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    Originalmente publicado na revista October n. 110 (2004). Verso em ingls disponvel nowebsiteda Tatu.

    Antagonismo e Esttica Relacional

    Escrito por Claire Bishop, crtica de arte, pesquisadora e professora.

    Traduo Milena Durante Reviso Clarissa Diniz

    O Palais de Tokyo

    Na poca de sua abertura, em 2002, o Palais de Tokyo imediatamente se mostrava ao visitante

    como sendo diferente de outros centros de arte contempornea que haviam sido inauguradosrecentemente na Europa. Apesar de um oramento de 4,75 milhes de euros ter sido gasto paraconverter o antigo pavilho japons para a Feira Mundial de 1937 em um "lugar de criaocontempornea", a maior parte desse dinheiro havia sido usada para reforar (em vez de renovar) aestrutura j existente1. Em vez de paredes lisas e brancas, iluminao discreta e cho de madeira, ointerior foi deixado vazio e inacabado. A deciso foi importante, j que refletiu um aspectofundamental doethos curatorial do lugar codirigido por Jerme Sans, crtico e curador de arte, e Nicolas Bourriaud, antigo curador da CAPC Bordeaux (Centre D'Arts Plastiques Contemporains deBourdeaux) e editor da publicao Documents sur l'art . A relao improvisada do Palais de Tokyocom seu entorno tornou-se, consequentemente, paradigmtica de uma tendncia visvel entrecentros de arte europeus: reconceitualizar o modelo "cubo branco" de exibio de artecontempornea, substituindo-o pelo modelo estdio ou "laboratrio"2 experimental. E, assim, esseformato enquadra-se na tradio do que Lewis Kachur descreveu como "exposies ideolgicas" davanguarda histrica: nelas (como na Feira Internacional Dada em 1920 e na Exposio SurrealistaInternacional em 1938) a montagem buscava reforar ou sintetizar as ideias contidas nos trabalhos3.

    1 Site de divulgao do Palais de Tokyo, "site de cration contemporaine", .2 Por exemplo, Nicolas Bourriaud sobre o Palais de Tokyo: "Queremos ser uma espcie dekunstverein mais um laboratrio que um museu (citadoem Public Relations: Bennet Simpson Talks with Nicolas Bourriaud, Artforum [Abril 2001], p.48); Hans Ulrich Obrist: A exposioverdadeiramente contempornea devia expressar possibilidades conectivas e fazer proposies. E, talvez surpreendentemente, tal exposio deveriareconectar com os anos de laboratrio da prticas expositivas do sculo vinte... A exposio verdadeiramente contempornea com sua impressionantequalidade de inacabada e incompleta dispararia uma participao pars pro toto (Obrist, Battery, Kraftwerk and Laboratory, inWords of Wisdom: ACurator's Vade Mecum on Contemporary Art , ed. Carin Kuoni [New York: Independent Curators International, 2001], p.129); em um telesimpsioque discutia o projeto Laboratorium (Anturpia, 2000) de Barbara van der Linden e Hans Ulrich Obrist, os curadores descrevem sua preferncia pela palavra laboratrio porque neutra e ainda intocada pela cincia (Laboratorium is the answer, what is the question?,TRANS 8 [2000], p.114). Metforas de laboratrios tambm surgem nas concepes dos artistas sobre suas prprias exposies. Por exemplo, Liam Gillick, falando sobresua individual na Arnolfini em Bristol, afirma que uma situao de laboratrio ou oficina onde existe a oportunidade de testar algumas ideiascombinadas para exercitar processos crticos comparativos e relacionais (citao de Gillick em Liam Gillick: Renovation Filter: Recent Past and

    Near Future [Bristol: Arnolfini, 2000], p.16). O trabalho de Rirkrit Tiravanija frequentemente descrito em termos semelhantes: como um

    laboratrio de contato humano (Jerry Saltz, Resident Alien,The Village Voice , 7-14 de Julho, 1999, n.p.), ou experimentos psicossociais em queso criadas situaes para encontros, trocas, etc. (Maria Lind, Letter and Event, Paletten 223 [Abril 1995], p. 41). importante notar quelaboratrio nesse contexto no denota experimentos psicolgicos ou comportamentais com os observadores mas, em vez disso, refere-se experimentao criativa em relao s convenes expositivas.3Lewis Kachur, Displaying the Marvelous: Marcel Duchamp, Salvador Dali and the Surrealist Exhibition (Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001).

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    Os curadores que promovem esse paradigma do "laboratrio" incluindo Maria Lind, HansUlrich Obrist, Barbara van der Linden, Hou Hanru e Nicolas Bourriaud vm, em grande medida,sendo encorajados a adotar essemodus operandi curatorial como uma reao direta ao tipo de arte produzida nos anos 1990: trabalhos abertos, interativos, resistentes ao fechamento, frequentemente

    parecendo estar "em andamento" ao invs de objetos concludos. Tais trabalhos parecem resultar deuma m interpretao criativa da teoria ps-estruturalista: em vez dasinterpretaes dos trabalhosde arte estarem abertas reavaliao contnua, diz-se que o trabalho de arteem si que est emfluxo perptuo. H muitos problemas com essa ideia; o mais importante deles a dificuldade emdefinir com clareza um trabalho cuja identidade propositadamente instvel. Outro problema afacilidade com que o "laboratrio" torna-se vendvel como espao de lazer e entretenimento.Centros como o Baltic em Gateshead, o Kunstverein Munich e o Palais de Tokyo tm usado

    metforas como "laboratrio", "local de construo" e "usina artstica [art factory ]" para sediferenciar de museus hiperburocrticos cuja base so as colees; seus espaos dedicados a projetos geram um excitao criativa e uma aura em torno de se estar na vanguarda da produocontempornea4. Pode-se argumentar, nesse contexto, que projetos baseados em "trabalhos emandamento [work-in-progress ]" e em "residncias artsticas" comeam a ficar compatveis "economia da experincia", a estratgia de venda que busca substituir bens e servios por experincias pessoais encenadas e roteirizadas5. Ainda que no fique claro qual o suposto benefcio obtido pelo observador a partir de tal "experincia" de criatividade que nada mais doque atividade institucionalizada de ateli.

    Aos projetos baseados em "laboratrio" est relacionada a tendncia em convidar artistascontemporneos para desenvolver ambientes (ou solucionar seus problemas) dentro do museu,como o bar (Jorge Pardo no K21, Dsseldorf; Michael Lin no Palais de Tokyo; Liam Gillick naWhitechapel Art Gallery), ou a sala de leitura (Apolonia Susteric no Kunstverein Munich ou o programa cambiante "Le Salon" no Palais de Tokyo) que, por sua vez, os apresentam como obras dearte6. Um efeito dessa insistente promoo da ideia de artista-designer , da funo sendo superior contemplao e da inconcluso ou abertura dos trabalhos sobrepujando sua resoluo esttica ,muitas vezes, em ltima anlise, uma nfase no status do curador, que ganha o crdito por ser o

    4Dirigido por Sune Nordgren, o Baltic, Centro Bltico de Arte Contempornea em Gateshead, recebia trs artistas residentes em estdios, mas elesficavam abertos ao pblico somente quando o artista desejasse; geralmente o pblico tinha que aceitar a explicao do Centro de ser uma usinaartstica baseada em confiana. O Palais de Tokyo, por contraste, recebe at dez artistas residentes por qualquer perodo. Munich Kunstverein, sobdireo de Maria Lind, buscou um tipo diferente de produtividade: a converso feita por Apoloni a Susteric da entrada da galeria consistia em umtrabalho console em que membros da equipe curatorial (incluindo Lind) podiam revezar ocupando a recepo, continuando seu trabalho em pblico5B. Joseph Pine II e James H. Gilmore,The Experience Economy: Work is Theatre and Every Business a Stage (Boston: Harvard Business SchoolPress, 1999). O Centro Bltico se apresenta como um local para a produo, apresentao e experincia da arte contempornea atravs de umaforte nfase em trabalhos encomendados, convites a artistas e trabalho de artistas residentes (www.balticmill.com)6A cada seis messes um artista convidado ao Palais de Tokyo para desenvolver e decorar um pequeno espao localizado sob a escada principal no

    centro dos espaos expositivos: Le Salon. Simultaneamente um espao de relaxamento e um trabalho de arte, oferece confortveis poltronas, jogos,material para leitura, um piano, um vdeo ou programa de televiso para aqueles que o visitam (Palais de Tokyo Website[http://www.palaisdetokyo.com], traduo feita a partir de traduo da autora). As atuais instalaes da Portikus Gallery em Frankfurt incluem umescritrio, uma sala de leitura e um espao da galeria criado pelo artista Tobias Rehberger.

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    diretor de cena de toda a experincia do laboratrio. De acordo com a advertncia de Hal Foster emmeados dos anos 1990, "a instituio pode vir a ofuscar o trabalho que, de outro modo, seria odestaque: ela se torna o espetculo, agrega capital cultural e o diretor-curador torna-se a estrela7".Com essa situao em mente, atenho-me ao Palais de Tokyo como ponto de partida para uma

    inspeo atenta de algumas das reivindicaes feitas para trabalhos de arte semifuncionais e"abertos", j que um dos codiretores do Palais, Nicolas Bourriaud, tambm seu principal terico.

    Esttica relacional

    Esthtique Rlationnel NT o ttulo da coletnea de ensaios de Bourriaud de 1997, em que eletenta caracterizar a prtica artstica dos anos 1990. Como houve muito poucas tentativas de se criar um panorama da arte dos anos 1990, especialmente no Reino Unido, onde a discusso acaba

    girando de forma mope em torno do fenmeno dos jovens artistas britnicos, osYoung British Artists (YBA), o livro de Bourriaud um passo inicial importante para a identificao de tendnciasrecentes na arte contempornea. Ele tambm surge em um momento em que muitos acadmicos noReino Unido e nos EUA parecem relutantes em abandonar a pauta politizada e as batalhasintelectuais dos anos 1980 (na verdade, para muitos, da arte dos anos 1960) e condenam tudo, deinstalaes pintura irnica, como sendo celebraes despotilizadas e superficiais, cmplices doespetculo do consumo. O livro de Bourriaud escrito a partir de sua abordagem prtica de curador promete redefinir o que a crtica de arte contempornea considera importante, j que seu ponto de partida que no podemos mais abordar esses trabalhos por detrs de um "escudo" da histria daarte e dos valores dos anos 1960. Bourriaud busca oferecer novos critrios pelos quais abordar taistrabalhos de arte em geral um tanto obscuros , enquanto tambm afirma que no so menos politizados que o de seus precursores dos anos 19608.

    Bourriaud afirma, por exemplo, que a arte dos anos 1990 toma como horizonte terico "aesfera das interaes humanas e seu contexto social, mais do que a afirmao de um espaosimblico autnomo e privado " ( ER, p.19). Em outras palavras, a arte relacional busca estabelecer encontros interssubjetivos (sejam eles literais ou potenciais) em que o sentido elaboradocoletivamente ( ER, p. 21) e no realizado em um espao privatizado de consumo individual. Aimplicao de que esse trabalho inverte os objetivos do modernismo greenberguiano9. Em vez deum trabalho de arte discreto, porttil e autnomo que transcenda seu contexto, a arte relacional fica7 Hal Foster, The Artist as Etnographer in: Foster,The Return of the Real (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996), p198. NT Todas as citaes do presente artigo foram traduzidas para o portugus a partir do artigo original em ingls. Para citaes originais, conferir oartigo em ingls e suas notas nowebsite da revista Tatu (www.revistatatui.com).8Contemporary art is definitely developing a political project when it endeavors to move into the relational realm by turning it into an issue(Bourriaud, Relational Aesthetics [Dijon: Les Presses du Rel, 2002], p. 17). Citado a partir daqui no texto como ER, com base na edio brasileira do

    livro: Bourriaud, Nicolas. Esttica Relacional . So Paulo: Martins Fontes, 2009. [A arte contempornea realmente desenvolve um projeto polticoquando se empenha em investir e problematizar a esfera das relaes, p. 23]9Essa mudana de privado para pblico no modo de abordagem vem sendo associada h algum tempo a uma quebra decisiva com o modernismo;ver Rosalind Krauss, Sense and Sensibility, Artforum (Novembro de 1973), pp. 43-53 e Double Negative: A New Syntax for Sculpture, em

    Passages in Modern Sculpture (London: Thames and Hudson, 1977).

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    objetos para serem usados e sobras da abertura do evento. O formato basicamente o mesmo dainstalao, mas esse um termo a que muitos de seus praticantes resistiriam; em vez de formaremuma transformao coerente e distintiva do espao (como a "instalao total" de Ilya Kabakov, umaencenao teatral), trabalhos de arte relacional insistem nouso em detrimento da contemplao11. E

    diferentemente das personalidades distintas e marcadas da jovem arte britnica, geralmente difcilidentificar quem fez uma obra de arte "relacional", j que tendem a fazer uso de formas culturais jexistentes incluindo outros trabalhos de arte e remix-los como um DJ ou programador 12. Almdisso, muitos artistas mencionados por Bourriaud colaboraram uns com os outros, borrando aindamais o distintivo de status autoral individual. Muitos tambm j realizaram curadorias uns dostrabalhos dos outros como por exemplo uma "filtragem" da curadoria de Maria Lind emWhat if:

    Art on the Verge of Architecture and Design (Moderna Museet, Estocolmo, 2000) eUtopia Station

    de Tiravanija para a Bienal de Veneza de 2003 (cocurada por Hans Ulrich Olbrist e Molly Nesbit)13

    .Pretendo me ater ao trabalho de dois artistas em particular, Tiravanija e Gillick, visto que Bourriaudconsidera ambos como paradigmas da "esttica relacional".

    Rirkrit Tiravanija um artista que vive em Nova Iorque, nascido em Buenos Aires em 1961de pais tailandeses e criado na Tailndia, na Etipia e no Canad, conhecido por seus hbridos deinstalao e performance em que prepara legumes com curry ou pad thai (prato tailands feito commacarro) para as pessoas que visitam o museu ou a galeria onde foi convidado a trabalhar. NotrabalhoUntitled (Still) [Sem ttulo (Ainda)] (1992) na 303 Gallery em Nova Iorque, Tiravanijatirou tudo que encontrou no escritrio e no depsito da galeria e colocou na sala principal do espaoexpositivo, incluindo o galerista, que foi obrigado a trabalhar em pblico em meio ao cheiro decomida e acompanhado por comensais. No depsito, ele organizou o que foi descrito por um crticocomo uma "cozinha de refugiados improvisada" com pratos de papel, garfos e facas de plstico,fogareiros, utenslios de cozinha, duas mesas portteis e alguns banquinhos dobrveis14. Na galeriaele preparou legumes comcurry para os visitantes e os detritos, utenslios e embalagens de comidatornaram-se a exposio de arte enquanto o artista no estava l. Muitos crticos e o prprioTiravanija observaram que esse envolvimento do pblico o foco principal de seu trabalho: acomida um meio que permite o desenvolvimento de uma relao de convvio entre o pblico e o11Por exemplo, o trabalho Pier de Jorge Pardo paraSkulptur . Projekte Mnster (1997). Pier consistia em um per de 50 metros (feito a partir damadeira de sequoias canadenses da Califrnia) com um pequeno pavilho no final. O trabalho era um cais funcional que oferecia ancoradouro para barcos enquanto uma mquina de vender cigarros presa parede estimulava as pessoas a pararem e admirarem a vista.12Bourriaud se refere a essa estratgia como ps-produo e elaborada em seu livro seguinte, Esttica Relacional : Desde o incio dos anosnoventa um nmero crescente de trabalhos de arte vem sendo criados a partir de trabalhos preexistentes; mais e mais artistas interpretam, reproduzem,reexpem ou usam os trabalhos feitos por outros artistas ou produtos culturais disponveis... Esses artistas que inserem seu prprio trabalho naquelefeito por outros contribuem para a erradicao da distino tradicional entre produo e consumo, criao e cpia,readymade e trabalho original. Omaterial que eles manipulam no mais primrio. Bourriaud argumenta que a ps-produo difere daquela doreadymade , que questiona autoria e ainstituio da arte, porque sua nfase a recombinao de artefatos culturais existentes para imbu-los de novos significados. Ver Bourriaud,

    Postproduction (New York: Lukas and Sternberg, 2002).13O melhor exemplo para a atual obsesso pela colaborao como modelo encontra-se em No Ghost Just a Shell , um projeto em andamento de PierreHuyghe e Philippe Parreno, que convidaram Liam Gillick, Dominique Gonzalez-Foerster, M/M, Franois Curlet, Rirkrit Tiravanija, Pierre Joseph, JoeScanlan e outros para colaborarem com eles e criar um trabalho em torno da extinta personagem japonesa de mang, AnnLee.14Jerry Saltz, A Short History of Rirkrit Tiravanija, Art in America (Fevereiro de 1996), p. 106.

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    artista15.Subjacente maior parte da obra de Tiravanija fica o desejo de no apenas desbastar a

    distino entre o espao institucional e o espao social, mas tambm aquele entre o artista e oobservador; a expresso "muita gente" aparece com frequncia em sua lista de materiais. No final

    dos anos 1990, Tiravanija se ateve cada vez mais criao de situaes em que o pblico poderiainventar seu prprio trabalho. Uma verso mais elaborada da performance-instalao na 303Gallery foi realizada comUntitled (Tomorrow Is Another Day) [Sem Ttulo (Amanh outro dia) ](1996) no Klnischer Kunstverein. Nesse trabalho, Tiravanija construiu uma rplica de madeira deseu apartamento em Nova Iorque, que ficava aberta ao pblico 24 horas por dia. As pessoas podiamusar a cozinha para preparar alimentos, podiam usar seu banheiro, dormir no quarto ou ficar conversando na sala de estar. O catlogo que acompanhava o projeto de Kunstverein cita uma

    seleo de artigos de jornal e crticas, todas reiterando a afirmao do curador de que "essacombinao nica de arte e vida oferece uma experincia impressionante de unio a todos"16.Apesar de os materiais do trabalho de Tiravanija terem se tornado mais diversos, a nfase permanece no uso sobre a contemplao. Para o projeto Pad Thai , realizado no De Appel, emAmsterd em 1996, ele disponibilizou uma sala com guitarras, amplificadores e uma bateria, permitindo que visitantes pegassem os instrumentos e fizessem sua prpria msica. Pad Thaiinicialmente incorporou uma projeo deSleep (1963) de Andy Warhol e entre as apariesseguintes via-se um filme de Marcel Broodthaers no Speaker's Corner no Hyde Park em Londres(em que o artista escreve em um quadro negro "vocs so todos artistas"). Em um projeto emGlasgow,Cinema Libert (1999), Tiravanija pediu ao pblico local indicaes de quais eram seusfilmes preferidos, que foram projetados em uma tela ao ar livre no cruzamento de duas ruas emGlasgow. Conforme escreveu Janet Kraynak, apesar de os projetos desmaterializados de Tiravanijareviverem estratgias de crtica dos anos 1960 e 1970, pode-se argumentar que, no contexto atual domodelo econmico dominante do mundo globalizado, a ubiquidade itinerante de Tiravanija no est15Se pretende-se identificar os precursores histricos desse tipo de arte, h ampla variedade de nomes a citar: a instalao sem ttulo de Michael Asher

    na Clare Copley Gallery, Los Angeles, em 1974, na qual ele removia a diviso entre o espao de exposio e o escritrio da galeria, ou o restaurante Food , que Gordon Matta-Clark abriu com seus colegas artistas no incio dos anos setenta. Food era um projeto coletivo que permitia que artistasrecebessem no muito dinheiro, mas o suficiente para financiar sua prtica artstica sem sucumbir s demandas ideologicamente comprometedoras domercado da arte. Outros artistas que apresentavam o consumo de comida e bebida como arte nos anos sessenta e no incio dos anos setenta eram:Allan Ruppersberg, Tom Marioni, Daniel Spoerri e o grupo Fluxus.16Udo Kittelmann, Preface, in Rirkrit Tiravanija: Sem ttulo, 1996 (Tomorrow is Another Day ) (Colnia: Salon Verlag e Klnischer Kunstverein,1996), n.p. Como notou Janet Kraynak, o trabalho de Tiravanija gerou algumas das crticas de arte mais idealizadas e eufricas dos ltimos tempos:seu trabalho anunciado no apenas como lugar de emancipao e de liberdade das restries, mas tambm como uma crtica da mercantilizao euma celebrao da identidade cultural ao ponto em que esses imperativos finalmente rendam-se ao engolfamento institucional da prpria figura deTiravanija como um bem. Ver Janet Kraynak, Tiravanija's Liability [A responsabilidade de Tiravanija], Documents 13 (Fall 1998), pp 26-40. Valeincluir da citao completa de Kraynak: Enquanto a arte de Tiravanija compele ou provoca uma srie de preocupaes relevantes para o grandecircuito das prticas contemporneas artsticas, a condio de sua singularidade na imaginao do pblico deriva, em parte, de uma certa naturalizaodas leituras crticas que acompanharam o trabalho e, de certa forma, construram-no. Diferentemente de trabalhos anteriores semelhantes em seuutopismo de vanguarda, em que a arte funde-se com a vida de maneira alegre e em que h uma criticidade anti-institucional, em que objetos de arte seconstituem como e em espaos sociais, o que supostamente garante a produo de prticas sociais no contaminadas no trabalho de Tiravanija amarca singular do artista, cuja generosidade tanto anima quando unifica estilisticamente as instalaes. Uma srie de artigos chamaram a ateno paraa atmosfera familiar da galeria onde ele representado e para outros detalhes biogrficos de sua vida, conferindo uma equivalncia velada entre otrabalho de Tiravanija e ele mesmo. Essa projeo idealizada parece derivar do prprio trabalho, medida em que o artista tematiza detalhes tnicosde sua ascendncia em suas instalaes atravs de referncias cultura tailandesa... O artista, reposicionado tanto como fonte quanto juiz dessesignificado, abarcado como a pura corporificao de sua identidade sexual, cultural ou tnica, garantindo tanto a autenticidade quanto a eficcia poltica de seu trabalho (pp.28-29).

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    de fato questionando essa lgica de forma crtica, mas apenas reproduzindo-a17. Ele figura entre osartistas mais estabelecidos, influentes e onipresentes no circuito internacional da arte e seu trabalhotem sido crucial tanto para o surgimento da esttica relacional como teoria, quanto para o desejocuratorial de exposies "abertas" no estilo laboratrio.

    Meu segundo exemplo o artista britnico Liam Gillick, nascido em 1964. A produo deGillick interdisciplinar: seus interesses altamente teorizados so disseminados atravs deesculturas, instalaes,design grfico, curadorias, crtica de arte e pequenos romances. Um temacorrente em sua carreira nos mais diferentes meios a produo de relaes (especialmente relaessociais) atravs de nosso ambiente. Exemplos incluem Pinboard Project [ Projeto Mural ] (1992),um mural ou quadro de avisos contendo instrues para serem seguidas, outros itens que tenham potencial para serem includos no mural e ainda uma recomendao de assinatura de certos

    peridicos especializados; e Prototype Erasmus Table #2 (1994), uma mesa "criada para preencher uma sala quase completamente" e para ser "o lugar de trabalho em que fosse possvel terminar olivro Erasmus is Late " (publicao de Gillick de 1995), mas que tambm est disponvel para o usode outras pessoas "para depsito e exibio de trabalhos sobre a mesa, embaixo ou em volta dela"18.

    Desde meados da dcada de 1990, Gillick tornou-se mais conhecido por seu trabalhotridimensional dedesign : telas e plataformas suspensas feitas de alumnio e acrlico colorido, queso geralmente mostradas ao lado de textos e desenhos geomtricos pintados diretamente na parede.As descries de Gillick desses trabalhos enfatizam seu potencial valor de uso, mas de modo acuidadosamente lhes negar qualquer agenciamento especfico; o significado de cada objeto toexageradamente determinado que seu trabalho parece parodiar tanto afirmaes dodesignmodernista, quanto a linguagem de consultoria empresarial. Seu cubo de acrlico de 120 cm de ladoe aberto em cima intitulado Discussion Island: Projected Think Tank [ Ilha da Discusso: espaocriativo projetado ] (1997) descrito como "um trabalho que pode ser usado como objeto que podesignificar uma zona delimitada para a considerao de troca, transferncia de informao eestratgia", enquanto a Big Conference Centre Legislation Screen [Tela de Legislao do GrandeCentro de Conferncia ] (1998), uma tela de 3 x 2 m de acrlico colorido, "ajuda a definir alocalizao em que aes individuais so limitadas por regras impostas pela comunidade como umtodo"19.

    As estruturas dedesign de Gillick foram descritas como construes, tendo uma "semelhanaespacial aos espaos de escritrios, abrigos de pontos de nibus, salas de reunio e cantinas", maseles tambm herdam o legado da escultura minimalista e da instalao ps-minimalista (Donald

    17Ibid., pp. 39-40.18Gillick, citado in Liam Gillick , ed. Susanne Gaensheimer and Nicolaus Schafhausen (Colnia: Oktagon, 2000), p. 36.19Ibid., pp. 56, 81.

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    Judd e Dan Graham imediatamente vm mente)20. Embora o trabalho de Gillick seja diferentedaquele feito por seus predecessores na histria da arte: enquanto as caixas modulares de Juddfaziam com que o observador percebesse seu movimento corporal em torno do trabalho, ao mesmotempo em que tambm chamavam a ateno para o espao em que estavam expostos, para Gillick

    basta que os observadores "deem as costas para o trabalho e conversem uns com os outros"21

    . Emvez de o observador "completar" o trabalho, maneira dos corredores de Bruce Nauman ou asvdeo-instalaes de Graham em 1970, Gillick busca uma abertura perptua em que sua arte seja um pano de fundo para outras atividades. "Eles no funcionam necessariamente melhor sendo apenasobjetos de anlise", afirma. "Algumas vezes so um pano de fundo, ou decorao, em vez de serem puros provedores de contedo"22. Os ttulos de Gillick refletem esse movimento de afastamento dacrtica direta dos anos 1970 em seu uso irnico e brando do jargo empresarial: Ilha da Discusso,

    Equipamento de Chegada, Plataforma de Dilogo, Tela de Regulao, Tela de Atraso e Plataformade Renegociao Geminada23. Essas aluses corporativas claramente distanciam o trabalho daquelefeito por Graham, que expunha como materiais arquitetnicos aparentemente neutros (como vidro,espelho e ao) so usados pelo Estado e pelo comrcio para exercer controle poltico. Para Gillick, atarefa no insultar tais instituies, mas negociar formas de melhor-las24. Uma palavrafrequentemente usada por ele "cenrio" e, de certa forma, toda a sua produo governada pelaideia de uma lgica de cenrio" como modo de visualizar mudana no mundo no como umacrtica direcionada ordem atual, mas para "examinar at que ponto o acesso da crtica possvel,caso seja"25. Vale notar que apesar da frustrante intangibilidade da escrita de Gillick cheia deadiamentos e possibilidades em vez do presente e do real , ele foi convidado para solucionar problemas em projetos prticos como um sistema de trfego para a Porsche em Sttutgart e paradesenvolver sistemas de comunicao eletrnica para um projeto de moradia em Bruxelas. Gillick um tpico retrato de sua gerao, ao no encontrar conflito entre esse tipo de trabalho e exposiesconvencionais no "cubo branco"; ambas so vistas como formas de continuar sua investigao sobre

    20Mike Dawson, Liam Gillick, Flux (Agosto-Setembro 2002), p. 63.21Gillick, Renovation Filter , p. 16.22Gillick,The Wood Way (Londres: Whitechapel, 2002), p. 84.23Todos esses trabalhos foram exibidos emThe Wood Way , uma exposio na Whitechapel Art Gallery em 2002.24Entretanto, deduz-se a partir dos exemplos de Gillick que melhoria signifique mudana apenas em nvel formal. Em 1997 ele foi convidado para produzir um trabalho para um banco de Munique e descreveu o projeto da seguinte maneira: Identifiquei uma zona morta e problemtica no prdio um descuido dos arquitetos que pretendi resolver com as telas. Elas iriam subitamente transformar o modo como funcionava o espao. O curioso,entretanto, foi que minha proposta fez com que os arquitetos repensassem aquela parte do edifcio... Os arquitetos chegaram a uma concluso melhor sobre como resolver seu projeto sem a necessidade de arte nenhuma (Gillick, Renovation Filter , p.21). Um crtico desconsiderou essa modalidade detrabalho chamando-a de feng shui empresarial (Max Andrews, Liam Gillick, Contemporary 32, p.73), e levando o foco para as formas como asmudanas propostas foram primariamente cosmticas em vez de estruturais. Gillick responderia que a aparncia de nosso ambiente condiciona nossocomportamento e, portanto, os dois so indivisveis.25Liam Gillick, A Guide to Video Conferencing Systems and the Role of the Building Worker in Relation to the Contemporary Art Exhibition(Backstage). Um guia para conferncias de vdeo e o papel do funcionrio do prdio em relao exposio de arte contempornea (Bastidores),em Gillick, Five or Six (Nova Iorque: Lukas and Sternberg, 2000), p. 9. Como nota Gillick, a criao de cenrios uma ferramenta para a proposiode mudanas, mesmo quando est inerentemente ligada ao capitalismo e s estratgias que vm em seu bojo porque inclui um dos principaiscomponentes exigidos para manter o nvel de mobilidade e reinveno exigidas para dar uma aura dinmica s assim chamadas economias de livremercado (Gillick, Prevision: Should the Future Help the Past?, Five or Six , p. 27).

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    cenrios hipotticos futuros. Em vez de determinar um resultado especfico, Gillick gosta dedesencadear alternativas abertas de modo que outras pessoas possam contribuir. O que mais ointeressa so acordos e possibilidades de se chegar a um meio termo.

    Escolhi falar de Gillick e Tiravanija porque eles parecem a mais clara expresso da afirmao

    de Bourriaud de que a arte relacional privilegia relaes interssubjetivas em vez de uma visualidadeimpessoal. Tiravanija insiste que o observador esteja fisicamente presente em uma situao e em ummomento especficos comendo o que ele prepara, ao lado de outros visitantes em uma situao emcomum. Gillick alude a relaes mais hipotticas que, em muitos casos, no precisam nem existir,mas ainda insiste que a presena de um pblico um componente essencial de sua arte: "Meutrabalho como a luz de uma geladeira, s funciona quando existem pessoas l para abrirem a porta. Sem as pessoas, no arte uma outra coisa , coisas em uma sala"26. Esse interesse nos

    imprevistos de uma "relao entre" em vez do prprio objeto uma caracterstica de seutrabalho e de seu interesse na prtica colaborativa como um todo.Essa ideia de considerar o trabalho de arte como um disparador potencial para a participao

    no exatamente nova pense noshappenings , nas instrues do grupo Fluxus, na performancedos anos 1970 e na declarao de Joseph Beuys de que "todo homem um artista". Cada uma delasfoi acompanhada pelo discurso da democracia e da emancipao, que muito similar defesa queBourriaud faz da esttica relacional27. fcil seguir o fio condutor que nos leva base terica dessedesejo de ativao do observador: "O autor como produtor", de Walter Benjamin (1934), "A mortedo autor" e "Nascimento do leitor" (1968), de Roland Barthes e ainda mais importante para essecontexto A obra aberta , de Umberto Eco (1962). Ao escrever sobre o que compreendeu ser ocarter aberto e aleatrio da literatura, da msica e da arte modernista, Eco resume sua discussosobre James Joyce, Luciano Berio e Alexander Calder em tais termos, que faz-se difcil no evocar o otimismo de Bourriaud:

    A potica da "obra em movimento" (e em parte a potica da obra "aberta")colocam em movimento um novo ciclo de relaes entre o artista e seu pblico,uma nova mecnica da esttica da percepo, uma condio diferente para o produto artstico na sociedade contempornea. Ela abre uma nova pgina nasociologia e na pedagogia, assim como um novo captulo na histria da arte ecoloca novos problemas prticos atravs da organizao de novas situaes decomunicao. Em suma, essa nova potica instala uma nova relao entre a

    26 Gillick in Renovation Filter , p16. Como notou Alex Farquharson, A expresso em vigor aqui 'pode ser possvel'. Enquanto Rirkrit pode de forma

    sensata esperar que seus visitantes comero o macarro tailands que prepara, improvvel que o pblico de Liam esteja avaliando seu trabalho. Emvez de atividade real, ao observador oferece-se um papel ficcional, uma abordagem compartilhada com Gonzalez-Foerster e Parreno (AlexFarquharson, Curator and artist, Art Monthly 270 [Outubro 2003], p. 14).27Beuys mencionado poucas vezes em Esttica Relacional e em uma delas ele especificamente evocado para cortar qualquer conexo entreescultura social e esttica relacional (p.30).

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    contemplao e autilizao de um trabalho de arte28.

    Analogias a Tiravanija e Gillick so evidentes no modo como Eco privilegia o uso de valor e odesenvolvimento de "situaes comunicativas". Entretanto, Eco afirma quetodo o trabalho de arte

    potencialmente "aberto", j que pode produzir uma gama ilimitada de leituras possveis; a conquistada arte, da msica e da literatura contemporneas justamente essa: ter trazido esse fato tona29.Bourriaud se equivoca na interpretao desses argumentos, aplicando-os a um tipo especfico detrabalho (aqueles que requerem interao literal) e portanto redireciona seu argumento de volta paraa intencionalidade artstica e no para as questes de recepo30. Seu posicionamento tambm diferede Eco em outro aspecto importante: Eco considerava o trabalho de arte como umreflexo dascondies de nossa existncia em uma cultura moderna fragmentada, enquanto Bourriaud v o

    trabalho de arte como produtor dessas condies. A interatividade da arte relacional portantosuperior contemplao tica de um objeto, que considerado passivo e desengajado, porque otrabalho de arte uma "forma social" capaz de produzir relaes humanas positivas. Comoconsequncia, o trabalho automaticamente poltico em implicao e emancipatrio em efeito.

    Julgamento esttico

    Para quem est familiarizado com o ensaio "A Ideologia e os Aparatos Ideolgicos deEstado", essa descrio de formas sociais que produzem relaes humanas soar familiar. A defesade Bourriaud da esttica relacional est em dvida com a ideia de cultura de Althusser assim comoum "aparato ideolgico de estado" no reflete a sociedade, mas a produz . Da forma como foiutilizado por artistas feministas e crticos de cinema nos anos 1970, o ensaio de Althusser permitiuuma expresso mais matizada daquilo que poltico na arte. De acordo com Lucy Lippard, foiatravs da forma (mais do que pelo contedo) que grande parte da produo artstica do fim dosanos 1960 aspirava a um alcance democrtico. A principal compreenso desse ensaio de Althusser foi ter reconhecido que uma crtica institucional circunscrita s instituies precisaria ser aprimorada31. No era suficiente mostrar que o significado de um trabalho de arte est subordinado sua forma de apresentao (seja um museu ou uma revista); a prpriaidentificao do observador com a imagem estava fadada a ser igualmente importante. Rosalyn Deutsche resume essa mudana

    28Umberto Eco, The Poetics of the Open Work (1962), in Eco,The Open Work (Boston: Harvard University Press, 1989), pp. 2223.29Eco cita Merleau-Ponty em A Fenomenologia da Percepo : "Como poder ento pergunta-se o filsofo uma coisa apresentar-severdadeiramente a ns, j que a sntese nunca se completa... Como posso ter a experincia do mundo como de um indivduo existente em ao,quando nenhuma das perspectivas segundo as quais o vejo consegue esgot-lo e quando os horizontes permanecem sempre abertos?... Estaambiguidade no uma imperfeio da conscincia ou da existncia, mas sua prpria definio (Eco, The Poetics of the Open Work, p. 17).30Poderia-se argumentar que essa abordagem na verdade impede leituras abertas de trabalhos j que seu significado torna-se assim consoante com o

    fato de que o significado aberto.31Aqui, estou pensando em boa parte da arte conceitual, vdeo, performance, instalao e trabalhos do tipo site-specific , que expressaram sua polticaao recusar gratificao ou conivncia com o mercado da arte, mas que permaneceram autorreferenciais em nvel de contedo. Ver Lucy Lippard, ADesmaterializao do objeto de arte 1966-1972 [Six Years: The Dematerialization of the Art Object 19661972 (Berkeley: University of CaliforniaPress, 1996), pp. viixxii.]

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    de maneira muito til em seu livro Evictions: Art and Spatial Politics (1996) ,quando compara HansHaacke gerao seguinte de artistas: Cindy Sherman, Barbara Kruger e Sherrie Levine. O trabalhode Haacke, ela escreve, "convidava observadores a decifrar relaes e encontrar contedos jinscritos em imagens, mas no lhes pedia que examinassem seu prprio papel e esforo ao produzir

    imagens"32

    . Por contraste, a gerao de artistas seguinte "tratava a imagem como uma relao social em si e o observador como um sujeito construdo pelo prprio objeto do qual eleanteriormente afirmava estar separado"33.

    Mais tarde voltarei questo da identificao levantada por Deutsche. Enquanto isso necessrio observar que considerar aimagem como relao social est a apenas um passo doargumento de Bourriaud de que aestrutura de um trabalho de arte produz uma relao social.Entretanto, identificar o que a estrutura de um trabalho de arte relacional no uma tarefa fcil,

    precisamente porque o trabalho se diz aberto. Esse problema exacerbado pelo fato de quetrabalhos de arte relacional sejam derivados das instalaes artsticas, uma forma que desde o princpio solicita a presena literal do observador. Diferentemente da gerao "Public Vision" deartistas, cujas conquistas principalmente em fotografia foram assimiladas pela ortodoxiahistrico-artstica sem problemas, a instalao tem sido frequentemente denegrida como apenasmais uma forma de espetculo ps-moderno. Para alguns crticos, notavelmente Rosalind Krauss, ouso que a instalao faz de diversos meios a separa de uma tradio de meios especficos; no possuindo, portanto, convenes prprias contra as quais possa operar com autocrtica, nemcritrios com os quais possamos avaliar seu xito. Sem um sentido claro de qual seja o meio dainstalao, o trabalho no consegue obter o santo graal da autocrtica e da reflexo34. Sugeri emoutro artigo que a presena do observador poderia ser uma forma de se considerar o meio dainstalao, mas Bourriaud complica essa afirmao35. Ele argumenta que os critrios quedeveramos usar para avaliar trabalhos de arte abertos e participativos no so meramente estticos,mas polticos e at ticos: precisamos julgar as "relaes" que so produzidas pelos trabalhos de arterelacional.

    Quando confrontados com um trabalho de arte relacional, Bourriaud sugere que faamos asseguintes perguntas: "esta obra me d a possibilidade de existir perante ela? Eu poderia viver numespao-tempo que lhe correspondesse na realidade? ( ER, p. 80). Ele se refere a essas perguntas quedeveramos fazer frente a qualquer produto esttico como "critrios de coexistncia" ( ER, p.79).

    32Rosalyn Deutsche, Evictions: Art and Spatial Politics (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996), pp. 29596. Grifos de Claire Bishop.33Ibid., p. 296.34Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea (London: Thames and Hudson, 1999), p. 56. Em outro texto, Krauss sugere que depois do fim dos

    anos 1960, era em relao a um local [ site ] conceitual e arquitetnico que a prtica artstica se tornaria 'especfica' [ specific ] em vez de ser emrelao a um meio esttico como mais bem exemplificado no trabalho de Marcel Broodthaers (Kraus, Performing Art, London Review of Books ,12 de novembro, 1998, p.18). Enquanto concorde em certa medida com Krauss a respeito do ponto de autocrtica e reflexo, fico incomodada com suarelutncia em aceitar outras formas em que a instalao possa operar com xito.35Ver a concluso em meu livro Installation Art and the Viewer (Londres: Tate Publishing, 2005).

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    Teoricamente, quando olhamos para qualquer trabalho de arte, podemos perguntar qual tipo demodelo social aquele trabalho produz: eu poderia viver, por exemplo, num mundo estruturado pelos princpios organizadores de uma pintura de Mondrian? Ou qual "forma social" produzida por umobjeto surrealista? O problema que surge com a noo de "estrutura" de Bourriaud que ela

    estabelece uma relao errtica com o tema ou o contedo visveis do trabalho. Por exemplo,valorizamos o fato de que os objetos surrealistas reciclam bens antiquados, ou o fato de que seuconjunto de imagens e justaposies desconcertantes exploram os desejos inconscientes eansiedades de seus realizadores? Com o hbrido performance-instalao da esttica relacional, quedepende to fortemente do contexto e do engajamento literal do observador, essas perguntas soainda mais difceis de responder. Por exemplo,o que Tiravanija cozinha,como e para quem menos importante para Bourriaud do que o fato de que ele distribui os resultados do que cozinha de

    graa. O mural de Gillick pode ser questionado da mesma maneira: Bourriaud no discute os textosou imagens a que se referem cada um dos elementos pregados no quadro, nem a organizao formale a justaposio desses elementos, mas apenas a democratizao que Gillick prope com o materiale seu formato flexvel. (Quem possui o trabalho tem a liberdade de modificar esses vrios elementosa qualquer momento, de acordo com seu gosto pessoal e os acontecimentos do momento.) ParaBourriaud, a estrutura o tema e nisso ele muito mais formalista do que percebe36.Desarticulados tanto da intencionalidade artstica, quanto do ato de considerar o contexto maisamplo em que operam, os trabalhos de arte relacional se tornam, assim como os avisos no quadro deGillick, apenas um "retrato constantemente mutvel da heterogeneidade da vida cotidiana" e noexaminam sua relao com ela37. Em outras palavras, apesar dos trabalhos afirmarem depender deseu contexto, eles no questionam sua imbricao nesse contexto. Os avisos de Gillick socompreendidos como democrticos em sua estrutura mas apenas aqueles que os possuem podeminteragir com sua organizao. Precisamos perguntar, como o Group Material fez nos anos 1980,"Quem o pblico? Como feita a cultura e para quem?".

    No estou sugerindo que trabalhos de arte relacional precisem desenvolver maior conscinciasocial fazendo murais com recortes de jornal sobre terrorismo internacional, por exemplo, oudistribuindo legumes comcurry a refugiados. Estou simplesmente me perguntando como decidimoso que constitui a "estrutura" de um trabalho relacional e se isso separvel do tema visvel notrabalho ou se permevel a seu contexto. Bourriaud quer igualar o julgamento esttico ao julgamento tico-poltico das relaes produzidas por um trabalho de arte. Mas como medimos ou

    36Isso est refletido na discusso de Bourriaud sobre Felix Gonzlez-Torres, um artista cujo trabalho ele considera como precursor crucial da estticarelacional. Antes de sua morte devido AIDS em 1996, Gonzlez-Torres tornou-se reconhecido por suas releituras emotivas da escultura minimalista

    usando pilhas de doces e de papel dos quais os visitantes eram encorajados a se servir. Atravs de seu trabalho, Gonzlez-Torres fez sutis aluses aquestes politicamente carregadas, como a crise da AIDS (uma pilha de doces tinha o mesmo peso de seu parceiro Ross que morreu em 1991), aviolncia urbana (leis sobre porte de armas emSem Ttulo [NRA] [1991]) e a homossexualidade ( Perfect Lovers [1991]). Bourriaud, entretanto,demove esse aspecto da prtica de Gonzlez-Torres em favor de sua estrutura sua generosidade literal em direo ao observador.37Eric Troncy, London Calling, Flash Art (Summer 1992), p. 89.

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    comparamos essas relaes? Aqualidade das relaes em "esttica relacional" nunca soexaminadas ou colocadas em questo. Quando Bourriaud afirma que "encontros so maisimportantes que os indivduos que os compem", percebo que essa questo (para ele) desnecessria; todas as relaes que permitem "dilogo" so automaticamente presumidas

    democrticas e, portanto, benficas. Mas o que "democracia" de fato significa nesse contexto? Se aarte relacional produz relaes humanas, ento a prxima pergunta lgica a se fazer quaistipos derelaes esto sendo produzidas, para quem e por qu.

    Antagonismo

    Rosalyn Deutsche declarou que a esfera pblica permanece democrtica apenas na medida emque suas excluses naturalizadas so levadas em conta e colocadas em aberto para contestao:

    "Conflito, diviso e instabilidade, ento, no destroem a esfera pblica; so condies para suaexistncia". Deutsche se baseia em Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Publicado em 1985, um dos primeiroslivros a reconsiderar a teoria poltica esquerdista pelas lentes do ps-estruturalismo, de acordo como que os autores perceberam como sendo um impasse na teorizao marxista nos anos 1970. Seutexto uma releitura de Marx atravs da teoria de Gramsci de hegemonia e da compreenso deLacan da subjetividade como dividida e descentrada. Muitas das ideias que Laclau e Mouffeapresentam nos permitem reconsiderar as afirmaes de Bourriaud sobre a poltica da estticarelacional a partir de um ponto de vista mais crtico.

    A primeira dessas ideias o conceito de antagonismo. Laclau e Mouffe afirmam que umasociedade democrtica em pleno funcionamento no aquela em que todo o antagonismodesaparece, mas aquela em que novas fronteiras polticas so constantemente traadas e colocadasem debate em outras palavras, uma sociedade democrtica aquela em que as relaes de conflitoso sustentadas e no apagadas. Sem antagonismo existe apenas um consenso imposto por umaordem autoritria uma total supresso do debate e da discusso, que desfavorvel democracia. importante enfatizar em seguida que a ideia de antagonismo no compreendida por Laclau eMouffe como sendo uma aceitao pessimista de um beco sem sada poltico; antagonismo nosinaliza "a expulso da utopia do campo do poltico". Pelo contrrio, eles sustentam que sem oconceito de utopia no h possibilidade de um imaginrio radical. A tarefa equilibrar a tensoentre o imaginrio ideal e o gerenciamento pragmtico de uma positividade social sem cair nototalitarismo.

    Essa compreenso do antagonismo baseada na teoria da subjetividade de Laclau e Mouffe. A

    partir de Lacan, eles argumentam que a subjetividade no transparente, racional e pura presena,

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    comunidade cujos membros identificam-se uns com os outros, porque tm algo em comum. A nicadescrio significativa que encontrei da primeira exposio individual de Tiravanija na 303 Gallery de Jerry Saltz em Art in America , como se pode ler a seguir:

    Na 303 Gallery eu geralmente me sentava com algum ou era acompanhado por algum desconhecido e era timo. A galeria virou um lugar para compartilhar, umlugar alegre para conversar com sinceridade. Tive maravilhosas rodadas derefeies com galeristas. Uma vez Paula Cooper e eu comemos juntos e elarecontou um pedao longo e complicado de uma fofoca profissional. Outro dia,Lisa Spellman relatou em detalhes hilariantes a histria de uma intriga sobre umcolega galerista que tentava, sem sucesso, roubar um de seus artistas. Mais ou

    menos uma semana depois David Zwirner me acompanhou. Encontrei-o por acasona rua e ele disse "nada est dando certo hoje, vamos ao Rirkrit". Ns fomos efalamos sobre a falta de emoo no mundo da arte novaiorquino. Outra vez fuiacompanhado por Gavin Brown, o artista e galerista... Que falou do colapso doSoho s para consider-lo bem-vindo e dizer que j era hora, porque as galeriasandavam mostrando muita arte medocre. Em outro momento uma mulher noidentificada me acompanhou e um clima de paquera curiosa pairava no ar. E teveainda uma outra vez na qual conversei com um jovem artista que morava noBrooklin e tinha tido verdadeirosinsights sobre as mostras que tinha acabado dever 42.

    A tagarelice informal desse relato claramente indica que tipo de problemas encontram aqueles que pretendem saber mais sobre tal trabalho: a sinopse nos diz apenas que a interveno de Tiravanija considerada boa, porque permite que uma srie de galeristas e apreciadores de arte cuja forma de pensar semelhante faam contatos profissionais e porque evoca uma atmosfera de bar. Todostm em comum o interesse pela arte e o resultado a fofoca do universo da arte, conversas sobreexposies e paquera. Tal comunicao razovel at certo ponto, mas no , por si s,emblemtica da "democracia". Para ser justa, penso que Bourriaud reconhece esse problema , masno o levanta em relao aos artistas que promove, pois ele indaga: "Conectando pessoas, criandoexperincias interativas de comunicao, mas para qu? Se esquecemos de perguntar 'pra qu?', oque nos resta simplesmente 'arte Nokia' ou seja, uma produo de relaes interpessoais semoutros objetivos alm das prprias relaes, e sem abordar seus aspectos polticos"43. Eu diria que a

    42Saltz, A Short History of Rirkrit Tiravanija, p. 107.43Citao de Bourriaud em Public Relations: Bennett Simpson Talks with Nicolas Bourriaud, p. 48.

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    arte de Tiravanija, pelo menos como apresentada por Bourriaud, no consegue se aproximar dosaspectos polticos da comunicao mesmo quando alguns de seus projetos paream, primeiravista, tratar deles ainda que de modo dissonante. Voltemos ao assunto do projeto de Tiravanija deColnia,Sem ttulo ( Amanh Outro Dia ). J citei o comentrio do curador Udo Kittelman de que a

    instalao oferecia "uma experincia impressionante de unio a todos". Ele continua: "Vriosgrupos de pessoas preparavam comida e conversavam, tomavam banho e ocupavam a cama. Nossomedo de que o espao de convivncia artstica pudesse ser vandalizado no se tornou realidade... Oespao de arte perdeu sua funo institucional e finalmente tornou-se um espao social livre"44. O

    Klnischer Stadt-Anzeigner concordou que o trabalho oferecia "uma espcie de 'refgio' paratodos"45. Mas quem so "todos" nesse caso? Isso pode ser uma microutopia, mas como a utopia ainda baseada na excluso daqueles que evitam ou impedem sua realizao. ( tentador considerar

    o que poderia ter acontecido se o espao de Tiravanija tivesse sido invadido por aqueles queestivessem procurando verdadeiro "refgio")46. Suas instalaes refletem a compreenso deBourriaud de que as relaes produzidas por trabalhos de arte relacional so fundamentalmenteharmoniosas, porque so dirigidas a uma comunidade de sujeitos observadores comalgo emcomum 47. Esse o motivo pelo qual os trabalhos de Tiravanija so polticos apenas no sentido maisvago, quando o que se defende o dilogo em relao ao monlogo (comunicao de apenas umavia, igualada ao espetculo pelos Situacionistas). O contedo desse dilogo no democrtico nelemesmo, j que todas as questes voltam para a banalidade da no questo: "isso arte?"48. Apesar do discurso de abertura e emancipao do espectador feito por Tiravanija, a estrutura de seutrabalho antecipadamente delimita seu resultado e conta com a presena do artista dentro da galeria para diferenciar tal estrutura do entretenimento. A microutopia de Tiravanija abre mo da ideia detransformao da cultura pblica e reduz seu escopo aos prazeres direcionados a um grupo privadoem que uns se identificam com os outros todos frequentadores de galerias49. 44Udo Kittelmann, Preface, em Rirkrit Tiravanija, n.p.45Klnischer Stadt-Anzeiger citado em Rirkrit Tiravanija, n.p.46

    Saltz pensa sobre essa questo de forma maravilhosamente limitada: (...) teoricamente qualquer um pode entrar [numa galeria de arte]. Por que noo fazem? De alguma forma o mundo da arte parece secretar uma enzima invisvel que repele forasteiros. O que aconteceria se da prxima vez queTiravanija montasse uma cozinha em uma galeria de arte um bando de moradores de rua aparecessem diariamente para almoar? O que o Walker ArtCenter faria se algum deles juntasse dinheiro suficiente para pagar a entrada no museu e decidisse dormir na cama dobrvel de Tiravanija o dia todo,todos os dias?() (Saltz, A Short History of Rirkrit Tiravanija, p. 106) sua prpria maneira, Tiravanija traz essas questes tona e derruba a porta (to eficientemente trancada por uma suposta arte poltica) que separa o mundo da arte de todo o resto. A enzima invisvel a que Saltz serefere deveria alert-lo precisamente das limitaes do trabalho de Tiravanija e sua abordagem no antagnica a questes de espao pblico. (Saltz,A Short History of Rirkrit Tiravanija, p. 106)47A crtica de Jean-Luc Nancy ideia marxista de comunidade como comunho emThe Inoperative Community (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991) tem sido crucial para minha considerao de um contramodelo esttica relacional. Desde meados de 1990, o texto de Nancytornou-se uma referncia cada vez mais importante para quem escreve sobre arte contempornea, conforme visto em Rosalyn Deutsche, Evictions ;captulo 4 do livroObject to Be Destroyed: The Work of Gordon Matta-Clark de Pamela M. Lee (Cambridge, Mass.: MIT Press, 2000); George Baker,Relations and Counter Relations: An Open Letter to Nicolas Bourriaud in Zusammenhnge herstellen/Contextualise , ed. Yilmaz Dziewior (Cologne: Dumont, 2002); and Jessica Morgan, Common Wealth (Londres: Tate Publishing, 2003).48De acordo com informao de Frankfurter Allgemeine Zeitung , Nenhum assunto est dado, ainda assim, o contexto artstico automaticamente leva

    todas as discusses de volta para a questo sobre a funo da arte. Christophe Blase, Frankfurter Allgemeine Zeitung. 19 de dezembro, 1996, citadoem Rirkrit Tiravanija, n.p. Ele continua: Seja esse discurso lido a partir de um ponto de vista ingnuo ou especializado o nvel intermedirio seria areferncia obrigatria a Duchamp mero acaso que depende dos respectivos participantes. De qualquer forma, o fato que quando acontece umacomunicao em geral e, em particular, uma discusso sobre arte, tem-se um valor positivo a partir do menor denominador possvel.49Essencialmente, no h diferena entre utopia (perfeio da sociedade) e microutopia, que apenas perfeio pessoal elevada dcima potncia (ou

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    A posio de Gillick a respeito da questo do dilogo e democracia mais ambgua. primeira vista, ele parece apoiar a tese de antagonismo de Laclau e Mouffe:

    Ao mesmo tempo em que admiro artistas que constroem vises "melhores" de

    como as coisas poderiam ser, sei que o meio termo e a negociao de territrios pelos quais me interesso sempre trazem a possibilidade de momentos em que oidealismo torna-se incerto. H muitas demonstraes de acordos, estratgias efalncia em meu trabalho, assim como h receitas claras de como nosso ambiente pode ser melhor 50.

    Entretanto, quando procuramos por "receitas claras" no trabalho de Gillick, elas so poucas, se

    que h alguma a ser encontrada. "Estou trabalhando numa nuvem de ideias", afirma ele, "que soum tanto parciais ou paralelas em vez de didticas"51. Relutante em dizer quais so os ideais que poderiam ser comprometidos, Gillick tira proveito da credibilidade das referncias arquitetura(seu engajamento com situaes sociais concretas), enquanto permanece abstrato quanto articulao de um posicionamento especfico. O trabalho Plataformas de Discusso , por exemplo,no aponta para nenhuma mudana em especial, apenas mudanas em geral um "cenrio" em que"narrativas" potenciais podem emergir ou no. A posio de Gillick escorregadia e, finalmente, ele parece defender a negociao e o acordocomo receitas para a melhora. Logicamente, esse pragmatismo equivalente a um abandono ou uma falncia de ideais; seu trabalho a demonstraode uma conciliao em vez da articulao de um problema52.

    Por outro lado, a teoria de democracia como antagonismo de Laclau e Mouffe pode ser vistano trabalho de dois artistas sabidamente ignorados por Bourriaud em Esttica Relacional e em Ps-

    produo : o artista suo Thomas Hirschhorn e o espanhol Santiago Sierra53. Esses artistasestabelecem "relaes" que enfatizam o papel do dilogo e da negociao em sua arte, mas o fazemsem que essas relaes sucumbam ao contedo do trabalho. As relaes produzidas por suas performances e instalaes so marcadas por sensaes de mal-estar e desconforto, em vez de pertencimento, porque os trabalhos reconhecem a impossibilidade de uma "microutopia" e, em vezdisso, sustentam uma tenso entre observadores, participantes e contexto. Parte integrante dessa

    vigsima, ou quantos participantes estiverem presentes). Ambas so baseadas na excluso daquilo que impede ou ameaa a ordem harmoniosa, o que pode ser visto em toda a descrio deUtopia de Thomas More. Descrevendo um perturbado entusiasta cristo que condenava outras religies, oviajante Raphael relata: Quando j havia feito isso tempo demais, foi preso e condenado, no por blasfmia, mas por perturbar a ordem. Ele foiestupidamente condenado e sentenciado ao exlio pois um dos mais antigos princpios de sua constituio a tolerncia religiosa (Thomas More,Utopia [Londres: Penguin Books, 1965], p. 119).50Gillick,The Wood Way , pp. 8182.51Gillick, Renovation Filter , p. 20.52Poderamos at mesmo dizer que na microutopia de Gillick, ceder para o benefcio do acordo o ideal: uma hiptese intrigante, mas insustentvele, em ltima instncia, menos uma democracia microutpica que uma forma de poltica de terceira via.53Entretanto, Hirschhorn participou da exposioGNS e Sierra em Hardcore , ambas no Palais de Tokyo in 2003. Ver tambm a discusso deBourriaud sobre Sierra em Est-il bon? Est-il mchant?, Beaux Arts 228 (Maio 2003), p. 41.

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    tenso a introduo de colaboradores de realidade econmica distinta que, por sua vez, servem para desafiar a percepo da arte contempornea como um domnio que engloba outras estruturassociais e polticas.

    No identificao e autonomiaO trabalho de Santiago Sierra (nascido em 1966), assim como o de Tiravanija, envolve o

    estabelecimento literal de relaes entre pessoas: o artista, os participantes em seu trabalho e o pblico. Mas desde o fim dos anos 1990, as "aes" de Sierra vm sendo organizadas em torno derelaes que so mais complicadas e mais controversas que aquelas produzidas por artistasassociados esttica relacional. Sierra tem atrado crticas beligerantes e a ateno de tabloides por algumas de suas aes mais extremas, como160 cm Line Tattooed on Four People [ Linha de

    160cm Tatuada em Quatro Pessoas ] (2000), A Person Paid for 360 Continuous Working Hours[Uma Pessoa Paga por 360 Horas de Trabalho Contnuo ] (2000) eTen People Paid to Masturbate[ Dez Pessoas Pagas para se Masturbarem ] (2000). Essas aes efmeras so documentadas emfotografias preto e branco despretensiosas, textos curtos e, ocasionalmente, em vdeo. Esse modo dedocumentao parece ser um legado da arte conceitual e da Body Art dos anos 1970 Chris Burdene Marina Abramovic vm mente , mas o trabalho de Sierra desenvolve essa tradio de modosignificativo ao usar outras pessoas como performers e com a nfase que coloca em suaremunerao. Enquanto Tiravanija celebra a doao, Sierra sabe que nada de graa: tudo e todostm seu preo. Seu trabalho pode ser visto como uma reflexo cruel sobre as condies sociais e polticas que permitem o surgimento de disparidades nos "preos" das pessoas. Agora regularmenteconvidado para realizar trabalhos em galerias na Europa e nas Amricas, Sierra cria uma espcie derealismo etnogrfico em que o resultado ou desdobramento de sua ao forma um indicador darealidade econmica e social do lugar em que trabalha54.

    Interpretar a prtica de Sierra dessa forma ir contra a corrente das leituras dominantes de seutrabalho, que o apresentam como uma reflexo niilista da teoria de Marx do valor de troca dotrabalho. (Marx afirmava que o tempo de trabalho de um operrio valia menos para o patro que seuvalor de troca posterior , em forma de um bem produzido por seu trabalho.) As tarefas que Sierraexige de seus colaboradores que so invariavelmente inteis, exaustivas e s vezes deixamcicatrizes permanentes so vistas como amplificaes do status quo , que expem o pronto abusodaqueles que faro at mesmo os trabalhos mais humilhantes ou sem sentido em troca de dinheiro.Ao receber pagamento por suas aes como artista e ser o primeiro a admitir as contradies

    54Desde que Sierra se mudou para o Mxico em 1996, a maioria de suas aes aconteceram na Amrica Latina e o realismo de seu resultado geralmente um acusao atroz da globalizao mas esse nem sempre o caso. Em Elevation of Six Benches (2001) no Kunsthalle em Munique,Sierra pagou trabalhadores para suspender todos os bancos de couro nos museus e nas galerias por perodos estabelecidos de tempo. O projeto era umacordo, j que o Kunsthalle no deixaria Sierra arrancar uma parede de sua galeria Herzog & de Meuron para que os trabalhadores suspendessem, masSierra ainda considerou o resultado satisfatrio j que as nicas pessoas que conseguimos encontrar para realizar a tarefa no momento foram atoresdesempregados e fisiculturistas que queriam exibir sua proeza fsica (Sierra, A Thousand Words, Artforum [Outubro 2002], p. 131).

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    dessa situao, seus detratores afirmam que ele est dizendo o bvio de forma pessimista: ocapitalismo explora. Alm disso, esse um sistema do qual ningum pode se isentar. Sierra pagaoutros para fazer o trabalho para o qual ele mesmo pago e, por sua vez, ele explorado por galerias, negociantes e colecionadores. O prprio Sierra faz pouco para contradizer essa viso

    quando opina,

    No posso mudar nada. No h possibilidade de mudarmos nada com o trabalhoartstico. Fazemos nosso trabalho porque estamos fazendo arte e porqueacreditamos que a arte deve ser alguma coisa, alguma coisa que acompanha arealidade. Mas eu no acredito na possibilidade de mudana55.

    A aparente cumplicidade de Sierra com o status quo levanta a questo de como seu trabalho diferedaquele de Tiravanija. Vale ter em mente que, desde os anos 1970, antigos discursos de oposio etransformao de vanguarda tm sido frequentemente substitudos por estratgias de cumplicidade;o que importa no a cumplicidade, mas como a recebemos. Enquanto o trabalho de Tiravanija experimentado num tom grandiloquente, o trabalho de Sierra certamente no se apresenta da mesmamaneira. A seguir, fao uma tentativa de interpretar o trabalho de Sierra atravs das lentesdicotmicas da Esttica Relacional e Hegemonia para destacar as diferenas mais profundamente.

    No a primeira vez que se percebe que Sierra documenta suas aes e portanto garante quetodos saibamos o que ele considera ser sua "estrutura". Tomemos, por exemplo,The Wall of aGallery Pulled Out, Inclined Sixty Degrees from the Ground and Sustained by Five People [AParede de uma Galeria Arrancada, Inclinada Sessenta Graus do Cho e Sustentada por Seis Pessoas]Cidade do Mxico (2000). Diferentemente de Tiravanija e Gillick, que abraam a ideia de trabalhoaberto, Sierra delimita desde o incio sua escolha dos participantes convidados e o contexto em queo evento ocorrer. "Contexto" a palavra-chave para Gillick e Tiravanija, ainda que seus trabalhos pouco se esforcem para abordar o problema do que consiste o conceito de contexto. (Tem-se aimpresso de que ele existe como uma infinidade indiferenciada, assim como o ciberespao.)Laclau e Mouffe afirmam que para que se constitua um contexto e ele seja identificado como tal,certos limites precisam ser demarcados; pois pelas excluses geradas por essa demarcao que oantagonismo ocorre. precisamente esse ato de excluso que rejeitado na preferncia da arterelacional por "abertura"56. As aes de Sierra, por contraste, ficam impregnadas de outras"instituies" (por exemplo: imigrao, salrio mnimo, congestionamento no trnsito, comrcio derua ilegal, falta de moradia) para enfatizar as divises impostas por esses contextos. De modo

    55Sierra, citado emSantiago Sierra: Works 20021990 (Birmingham, England: Ikon Gallery, 2002), p. 15.56De acordo com Laclau, essa indeciso radical e a deciso que precisa ser tomada dentro dela que constitutiva de uma sociedade poltica. Ver Laclau, Emancipation(s) (Londres: Verso, 1996), pp. 5253.

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    crucial, entretanto, Sierra no apresenta essas divises como reconciliadoras (do modo comoTiravanija omite o museu com o caf ou o apartamento), nem como esferas inteiramente separadas:o fato de que seus trabalhos so realizados o coloca no terreno do antagonismo (em vez do modelo"batida de carro", quando a coliso acontece entre identidades completas) e sinaliza que seus limites

    so tanto instveis, quanto abertos a mudanas.Em um trabalho para a Bienal de Veneza de 2001, Persons Paid to Have Their Hair Dyed

    Blond [ Pessoas Pagas para Tingir o Cabelo de Loiro ], Sierra convidou vendedores ambulantesilegais, em sua maioria imigrantes do sul da Itlia, do Senegal, da China e de Bangladesh para que pintassem seus cabelos de loiro em troca de 120 mil liras (sessenta dlares). A nica condio parasua participao era que seus cabelos fossem naturalmente escuros. A descrio de Sierra dotrabalho no documenta o impacto de sua ao nos dias que se seguiram ao tingimento massivo,

    mas esse resultado era um aspecto integrante do trabalho57

    . Durante a Bienal de Veneza osvendedores ambulantes que vagam pelas esquinas vendendo bolsas falsificadas dedesignersfamosos so geralmente o grupo social mais obviamente excludo da abertura glamourosa; em2001, entretanto, seu novo cabelo tingido havia literalmente dado novas cores sua presena nacidade. A isso somou-se o gesto dentro da prpria Bienal, em que Sierra cedeu o espao que estavadestinado sua exposio para uma poro desses vendedores, que o utilizaram para vender suas bolsas Fendi falsificadas sobre um pano, do mesmo modo que faziam nas ruas. O gesto de Sierralevantou imediatamente uma estranha analogia entre arte e comrcio, no estilo da crticainstitucional dos anos 1970, mas que foi muito alm disso, j que os vendedores e a exposio seestranhavam mutuamente ao serem confrontados. Em vez de chamarem a ateno dos passantes deforma agressiva como faziam nas ruas, os vendedores estavam acanhados. Isso fez com que meu prprio encontro com eles fosse desarmante, de forma que apenas posteriormente revelaria minha prpria ansiedade sobre sentir-me "includa" na Bienal. Era mesmo certeza que eram atores? Teriamse enfurnado l de brincadeira? Colocando em primeiro plano o momento de no identificaomtua, a ao de Sierra quebrou o senso de identidade do pblico de arte, que se baseia precisamente nas tcitas excluses raciais e de classe, assim como na tentativa de velar o comrcioostensivo. importante que o trabalho de Sierra no tenha atingido uma reconciliao harmoniosaentre os dois sistemas, mas tenha sustentado a tenso entre eles.

    A volta de Sierra para a Bienal de Veneza em 2003 consistia em uma grande performance-instalao no pavilho da Espanha.Wall Enclosing a Space [ Parede Fechando um Espao ] era umtrabalho que envolvia o isolamento de todo o interior do pavilho com blocos de concreto que iamdo teto ao cho. Ao entrar no edifcio, os observadores eram confrontados por um muro mal57O procedimento foi feito de maneira coletiva a portas fechadas em um depsito situado em Arsenale durante a inaugurao da Bienal de Venezadaquele ano. Apesar do nmero de pessoas programadas para fazer parte nessa operao fosse duzentas, apenas 133 participaram de fato devido aoaumento na quantidade de imigrantes chegando, fazendo com que ficasse difcil calcular com preciso quantas j haviam entrado no salo. Issocausou diversos problemas na entrada devido ao fluxo infinito de pessoas que entravam e saam (Sierra citado emSantiago Sierra , p. 46).

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    acabado e ainda assim impenetrvel que tornava as galerias inacessveis. Os visitantes que portassem passaporte espanhol eram convidados a adentrar o espao atravs da parte de trs do prdio onde duas autoridades oficiais da imigrao fiscalizavam os passaportes. Todos osnaturalizados espanhis, entretanto, no podiam entrar no pavilho, em cujo interior encontrava-se

    nada alm de tinta cinza descascando das paredes, que havia sido deixada da exposio do anoanterior. O trabalho era "relacional" no mesmo sentido que Bourriaud faz da expresso, mas problematizava a ideia de que essas relaes fossem fluidas e irrestritas, ao expor como todas asnossas interaes, assim como o espao pblico, so rasgadas por excluses sociais e legais.58

    O trabalho de Thomas Hirschhorn (nascido em 1957) geralmente aborda questes parecidas.Sua prtica convencionalmente percebida como uma contribuio para a tradio da escultura diz-se de seu trabalho que reinventou o monumento, o pavilho e o altar ao imergir o observador em

    meio a imagens que encontra, vdeos e fotocpias agrupadas com o auxlio de materiais baratos e perecveis como papelo, fita crepe e papel alumnio. Alm das referncias ocasionais tendnciade seu trabalho ser vandalizado ou pilhado quando situado fora da galeria, o papel do observador raramente abordado quando se escreve sobre seu trabalho59. Hirschhorn famoso por sua afirmaode que no faz arte poltica, mas faz arte politicamente. Um importante fator dessecomprometimento poltico no tomar a forma da uma ativao literal do observador em umespao:

    No quero convidar ou obrigar os observadores a interagirem com o que eu fao;no quero ativar o pblico. Quero me doar e me engajar a tal ponto que osobservadores confrontados com o trabalho possam participar e se envolver, masno como atores60.

    O trabalho de Hirschhorn representa uma guinada importante na forma como a artecontempornea visualiza o observador, de modo que case com sua afirmao da autonomia da arte.Um dos pressupostos subjacentes em Esttica Relacional a ideia instaurada pela vanguardahistrica e reiterada desde ento de que a arte no deveria ser uma esfera privilegiada e isolada,mas que deveria se fundir com a "vida". Atualmente a arte tornou-se to subordinada vidacotidiana em forma de lazer, entretenimento e negcios , que artistas como Hirschhorn noconsideram seu trabalho como sendo "aberto", nem declaram a exigncia de que o observador o

    58De acordo com concluso de Laclau e Mouffe, a poltica no deveria se encontrar na postulao de uma essncia do social, mas, ao contrrio, naafirmao das incertezas e da ambiguidade de toda essncia e no carter constitutivo da diviso social e do antagonismo. Ver Laclau e Mouffe,Hegemony, p. 193.59O exemplo mais significativo dessa abordagem de Benjamin H. D. Buchloh, Cargo and Cult: The Displays of Thomas Hirschhorn, Artforum(November 2001). A localizao perifrica das esculturas de Hirschhorn levou algumas vezes ao roubo de seu contedo, mais notavelmente emGlasgow, 2000, antes mesmo da abertura da exposio.60Hirschhorn, entrevista com Okwui Enwezor, inThomas Hirschhorn: Jumbo Spoons and Big Cake (Chicago: Art Institute of Chicago, 2000), p. 27.

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    complete, j que a poltica desse trabalho advm, em vez disso, de como o trabalho feito:

    Fazer arte politicamente significa escolher materiais que no intimidem, umformato que no domine, um dispositivo que no seduza. Fazer arte politicamente

    no se submeter a uma ideologia, nem denunciar o sistema, em oposio a assimchamada "arte poltica". trabalhar com a mais total energia contra o princpio de"qualidade"61.

    Um discurso democrtico perpassa o trabalho de Hirschhorn, mas ele no se manifesta atravs daativao literal do observador: em vez disso, ele aparece nas decises referentes ao formato,materiais e localizao do trabalho, como seus "altares", que imitam memoriaisad hoc com flores e

    brinquedos em locais de acidentes nas periferias da cidade. Nesses trabalhos como nas instalaes Pole Self e Laundrette , ambos de 2001 , imagens, textos, propagandas e fotocpias encontradasso justapostas para contextualizar a banalidade do consumo e atrocidades polticas e militares.

    Muitas das preocupaes de Hirschhorn aparecem ao mesmo tempo no trabalho BatailleMonument (2002), feito para a Documenta XI . Localizado em Nordstadt, um subrbio de Kassel amuitos quilmetros de distncia dos locais principais da Documenta , Monument compreendia trsinstalaes em grandes cabanas improvisadas, um bar administrado por uma famlia local e umaescultura de rvore, todas instaladas no gramado que rodeava dois projetos de habitao. As cabanasforam construdas a partir dos materiais de uso recorrente de Hirschhorn: aglomerados de madeira, papel alumnio, filme plstico e fita crepe. A primeira abrigava uma biblioteca de livros e vdeosagrupados em torno de cinco temas de Bataille: palavras, imagens, arte, sexo e esporte. Diversossofs gastos, uma televiso e um vdeo tambm ficavam disponveis e toda a instalao foidesenvolvida para facilitar a familiarizao com o filsofo de quem Hirschhorn afirma ser um "f".As duas outras cabanas abrigavam um estdio de televiso e uma instalao de informaes sobre avida e a obra de Bataille. Para conseguir chegar a Bataille Monument , os visitantes tinham que participar em mais um aspecto do trabalho: conseguir um txi de uma empresa turca que foicontratada pela Documenta para transportar seus visitantes at o local do trabalho e de volta. Osobservadores ficavam, ento, algum tempo sem poder sair deMonument at que um txi de voltaficasse disponvel e durante esse perodo acabavam inevitavelmente indo ao bar.

    Ao localizar Monument no meio de uma comunidade cuja etnia e status econmico no eraconsiderada como pblico-alvo da Documenta , Hirschhorn planejou uma aproximao curiosa entreo fluxo de entrada de turistas de arte e os residentes da regio. Em vez de fazer a populao local se

    61Ibid., p. 29. Hirschhorn se refere aqui ideia de qualidade apoiada por Clement Greenberg, Michael Fried e outros crticos como critrio de julgamento esttico. Eu gostaria de distanciar meu uso de qualidade (como por exemplo em aqualidade das relaes na esttica relacional)daquela a que alude Hirschhorn.

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    sujeitar ao que ele chama de "efeito zoolgico", o projeto de Hirschhorn fez com que os visitantes que se sentissem como intrusos infelizes. De forma a quebrar ainda mais os padres luz das pretenses intelectuais do universo da arte internacional,Monument de Hirschhorn considerouseriamente os habitantes locais como potenciais leitores de Bataille. Esse gesto induziu uma gama

    de respostas emocionadas entre os visitantes, incluindo acusaes de que o gesto de Hirschhorn erainadequado e paternalista. Esse mal-estar revelou o frgil condicionamento da identidade que ouniverso da arte construiu para si mesmo. O complicado jogo de mecanismos identitrios edesidentitrios em operao no contedo, na construo e na localizao do trabalho BatailleMonument foram radicais, promovendo rupturas e provocando pensamentos: o "efeito zoolgico",nesse caso, funcionava numa via de mo dupla. Em vez de oferecer, como afirma o catlogo daDocumenta, uma reflexo sobre o "compromisso da comunidade", Bataille Monument serviu para

    desestabilizar (e portanto liberar potencialmente) qualquer noo de identidade comunitria, ou oque quer que signifique ser um "f" de arte e filosofia.Um trabalho como Bataille Monument depende de seu contexto para que tenha impacto, mas,

    teoricamente, ele poderia ser realizado novamente em qualquer lugar, em circunstnciasequivalentes. Outro fator importante que do observador no se exige uma participao literal(como comer macarro ou ativar uma escultura, por exemplo) mas pedido que seja um visitantezeloso e reflexivo:

    No quero fazer um trabalho interativo, quero fazer um trabalho ativo. Para mim,a atividade mais importante que um trabalho de arte pode provocar a atividadede pensar. O trabalho Big Electric Chair de Andy Warhol (1967) me faz pensar,mas uma pintura numa parede de museu. Um trabalho ativo exige queeu possame doar antes de qualquer coisa62.

    A postura independente tomada por Hirschhorn em seu trabalho apesar de produzidacoletivamente, sua arte produto da viso de um nico artista implica a reintroduo de um graude autonomia arte. Da mesma maneira, o observador no mais fica coagido a cumprir exignciasinterativas do artista, mas pressuposto como um sujeito de pensamento independente, o que um pr-requisito essencial para a ao poltica: "refletir e pensar criticamente ser ativo, fazer perguntas despertar para a vida"63. Bataille Monument mostra que a instalao e a performanceagora se encontram a uma distncia significativa dos apelos das vanguardas para uma juno entrearte e vida.

    62Thomas Hirschhorn, inCommon Wealth , ed.Morgan, p. 63.63 Ibid., p. 62.

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    Antagonismo relacional

    Meu interesse pelo trabalho de Thomas Hirschhorn e de Santiago Sierra deriva no apenas de suaabordagem mais incisiva e subversiva das "relaes" do que aquela proposta por Bourriaud, mas

    tambm por sua distncia dos projetos de arte pblica engajados que se espalharam sob a gide do"novo estilo de arte pblica". Entretanto, o fato de os trabalhos de Sierra e Hirschhorndemonstrarem de melhor maneira a democracia faz deles melhores trabalhos de arte? Para muitoscrticos a resposta seria bvia: claro que sim! Mas o simples surgimento dessa questo em simesmo sintomtico de tendncias mais amplas na crtica de arte contempornea: hoje, julgamentosmorais, polticos e ticos vieram para preencher o vcuo de julgamento esttico de uma forma queera impensvel h quarenta anos. Isso acontece em parte porque o ps-modernismo atacou a prpria

    noo de julgamento esttico e em parte porque a arte contempornea solicita uma interao literaldo observador de formas cada vez mais elaboradas. Ainda assim, o "nascimento do observador" (eas promessas extasiantes de emancipao que o acompanham) no repensaram os apelos para umaelevao dos critrios, que simplesmente continuam retornando de outras formas.

    No ser possvel, nesse artigo, tratar dessa questo com a devida ateno. Gostaria, portanto,apenas de pontuar que se os trabalhos que Bourriaud considera exemplares de "esttica relacional"desejam ser politicamente considerados, ento essa proposio precisa ser seriamente abordada.Existe uma longa tradio de participao do observador e de ativao do pblico nos trabalhos dearte que atravessam diversas mdias desde o teatro experimental alemo de 1920 ao cinemanew-wave e nouveau roman de 1960, da escultura minimalista s instalaes ps-minimalistas de 1970,da escultura social de Beuys s performances engajadas de 1980. No mais suficiente dizer quesimplesmente ativar o observador um ato democrtico, pois cada trabalho de arte at mesmo omais "aberto" deles determina antecipadamente a profundidade de participao do observador 64.Hirschhorn diria que tais simulaes de emancipao no so mais necessrias: toda arte sejaimersiva ou no pode ser uma fora crtica que se apropria de valores e os redistribui,distanciando nossos pensamentos do consenso predominante preexistente. As tarefas que secolocam diante de ns atualmente so analisar como a arte contempornea se dirige ao observador eavaliar aqualidade das relaes com o pblico que ela produz: a posio do sujeito que qualquer trabalho pressupe, as noes democrticas que sustenta e como essas se manifestam na experinciado trabalho.

    Pode-se afirmar que os trabalhos de Hirschhorn e Sierra, do modo como os apresentei, no

    64Faz com que eu me lembre do elogio de Walter Benjamin aos jornais, porque solicitam opinies do leitor (atravs daseo de cartas) e portanto elevam-nos ao status de colaboradores: O leitor fica a qualquer momento pronto paracomear a escrever, afirma ou seja, descrever, mas tambm prescrever... ele ganha acesso autoria (Benjamin,The Autor as Producer in Benjamin, Reflections [Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, Inc., 1978], p. 225). Aindaassim o jornal mantem um editor e a seo de cartas no passa de uma entre um amontoado de pginas autoraissubmetidas apreciao desse editor.

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    esto mais presos direta ativao do observador ou sua participao literal no trabalho. Isso noquer dizer que esses trabalhos sejam um retorno ao tipo de autonomia do alto modernismodefendida por Clement Greenberg, mas, em vez disso, a uma imbricao mais complicada do sociale do esttico. Nesse modelo, o cerne da resoluo impossvel de que depende o antagonismo

    refletido na tenso entre arte e sociedade concebidas como esferas mutuamente excludentes umatenso crtica e reflexiva que os trabalhos de Sierra e Hirschhorn compreendem e reconhecemcompletamente65.

    Sob essa perspectiva, encontrar to frequentemente os temas de obstruo ou bloqueionos trabalhos de Sierra menos um fator de retorno recusa modernista como defendido por Theodor Adorno, do que uma expresso das barreiras entre o social e o esttico depois de um sculode tentativas de fundi-las66. Nessa exposio no Kunst-Werke em Berlim, os observadores

    confrontaram-se com uma srie de caixas de papelo improvisadas e cada uma delas escondia umrefugiado checheno que pedia asilo na Alemanha67. As caixas eram uma releituraarte povera dacelebrada escultura Die (1962) de 2 x 2m, que Michael Fried descreveu de forma clebre comocapaz de exercer o mesmo efeito no observador da presena silenciosa de outra pessoa"68. Notrabalho de Sierra, essa presena silenciosa era literal: j que contra a lei que na Alemanhatrabalhadores ilegais sejam pagos por trabalho, a situao dos refugiados no podia ser anunciada pela galeria. Seu silncio foi exagerado e exacerbado por sua invisibilidade literal sob as caixas de papelo. Em tais trabalhos, Sierra parece afirmar que o corpo fenomenolgico do minimalismo politizado precisamente pelaqualidade de sua relao ou falta de relao com outras pessoas. Nossa resposta ao testemunharmos os participantes nas aes de Sierra estejam eles olhando paraa parede, sentados dentro de caixas ou tatuados com uma linha muito diferente da "sensao deunio" da esttica relacional. O trabalho no oferece uma experincia de empatia humanatranscendente que ameniza a estranha situao nossa frente, mas uma no identificao racial eeconmica pontual: "esse no sou eu". A persistncia dessa frico, sua estranheza e desconforto,alertam-nos para o antagonismo relacional do trabalho de Sierra.

    Os trabalhos de Hirschhorn e Sierra se posicionam contra as reivindicaes da estticarelacional de Bourriaud, as comunidades microutpicas de Tiravanija e o cenrio formalista deGillick. O posicionamento "de bom moo" adotado por Tiravanija e Gillick so refletidos em sua presena ubqua na cena artstica internacional e sua condio como favoritos constantes de alguns

    65 Como o social est permeado pela negatividade ou seja, pelo antagonismo , ele no atinge o status de transparncia, de presena total, e aobjetividade de suas identidades tornou-se constitutiva do social (Laclau e Mouffe, Hegemony , p. 129).66O bloqueio ou impasse um assunto recorrente no trabalho de Sierra, assim como em68 People Paid to Block the Entrance to Pusan's Museum of Contemporary Art, Korea (2000) ou465 People Paid to Stand in a Room at the Museo Rufino Tamaya, Mexico City (1999).67Workers Who Cannot Be Paid, Remunerated to Remain Inside Cardboard Boxes , Kunst-Werke, Berlim, (setembro de 2000). Seis trabalhadores permaneceram dentro de caixas durante quatro horas por dia pelo perodo de seis semanas.68Fried, Art and Objecthood, Artforum (Summer 1967), reimpressoMinimal Art , ed. Gregory Battcock (Berkeley: University of California Press,1995), p. 128.

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    curadores, que se tornaram conhecidos por promoverem sua seleo de artistas preferidos (e portanto tornando-se eles mesmos estrelas de brilho prprio). Em tal situao to confortvel, a arteno sente a necessidade de se defender e se rende ao entretenimento compensatrio (eautoindulgente). Os trabalhos tanto de Hirschhorn quanto de Sierra so melhor arte no por serem

    simplesmente melhor poltica (apesar de ambos artistas agora terem igual grande visibilidade no principal circuito da arte). Os trabalhos deles reconhecem as limitaes do que possvel como arte("Eu no sou um animador, professor, nem assistente social", afirma Hirschhorn) e sujeitam aescrutnio todas as afirmaes fceis de uma relao transitiva entre arte e sociedade. O modelo desubjetividade que ancora sua prtica no o sujeito fictcio e completo de uma comunidadeharmoniosa, mas um sujeito dividido, de identificaes parciais, abertas ao fluxo constante. Se aesttica relacional requer um sujeito unificado como pr-requisito para uma comunidade-como-

    unidade, ento Hirschhorn e Sierra fornecem uma modalidade de experincia artstica maisadequada para o sujeito incompleto e dividido de hoje. O antagonismo relacional a que me refirono seria baseado na harmonia social, mas na exposio daquilo que reprimido ao se sustentar uma aparncia de harmonia. Ele, portanto, proveria bases mais concretas e polmicas para repensar nossa relao com o mundo e uns com os outros.