilhoso" na tragdia, porque "verossimilmente muitos casos se do e ainda que contrrios verossimilhaa".)67 Ao sugerir que a verdadeira causa da perda do penalti pelo jogador do Canto do Rio tenha sido a cusparada de Dida, Nelson introduz no drama do futebol um elemento que escapa s leis vigentes de verossimilhana (porque o verossmil de hoje no o mesmo verossmil do tempo de Aristteles): o "sobrenatural". As interferncias do "sobrenatural", do "impondervel", so mais uma das obsesses do cronista. As crnicas sobre a "leiteria metafsica" (uma entidade "extraterrena" que velaria pela sorte do65ARISTTELES. 66ARISTTELES. 67ARISTTELES.

Potica. p.112,118. Potica. p.124. Potica. p.130.

54

Fluminense) e a srie de crnicas em que aparece o "Sobrenatural de Almeida" (um dos personagens fictcios que dividem com os personagens e acontecimentos da vida futebolstica real o espao das crnicas de Nelson ) so os exemplos mais evidentes dessa obsesso. Novamente a o movimento de revelar a dimenso representativa do futebol que importa ao cronista. Porque essas intervenes do sobrenatural nada mais so do que mais um dos elementos da representao: o signo das foras impessoais do destino, do azar e da sorte, que a todo momento interferem na vida dos homens e dos times.

"A vida dos homens e dos times depende, s vezes, de episdios quase imperceptveis. (...) Mas eu vos direi que, antes de Canto do Rio x Flamengo, j dizia aquele personagem shakespeariano que h mais coisas no cu e na terra do que supe a nossa v filosofia."68

"As pessoas estreita e crassamente objetivas colocavam o problema das nossas frustraes em termos tcnicos, tticos, fsicos e nada mais. Era um engano funesto. Ningum acreditava que h qualquer coisa de laticnio69 nos gramados, nos espetaculares xitos terrenos."70

O terceiro "elemento qualitativo do mito complexo", que a "catstrofe", definida por Aristteles como "uma ao perniciosa e dolorosa, como o so as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes",71 tambm amplamente explorado por Nelson Rodrigues em sua leitura do futebol. So muito frequentes as crnicas em que ele se detm68RODRIGUES. 69O

sombra das chuteiras imortais.p.31,32.

"laticnio" uma referncia "leiteria metafsica" e um jogo de palavras com "vaticnio". sombra das chuteiras imortais.p.72. Potica. p.119.

70RODRIGUES.

71ARISTTELES.

55

em momentos tipicamente catastrficos das partidas que comenta. Como, por exemplo, uma crnica em que ele escolhe Zagalo, que havia-se contundido nos minutos iniciais de uma partida entre Botafogo e Flamengo (Zagalo tinha acabado de se transferir do Flamengo para o Botafogo), como o seu "personagem da semana":

"Algum objetar que Zagalo saiu de campo. Ao que eu respondo: por isso mesmo. Nos grandes clssicos, cresce de importncia o jogador que levado quase de maca. (...) Fora ceifado e no voltaria mais. Excludo do jogo, Zagalo passou a ser o grande personagem da noite. Do seu peito pendia o manto do heri trgico. Fosse qualquer outro e no teria importncia. Vejam bem: - ele no podia faltar no seu primeiro jogo contra o Flamengo. E a fatalidade o enxotou de campo no momento em que ele comeava a fazer talvez a sua maior partida." "Eu escrevi, mais acima, que o jogo teve sangue, suor e lgrimas. Exato. Mas cumpre especificar: - as lgrimas foram de Zagalo."72

De

qualquer

modo,

Nelson

procura

sempre

destacar,

dentre

os

acontecimentos das partidas que comenta, aqueles que so capazes de infundir-lhes dramatismo, de revelar-lhes uma dimenso nova, que escape aos aspectos meramente esportivos. Da sua obsesso pelo detalhe que poderia passar desapercebido, pelo episdio irrelevante do ponto de vista esportivo, pela sutil interferncia do sobrenatural, etc. O procedimento de Nelson assemelha-se ao ato de colocar sobre determinado detalhe do andamento de um jogo uma lente de aumento, que expe ao mximo esse detalhe e extri dele o mximo de efeito.

Em sua anlise do catch, Barthes aponta dois elementos eminente