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11 edio Primeira edio, 1982 Editora Brasiliense Rua da Consolao, 2697 So Paulo SP Fone (011) 280-1222

NDICE

Direito e lei ........................................................................................................................... 3 Ideologias jurdicas ............................................................................................................... 7 Principais modelos de ideologia jurdica .............................................................................. 14 Sociologia e direito .............................................................................................................. 30 A dialtica social do direito .................................................................................................. 42 Indicaes para leitura.......................................................................................................... 59

DIREITO E LEIA maior dificuldade, numa apresentao do Direito, no ser mostrar o que ele , mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel. Se procurarmos a palavra que mais freqentemente associada a Direito, veremos aparecer a lei, comeando pelo ingls, em que law designa as duas coisas. Mas j deviam servir-nos de advertncia, contra esta confuso, as outras lnguas, em que Direito e lei so indicados por termos distintos: lus e lex (latim), Derecho e ly (espanhol), Diritto e legge (italiano), Droit e lo (francs), Recht e gesetz (alemo), Pravo e zakon (russo), Jog e trveny (hngaro) e assim por diante. Noutra passagem deste livrinho, teremos de enfre ntar a sugesto do grego, em que nomos (lei) tambm no se identifica, sem mais, com o Direito e Dikaion prope a questo do Direito justo. As relaes entre Direito e Justia constituem aspecto fundamental de nosso tema e, tambm ali, muitas nuvens ideolgicas recobrem a nua realidade das coisas. Em todo caso, no se trata dum problema de vocabulrio. A diversidade das palavras atinge diretamente a noo daquilo que estivermos dispostos a aceitar como Direito. Por isso mesmo, os autores ingleses e americanos tem de falar em Right, e no law, quando pretendem referir-se exclusivamente ao Direito, independente da lei ou at, se for o caso, contra ela (isto no significa, note o leitor, que o verdadeiro Right no possa ser um Direito legal, porm que ele continuaria a ser Direito, se a lei no o admitisse. A lei sempre emana do Estado e permanece, em ltima anlise, ligada classe dominante, pois o Estado, como sistema de rgos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econmico, na qualidade de proprietrios dos meios de produo. Embora as leis apresentem contradies, que no nos permitem rejeit-las sem exame, como pura expresso dos interesses daquela classe, tambm no se pode afirmar, ingnua ou manhosamente, que toda legislao seja Direito autntico, legtimo e indiscutvel. Nesta ltima alternativa, ns nos deixaramos embrulhar nos pacotes legislativos, ditados pela simples convenincia do poder em exerccio. A legislao abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto , Direito propriamente dito, reto e correto, e negao do Direito, entortado pelos interesses classsticos e caprichos continustas do poder estabelecido. A identificao entre Direito e lei pertence, alis, ao repertrio ideolgico do

Estado, pois na sua posio privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as

contradies, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali imaculadamente jurdico, no havendo Direito a procurar alm ou acima das leis. Entretanto, a legislao deve ser examinada criticamente, mesmo num pas socialista, pois, como nota a brilhante colega Marilena Chau, seria utpico/iluso) imaginar que, socializada a propriedade, estivesse feita a transformao social completa. Isto acentuado, tambm, com referncia ao Direito, pelo jurista hngaro Zoltn Pteri, quando assinala que as leis dum pas socialista podem no exprimir os resultados da evoluo social visada pelos padres atualizadores do socialismo. Ali t ambm surgem leis que c are cem d e autenticidad e e adeq uao e esc apam ao q u e verdadeiro e correto juridicamente. Em que critrios poderemos buscar o meio de avaliao deste elemento jurdico, para aplic-lo considerao das leis, precisamente a questo para a qual se encaminha o nosso itinerrio, neste livrinho, e que aparecer nas suas concluses. Repare o leitor na arrogncia com que todo governo mais decididamente autoritrio repele a contestao (como se as remodelaes institucionais no fossem uma proposta admissvel e at parcialmente reconhecida em leis no caso das emendas constitucionais, por exemplo); na pretenso do poder que, cedendo abertura inevitvel, q uer, depois, controlar o dimetro, a seu gosto; na irritao com que fala em radicalismo d e toda oposi o q u e ame a c trocar, mesmo pelas urnas, o estado de e coisas presente; nas salvag uardas com q u e pretende garantir o status quo (isto , na estrutura implantada, os esquemas vigentes); na astcia que procura separar os confiveis (isto , os grupo s e pessoas qu e so vinho d a mesma pipa) e os no confiveis(isto , os grupos e pessoas que propem alguma forma de reestruturao social, mesmo quando o fazem com a recomendao de meios pacficos). Nisto, porm, o Direito resulta aprisionado em conjunto de normas estatais, isto , de padres de conduta impostos pelo Estado, com a ameaa de sanes organizadas (meios repressivos expressamente indicados com rgo e procedimento especial de como aplicao). No entanto, como notava o lder marxista italiano,Gramsci, a viso dialtica precisa alargar o foco do Direito, abrangendo as presses coletivas (e at, veremos, as normas no - estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade civil (nas instituies no ligadas ao Estado) e adotam posies vanguardeiras, como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associaes profissionais e culturais e outros veculos de engajamento progressista. O Direito autntico e global no pode ser isolado em campos de concentrao legislativa, pois indica os princpios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurdico, e que pode, ou no, transportar as melhores conquistas.

Isto depende, claro, de que Estado, concretamente, surge a legislao - se ele autoritrio ou democrtico; se reveste uma estrutura social espoliativa ou tendente justia social efetiva e no apenas demaggica e palavrosa; se a classe social que nele prevalece a trabalhadora ou a capitalista; se as bases dominam o processo poltico ou a burocracia e a tecnocracia servem ao poder incontrolado; se os grupos minoritrios tm garantido o seu direito diferena ou um rolo compressor os esmaga; se, em geral, fic am resg uardados os Direitos (no menos Direitos e at supra-estatais; isto , com validade anterior e superior a qualquer lei), chamados Direitos Humanos. Estes, como veremos, conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da Histria, para transformarse em opo jurdica indeclinvel. E condenam, evidente, qualquer Estado ou legislao que deseje paralisar o constante progresso, atravs das ditaduras burocrticopoliciais, sejam elas cnicas e ostensivas ou hipcritas e disfaradas. Uma exata concepo do Direito no poder desprezar todos esses aspectos do processo histrico, em que o crculo da legalidade no coincide, sem mais, com o da legitimidade, como notava, entre outros, inclusive o grande jurista burgus Hermann Heller. Diramos at que, se o Direito reduzido pura legalidade, j representa a dominao ilegtima, po r fora desta mesma su posta identidade; e este Direito passa, ento , das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotrio duma pseudocincia, que os juristas conservadores, no toa, chamam de dogmtica. Uma cincia verdadeira, entretanto, no pode fundar-se em dogmas, que divinizam as normas do Estado , transformam essas prticas pseudocientficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominao e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos. Em muitos pases, inclusive no Brasil, h dispositivos legais que contrastam com a Declarao Universal dos Direitos do Homem. Isto j foi reconhecido, entre ns, pelo atual presidente do Supremo Tribunal, Ministro F. M. Xavier de Albuquerque, quando tentou, em voto famoso, na justia eleitoral, encaminhar uma jurisprudncia (deciso uniforme, dada pelos Tribunais, a questo de Direito) que situasse aquela Declarao, como devido, acima de qualquer desvio legislativo. Acentuou, ento, o destacado juiz liberal que a Declarao dos Direitos d o Homem captulo duma evidente Constituio d e t odos os povos q u e ainda no

existe (como lei formalizada), mas orienta su periormente a capta do o Direito. Sob o ponto de vista do socialismo, no outro o posicionamento de Ernst Bloch, o filsofo marxista alemo, q uand o afirma q u e a dignidade impossvel, sem a libertao econmica, mas a liberta econm ica imp ossvel tambm, se o desaparece a causa dos Direitos do Homem. Estes dois resultados no nascem, automaticamente, do mesmo ato, mas

reciprocamente se reportam um ao outro. No h verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos, sem o fim da explorao; no h fim verdadeiro da explorao, sem o estabelecimento dos Direitos Humanos. Da a importncia da reviso crtica, inclusive numa legislao socialista. Nosso objetivo perguntar, no sentido mais amplo, o que Direito (com ou sem leis), mas preciso esclarecer, igualmente, que nada , num sentido perfeito e acabado; que tudo , sendo. Queremos dizer, com isto, que as coisas no obedecem a essncias ideais, criadas por certos filsofos, como espcie de modelo fixo, um cabide metafsico, em que penduram a realidade dos fenmenos naturais e sociais. As coisas, ao contrrio, formam-se nestas prprias condies de existncia que prevalecem na Natureza e na Sociedade, onde ademais se mantm num movimento constante e contnua transformao. E deste modo que elas se entrosam na totalidade dos objetos observveis e das foras naturais e sociais, que os modelam e orientam a sua evoluo. Cada fenmeno (fenmeno , etimologicamente, coisa que surge) pode, ento, revelar o seu fundamento e sentido, que s emerge em funo daquela totalidade mvel. Isoladamente, cada um perde a significao prpria e a conexo vital, assim como o rgo sem o organismo em que funciona, ou o homem, sem a sociedade, fora da qual ele no existe humanamente e regride na escala zoolgica. Nesta perspectiva, quando buscamos o que o Direito , estamos antes perguntando o que ele vem a ser, nas transformaes incessantes do seu contedo e forma de manifestao concreta dentro do mundo histrico e social. Isto no significa, porm, que impossvel determ inar a es sncia d o Direito - o que, apesar de tudo, ele , enquanto vai sendo: o que surge de constante, na diversidade, e que se denomina, tecnicamente, ontologia. Apenas fica ressalvado que uma ontologia dialtica, tal como indicava o filsofo hngaro, Lukcs, tem base nos fenmenos e a partir deles q u e procura ded uzir o ser d e alguma coisa, buscado, assim, no interior da prpria cadeia de transformaes.

IDEOLOGIAS JURDICASComearemos recapitulando, abreviadamente, os tipos de ideologia jurdica encontrados no segmento da Histria que se estende da Antigidade aos nossos dias no panorama geogrfico denom inado, segundo con ven o muito comum, d e Ocidental. A amostra suficientemente ampla (abrangendo mais ou menos 25 sculos) para servir como prova de q ue, nas ideolo gias, a essncia do Direito vai transparecendo, embora de forma distorcida. incompleta ou

Entretanto, vamos abrir uma seo preliminar, a fim de esclarecer em que sentido estamos empregando o termo - ideologia -, que utilizado por diferentes autores, numa variedade considervel de significados. Desta maneira, ser possvel mostrar que as abordagens diversas no se excluem reciprocamente, o mesmo fenmeno. Ideologia significou, primeiramente, o estudo da origem e funcionamento das idias em relao aos signos que as representam; mas, logo, passou a designar essas idias mesmas, o conjunto de idias duma pessoa ou grupo, a estrutura de suas opinies, organizada em certo padro. Todavia, o estudo das idias e seus conjuntos padronizados comeou a destacar as deformaes do raciocnio, pelos seus contedos e mtodos, distorcidos ao sabor de vrios condicionamentos, fundamentalmente sociais. Por outras palavras, descobriu-se que a imagem mental no corresponde exatamente realidade das coisas. Esta verificao era irresistvel, na anlise das ideologias, e por isto mesmo o escritor francs Stendhal ficou muito irritado ante a mera proposta de um estudo desse tipo. No muito agradvel saber que andamos iludidos e Stendhal chegou a desabafar-se de forma pitoresca: u m tratado d e ideolo gia u m desaforo! Ento pensam q u e eu no raciocino corretamente?! Alis, isto mesmo qu e ocorre: ning um perfeio e h ra ciocina com absoluta mas ao contrrio, se integram, representando, simplesmente, modos distintos de colocar-se o observador perante

sempre uma boa margem de deformaes, a que no escapam as prprias cincias. Queremos dizer que tambm nestas se intromete certo grau de ideologia, afetando as premissas (princpios que servem de base a um raciocnio) e as concluses a que chegam os cientistas. Assim, no d esenvolv imento d e suas pesquisas sobre o q u e chama

discurso competente, Marilena Chau mostrou, com a certo, d e q u e maneira a cincia no s carreg a elementos ideolgicos no seu interior, mas at serve dominao social dos donos d o poder, quando impem aq ueles falsos conte dos prxis social. Basta pensar, por exemplo, no q u e faz em os Chicag o boys, criados na incubadora d o e conom ista Friedman e, depois,

usados como assessores cientficos d o autoritarismo ch ile no ou at na poltica scioe conm ica d a S ra. Thatcher, a dama d e ferro do conservantismo ingls. A partir duma q u o fatal de interferncias ideolgicas (de idias ta preconcebidas e modeladas conforme os posicionamentos classsticos), o estudo das ideolo gias e a crtica do seu teor e efeitos encaminharam-se no sentido de falar da ideologia, no mais como simples conjunto de idias, formando um padro, mas apenas no setor desses conjuntos ou em conjuntos inteiros que carregam e transmitem as deformaes. Desta maneira, surgiu o emprego atual, mais comum, do termo ideologia, como uma srie de opinies que no correspondem realidade. Neste ponto que surgem aquelas diferentes abordagens que j mencionamos. Desprezando matizes e sutilezas, talvez possvel reuni-las em trs modelos principais: a) ideologia como crena; b) ideologia como falsa conscincia; c) ideologia como instituio. Nos dois primeiros, ela considerada em funo dos sujeitos que a absorvem e vinculam; no terceiro procurada na sociedade e independentemente dos sujeitos. A ideologia como crena mostra em que ordem de fenmenos mentais ela aparece. A ideologia como falsa conscincia revela o efeito caracterstico de certas crenas como deformao da realidade. A ideologia como instituio destaca a origem social do produto e os processos, tambm sociais, de sua transmisso a grupos e pessoas. Quando se fala na ideologia como crena, no se faz referncia especial s crenas religiosas, embora estas ltimas possam estar - como efetivamente esto infestadas de elementos ideolgicos. A ideologia como crena ope esta ltima s idias, no sentido que a ambas as palavras dava o pensador espanhol Ortega y Gasset. Por mais direitista que fosse, nem por isto ele seria incapaz de, em muitos pontos, acertar o martelo nos pregos em vez de golpear os dedos. Fazemos esta observao porque notamos que certas pessoas tm o hbito de discordar, em princpio, do nome ou da posio social dos autores, dispensando -se de verificar se, com tudo isso, o que eles dizem a respeito de um tema certo ou errado. J lemos um texto em que toda a filosofia de Kant, a grande figura do idealismo alemo, era explicada, resum id a e liqidad a em d uas palavras: adversrio d e peq ueno-burg uesa. Embora sejamos

Kant, este juzo sumrio parece-nos inaceitvel, porque no explica a diferena entre Kant e outro qualquer pequeno-burgus, no aprecia validamente todas as suas idias, algumas das quais so exatas, nem liqida a sua influncia na histria do pensamento, que vai da direita esquerda, compreendendo, inclusive, no poucos marxistas. Ortega considerava as idias como algo que adquirimos atravs dum esforo

mental deliberado e com o maior grau possvel de senso crtico. As crenas, ao contrrio,

representariam opinies pr-fabricadas, que nos vm pelo contgio do meio, da educao e do lugar que ocupamos na estrutura social. Diz ele que as idias ns temos e nas crenas estamos; isto , nem nos ocorre discuti-las, to bvias nos parecem. E exato que, para Ortega, as crenas podem ser positivas e negativas (ao exame exterior que delas se faa), no se discutind o q ue, se alg um cr (sem refletir sobre isto) q u e a pared e frente intransponvel pelo seu avantajado corpo, faz muito bem quando evita uma topada desastrosa. Mas, em todo caso, a natureza subliminar (inconsciente) das crenas que lhes vai dar uma caracterstica favorecedora da ideologia. Em sntese, diramos que nem toda a crena ideologia (pode ser um resduo vlido de certezas adquiridas), mas toda ideologia se manifesta como crena (na medida em que nesta ficamos, sem verificar se, assim fazendo, adotada a boa ou m posio; simplesmente parece que outra qualquer posio inconcebvel e s pode surgir por burrice, ignorncia ou safadeza dos que a mantm). A ideolo gia, portanto , uma crena falsa, uma evidncia no refletid a que traduz uma deformao inconsciente da realidade. No vemos os subterrneos de irreflexo em que a fomos buscar e, ao contrrio, ela nos traz a iluso duma certeza tal que nem achamos necessrio demonstr-la. Raciocinamos a partir dela, mas no sobre ela, de vez que consider-la como objeto de reflexo e fazer incidir sobre aquilo o senso crtico j seria o primeiro passo da direo superadora, isto , iniciaria o processo da desideologizao. Por isso mesmo, aceitamos, de bom grado, a troca de idias, mas suportamos com dificuldade um desafio s crenas. Quem remexe nelas arrisca-se a receber um xingamento ou um coice. A ideologia, como crena falsa, leva-nos, portanto, abordagem da falsa conscincia. E esta ltima se exprime com tanto mais vigor quanto mais frgeis listo , falsos) so os seus presumidos fundamentos. Estes passam a guiar, ento, as nossas atitudes e raciocnios como evidncias desvairadas. O escrito r francs Alain dizia que se trata dum delrio declamatrio na medida em que repetimos tranqilamente (e, se contestados, repetimos exaltadamente) os maiores e mais convictos despropsitos. Pense o leitor na energia com q u e o racista proclama a superioridade do branco sobre o negro; com que o machista denuncia a inferioridade da mulher diante d o homem; com q u e o burg us atribui

ao radical o rompimento d a paz social (que , na verdade, gozar, sem contestao, os seu s privilgios de classe dominante).

o sossego para

A falsa conscincia introduz-se nas anlises da ideologia, sobretudo a partir das contribuies marxistas. No se trata de m f, assinalam Marx e Engels, de vez que a m f pressupe uma distoro consciente e voluntria; a ideologia cegueira parcial da inteligncia entorpecid a pela propagand a dos q u e a forjaram. O discurso competente, em q u e a cincia

se corrompe a fim de servir dominao, mantm ligao inextrincvel com o discurso conveniente, mediante o qual as classes privilegiadas subst ituem a realidade pela imagem que lhes mais favorvel, e tratam de imp-la aos demais, com todos os recursos de que dispem (rgos de comunicao de massas, ensino, instrumentos especiais de controle social de que participam e, claro, com forma destacada, as prprias leis). Mas a esta altura, sem dvida, j nos deslocamos da natureza e efeitos da ideologia, para as suas origens. Nesta ordem de investigaes tambm grande a influncia do marxismo em todo o pensamento contemporneo. Uma disciplina chamada Sociologia do Conhecimento, cuja finalidade cientfica investigar as razes sociais de qualquer tipo de saber, constitui, quer queiram quer no os seus autores, um dilogo com o marxismo, em que muito mais recebido do que reelaborado. Basicamente, foi o marxismo que props uma explicao das origens da ideologia, apontando os interesses e convenincias dos que controlam a vida social - j que, nesta, se apropriaram dos meios de produo econmica e de tudo o que representa a fora e o poder, inclusive os meios de comunicaes de massas, a organizao do ensino e a produo das leis. As formaes ideolgicas estariam, assim, relacionadas com a diviso de classes, favorecendo uma (privilegiada) e se impondo outra (espoliada na prpria base da sua existncia material). Tal dominao, evidentemente, no ser eterna, pois as contradies da estrutura acabam rompendo a pirmide do poder e, conscientizados, nisto, os que carregam o peso da opresso, abre-se espa o contesta d a ideolo gia o oficial. Mas decerto convm matizar este influxo, na proporo mesma do processo dialtico, que est no cerne do marxismo, apesar de obscurecer-se bastante, quando certas derivadas dele se desviam para a viso dogmtica e mecnica. Engels dizia, com bastante nfase, que o materialismo histrico pretende ser um guia para o estudo, no uma receita fcil a fim de que se derive, sem mais, da estrutura social bsica tudo o que vier a ocorrer. O fato que no se pode reconduzir, em linha reta, qualquer fenmeno ideolgico organizao scio-econmica. H produtos ideolgicos relativamente solveis, sem troca do modo de produo, como os h relativamente indissolveis, mesmo quando a troca se consumou. Exemplo disto o machismo, j citado, que se vai atenuando, em certas sociedades capitalistas, e resiste com mais vigor em determinados pases de socialismo implantado, ao menos quanto base material das relaes de produo. Em todo caso, as ideologias, absorvidas e definidas por este ou aquele sujeito,

no so por ele criadas, mas recebidas. isto que suscita a abordagem da ideologia como instituio, como algo que se cria e se manifesta na sociedade e no na cabea deste ou

daquele indivduo. A ideologia fato social (exterior, anterior e superior aos indivduos), antes de tornar-se um fato psicolgico (enquanto invade a formao mental, entrando, sorrateira, nas profundezas d a mente). Porm no se trata, propriamente, dum aparelho ideolgico, j que esta metfora (significao duma palavra estendida a outra coisa semelhante ao que ela designa) tem o risco de sugerir uma forma, tambm mecnica, de atuao. Neste caso, o homem seria boneco inerte, fatalmente preso s determinaes externas. E quem escaparia para corrigir a deformao ou proclam-la incorrigvel? Alis, existe uma espcie curiosa de maniquesmo (doutrina que v tudo como uma espcie de bangue-bang ue, com os mocinhos d u m lad o e os bandidos d o outro ) na oposio entre ideologia e cincia, que tende a considerar ideologia o saber... dos outros e cincia imaculada o saber de tais maniqueus. Em verdade, as coisas so muito mais complicadas, porque ficamos sempre oscilando entre a crena (iludida) e a cincia (retificadora) que, de qualquer forma, nunca se pe, definitivamente, como perfeita e acabada. E, coletivamente, no participamos duma tragdia, em que todos se agitam em vo, arrastados para a catstrofe inevitvel, como um bando de cegos incurveis: participamos, ao contrrio, de um drama, em que os personagens buscam o seu itinerrio, lutando contra barre iras de todo gnero e com a chance duma vitria final contra o destino (na medida em que temos a possibilidade de transformar a cegueira em miopia e procurar os culos mais aperfeioados para ver o caminho). Marx j lembrava que no somos nem totalmente livres nem totalmente determinados. Se podemos superar as determinaes, elas so, portanto, antes condicionamentos (determinaes vencveis, e no fatais), e assim q u e se entende melhor a posi o d e Marx ao dizer q u e a maneira de su perar as determinaes conscientizlas. A propsito, um autor francs, Cuvillier, j observou que, em textos fundamentais do marxismo, a flexo alem bedin g t (condiciona) tend e a ser trad uzida, inexatamente, como determina. De q ualq uer maneira, a su perao das determinaes j a centu a a participao ativa d o homem e no apenas o funcionamento de mquinas e aparelhos. Por outro lado, h condies sociais que favorecem a conscientizao: elas emergem quando as contradies duma estrutura social se agravam e a crise mais funda torna claros os contrastes entre a realidade e as ideologias. Hoje, o operrio no tira mais

o bon fa zend o uma reverncia ao sr. dr. q u e passa fumand o charu to e com a mais valia no bolso. Ele j percebeu q u e existe alg o errado no sistema, em que o valor dos bens produzidos pelo seu trabalho no corresponde parte que lhe cabe a ttulo de salrio: e precisamente nesta diferena que consiste a mais-valia, cujo destino demasiadamente bvio para que o

trabalhador se conforme com v-la engordar a riqueza do capitalista enquanto a misria do povo se torna cada, vez mais dolorosa. A crise econmica e, mais amplamente, a crise social determinam rachaduras nas paredes institucionais e rompem o verniz das ideologias. Dentro deste clima, no mais possvel o funcionamento, por exemplo, daquela crena de q ue cad a um tem o seu lu gar, como se este fosse imposto pela nature za das coisas por Deus ou pela racional partilha - e no pelos interesses entronizados duma classe dom inante. A propsito d e dar a c ad a um o q u e seu, como principio jurdico, mostrava o grande jursta Joo Mangabeira que expresso muito velha da separao social das classes entre os proprietrios e os no-proprietrios, entre os dom inantes e os espoliados: porq u e se a justia consiste em dar a cada um o que seu, d-se ao pobre a pobreza, ao miservel a misria, ao desgraado a desgraa, que isso o que deles... Nem era seno por isso que ao escravo se dava a escravido, que era o seu, no sistema de produo em que aquela frmula se criou. Mas bem sabeis que esta justia monstruosa tudo pode ser, menos justia. A regra da Justia deve ser a cada um segundo o seu trabalho, como resulta da sentena de So Paulo na carta aos Tessalonicenses, enquanto no se atinge o princpio de a cada um segundo a sua necessidade. A medida que a crise social desenvolve as contradies do sistema, emergem as conscientizaes que apontam os seus vcios estruturais e surge um pensamento de vanguarda, que v mais precisamente onde esto os rombos, superando a ideologia e fazendo avanar a cincia. Um jurista atual no pode mais receber o seu rubi de bacharel, repetindo, com serenidade, a cad a um o q u e seu, como se fosse a serena verdad e d o Direito. A cincia, porm, no ser nunca, repetimos, definitiva, acabada e perfeita. A verdade absoluta - recorda-nos o marxista polons Adam Schaff - apenas um limite ideal, como na srie matemtica, um limite que efetivamente vai recuando cada vez mais medida que avanamos. Isto no quer dizer que as verdades relativas alcanadas pelo homem sejam menos objetivas e vlidas: a opo a fazer, no ta Schaff, pela verdad e mais completa possvel, na etap a atual e, a fim de procur-la, preciso combater em sua origem - a sociedade injusta - e em ns mesmos - pela conscientizao assentada numa prxis libertadora - os fantasmas ideolgicos, a fim de que no nos transformemos naquele tipo de

intelectual atarantado, q u e contesta sem saber bem o q u nem por q ue. Este j foi corretamente visto como a face ex tica d o poder. Em sntese, a formao ideolgica (fato-instituio social), oriunda, em termos gerais, de contradies da estrutura scio-econmica (mas no exclusivamente redutfvel a estas, pois, com relativa independncia, aparece, subsiste ou se dissolve) cristaliza um

repertrio de crenas, que os sujeitos absorvem e que lhes deforma o raciocnio, devido conscincia falsa (isto , a inconscincia de que eles so guiados por princpios recebidos como evidncias e que, na verdade, constituem meras convenincias de classe ou grupo encarapitados em posio de privilgio). No esforo para nos libertarmos desses condicionamentos floresce, por outro lado, uma conscientizao, favorecida, em seu impulso crtico, pelas crises que manifestam as contradies da estrutura social, onde primeiro surgiram as crenas, agora contestadas ou de contestao vivel (se no nos acomodarmos na alienao, desligando a mente do que vai em torno). O grau desta conscientizao, a sua prpria coerncia e persistncia dependem sempre do nosso engajamento numa prxis, numa participao ativa conseqente. No adianta ver q u e o mund o est errado e encolher os ombros, fugin d o para algum paraso artificial, no porre, no embalo, no sexo obses sivo ou na transferncia d equalquer atuao positiva para mais tarde, noutra vida, no alm. E q uando falamos em prxis evidente que ela pode ser tambm de maior ou menor amplitude; mas a atitude modesta, limitada mesmo, j uma forma vlida de participar pelo discurso, pelo voto, pela arregimentao, pela ajuda material e moral a espoliados e oprimidos. Tudo isto se reflete nas ideologias jurdicas. Tal como as outras, elas aparecem dando expresso, em ltima anlise, aos posicionamentos de classe, tanto assim que as correntes d e idias aceitas podem mu dar - e, de fato, mudam conforme esteja a classe em ascenso, relativa estabilidade ou decadncia. Veremos adiante, por exemplo, que a burguesia chegou ao poder desfraldando a bandeira ideolgica do direito natural com fundamento acima das leis - e, tendo conquistado o que pretendia, trocou de doutrina, passando a defender o positivismo jurdico (em substncia, a ideolo gia d a ordem assente). Pu dera! A guitarra legislativa j estava em suas mos. A primeira fase contestou o poder aristocrtico-feudal, na fora do capitalismo em subida, para dominar o Estado. A segunda fez a digesto da vitria, pois j no precisava mais desafiar um poder de que se apossara. da que surge a transformao do grito libertrio (invocando direitos supralegais) em arroto social, de pana cheia (no admitindo a existncia de Direito seno em suas leis). Apesar de tudo, as ideologias jurdicas encerram aspectos particularmente interessantes, alm de traduzirem, conquanto deformados, elementos da realidade. cncava ou convexa, ainda Porque distoro precisamente isto: a imagem alterada, no inventada. O Direito, alongado ou achatado, como reflexo numa superfcie

apresenta certas caractersticas reconhecveis. Resta desentortar o espelho, torn-lo, tanto quanto possvel, plano e abrangedor, dentro das condies atuais de reexame global.

Isto se beneficia, por outro lado, como processo d e conscientizao, d a crise d o Direito isto , desse direito q u e ain d a aparece nos compndios, nos tratados, no ensino e na prtica de muitos juristas; no discurso do poder e at - por lamentvel contgio - no de certos grupos e pessoas de sincero engajamento progressista. Estes ltimos desafiam o estreito legalismo como se ali residisse o Direito inteiro; e, assim, com o desaparecimento de leis que representam mera convenincia e interesse duma ilegtima dominao, pensam que sumir o Direito mesmo. Procuraremos demonstrar, adiante, que isto no exato e que, ao contrrio, andava certo o eminente colega Dalmo Dallari quando, noutro volume desta coleo, escreveu : na realidade, o direito usad o para dom inao e injustia um direito ilegtimo, um falso direito. O q u e se faz, aqui, ampliar, desenvolver partida, este excelente ponto d e

esboando uma abordagem global do Direito, sob o ponto de vista dialtico.

PRINCIPAIS MODELOS DE IDEOLOGIA JURDICANo possvel repassar, agora, todas as ideologias jurdicas, uma por uma. Vamos, portanto, simplificar o imenso repertrio de doutrinas que aparecem, da Antigidade aos nossos dias. Tomaremos apenas dois modelos bsicos, em torno dos quais se polarizam os diferentes subgrupos ideolgicos - a que s faremos um breve aceno, sem descer a pormenores da posio de autores e movimentos. Fundamentalmente, aquelas ideologias situam-se entre o direito natural e o direito positivo, correspondendo s concepes jurisnaturalista e positivista do Direito. A estas duas daremos, portanto, especial ateno, porque a maior parte dos juristas, ainda hoje, adota uma ou a outra, como se, fora de ambas, no houvesse maneira de ver o fenmeno jurdico. certo que muitos autores tradicionais no se julgariam corretamente enquadrados numa dessas duas posies; mas, quando observamos os alicerces da construo que pretende ser diferente, aparece ali a mesma oposio, que se pretendia evitar, entre direito positivo e direito natural. Antes de fazer um exame especial destas duas resistentes concepes, que assinalam a grande ciso das ideologias jurdicas - de um lado, o Direito como ordem estabelecida (positivismo) e, de outro, como ordem justa (iurisnaturalismo), daremos uns exemplos daquelas doutrinas que supostamente fugiram ao dilema. Assim, Miguel Reale, entre outros, recusaria a classificao como positivista e, no entanto, para este filsofo do Direito, na ordem que se encontra a raiz de toda a elaborao jurdica: em tod a a comunidade, mister q ue uma ordem jurdica declare, em ltim a instncia, o q u e lcito ou ilcito. E, para mais enfatiz ar este posicionamento, o mesmo destacado pensador d a direita repete e endossa uma frase d e Hauriou , no sentid o d e q u e a ordem social representa o minimum de existncia e a justia social um luxo, at certo ponto dispensvel.... No se poderia fixar mais claramente a opo positivista. Depois disto, qualquer acrscimo ou matizamento secundrio: permanece, no mago, o compromisso com a ordem estabelecida e as barreiras que ela ope ao Direito justo no seriam jamais transponveis, porq ue, na verdade, para o positivista, a ordem a Justia. Por outro lado, o jurista alemo Hans Welzel afirma expressamente que no iurisnaturalista e, no entanto, admite certos princpios fixos, inalterveis, anteriores

e superiores s leis e que nenhum legislador pode modificar validamente. Por isso mesmo , comumente, classificado como um adepto do direito natural. Somente uma nova teoria realmente dialtica do Direito evita a queda numa das pontas da anttese (teses radicalmente opostas) entre direito positivo e direito natural. Isto,

claro, como em toda superao dialtica, importa em conservar os aspectos vlidos de ambas as posies, rejeitando os demais e reenquadrando os primeiros numa viso superior. Assim, veremos que a positividade do Direito no conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialtica jurdica, sem voar para nuvens metafsicas, isto ,sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histrico, entre espoliados e oprimidos, de um lado, e espoliadores e opressores, de outro. Esta snt ese dialtica ser exposta nas concluses deste livr inho. Por enquanto, vejamos o panorama tal como ele se apresenta nas ideologias jurdicas duma tradio que ainda empolga e divide em faces opostas os cultores rotineiros do Direito; pois, antes de esboar um passo adiante, preciso ter em mente o caminho percorrido pelos antecessores e que, decerto, no foi intil, nem mesmo quando representou uma deformao ideolgica. E a prpria tbua, sobre a qual se balanaram (e balanam ainda) tantos juristas ilustres, que h de servir -nos como trampolim para o salto dialtico. Embora o jurisnaturalismo (a ideologia do direito natural) seja a posio mais antiga (e de nenhum modo int eiramente liquidada) o positivismo que hoje predomina entre os juristas do nosso tempo, seja ele o que assen ta na ordem burguesa e c apitalista, seja o que, como legalismo socialista, representou aq uele mesmo tipo de congelamento caracterstico, por exemplo, no stalinismo, e que ainda prevalece na URSS. Tal congelamento, alis, tende a desaparecer nas mais avan adas construes de uma filosofia jur dica realmente dialtica. Esta inteno superadora, ainda hesitante, muito ntida nos mais avanados escritores atuais da teoria socialista do Direito, que combatem o estreito legalismo, tanto nos pases de modelo socialista implantado, em termos scio-econmicos, como o caso de Imre Szab ou Zoltn Pteri, na Hungria, quanto em autores socialistas que trabalham nos pases de estrutura fundada no capitalismo, como era o caso de Ernst Bloch, na Alemanha, at a sua morte, e ainda o de Michel Miaille, na Frana, em obras mais recentes. A estes dois ltimos faremos referncia especial, a propsito de uma tensa, limitada, mas fecunda recolocao da problemtica do direito natural, sob o ponto de vista do marxismo. De qualquer forma, trataremos, em primeiro lugar, do positivismo, tal qual ele se apresenta nas ideologias burguesas, j que , por assim dizer, o trivial variado da cozinha jurdica, no mundo capitalista que a temos nossa frente. Faremos, aqui, apenas a ressalva de q u e o legalismo socialista apresenta diferenas resultantes d o fato d e q u e socialista,

revestindo, portanto, uma estrutura diversa e socialmente mais avanada; enquanto esquema ou modelo, contudo, vem a dar na mesma, pois que apresenta uma reduo ordem posta e,

portanto, ordem do Estado, aceita, sem mais, e subsiste a restrio que, como tese jurdica, j decai, por isso mesmo, no pensamento de vanguarda. Assim como este, do ponto de vista social mais amplo, tende a procurar outro sistema de reestruturao socialista, de baixo para cima, antes no caminho da autogesto (de que participa o povo mais diretamente) do que na pesada maquinaria autoritria- burocrticaestatal, que estabelece um domnio de cima para baixo, a reflexo socialista mais moderna tende, igualmente, a buscar uma teoria jurdica mais flexvel, e, afinal, propriamente dialtica, em que se liberte daquela noo de Direito como, antes de tudo, direito estatal, ordem estatal, incontrolado. leis e controle

na medida em que o socialismo pende para o democrtico que a teoria correspondente do Direito pende e avana para o combate ao seu confinamento em estatismo, com a subsistncia de opresses vrias (por exemplo, a grupos minoritrios tnicos ou sexuais). Vimos que as duas palavras-chave, definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo, so, para o primeiro, ordem, e, para o segundo, Justia. Isto se esclarece bem nas duas proposies latinas que simbolizam o dilema (aparentemente insolvel) entre ambas as posies: ustum quia iussum (justo, porque ordenado), que define o positivismo, enquanto este no v maneira de inserir, na sua teoria do Direito, a crtica injustia das normas, limitando-se ou a proclamar que estas contm toda justia possvel ou dizer que o problema da injustia no jurdico; e iussum quia iustu m (ordenado representa o porq u e justo), q u e

jurisnaturalismo, para o qual as normas devem obedincia a algum padro superior, sob pena de no serem corretamente jurdicas. Este padro tende, por sua vez, a apresentarse, j dissemos, como fixo, inaltervel e superior a toda legislao, mesmo quando s fala num direito natural varivel. de contedo

Este, que aparece com o jurista alemo Stammler, tambm no altera a postura, uma vez q u e o conte do concebido apenas como variao material de normas, dentro de uma ordem de princpios universais de ordenao. Isto reduz o nmero de princpios de direito natural (que, entretanto, permanecem fixos) e abre caminho a toda espcie de particularizao, q u ea caba entregando os pontos ao Estado; mas tal vicio no , apenas, da construo do Stammler e, sim, como veremos, de praticamente todo o direito natural. O positivismo, de qualquer sorte, uma reduo do Direito ordem

estabelecida; o iurisnaturalismo , ao contrrio, um desdobramento em dois planos: o que se apresenta nas normas e o que nelas deve apresentar-se para que sejam consideradas boas, vlidas e legtimas. Em que medida o jurisnaturalismo cria, no a superao do positivismo, porm antinomia (contradio insolvel entre dois princpios), entre a ordem justa e a ordem

estabelecida, e, por outro lado, se ele consegue, ou no, fundamentar, convincentemente, o plano jurdico superior, que serve de estalo para medir as normas jurdicas encontradas na vida social - eis a duas questes que examinaremos quando vier considerao o prprio direito natural. Por enquanto, verifiquemos as posies e barreiras do positivismo. Ele sempre capta o Direito, quando j vertido em normas; seu limite ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas sociais no-legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula, no Estado, como rgo centralizador do poder, atravs do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se (neste caso, ao Estado deferido o monoplio de produzir ou controlar a produo de normas jurdicas, mediante leis, que s reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos). De todo modo, as normas - isto , como vimos, os padres de conduta, impostos pelo poder social, com ameaa de sanes organizadas (medidas repressivas, expressamente indicadas, com rgo e procedimento especiais de aplicao) - constituem, para o positivismo, o completo Direito. E note-se que, no caso, se trata das normas da classe dominante, revestindo a estrutura social estabelecida, porque a presena de outras normas - de classe ou grupos dominados - no reconhecida, pelo positivismo, como elemento jurdico, exceto na medida em que no se revelam incompatveis com o sistema - portanto, nico a valer acima de tudo e todos - daquela ordem, classe e grupos prevalecentes. Quando o positivista fala em Direito, refere-se a este ltimo - e nico - sistema de normas, para ele, vlidas, como se ao pensamento e prtica jurdicas interessasse apenas o que certos rgos do poder social (a classe e grupos dominantes ou, por elas, o Estado) impem e rotulam como Direito. claro que vai nisto uma confuso, pois tal posicionamento equivale a deduzir todo Direito de certas normas, que supostamente o exprimem, como quem dissesse q u e a c ar aquilo q u e achamos numa lata co m a etiq ueta a c ar, aind a q u e um gaiato l tenha colocado p-de-arroz ou um perverso tenha enchido o recipiente com arsnico. H, porm, vrias espcies de positivismo. Destacaremos, no mnimo, trs: o positivismo legalista; o positivismo historicista ou sociologista; o positivismo psicologista. Vamos explicar, brevemente, em que consistem eles. O positivismo legalista volta-se para a lei e, mesmo quando incorpora outro tipo de norma - como, por exemplo, o costume -, d lei total superioridade, tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido de novo, a ttulo de

exemplo invocar um costume contra a lei. No este, contudo, o nico positivismo.

H, tambm, o positivismo historicista ou sociologista. A modalidade historicista recua um passo e prefere voltar-se para as formaes jurdicas prlegislativas, isto , anteriores lei. Mergulha, ento, nas normas jurdicas no escritas, no organizadas em leis e cdigos, mas admitidas como uma espcie de pro d u to espontneo d o q u e se chama esprito d o povo. Acontece q u e este fantasma, utilssimo ordem dom inante, atribui ao povo os costumes principais (aqueles mores, indicados pelos antroplogos e que so os costumes considerados essenciais para a manuteno da ordem social). Ora, estes mores so sempre os da classe e grupos dominantes, mascarados pelo historicismo positivista sob o rtulo de produtos do esprito d o povo. Desta maneira, no importa muito que se desloque o foco da legislao (imposto pelo Estado) para os mores, de vez que estes, sendo focalizados em termos de mores da classe e grupos dominantes, e o Estado sendo expresso da mesma classe, tambm mesma ordem a que ambos (historicismo e legalismo) se referem e consideram inatacvel. De qualquer forma, quando aparece a legislao estatal, aquelas formulaes pr-legislativas tendem a ceder precedncia s leis e s se aplicam, supletivamente; isto , nas reas em que no h disciplina legislativa. E o caso, por exemplo, do common law angloamericano, direito consuetudinrio (dos costumes), que no prevalece contra lei expressa. A modalidade sociologista de positivismo tem ligao ntima com a historicista (por isto, foram citadas num s grupo), uma vez que apenas uma generalizao do historicismo. Queremos dizer que, em vez de focalizar um direito costumeiro (afinal engolido pelas leis estatais, quando aparecem estas) o sociologismo prope o esquema da abordagem historicista, generalizando-o. Assim, ele se volta para o sistema de controle social, que reveste a ordem estabelecida e na qual o Estado seria apenas um representante daquela ordem, que lhe d substncia, validade e fundamento. De certo modo, ainda mais se destaca, aqui, a dominao classstica, pois fica bem clara a natureza e posio dos grupos e pessoas que encarnam a ordem listo , antes de tudo, a classe dominante, de que o Estado visto como simples porta-voz). A presena de outros projetos, outras instituies, oriundas de outra classe e grupos (no dominantes), desprezada. O Direito aparece to-s como forma de controle social, ligado organizao do poder classstico, que tanto pode exprimir-se atravs das leis, como desprez-las, rasgar constituies, derrubar titulares e rgos do Estado legal, tomando diretamente as rdeas do poder. Estas contradies da classe dominante, no entanto, acabam reforando a dominao, pois o que invoca o novo grupo do poder a mesma ordem social, que entendia

mal defendida pelos seus representantes. assim como se o mandante cassasse os mandatos de seus

procuradores, mais ou menos infiis, com receio de que estes entreguem o ouro aos banidos (do poder), isto , os dominados, qu e devem continuar dominados. V-se, ento, que as contradies superfcie representam uma coerncia mais profunda (a da dominao, claro). No positivismo sociologista a classe dominante (a que ele no alude, por motivos bvios, como tal, preferindo falar na sociedade, como se esta, por presuno inatacvel, estivesse bem defendid a por aq uela classe) q u e pretend e exprimir a cultura e tra a a organizao r seg urana desta social a resg uardar pelos me canismos d e controle e

ordem estabelecida. O comportamento divergente dos grupos e classe dominados, seus padres de conduta (com normas opostas s normas do sistema) so vistos como subculturas, comportamentos aberrantes, antijurdicos, uma patologia q u e constitui problema social a ser tratado com medidas repressivo-educativas para conduzir os transviados caminho. ao bom

Se cresce a contestao, a atitude anmica ( isto , que contesta o nomos, as normas, da ordem estabelecida), as hipocrisias paternalistas logo tiram a mscara, abandonam o mito d a ed ucao dos dominados (seg undo o s padres da classe e grupos dominantes e para melhor servi-los) e sa em para a ignorncia, no sentido po p u d a palavra, isto , lar recorrem porrada, q u e os donos do po der e seu s dc eis servid ores consideram perfeitamente jurdica. Noutras palavras, o positivismo legalista, historicista ou sociologista (os dois ltimos reforando o primeiro, a que se acabam rendendo) canoniza a ordem social estabelecida, que s poderia ser alterada dentro das regras do jogo que esta prpria estabelece... para que no haja alterao fundamental. Alis, se as regras do jogo, apesar de todas as cautelas e salvaguardas, trazem o risco de vitria, mesmo pelas urnas e dentro das canais da lei, de correntes reestruturadoras, o poder em exerccio (pressionado pelas foras do sistema e pelo seu prprio gosto de ficar no topo da pirmide) trata de mudar as ditas regras do jogo, empacotando outro conjunto de normas legais. assim como se o rbitro criasse um novo caso de impedimento, no meio da partida. Isto quando o time que no lhe simptico j via toda defesa adversria furar e cair, diante d o jogador mais gil, q u e est sozinho diante do goleiro e na iminncia de fazer gol.

Alis, s os representantes da ordem estabelecida, chegando ao poder estatal, hesitam ou se revelam mais receptivos presso popular pelas reestruturaes sociais, a mesma classe dominadora no teme substitu-los por outros, mais enrgicos, ainda que, para isto, rompa todo um ciclo de legalidade e substitua a legalidade feita por outra, ento considerada intocvel. E, durante esta substituio, os juristas do positivismo ficam no terrvel suspense, esperando para ver quem vai dar as cartas do jogo; isto , as novas leis, q u e tais

rbulas diplomados e endomingados interpretaro e aplicaro, com a maior cara de pau e todos os balangands d a t cnica jurdica. Se, porm, a situao interna se transmuda e a classe dominante derrotada, mesmo nas urnas, chegando as foras progressistas ao poder, o sistema imperialista de controle internacional no tarda a intervir, fomentando a resistncia (a isto s chama desestabilizar governos), desprezand o o princpio de autodeterm inao dos povos e mandand o din heiro e armas para manter a ordem nos quintais d e su a zona d e influncia. No meio deste jogo violento, o positivismo psicologista desempenha o papel de inocente til. Nele, o esprito do povo no fica pairando na sociedade: baixa na cuca d e um ou mais sujeitos privilegiados. So estes q ue pretendem: 1 . haver descoberto o direito livre dentro d e suas belas almas, revelando um sentimento do direito; ou 2 . q u e deferem aos juzes, como no judge-made law (o direito criado pela magistratura), de certas ideologias norte-americanas, o poder judicial de construir normas, alm e acima do que est nas leis: um direito mais rpido, realista e concreto do q u e o dos cdigos; ou aind a 3 . vo busca duma essncia fenomenolgica d o direito, q u e no tem o romantismo d o direito livre ou o pragmatismo (neste, o critrio d a verdade o sucesso) d o direito dos juzes, mas tambm no rend e mais do que umas fumaas pretensiosas. D tudo no mesmo e o que este buqu de ideologias tem de comum, de psicologista, a transferncia de foco, passando daquele panorama exterior (de leis, controle social, esprito - objetivo - do povo) para as cabe a dos s idelogos. Vejamos um pouco mais de perto o positivismo do terceiro grupo (os positivismos psicolo gistas). O sentimento do direito, procurado numa intui o livre, a caba descobrin do, e no por mera coincidncia, na alma dos pesquisadores, a ideologia jurdica peculiar sua classe e seu grupo, isto , os princpios perfeitamente compatveis com a ordem estabelecida. Comeando nas belas almas, em q u e a ideologia bro ta como uma flor, e idealizando, romanticamente, a dom inao, o sentimento d o direito acaba amadurecendo nos mesmos frutos repressivos. Nem os senhores delicados, do sentimento - nem, por outro lado, os senhores prticos, do direito criado por juzes realistas sequer intentam uma crtica real e profunda de pressupostos estabelecidos pela ordem social dominante. Ao contrrio, eles procuram melhor servi-la, apenas achando que a legislao um caminho muito estreito (bruto, para os sentimentais, ou atrasado, para os realistas), em relao s exigncias de manter a estrutura em perfeito funcionamento, com um pouco de gua com acar ou pondo leo e

peas novas na mquina.

Restam os artifcios da fenomenologia, que tambm um positivismo psicologista. Aqui, h pretenses menos romnticas, mas o processo nem por isto deixa de parecer-nos uma espcie de mgica besta. Sua inteno declarada, alis, seria ultrapassar o psicolo gismo, ir s coisas mesmas, aos fenmenos e, po r assim dizer, descasc-los, at que revelem, no mago, a prpria essncia. Mas, perg untemos: q uais so os fenmenos assim descascados? So os fatos de dominao que os legalismos, historicismos e sociologismos apresentaram como jurdicos, isto , d e novo e sempre, a ordem estabele cid a e seus instrumentos de controle social. Este no jamais questionado e, sim, trabalhado mentalmente pelo fenomenlogo, at q u e s reste a essncia... d a dominao. E qual o processo utilizad o para extrair a essncia? Como que o fenomenlog o pretend e atingir as coisas mesmas? Com a su a viso individ ual, q u e a cab a transferindo para o objeto os prprios elementos ideolgicos do observador. Lukcs observa q u ese trata d uma abertura para o mund o d e um sujeito q u ena verdad e no sai d e si mesmo. Dizendo que se libertou da psicologia e das representaes mentais para ver as coisas no que essencialmente so, o fenomenlogo toma as coisas (no caso, os fenmenos jurdicos) tal como as apresentou u m fato d e dom ina e busca a essncia dele, numa laboriosa o viso, que esquece de tirar os culos, de lentes deformadoras, que a ideologia ps no seu nariz. Finalmente, e muito entusiasmado, grita q u ej morou na essncia daquilo... Nem foi toa que as mais laboriosas pretenses fenomenolgicas, na teoria do Direito, acabaram casando com a teoria pura d e Han s fenomenologia Kelsen: isto , a

jurdica de Kaufmann ou de Schreier no passa de um caminho complicado para o positivismo legalista de Kelsen. Todas as formas do positivismo, assim, rodam num crculo, porque, a partir do legalismo, giram por diversos graus para chegarem ao mesmo ponto de partida, que a lei e o Estado. Em todo esse jogo de positividades manhosas, entretanto, a argcia de Radbruch apontou u m limite: q ue, mesmo no plano ideol gico, o positivismo, q ue diviniza a lei e a ordem como se ali estivesse o Direito inteiro, h de oferecer um qualquer fundamento jurdico para tal ordem, tal Estado produtor de leis, tal privilgio e exclusividade de produzir leis, que seria do Estado. E Radbruch, o grande iurisfilsofo alemo, com certeira malcia nos mostra que o positivismo, neste empenho, pressupe u m pre ceito jurdico d e direito natural, na base d e todas as suas construes, isto , um pre ceito jurdico anterior e su perior ao direito positivo. O que se pretende afirmar assim que, ou o positivismo se descobre

como no-jurdico, fazendo derivar o Direito do simples fato de dominao, ou, para tentar a legitimao da ordem e do poder que nela se entroniza, recorre a um princpio que no o

direito positivo (este direito j feito e imposto, em substncia, pelo Estado?, pois a funo daquele princpio precisamente dar fundamento jurdico ao direito positivo. Afinal de contas, por que se atribui ao Estado o monoplio de produzir Direito, com a legislao? Que razo jurdica legitimaria este privilgio? Nenhum positivista escapa a esta questo: no mximo, ele a transfere para outra sede, isto , procura oferecer sua ideologia jurdica o aval de sua ideologia poltica - o que no deixa de ser engraado em quem se afirma objetivo, isento , at neutro politicamente. U m caso extremo o de Kelsen, a que aludiremos brevemente, porque ele nos conduz aos limites do paradoxo, na sua teimosia positivista. Assim q ue, para conservar aq uele mito d a neutralidade, afirma q u eo Direito apenas uma tcnica de organizar a fora do poder; mas, desta maneira, deixa o poder sem justificao, como que nu e pronto a ferrar todo o mundo, mas de calas arriadas, com perigo para su a dignidade; portanto o mesmo Kelsen a crescenta q u e afora empregad a enq uanto monoplio d a comunidade e para realizar a paz social. Desta maneira, opta pela teoria polftica liberal, que equipara Estado e comunidade, como se aquele representasse todo o povo (ocultando, deste modo, a dominao classstica e dos grupos associados a tais classes). Chama-se, ento , d e paz social a ordem estabelecida (em proveito dos dom inadores e tentando disfarar a luta de classes e grupos). Ora, este artifcio, que pe no Estado sempre a paz e o interesse da comunidade, mais do que poderia engolir um iurisnaturalista consciente. Onde ficam, perante isso, o Direito de resistncia tirania, ao poder usurpado? E a guerra justa contra os Estados imperialistas que atacam naes mais fracas como o lobo ao cordeiro? Junto questo do Estado emerge a da segurana jurdica, outro mimo da ideologia positivista. Afirma-se que h segurana para os cidados, tendo-se em vista que as preceituaes legais estabelecem como todos devem pautar a sua conduta, a fim de evitar as sanes estabelecidas, no caso dum descumprimento dos deveres que as leis impem. Mas haver maior insegurana do que uma determinao sem limites, atravs da legislao, do que permitido ou proibido, alm do mais realizada por um certo poder que se dispensa de provar a prpria legitimidade? Este poder, ao contrrio, se presume legtimo, a partir do fato de que est em exerccio e chegou posio desempenhada, seguindo os processos que ele prprio estabelece, altera e, de todas as formas, controla a seu bel-prazer.

Um crculo de legalidade (alis, provindo de uma ruptura, mais prxima ou mais remota, de outra legalidade) no , em si, prova de coisa alguma, quanto legitimidade do poder, j o repetia, entre outros, Heller, conforme lembramos. Qualquer tirania pagava com gosto (e paga mesmo) este pequeno tributo, que cobrir de leis o corpo nu do poder,

pensando que isto basta para torn-lo inatacavelmente jurdico. Radbruch, que teve de enfrentar a perseguio de Hitler, advertia, tambm, que uma legalidade no suficiente, pois, em situaes comuns, ela , em todo caso, o revestimento duma estrutura de dominao, que preciso avaliar criticamente e, em situa es extremas, pod e ser constitud a pelos editos d e um paranico, isto , pelas leis d e um doente mental com mania d e grandeza. Volta sempre a questo da fonte suprema de qualquer Direito, inclusive do direito de produzir normas legais. A idolatria da ordem nunca elimina (apenas tenta disfarar) o problema da Justia. Que ser, entretanto, esta Justia, que se pe no centro das preocupaes iurisnaturalistas? De que maneira, mesmo a este nvel ideolgico, emerge a dialtica da ordem e da Justia? Ressalvemos que, neste ponto, estamos fazendo abstrao do posicionamento concreto e realmente dialtico do problema (que s pode ser focalizado a partir da dialtica social, e no apenas ideolgica, do Direito). O nosso objetivo, por enquanto, mostrar que as ideologias jurdicas refletem, apesar de tudo, algo mais profundo, nelas tambm relativamente deformado. O direito natural apresenta-se, fundamentalmente, sob trs formas, todas elas procurando estabelecer o padro jurdico, destinado a validar as normas eventualmente produzidas, ou explicar por que elas no so vlidas. As trs formas so: a) o direito natural cosmolgico; b) o direito natural teolgico; c) o direito natural antropolgico. A primeira liga-se ao cosmo, o universo fsico; a segunda volta-se para Deus; a terceira gira em torno do homem. Dizem q u e o direito natural tem origem na prpria natureza das coisas, n a ordem csmica, do universo; e da vem a expresso direito natural, isto , buscado na natureza. Entretanto, se nos aproximarmos das concepes d o q u e tomad o como natureza das coisas, verificamos q u e esta apenas invocad a para justificar uma determ inada ordem social estabelecida, ou revelar o choque de duas ordens tambm sociais. Notemos, por exemplo, no primeiro coisas da caso, a atribuio ao direito natural, isto , natureza das

escravido, naquelas sociedades em que o escravagismo o modo de produo econmica e, portanto, a base da estrutura assente. No segundo caso, temos, por exemplo, o conflito entre os costumes tradicionais religiosos, invocados por Antgona na tragdia grega de Sfocles, e a lei da Cidade-Estado representada por Creonte. Desde este ltimo ponto se esboa a especial tenso do iurisnaturalismo, que

vive oscilando entre os dois plos, j entrevistos por Mannheim, socilogo alemo, e mais recentemente focalizados pelo marxista Miaille: o direito natural conservador e o direito natural de combate. Porque, nota este ltimo autor, todos os mov imentos sociais fundaramse num Direito q u e exprim ia a sua prpria situao e reivindicaes. Assim que Miaille

vai recomendar um novo direito natural de combate e concentrad o na luta d e classes e na liberao de grupos oprimidos. Temos insistido, invariavelmente, nesta referncia a classes e grupos, e preciso explicar que ela distingue o aspecto bsico da oposio entre uma classe dominante, espoliadora, e uma classe dominada, espoliada, paralelamente oposio entre grupos opressores e oprimidos, esta ltima oposio no estando diretamente ligada outra. Assim q u e Miaille direito re cord a os conflitos d e gru pos, em termos de minorias exigin d o o

diferena, um contraste colateral (d e alc ance jurdico, mas no vinculado questo scio- econmica apenas): minorias regionalistas, minorias sexuais, minorias tnicas. Assim como deixamos registrado, quanto s ideologias, o contraste no representa, sem mais, um choque classstico, podendo dissolver-se ou subsistir, independentemente da troca do modo de produo. Citamos, por exemplo, o machismo, que mantm a opresso da mulher ou dos homossexuais, em sociedades cuja base econmica j alterou o sistema classstico e a espoliao maior da injusta distribuio da propriedade. As limita es q u e um novo direito natural apresentaria sero indicadas no final deste captulo; mas, de qualquer forma, o direito natural de combate pretende fundar um quarto modelo, que se poderia chamar de direito natural histrico-social e que nada tem a ver com os tipos tradicionais, cosmolgicos, teolgico e antropolgico. Vimos em que consiste a forma cosmolgica; a teolgica pretende deduzir o direito natural da lei divina. Esta iria descendo, como que por uma escada: Deus manda; o sacerdote abenoa o soberano; o soberano dita a particularizao dos preceitos divinos, em suas leis humanas... e o povo? A este s cumpriria aceitar, crer e obedecer. claro que sempre fica admitida, em tese, a possibilidade dum erro dedutivo, em que a lei humana, por malcia ou c eg ueira, em vez d e concretizar os vagos preceitos d a lei d e Deus, disporia escandalosamente contra esses preceitos. Mas isto minimizado, seja porque, como em So Toms de Aquino, ao poder social deferid a uma larg a discrio no estabelec er o justo particularizado ( a tradio, q u e vem d e Aristteles), Santo seja porq ue, como em

Agostinho, se admite que, criado e mantido pela Providncia Divina, o poder social extrai desta investidura uma espcie de apoio moral de Deus para todos os seus abusos. O q u e Deus criou e mantm se entende q u e exprime o q u e Deu s q uer e consagra. De outra

forma, o Senhor destronaria o soberano, com um divino pontap no traseiro. Em nosso tempo, o filsofo catlico Maritain demonstra bem a tendncia a minimizar o conflito entre lei divin a e lei humana, re comendand o ao oprimid o a coragem de sofrer, a pacincia, diante d a dom inao intern a ou externa (o Estad o q u eoprime o povo

ou imperialismo que submete este ltimo - e at o Estado - dominao estrangeira). Assim, fora fsica prep otente, nad a mais se oporia do q u e a fora moral, o q u e muito conveniente para o dom inador, q u ejamais deu bola para tal su perioridade. Alis, o direito natural teolgico, prevalecendo na Idade Mdia, servia muito bem estrutura aristocrtico-feudal, geralmente fazendo de Deus uma espcie de poltico situacionista. Mesmo quando a Igreja e o soberano (no esqueamos de que a Igreja era Estado tambm) andavam s turras, estas pugnas de gigantes poderosos nada tinham a ver com o povo, nem contestavam as bases espoliativas da ordem scioeconmica. Era, de novo, uma cobertura ideolgica para o modo de produo. Tanto assim que a burguesia, no alvorecer do capitalismo, j tendo adquirido o poder econmico, partiu para a conquista do poder poltico; adotando outro tipo de iurisnaturalismo, o mesmo que as naes emergentes, como a Holanda, invocavam pata quebrar a partilha do mundo entre as naes catlicas, dentro da linha traada pelo Vaticano. A contestao burguesa da ordem aristocrtico-feudal, internamente, assim como do sistema internacional montado, recorreu, ento, forma de direito natural, que denominamos antropolgico, isto , do homem, que extraa os princpios supremos de sua prpria razo, de sua inteligncia. Estes princpios, e de novo no por mera coincidncia, eram, evidentemente, os que favoreciam as posies e reivindicaes da classe em ascenso - a burguesia - e das naes em que capitalismo e protestantismo davam as mos para a conquista do seu lu gar ao sol. Est visto que, chegando ao poder, a burguesia, como j acentuamos, descartou o seu iurisnaturalismo, passando a defender a tese positivista: j tinha conquistado a mquina de fazer leis e por que, ento, apelar para um Direito Superior? Bastava a ordem estabelecida. Por outro lado, no plano internacional, as novas correlaes de foras iam formar-se, para a ordem, em que o liberal, o burgus, o capitalista - ontem execrados ganhassem trnsito, extravasassem nos imperialismos e acabassem at obtendo o reconhecimento do Vaticano, que, repitamos, tambm um Estado e, como Estado, se tornou capitalista. Na verdade, o direito natural no tanto imobilista (apesar de suas pretenses a critrio eterno e fixo de avaliao jurdica) como bastante manhoso: ele sempre deixa lugar para as concretizaes, em q u e os pre ceitos atribudos nature za a Deu s ou , ao prprio esforo racional, tendem a conciliar o padro absoluto e as leis vigentes. Todavia, o mero

dualismo (oposio de direito natural e direito positivo) tem uma certa dinmica, que ao menos conserva a idia potencial duma confrontao. por isto, alis, que nas horas de intolerveis tenses - em que o poder institudo vai aumentando a intensidade da prepotncia

e sua autoridade desgastada vai tambm fazendo aumentar a intensidade da contestao costuma reaparecer, com especial atrativo, o velho direito natural. J se falou, por isto, em eterno retorno, diante d a longevidade iurisnaturalista. Na falta duma viso dialtica, o jurista no sabe para que apelar, quando aparecem as situaes monstruosas, que a ningum mais permitem engolir os sapos inevitveis (os sapos tornaram-se indeglutveis). Assim que, na Alemanha Ocidental, durante o nazismo, para a resistncia, ou aps ele, para a restaurao liberal democrtica, o iurisnaturalismo ressurgiu com extraordinrio vigor. Depois de ficar subjacente a todo o julgamento dos criminosos levados ao Tribunal de Nuremberg (onde foram julgados, aps a 2 Guerra Mundial, os dirigentes nazistas), o direito natural serviu de fundamento a sentenas da Justia alem, anulando velhas decises, baseadas em leis nazistas, e empolgou as ctedras universitrias daquele pas. O Direito de resistncia tirania, o Direito guerra de libertao nacional, o Direito guerra justa em geral, uma certa preocupao com a legitimidade (no s a legalidade) do poder tm ntido sabor iurisnaturalsta, e esta ideologia se revigora, como dissemos, a todo instante de maior tenso. O mal que, nela, as questes vm tratadas no plano ideal, da abstrao, no sentido de que no conseguem ligar a elaborao terica aos grupos, classes, dominaes e impulsos libertrios sistemas de normas estatais e pluralidade de ordenamentos listo ; outros conjuntos de normas jurdicas, no-estatais, institucionalizadas e funcionando em crculos de atuao dos grupos oprimidos e classes espoliadas). Por outro lado, o direito natural fica preso noo d e princpios imortais (d a natureza, de Deu s ou d a ra zo humana) e, q uand o eles descem particularizao, tendem a confundir-se com o direito positivo do Estado ou dos grupos e classes prevalecentes. Apesar de tudo, possvel distinguir, naquela dinmica dos dois direitos o que aparece na ordem estatal ou costumeira e o que surge como direito superior - um germe da contestao possvel, que torna o direito natural afeiovel s reivindicaes supralegais (acima das leis a at contra elas) e, em conseqncia, muito propcio utilizao, nas horas de crise do direito positivo, pela classe e grupos dominados. por esse motivo, como vimos, que Mannheim fala num direito natural progressista (perante o conservador) e autores marxistas como Ernst Bloch ou Miaille no hesitam em adot-lo sob o ngulo dum direito natural de combate. Ernst Bloch chegou mesmo a fazer uma longa investigao histrica comumente se pensa. sobre essa ideologia, procurando mais forte do que mostrar que o germe de contestao a que aludimos muito

Entretanto, permanece o dualismo direito positivo e direito natural - como uma antinomia

(uma contradio insolvel), que parte o Direito num ngulo que s v a ordem e noutro que invoca uma Justia, cujo fundamento no adequadamente assentado nas prprias lutas sociais e, sim, em princpios abstratos. Por esse motivo, era perfeitamente compreensvel a irritao de Engels contra Las salle, quando este co gitava d u m Direito absoluto, uma idia d e Direito, pairando a cima do processo histrico e suas lutas concretas. Engels afirmou, ento , que ta l idia d o Direito nad a mais era do q u e o processo histrico mesmo, su a dire o superadora e libertadora. Mas decerto a podemos discernir no s a prxis dos grupos e classe em ascenso, porm, na medida em que estas formulam os objetivos de sua luta, uma srie de reivindicaes, jurdicas tambm. Isto, desde que por Direito no se tome, nem o que a ordem dominante estabelece, nem um conjunto de princpios que no revelam bem de que fonte extraem substncia e validade e por que mudam, historicamente, ficando uns superados como vimos, q uanto ao dar a c ad a u m o q u e seu - e outros aparecendo no horizonte como por exemplo, o direito de todos a um nvel de vida adequado, que emerge na Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, consagrando um princpio ganho nas lutas sociais mais modernas. S um flego dialtico poderia unificar, dentro da totalidade do processo histrico e na sua perptua transformao, os aspectos polarizadores de positividade e Justia, de elaborao de normas e padro avaliador da legitimidade. Muitos autores tm reconhecido, como Dujardin e Michel, que ainda no existe uma teoria dialtica de Direito perfeitamente elaborada, Direito s e q u e insuficiente o positivismo de esq uerda (a equiparao d o

normas estatais, s leis, com o a crscimo d e uma explicao, em geral bastante mecanicista, deste direito pela chamada infra-estrutura scio-conmica). Dentro desta perspectiva, o mx imo q u e se pod e fa ze o uso r alternativo d o direito positivo e estatal, como propem Barcellona e seus seguidores, isto , explorar as contradies do direito positivo e estatal em proveito no da classe e grupos dominantes mas dos espoliados e oprimidos. A tarefa de no pequena importncia, mas tambm no supre as lacunas da concepo positivista do Direito - que analisamos neste captulo. E foi isto que viram os marxistas de outra orientao, isto , os que voltaram para um novo tip o d e direito natural. Entretanto , j apontamos o problema d e um novo direito natural (o iurisnaturalismo d e combate): ele quer evitar o tip o fixo, abstrato, de princpios eternos, mas no consegue nem dar uma noo global de Direito, em que positividade e

Justia se entrosem, nem mostrar de que modo o processo histrico mesmo ganha um perfil jurdico. O inconveniente, alis, vem de que tratam de dois direitos - o positivo e o natural -

sem reperguntar o que Direito como noo que unifique esses tipos opostos, ou seja, no chegam viso histrico-social do Direito, mas apenas oposio histrico-social de dois direitos, que no sabem muito bem por que seriam jurdicos. Isto fica muito claro em Miaille q uando ele fala em direito natural de combate, pondo assim entre aspas a palavra Direito, como se no fosse um Direito propriamente dito e traind o u m vestgio d o positivismo d e esq uerda q u e s v Direito - sem aspas - no direito estatal. Em sntese, o prprio exame da problemtica, a nvel ideolgico, mostrou-nos que o direito positivo insustentvel, sem um complemento, que o jurista vai buscar no direito natural com todos os defeitos deste - porque no v onde se busque outro apoio, nada obstante indispensvel. Para realizar a nova construo seriam necessrios outros materiais e, sobretudo, outra atitude, propriamente dialtica, que, por s-lo, no tolera aquela antinomia (contradio unidades histrico-social. Numa pgina clebre, a que j fizemos referncia, Joo Mangabeira notava que o Direito existe antes do Estado, nas sociedades primitivas, e que, mesmo admitindo o desaparecimento do Estado, numa sociedade em que o governo das pessoas seja substitudo pela administrao das coisas e pela direo do processo de produo, o que desaparece o Estado, no o Direito. Entretanto, se quisermos demonstrar o que este vem a ser, nessas transformaes, da sociedade primitiva sociedade futura, antes do Estado, perante o Estado e at depois do Estado, qual o fio da meada? As ideologias jurdicas deram-nos, com seus reflexos distorcidos, uma viso dos problemas que surgem, quando o homem pensa, abstratamente, sobre o Direito; esses problemas, entretanto, constituem a imagem da realidade, da prxis humana (da atividade histrica e social do homem) no seu ngulo jurdico. O caminho para corrigir as distores das ideologias comea no exame no do que o homem pensa sobre o Direito, mas do que juridicamente ele faz. Poderemos chegar, nisto, dialtica do Direito no j como simples repercusso mental na cabea dos idelogos, porm como fato social, ao concreta e constante donde brota a repercusso mental. A Sociologia Jurdica a nica base slida para iniciarmos a nova reflexo, a nova Filosofia Jurdica, a fim de que esta ltima no se transforme num jogo de fantasmas ideolgicos, perdendo nas nuvens o que vem da terra. As ideologias jurdicas so filosofia corrompida, infestada de crenas falsas e falsificada conscincia do que insolveis de direito positivo e natural, tomados como isoladas, estanques e desligadas da totalidade jurdica, na totalidade maior,

jurdico,

pela intromisso

de

produtos

forjados

pelos

dominadores.

Para

uma

concepo dialtica do

Direito, teremos de rever, antes de tudo, a concepo dialtica da sociedade, onde o Estado e o direito estatal so, a bem dizer, um elemento no desprezvel, mas secundrio. ali tambm que se h de precisar e desentortar a considerao do que, apesar de tudo, ficou bem claro, no exame das ideologias jurdicas e que consiste nas duas vertentes do Direito (no, como elas continuam a focalizar, os dois direitos opostos e separados): a positividade manifestada em conjuntos de , normas (vrios conjuntos, que conflitam e vm de classes e grupos em luta), e os padres de legitimidade, que nos permitem assumir posio, ante aqueles conjuntos, sem nos perdermos nalguma idia de Justia que voa nas nuvens, ou nos voltarmos para uma Justia Social, ainda vaga, uma resultante do processo histrico (da luta de classes e grupos), que no sabe distinguir a face jurdica desse processo. O primeiro passo rumo concepo dialtica do Direito ser, deste modo, a Sociologia Jurdica. O filsofo alemo Erich Fechner falava na Filosofia Jurdica enquanto Sociologia e... metafsica d o Direito. Para venc er a metafsica d o Direit o, q u e ideologia tambm, vamos traar o esboo duma Sociologia Jurdica, que nada fique devendo, por outro lado, metafsica d a Sociedade (uma apresentao desta q u e utiliza idias abstratas e falsas crenas) mas, ao contrrio, se funde numa cincia dos fatos sociais. Sociologia e Filosofia Jurdica se completam, pois, como assinala Marilena Chau, inspirando -se em Merleau, no h razo para uma rivalidade entre filsofos e socilogos, os primeiros considerando-se possuidores d a verdad e porq u e defensores d a idia e os seg undos reivindicando para si a posse do verdadeiro, porque conhecedores do fato. Esta rivalidade priva o filsofo do contato com o mundo (e entrega-o s ideologias) e priva o socilogo da interpretao do sentido de sua investigao - o que conduz a sociologia a outros desvios, ideolgicos tambm. A concepo dialtica h de repens-lo em totalidade e transformaes, numa Filosofia Jurdica, que Sociologia (e no sociologismo positivista - uma ideologia que j criticamos aqui) e Ontologia do Direito, no sentido que evocamos inicialmente, com Lu kcs, e q u e nad a tem de metafsico. Para a viso dialtica d o Direito necessria uma Sociologia dialtica. No captulo seguinte, procuraremos explicar em que consiste esta Sociologia.

SOCIOLOGIA E DIREITO

Vimos

que

as

ideologias

refletem

certas

caractersticas

do

Direito,

embora deformadas, porque tendem a polarizar-se em torno de duas vises unilaterais e redutoras. Os positivistas conservam a tendncia a enxergar todo o Direito na ordem social estabelecida pela classe e grupos dominantes, diretamente (com suas normas costumeiras) ou atravs das leis do Estado. Os iurisnaturalistas insistem na necessidade dum critrio de avaliao dessas mesmas normas, para medir-lhes a Justia (isto , a legitimidad e d a origem e conte do); entretanto , no conseguem determinar satisfatoriamente o padro da medida. Vimos, em seguida, que s um flego dialtico poderia superar a oposio assim criada, entre o direito positivo castrador e o direito natural, que muitas vezes se limita a legitimar a ordem posta e imposta, por falta dum real e autntico estalo crtico. A anttese ideolgica (direito positivo direito natural) s se dissolver, como acentuamos, quando for buscado, no processo histrico-social, aquele estalo. Mas isto, no importa em identificar, simplesmente, Direito e processo histrico e, sim, procurar neste o aspecto peculiar da prxis jurdica, como algo que surge na vida social e fora dela no tem qualquer fundamento ou sentido. Em sntese, colhemos na abordagem das ideologias certo material preliminar, que agora cumpre rever, sem distores e entrosado na totalidade em movimento, onde se man ifesta a procurad a es sncia d o fenmeno jurdico. No se trata, claro, de recapitular, na sua imensa variedade, o Direito de todos os povos, um por um, atravs dos tempos - inclusive porque este recorte nos daria uma srie de retratos mais ou menos sugestivos, mas no o processo de formao, transformao e substituio de normas jurdicas, bem como dos critrios por que elas podem ser avaliadas, sem recurso a medidas ideais, prvias, fixas e eternas. A es sncia d o Direito, para no se perder em especulaes, metafsicas, nem se dissolver num monte de pormenores irrelevantes, exig e a mediao duma perspe ctiva pon ham em cientfica, em q u e os retratos histricos se

movimento, seguindo o modelo geral da constituio de cada uma daquelas imagens. A Histria um labirinto, onde nos perderemos, s voltas com fatos isolados, se no carregarmos uma bssola capaz de orientar-nos a respeito da posio de cada um deles na estrutura e no processo. Contudo, entre a variedade dos fatos e o esquema condutor, tambm no podemos trocar a bssola por um mapa pr-fabricado, que deseje ver, em cada episdio, a

confirmao fatal dum roteiro terico. por isto que Engels, j o lembramos, combatia os que se limitavam a submeter os fatos sociais a esquemas prvios e mecnicos, tachando-os de ignorantes e preguiosos, por chegarem Histria com uma pseudocincia feita e acabada. Mas, por outro lado, nem Marx nem Engels jamais sustentaram que bastasse colher, ao acaso,

fatinhos soltos, para, com isto, chegar cincia visada. Eles, ao contrrio, procuravam a conexo necessria de fatos relevantes, seguindo uma hiptese de trabalho. Esta, formulada ao contacto dos processos sociais, num exame preliminar, era, depois, submetida a pacientes e constantes verificaes metdicas. Desta forma, os modelos no passavam - nem deviam passar - de arranjos duma primeira abordagem, depois conferidos e aperfeioados perante os fenmenos mesmos. Basta lembrar, por exemplo, como ilustrao dessa troca (fenmenos hiptese de trabalho - verificao ante os fenmenos - reajuste da hiptese), os tipos de modo de produo - comunidade primitiva - escravagismo - feudalismo - capitalismo socialismo - corrigido pelo encontro do modo de produo asitico. Este ltimo emergia na investigao histrica e Marx o registrou, como tipo especial, embora at hoje alguns de seus discpulos o omitam, carregando os cinco outros como um fetiche dogmtico, a que tem de ajustar se tudo o que for encontrado, assim como teriam de chegar a um comunismo final, que simples previso (isto , outra hiptese, neste caso prefiguradora e tambm sujeita prova histrica). Naquele procedimento circular, que entra no ofcio histrico, trazendo hipteses e modelos, resultantes de exame anterior, sobre o material acumulado, para submetlos, depois, ao crivo de novas verificaes, Marx e Engels faziam Histria Social, isto , voltavam Histria com a bssola duma Sociologia. No nos referimos, aqui, Sociologia burguesa, tal como a concebeu Comte, na Fsica Social, mas Sociologia Histrica, de que precisamente so precursores Marx e Engels, embora no usassem esta etiqueta. Porque Sociologia a disciplina mediadora, que constri, sobre o monte de fatos histricos, os modelos, que os arrumam (com a ressalva de emendas, ao novo contacto com o processo). A Histria registra o concreto-singular, a Sociologia o aborda na multiplicidade generalizada em modelos, segundo os traos comuns. Assim, a anlise da Revoluo Francesa, em suas causas e peripcias, apresenta-se ao historiador que a reconstitui cientificamente. Mas, por outro lado, registrando o fenmeno duma revoluo em especial e para no se perder na massa informe de relevncias e irrelevncias, de dados importantes e insignificantes, o historiador h de empregar os modelos que a Sociologia ministra no exame coordenado das revolues em geral. Isto lhe permitir, inclusive, mostrar que alguns episdios, cujos protagonistas chamam d e revoluo, na verdad e no o so, como, por exemplo, no caso d uma revoluo cujos propsitos e comportamento fossem manter e resguardar uma estrutura. Um golpe de

Estado, de ndole conservadora, no uma revoluo; uma forma brusca de conservar. As abordagens histrica e e sociolgica se escoram so, portanto, complementares

reciprocamente. Por isso mesmo, toda Histria realmente cientfica (e no apenas crnica de fatos isolados ou biografias co ordenadas d e homen s ilustres) Histria Social; e tod a Sociologia realmente cientfica (e no apenas manipula o ideol gica de formas ideais) Sociologia Histrica (empenhada, sempre, em determinar a origem, os antecedentes das formas sociais, q u e no so desovadas no m und o por algum esprito criador ou lder excepcional, nem deduzidas pela inteligncia pura d e algum terico d e gnio). Aplicando-se ao Direito uma abordagem sociolgica ser ento possvel esquematizar os pontos de integrao do fenmeno jurdico na vida social, bem como perceber a su a peculiaridad e distintiva, a su a essncia verdadeira. C abe; entretanto, uma ressalva aqui sobre duas maneiras de ver as relaes entre Sociologia e Direito: a que origina uma Sociologia Jurdica e a que produz uma Sociologia do Direito. Estas duas expresses so comumente tomadas como sinnimas, porm a questo mais sria do que um pro blema de rtulo. Elas constituem abordagens diferentes, apesar de interligadas, num intercmbio constante. O fato que resulta possvel olhar o Direito, sociologicamente, sob mais de um ponto de vista; e est nesta possibilidade a diferena das abordagens citadas. Falamos em Sociologia do Direito, enquanto se estuda a base social de um direito especfico. Por exemplo, Sociologia do Direito a anlise da maneira por que o nosso direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais (de poucas contradies e mnima flexibilidade, aberturas, dado o sistema, ainda visceralmente autoritrio, de pequenas

controladas, como um queijo suo, perpetuamente a enrijecer-se, no receio de que os ratinhos da oposio alarguem os buracos). Toda aquela velha estrutura ento se desvenda como elemento condicionante, que pesa sobre o pas, obstaculizando as remodelaes, sob a presso simultnea das classes e grupos nacionais dominantes e das correlaes de foras internacionais, interessadas em que ao imperialismo no escape to gordo quinho. Sociologia Jurdica, por outro lado, seria o exame do Direito em geral, como elemento do processo sociolgico, em qualquer estrutura dada. Pertence Sociologia Jurdica, por exemplo, o estudo do Direito como instrumento, ora de controle, ora de mudana, sociais; da pluralidade de ordens normativas, decorrente da ciso bsica em classes, com normas jurdicas diversas no direito estatal e no direito dos espoliados, formando conjuntos competitivos de normas, no contraste entre o direito dessas classes (at de grupos

oprimidos, como vimos) e o que a ordem dominante pretende manter. claro, repetimos, que a Sociologia do Direito e a Sociologia Jurdica realizam uma espcie de entre Sociologia e intercmbio permanente, mas difcil admitir que sejam idnticas as duas tarefas cientficas. base do que acima ficou assentado, quanto diferena

Histria, diramos, inclusive, que a Sociologia do Direito (como estu d o particular d e casos sociolgicos) , mais propriamente, captulo da Histria Social (Histria Social do Direito, no que a ns interessa aqui) e a Sociologia Jurdica captulo da Sociologia Geral, versando sobre o aspecto sociedade. jurdico da vida em

De qualquer forma, a Sociologia, Geral ou Jurdica, tambm no uma disciplina unvoca (de um sentido ou direo apenas), j que, nesta cincia, h diferentes orientaes, que correspondem ao posicionamento do cientista no processo histrico -social, em que ele , simultaneamente, ator e observador. Esta diviso, notemos de passagem, apenas mais clara nas cincias sociais, onde o homem tambm est mais diretamente empenhado; porm ela existe em todas as cincias, traduzindo interferncias ideolgicas a que nenhuma escapa. Nas matemticas, por exemplo, racionalismo, empirismo e operacionalismo defrontam-se, como diferentes concepes, produzindo diversos resultados, como o caso da admisso ou negao da estrutura axiomtica (proposies que parecem racionais, evidentes e eternas) desafiada pela dialtica, segundo a qual j se v o declnio dos absolutos lgicos. Da mesma forma, h finalismos e vitalismos, que desafiam a concepo lgico -estatstica dos fenmenos estudados pela Biologia, com a sria conseqncia interna de que teleonmicas (agrupamento segundo um sentido ou defendem a existncia de leis relaes estatsticas, sem finalidade alguma. A anlise dos vnculos (e suas mediaes), desde a situao do cientista (e sua quota de ideologia) at o padro das doutrinas e teorias por tal situao afetadas objetivo da Sociologia do Conhecimento, que constitui, sob certo aspecto, Sociologia ao quadrado. Partindo do fato de que o conhecimento - qualquer que seja o sentido - sempre obra social, com participaes individuais, a Sociologia do Conhecimento, cujas razes mergulham na contribuio marxista, procura a razo e o modo de influncia do engajamento, expresso ou implcito, do homem no saber, inclusiv e sociol gico, q u e ele produz. Faz, por isto, a Sociologia da Sociologia tambm, isto , uma Sociologia, como dissemos, ao quadrado. J nos referimos, no captulo sobre ideologias, verdade-

finalidade), negadas, entretanto, pelos que discernem, nos fatos biolgicos, apenas

processo, isto , verdade que se desenvolve, sem chegar nunca a um conhecimento absoluto e irretocvel - o que no desmoraliza, nem invalida, as verdades relativas e possveis a cada etapa, uma vez que, nelas, podemos optar, como observava Adam Schaff, pela que mais amplamente explica e compreende os fenmenos, e , portanto, real e objetivamente, a que, altura dada, se pode ver e proclamar com mais acerto.

Ademais, o avano, a superao do ponto de vista dialtico, no envolve o aniquilamento, mas a ultrapassagem que conserva os aspectos positivos e as conquistas de etapas anteriores. Sob tal ngulo, muito instrutivo notar a aplicao prtica deste princpio, demonstrando a sua eficcia, tal como faz Marx, n'O Capital, quando vai buscar a nova e mais completa focalizao da mais-valia num roteiro que incorpora e transcende as teorias anteriores, de mercantilistas, fisiocratas, intuies de Adam Smith, colocaes de Ricardo e assim por diante. Um saber definitivo, global e irretocvel mistificao de cincia degenerada, que transfere o ardor religioso das revelaes divinas, dos mstico s, para a boca dos profetas duma outra religio: o cientificismo. Esta pe no lugar da Bblia a Enciclopdia Britnica (hoje, alis, americana), trocand o d e edi o medid a q u e os novos telogos vo trocando de teoria. possvel discernir, a esta altura, duas posies fundamentais, na Sociologia Geral - e, portanto, na Sociologia Jurdica -, ambas fortemente sobrecarregadas de elementos ideolgicos. Um dos mais burgueses, Ralf Dahrendorf, definiu harmonia e aquelas posies como (a) Sociolo gia d a estab ilidade, finamente matreiros, dentre os socilogos

consenso e (b) Sociolo gia da mu dana, conflito e coao. A primeira, diramos ns, a Sociologia do burgus mais franco; a segunda pertence pequena burguesia que se dedica s tempestades num copo d'gu a (ou melhor: s revolues num cop o d e usque). A Sociologia (a) da estabilidade, harmonia e consenso poderia resumirse na forma seguinte. Em determinado espao social - isto , numa certa base geogrfica onde se travam as relaes sociais - uma variedade de grupos estabelece determinados padres estveis de relacionamento. Este relacionamento governado por normas escalonadas no numa faixa de crescente intensidade. As normas - isto , os padres de conduta, exigvel sob ameaa de sanes (os meios repressivos, que vo das sanes difusas organizadas - s sanes organizadas - com rgo prprio e ritual especfico de aplicao) - distribuem-se em usos (prticas consagradas pela mera repetio), costumes (prticas consagradas pela fora da tradio ativa e militante, como necessidade coletiva e, portanto, obrigao indeclinvel de todos), folkways (costumes peculiares q u edefinem o modo d e ser du m povo) e mores (o seto r mais vigoroso dos costumes, julgados indispensveis para a ordem social estabelecida e

que, por isso mesmo, se resguardam com normas e sanes mais severas e melhor organizadas). O uso pode ser, por exemplo, vestir certo traje adequado a locais e ocasies. Um costume pode ser, por exemplo, a deferncia aos mais velhos; nos folkways pode estar, por exemplo, a valorizao dos mais velhos (ou dos mais moos) como orientadores sbios (ou

condutores vigorosos); nos mores residem, por exemplo, as relaes de propriedade ou as formas de acesso ao poder e governo. Est visto que no modelo (a), considerado aqui, todas essas normas pertencem a um s bloco, presumido consensual (isto , que t