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36 · Cma · primeiro semestre 2014 Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens Cavalcanti Maurício Gomes Embora a maioria dos mapas insista em contradizê-lo, não há no mundo quem possa assegurar a existência legítima e incontestável da Bulgária, o que torna forçoso descobri-la ou ao menos inventá-la: assim poderíamos resumir o pressuposto básico de O púcaro búlgaro, última novela de Walter Campos de Carvalho, publicada em 1964. Atravessado pelo humor nonsense, o texto narra os preparativos para a viagem definitiva rumo à descoberta ou à invenção da nação búlgara – viagem que, no entanto, jamais abandona o terreno das elucubrações e do discurso, consumindo-se na mais absoluta imobilidade. Não deixa de ser curioso que o autor mineiro tenha abandonado a literatura logo após narrar essa insólita expedição, com direito a todo o mistério que cerca a figura quase mítica do viajante desaparecido. Em outras palavras, Campos de Carvalho foi à Bulgária para nunca mais voltar (sua obra esteve “sumida” até 1995, quando foi reeditada pela José Olympio). Contudo, há quem ainda o procure, como nos mostra o romance de estreia do carioca Augusto Guimaraens Cavalcanti, que já no título diz a que veio: Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (7letras, 2012).      Se buscássemos definir o texto de Augusto Cavalcanti, poderíamos dizer que se trata de um romance-colagem, já que a narrativa, para além das colagens fotográficas entre os capítulos, se constrói não apenas pela imitação do estilo carvalhino, mas também pela citação direta dos textos de Campos de Carvalho. Como afirma o próprio Augusto Cavalcanti em Fui à Bulgária, “as aspas entram em

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Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens CavalcantiMaurício Gomes

Embora a maioria dos mapas insista em contradizê-lo, não há no mundo quem possa assegurar a existência legítima e incontestável da Bulgária, o que torna forçoso descobri-la ou ao menos inventá-la: assim poderíamos resumir o pressuposto básico de O púcaro búlgaro, última novela de Walter Campos de Carvalho, publicada em 1964. Atravessado pelo humor nonsense, o texto narra os preparativos para a viagem definitiva rumo à descoberta ou à invenção da nação búlgara – viagem que, no entanto, jamais abandona o terreno das elucubrações e do discurso, consumindo-se na mais absoluta imobilidade. Não deixa de ser curioso que o autor mineiro tenha abandonado a literatura logo após narrar essa insólita expedição, com direito a todo o mistério que cerca a figura quase mítica do viajante desaparecido. Em outras palavras, Campos de Carvalho foi à Bulgária para nunca mais voltar (sua obra esteve “sumida” até 1995, quando foi reeditada pela José Olympio). Contudo, há quem ainda o procure, como nos mostra o romance de estreia do carioca Augusto Guimaraens Cavalcanti, que já no título diz a que veio: Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (7letras, 2012).        Se buscássemos definir o texto de Augusto Cavalcanti, poderíamos dizer que se trata de um romance-colagem, já que a narrativa, para além das colagens fotográficas entre os capítulos, se constrói não apenas pela imitação do estilo carvalhino, mas também pela citação direta dos textos de Campos de Carvalho. Como afirma o próprio Augusto Cavalcanti em Fui à Bulgária, “as aspas entram em

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estado festivo de decomposição”, de forma que as palavras do autor mineiro se mesclam de forma quase indistinta às do autor carioca. A partir dessa incorporação, ao que parece, o romance desenvolve-se em três níveis distintos, embora complementares: na investigação da Bulgária enquanto metáfora, no desenvolvimento de Campos de Carvalho como personagem e no comentário da obra carvalhina. Entre todos esses níveis, o que julgo de maior interesse é o primeiro, não só por render as melhores páginas do romance, mas sobretudo por sublinhar a precisão de Augusto enquanto leitor de Campos de Carvalho. Nesse aspecto, creio, Fui à Bulgária vai ao âmago d’O púcaro búlgaro: a Bulgária é tomada como signo misterioso, significante sem significado preciso, convertendo-se numa forma de pensar as possibilidades da própria linguagem frente ao mundo – a Bulgária, como significante, existe, mas é preciso buscar seu significado, daí o sentido da viagem. Isso tudo, mesmo que de forma implícita, está posto na novela de Campos de Carvalho, mas no texto de Augusto Cavalcanti é retomado, exposto e retrabalhado sob forma de especulação constante. Dessa forma, a Bulgária converte-se em metáfora para o insondável, para tudo o que está muito para além do óbvio; um estado de suspensão da certeza, reino eterno das perguntas sem respostas e dos bailes de máscaras da subjetividade:

Aliás, para muitos bulgarósofos, a Bulgária só nascerá de fato, no dia em que cada búlgaro for respeitado em toda a sua abstração, sem roteiros prévios. Esta Bulgária ainda estaria no útero de um nó dos acontecimentos ainda por vir. Os nossos tantos “eus” se dissolveriam aqui, na sustentação latejante de uma irresolução, no cárcere das perguntas em solução, germinando sem maiores culpas. (p. 63)

É, portanto, a partir da reiterada especulação sobre o “estado búlgaro” que Fui à Bulgária se constrói, em meio a referências que vão de Barthes a figuras da seleção de futebol búlgara – em que o

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humor pretendido, no entanto, volta e meia se aproxima da piada gasta e cansativa. Em meio a isso, há o comentário da obra carvalhina e a busca por ampliar seus sentidos possíveis, de lançá-la à condição búlgara, poderíamos dizer: “No alto da Gávea, em sua cada vez mais nublada disputa geográfica, Walter Campos de Carvalho começava a escrever o seu O púcaro búlgaro (1964) – livro de sondagem do insondável” (p. 13). Avaliando em linhas gerais o romance de Augusto Cavalcanti, fico em dúvida sobre a recepção do texto pelos leitores que desconhecem a obra do autor mineiro. A forma intensa como Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho está ligado ao Púcaro búlgaro e à obra carvalhina em geral me faz pensar se, em sua busca por Campos de Carvalho, o autor carioca não acabou por esquecer a si mesmo, transpondo o limite da referência construtiva para ingressar no terreno do pastiche puro e simples. Em outras palavras, é provável que o leitor de Fui à Bulgária, a fim de lhe atribuir sentidos, sinta grande necessidade de ir à obra do autor mineiro, o que me faz crer que o texto de Augusto Cavalcanti acerta mais como incentivo para novos leitores de Campos de Carvalho do que como romance em si.

referência bibliográfica

cavalcanti, Augusto Guimaraens. Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.