168_Peixes recifais brasileiros - Riqueza desconhecida e ameaçada

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16 CIÊNCIA HOJE • vol. 28 • nº 168 ICTIOLOGIA 16 CIÊNCIA HOJE • vol. 28 • nº 168 Até recentemente, acreditava-se que a diversidade de peixes no mar brasileiro fosse pequena, mas novos estudos têm mostrado que essa idéia é falsa. No caso dos chamados peixes recifais, são muitas as espécies descobertas. Conhecer melhor tais espécies, e muitas outras ainda por descobrir, é essencial para que o Brasil administre racionalmente essa riqueza, fonte de alimento para a população litorânea, de renda para empresas de pesca e de coleta de peixes ornamentais e de diversão para pescadores amadores e mergulhadores esportivos. Ricardo Zaluar P. Guimarães Laboratório de Biodiversidade de Recursos Pesqueiros, Universidade Federal do Rio de Janeiro João Luiz Gasparini Departamento de Biologia, Universidade Federal do Espírito Santo Carlos Eduardo L. Ferreira Departamento de Oceanografia, Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira Luiz Alves Rocha Departamento de Pesca e Ciências Aquáticas, Universidade da Flórida (Estados Unidos) Sergio R. Floeter Departamento de Ecologia, Universidade Federal do Espírito Santo Carlos Augusto Rangel Laboratório de Biodiversidade de Recursos Pesqueiros, Universidade Federal do Rio Janeiro Gustavo W. Nunan Setor de Ictiologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro ICTIOLOGIA Antes mesmo que o naturalista sueco Karl von LinnØ (1707-1778) publicasse a dØcima ediçªo de seu Sistema naturae, obra que marca o nascimento da zoologia moderna, com a utilizaçªo de nomes duplos (indicando gŒne- ro e espØcie) em latim, os peixes marinhos brasilei- ros jÆ eram objeto de estudo de viajantes europeus. O registro mais antigo conhecido Ø o do naturalista alemªo Georg Marcgraff (1610-1644), que, em suas andanças pelo Nordeste do país, catalogou algumas dezenas de espØcies (figura 1), referindo-se a elas atravØs de seus nomes indígenas (ver Arte e ciŒncia no Brasil holandŒs, em CH n” 15). Nos sØculos seguintes, outras expediçıes parti- ram da Europa mercantilista em busca de novos conhecimentos sobre riquezas naturais brasileiras, e diversos autores publicaram informaçıes disper- sas sobre peixes marinhos dessa nova terra (figura ILUSTRAÇÃO LUIZ BALTAR SOBRE FOTO DO PEIXE LABRISOMUS SP, POR R. ZALUAR Riqueza de Riqueza de

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Até recentemente,

acreditava-se que a

diversidade de peixes no mar

brasileiro fosse pequena,

mas novos estudos têm

mostrado que essa idéia

é falsa. No caso dos chamados

peixes recifais, são muitas

as espécies descobertas.

Conhecer melhor tais espécies,

e muitas outras ainda

por descobrir, é essencial

para que o Brasil administre

racionalmente essa riqueza,

fonte de alimento para

a população litorânea,

de renda para empresas

de pesca e de coleta de peixes

ornamentais e de diversão

para pescadores amadores

e mergulhadores esportivos.

Ricardo Zaluar P. GuimarãesLaboratório de Biodiversidadede Recursos Pesqueiros,Universidade Federal do Rio de JaneiroJoão Luiz GaspariniDepartamento de Biologia,Universidade Federal do Espírito SantoCarlos Eduardo L. FerreiraDepartamento de Oceanografia,Instituto de Estudos do MarAlmirante Paulo MoreiraLuiz Alves RochaDepartamento de Pesca e CiênciasAquáticas, Universidade da Flórida(Estados Unidos)Sergio R. FloeterDepartamento de Ecologia,Universidade Federal do Espírito SantoCarlos Augusto RangelLaboratório de Biodiversidadede Recursos Pesqueiros,Universidade Federal do Rio JaneiroGustavo W. NunanSetor de Ictiologia,Museu Nacional,Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Antes mesmo que o naturalista sueco Karl von Linné (1707-1778)publicasse a décima edição de seu Sistema naturae,obra que marca o nascimento da zoologia moderna,com a utilização de nomes duplos (indicando gêne-ro e espécie) em latim, os peixes marinhos brasilei-ros já eram objeto de estudo de viajantes europeus.O registro mais antigo conhecido é o do naturalistaalemão Georg Marcgraff (1610-1644), que, em suasandanças pelo Nordeste do país, catalogou algumasdezenas de espécies (figura 1), referindo-se a elasatravés de seus nomes indígenas (ver �Arte e ciênciano Brasil holandês�, em CH nº 15).

Nos séculos seguintes, outras expedições parti-ram da Europa mercantilista em busca de novosconhecimentos sobre riquezas naturais brasileiras,e diversos autores publicaram informações disper-sas sobre peixes marinhos dessa nova terra (figura

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2). Mas só no início deste século surgiriam as pri-meiras publicações ictiológicas (relativas a peixes)de autoria de um brasileiro. Com base em seutrabalho no Museu Nacional, fundado em 1818como Museu Real, o zoólogo Alípio de MirandaRibeiro (1874-1939) publicou em cinco volumes ocatálogo Fauna brasiliense, registrando mais de 370espécies de peixes marinhos do Brasil, muitas antesdesconhecidas pela ciência.

Hoje, muitos pesquisadores da área de ictiologiatrabalham ligados a museus ou universidades quemantêm coleções científicas. Tais coleções são comobibliotecas, mas, em vez de livros, abrigam amostras

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sconhecida e ameaçadasconhecida e ameaçada

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de peixes preservadas em recipientes com álcooletílico. O desafio desses pesquisadores está não sóem classificar as espécies, ou seja, reconhecer suasdiferenças, mas também inseri-las em um sistemade classificação que reflita suas relações evolutivas.As diretrizes para esse trabalho mais complexoforam propostas inicialmente pelo zoólogo alemãoWilli Hennig (1913-1976) (ver �Descobrindo paren-tescos nos seres vivos�, em CH nº 98). Uma dificul-dade a mais para esse trabalho está nas diferençasentre as numerosas espécies desses animais que

Figura 1.As primeirasilustraçõesde peixesmarinhosbrasileirosforampublicadasna obra donaturalistaalemão GeorgMarcgraffem 1648:o cangulo-rei(Balistes vetula),acima, e opeixe-pescador(Antennarius sp.)

Figura 2.Outrosdesenhosde peixesmarinhosbrasileirossurgiramem livrodo século 19,e mostram omichole-quati(Pinguipesbrasilianus),acima,e o badejo-sabão(Rypticusbistrispinus)

O QUE SÃO PEO QUE SÃO PEO QUE SÃO PEO QUE SÃO PEO QUE SÃO PEIXIXIXIXIXEEEEES?S?S?S?S?

Desde crianças somos acostumados com a idéiageral de um peixe: um animal que vive na água,move-se usando nadadeiras, respira através debrânquias e tem o corpo coberto de escamas.Então crescemos e ficamos perplexos quandoalguém jura que existem peixes com os doisolhos do mesmo lado da cabeça, outros semescamas ou nadadeiras e alguns que respiramatravés de pulmões, que se arrastam no seco ouque até voam. Procuramos nos livros e descobri-mos que tudo isso é verdade. Mas como ummesmo bicho pode fazer tantas coisas? A respos-ta é simples: estamos falando de vários bichosdiferentes. São conhecidas hoje mais de 22 milespécies dos animais que chamamos de peixes,e nem sequer conhecemos todas. E não existeuma característica que seja comum a todos eles.

Dos peixes que conhecemos, só dois grupos– Chondrichthyes e Actinopterygii – vivem em am-bientes recifais. Pertencem ao primeiro grupo tu-barões, raias e quimeras. Esses peixes têm es-queleto cartilaginoso e ciclo de vida longo. Mui-tas espécies têm sido exploradas pela pesca co-mercial, e algumas estão ameaçadas de extinção.O tubarão-baleia (Rhincodon typus), que atingemais de 18 m de comprimento, é o maior peixe co-nhecido. Já entre os Actinopterygii figuram todosos peixes com esqueleto ósseo e apêndices for-mados por raios. É o grupo de vertebrados maisdiversificado em ambientes aquáticos, atingin-do sua diversidade máxima em ambientesrecifais tropicais. Têm os mais variados formatose tamanhos: todos os peixinhos coloridos deaquário e a grande maioria dos peixes explora-dos pela pesca são actinopterígios. No mar, osmenores são alguns gobiões recifais, que não ul-trapassam 1 cm, e os maiores são os marlins dogênero Makaira, que podem medir mais de 4,5 me pesar quase uma tonelada.

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O QUE SÃO RO QUE SÃO RO QUE SÃO RO QUE SÃO RO QUE SÃO RECIECIECIECIECIFFFFFEEEEES?S?S?S?S?

Recifes são ambientes de fundo consolidado, isto é, resistentes àação de ondas e correntes marinhas. Podem ter origem biogênica ounão (figura 3) e servem de moradia para grande variedade deorganismos. Recifes biogênicos – os chamados recifes de coral – sãoformados por organismos marinhos (animais e vegetais) providosde esqueleto calcário, destacando-se os corais pétreos. Esses orga-nismos crescem uns sobre os outros ao longo dos anos, criando umambiente cheio de reentrâncias, nas quais se estabelece grandevariedade de peixes e invertebrados. Os recifes de coral estão entreos ecossistemas mais produtivos e ricos em biodiversidade, sócomparáveis às exuberantes florestas tropicais, e desenvolvem-seem áreas rasas e quentes afastadas da desembocadura de grandesrios. No Brasil, diferentes tipos de recifes orgânicos são encontra-dos na região Nordeste (ver ‘S.O.S. corais’, em CH nº 26).

Recifes de origem inorgânica também podem ser de diversostipos. Os costões rochosos, formados onde o mar se encontra comrochas do embasamento cristalino, representam o tipo predominan-te nas regiões Sudeste e Sul. Beirando grande parte da costa doNordeste são encontrados os recifes de arenito, formados pelacompactação sedimentar de linhas de praia antigas. Existem ainda

recifes artificiais, estruturas construídas pelo homempara os mais diversos fins, que acabam servindo debase para o estabelecimento de algas e invertebrados.Estes, por sua vez, atraem os peixes que ali vêm buscaralimento e refúgio. Os pescadores sabem que pilaresde pontes, dutos submarinos, quebra-mares, platafor-mas de petróleo ou navios naufragados são excelentesatrativos para peixes recifais. Em algumas regiões,recifes artificiais são lançados ao mar com o objetivoespecífico de incrementar a pesca.

chamamos de peixes (ver �O que são peixes?�).Apesar do crescente número de pesquisadores de-

dicados ao tema, acreditava-se até muito recentemen-te que a ictiofauna marinha brasileira fosse bastantepobre e composta por espécies, em sua quase totali-dade, com ampla distribuição na margem ocidentaldo oceano Atlântico. No entanto, o aperfeiçoamentodos instrumentos óticos de observação e fotografia edos equipamentos de mergulho autônomo permitiuconstatar que essa ictiofauna é mais rica e diver-sificada do que se supunha. Isso pode ser demonstra-do com os peixes que vivem em recifes (ver �O que sãorecifes?�). Para se ter uma idéia, das cerca de 400espécies de peixes recifais hoje reconhecidas emáguas brasileiras, estima-se que mais de 50 sejamendêmicas (ou seja, só existem aqui). Destas, a gran-de maioria foi descoberta nos últimos 20 anos.

Além de peixes, espécies de muitos outros orga-nismos, como corais, crustáceos e moluscos, tam-bém são endêmicas de águas brasileiras. Essa área deendemismo, uma das várias reconhecidas em am-bientes recifais do Atlântico, é chamada por alguns

Figura 3. Alguns dos diferentes tipos de recifes encontrados noBrasil: recife rochoso com pouca cobertura de corais da baía daIlha Grande, no Rio de Janeiro (A); recife rochoso com ricacobertura de corais de Abrolhos, na Bahia (B); e chapeirões doParcel das Paredes, na Bahia, de origem 100% orgânica ( C)

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de �província brasileira�, e inclui essencialmente osrecifes tropicais distribuídos do Maranhão até SantaCatarina. Mas não é a única província nas águasterritoriais do país. A costa das regiões Sul e Sudesteabriga elementos de uma fauna subtropical perten-centes a outra área de endemismo, a �provínciaargentina�. Além dessas duas, outras áreas apresen-tam, cada uma, fauna singular: o atol das Rocas, oarquipélago de Fernando de Noronha, as ilhas deTrindade e Martim Vaz e os penedos de São Pedro eSão Paulo (figura 4). Diversas novas espécies depeixes endêmicas dessas ilhas foram recentementedescobertas.

Como surgem os endemismos

Mas por que existem espécies endêmicas de peixesrecifais na costa brasileira e em nossas ilhas, setodos os oceanos estão interligados? Por que os

peixes não estão distribuídos de forma homogêneaem todos os mares do mundo? A resposta dependeda combinação de conhecimentos que vão desde osaspectos básicos da biologia desses animais até aformação e deslocamento de ilhas e continentes,passando pelo entendimento sobre dinâmica depopulações e teorias evolutivas.

O primeiro aspecto relevante diz respeito à ca-pacidade de dispersão dos organismos. Peixes gran-des, que nadam ativamente em oceanos abertos,como os atuns, têm grande capacidade de dispersãoe, portanto, tendem a apresentar ampla distribuiçãogeográfica. Já os peixes que dependem dos recifespara obter alimento e abrigo deslocam-se pouco e,assim, tendem a viver em áreas geográficas restritas.Além disso, os peixes recifais podem apresentardois modos reprodutivos básicos: o pelágico, noqual os ovos são lançados diretamente na colunad�água, onde se dispersam ao sabor das correntesaté a eclosão; e o demersal, no qual os ovos têm

Figura 4.As zonasde endemismo(ou provínciaszoogeográficas)existentesno marbrasileiro sãoa ‘provínciabrasileira’(em verde),a provínciaargentina(em vermelho),as ilhasde Trindadee Martim Vaz(em azul),o arquipélagode Fernandode Noronhae o atoldas Rocas(em amarelo),e os penedosde São Pedroe São Paulo(em preto)e outrasresultantesda combinaçãode duas oumais destas

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propriedades aderentes, sendo depositados sobresuperfícies duras no fundo e protegidos pelos paisaté a eclosão.

Embora em ambos os casos a larva gerada passepor uma fase planctônica inicial, esse período nor-malmente tem maior duração na reproduçãopelágica. Em conseqüência, peixes recifais com re-produção demersal tendem a ocupar uma área aindamais restrita. De fato, a maioria das espécies recen-temente descobertas na costa brasileira vive emrecifes e tem estratégia reprodutiva demersal.

O segundo aspecto importante para o surgimentodos endemismos diz respeito à história da Terra, ouseja, ao mosaico de eventos paleogeográficos,tectônicos, eustáticos, climáticos e oceanográficosque, ao longo de milhões de anos, isolaram, unirame extinguiram populações de organismos, em umprocesso intimamente ligado à evolução dos mes-mos (ver �Rastros de um mundo perdido�, em CH nº15). Que eventos, então, teriam contribuído para aformação dessas áreas de endemismo em águasbrasileiras? Estudos recentes indicam que os últi-mos ciclos glaciais, ocorridos no Pleistoceno, tive-ram papel decisivo nesse processo.

Nesses ciclos, que duraram milhares de anos, aTerra alternou períodos frios e quentes. Nos perío-dos frios, ocorreram o estreitamento da zona tropi-cal (como se os trópicos de Câncer e Capricórnio se

Figura 5.Alguns paresde peixes recifaisrevelam adiferenciaçãoocorrida apóso último cicloglacial entreespéciesendêmicasda ilha daTrindade(à esquerda)e espéciesendêmicas dacosta continentalbrasileira(à direita):no alto,Malacoctenusoceanicus eMalacoctenus sp.;embaixo,Stegastestrindadensis eStegastes fuscus

deslocassem para perto do Equador) e o recuo donível do mar, causado pelo aumento do volume deágua retido nas calotas polares. Durante a chamada�regressão� do Pleistoceno Superior (entre 16 mil e14 mil anos atrás), a superfície do mar estava 130 mabaixo do nível atual, o que expôs grande parte daplataforma continental ao longo da costa brasileira.Também ficaram expostos os cumes das cadeiassubmarinas Vitória-Trindade e de Fernando deNoronha (seqüências de montanhas hoje submersas,situadas entre o continente e essas ilhas), permitin-do o fluxo gênico entre as populações da costa e dasilhas.

Quando a Terra se reaqueceu, entre 14 mil e setemil anos atrás, o nível do mar subiu gradualmenteaté chegar ao nível atual. Com isso, a faixa litorâneacontinental recuou e os cumes dessas cadeias sub-mergiram. Desde então, Trindade e Fernando deNoronha estão separados do continente por umaextensa faixa de mar, o que levou ao isolamento ediferenciação de algumas populações residentes(figura 5).

Apesar de todas essas descobertas, o que co-nhecemos atualmente sobre as espécies de peixesrecifais brasileiros, suas distribuições, suas rela-ções evolutivas e os processos históricos que asoriginaram está, de modo geral, muito aquém do quese conhece para outras regiões do mundo.

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Conhecer paraexplorar racionalmente

Conhecer melhor os padrões his-tóricos, as interações ecológicas,as relações evolutivas e outrosprocessos biológicos envol-vendo os peixes recifaisexistentes no Brasil éfundamental paraque se possa ad-ministrar ra-cionalmenteessa riqueza,que pode ser coleti-vamente tratada como abiodiversidade dos recursosictiológicos recifais brasileiros. Suaimportância pode ser ilustrada pelo fato deque tais recursos são uma importante fonte deproteína para as populações litorâneas, além deserem explorados comercialmente por empresas depesca e para a aquariofilia. Só na região Sudeste, porexemplo, são capturadas 3,5 mil toneladas de peixesrecifais comestíveis por ano.

O comércio de organismos ornamentais recifais,que movimenta US$ 28 bilhões por ano no mundotodo, também é atuante no Brasil: algumas empresascoletam peixes ornamentais tanto para venda localquanto para exportação. O turismo, que no país émais desenvolvido no litoral, também depende damanutenção da integridade dessabiodiversidade, notadamente nocaso do turismo ecológico.

No entanto, a lacunano conhecimentodessa fauna étão grande quemuitas espé-cies de pei-xes recifaisbrasileiros, co-mestíveis ou orna-mentais, exploradas ou potencial-mente exploráveis, ainda não têmnome na literatura científica (figura 6).Não existem, para muitas formações recifais dacosta brasileira, levantamentos ictiofaunísticossatisfatórios. Além disso, ao contrário do que ocor-re com os recursos pesqueiros, quase nada se sabesobre o estado de conservação ou disponibilidadede exploração comercial dos peixes ornamentaismarinhos do Brasil.

Essa carência de pesquisas que envolvam estima-tivas do número de indivíduos em populações sel-

vagens faz com que estudos baseados emcoleções zoológicas representem uma im-

portante ferramenta no julgamentosobre o status de conservação das

espécies. Assim mesmo, o nú-mero de especialistas em sis-temática (classificação de

seres vivos) e osrecursos dispo-níveis para amanutenção decoleções cien-tíficas não vêmacompanhando

a demanda ge-rada pela crise

ambiental. Por isso, o Bra-sil é tido no plano interna-

cional, incorretamente, comoum país com poucos problemas

quanto à conservação de peixes recifais.Segundo a União Internacional para a Conserva-

ção da Natureza, de todos os peixes endêmicos doBrasil, só o peixe-donzela (Stegastes sanctipauli) e opeixe-borboleta (Chaetodon obliquus), ambos en-contrados apenas nos penedos de São Pedro e SãoPaulo, estão ameaçados. A inclusão de outros peixesrecifais brasileiros na lista das espécies ameaçadas� entre elas duas espécies de cavalo-marinho ealgumas de serranídeos de grande porte, entre eleso mero (Epinephelus itajara) e o badejo-de-areia

(Mycteroerca microlepis) � deveu-se aespeculações baseadas em

levantamen-tos feitos emoutras regi-ões, e não nanossa costa.Será que S.sanctipaulie C. obli-

quus são asúnicas espécies

de peixes recifais cujos es-toques estão ameaçados no Brasil?

Os possíveis danosda pesca

A pesca, seja de peixes usados como alimento ouornamento, é uma atividade econômica como qual-quer outra, que gera emprego, bens de consumo ecirculação de capital. No entanto, se executada demodo desmedido pode trazer danos irreparáveis aos

Figura 6.A diversidadedos peixesrecifaisendêmicosde águasbrasileiras podeser demonstradapelo grandenúmerode espéciesrecentementedescobertas,muitas aindasem nome naliteraturacientífica:nesta página,Prognathodes sp.e Grammabrasiliensis;na páginada direita,Clepticus sp.,Ptereleotris sp. eOpistognathus sp.

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estoques naturais. Nos últimos anos, por exem-plo, empresas de coleta de peixes ornamen-tais marinhos deslocaram-se do estadodo Rio de Janeiro para o EspíritoSanto, onde os estoques aindanão estão exauridos. A coletadesses organismos também éintensa no Nordeste, em espe-cial na Bahia e no Ceará, ondemuitos peixes capturados morremantes mesmo de chegar às lojas, em funçãodo uso de técnicas não apropriadas de manu-seio e estocagem.

Se o extrativismo descontrolado compromete osestoques, que dizer de alterações dos ambientescosteiros geradas pela ocupação humana desorde-nada, pelo despejo de efluentes tóxicos, por modifi-cações do fundo oceânico produzidas pela pesca dearrasto, pela mineração de bancos de algas calcáriase pelo extrativismo também descontrolado de coraise rochas incrustadas com invertebrados (conheci-das na aquariofilia como �rochas-vivas�)?

Na verdade, é possível que muitas áreas superex-ploradas pela pesca sejam recolonizadas na-turalmente, já que as larvasproduzidas em regiõesadjacentes não im-pactadas podem co-lonizar as áreas de-gradadas. No entan-to, um costão rochososubstituído por uma parede de brita,um manguezal aterrado ou uma baía ondehaja despejo de resíduos tóxicos só recuperam abiodiversidade original através de processos quepodem durar décadas e custar fortunas. A atual baíada Guanabara certamente não lembra nem de longeaquela estudada por Miranda Ribeiro no início doséculo, apesar do orçamento de US$ 793 milhões doprograma de despoluição dessa baía (ver �As águasda Guanabara: despoluir ou sanear?�, em CH nº 155).

A situação dos ambientes costeiros do Brasilcertamente não deve ser analisada com romantis-mo. Há grandes concentrações populacionais debaixa renda no litoral, o que tornamuito difícil conter a ex-ploração desor-denada de rique-zas renováveis.Muita coisa ain-da precisa ser fei-ta para garantir queempresas de extrativismo,indústrias poluidoras ou comu-nidades litorâneas respeitem alegislação ambiental. Imaginar

que o quadro irá mudar de uma hora para outraé ingenuidade. Diante de tal perspectiva, o quepode ser feito? Independentemente das possíveisestratégias político-econômicas para o desenvolvi-mento do país, uma constatação se impõe: não hácomo gerenciar biodiversidade sem conhecer emdetalhes as unidades biológicas básicas envolvi-das, ou seja, as espécies.

A seleção de áreas para preservação, por exem-plo, exige o conhecimento prévio dos níveis de

biodiversidade, e estes, por sua vez, só podem serestabelecidos através de levantamentos faunísticos.Por outro lado, não há como cobrar da populaçãoiniciativas de preservação desses recursos seminvestir em educação ambiental, o que deveria serincentivado através da construção e manutençãode museus de história natural ou outras exposiçõesinformativas sobre biodiversidade. Da mesma for-ma, não há como esperar um uso sustentado dessariqueza, no Brasil, sem a conscientização préviadas pessoas envolvidas, direta ou indiretamente,com a exploração de recursos biológicos. ■

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Sugestõespara leitura

AMORIM, D. S.Elementos básicosde sistemáticafilogenética, SãoPaulo, SociedadeBrasileira deEntomologia, 1997.

FIGUEIREDO, J. L. eMENEZES, N. A.Manual de peixesmarinhos doSudeste do Brasil,São Paulo, Museude Zoologia (USP),1978 a 2000 (seisvolumes).

HETZEL, B. e CASTRO,C. B. Corais do sulda Bahia, Rio deJaneiro, NovaFronteira, 1994.

PAIVA, M. P. Recursospesqueirosmarinhos eestuarinos doBrasil, Fortaleza,UniversidadeFederal do Ceará,1997.