1789-1989: histórias de uma história - Carlos Guilherme Mota

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OS FATOS E A INTERPRETAÇÃO 1789-1989: HISTÓRIAS DA HISTÓRIA Como se deu que alguns ideais revolucionários ressoassem nos tristes trópicos, mas sobretudo pela vertente, girondina CARLOS GUILHERME MOTA Robespierre representa uma fase importante da Revolução, e a contradição entre o princípio da igualdade — e das condições políticas para implantá-la e as exigências de liberdade 70 DA REVOLUÇÃO DESCONTÍNUA "Temos de pensar que nem tudo é compacto na natureza, vazios, lacunas, e que nem todo movimento se propaga progressivamente " Voltaire (1694 - 1778) A Revolução Francesa constitui um dos capítulos decisivos da longa e descontínua passagem histórica do Feudalismo ao Capi- talismo. Com a Revolução do século XVII e a Revolução Industrial do século XVIII na Inglaterra, e ainda com a Revolução Americana de 1776, a "Grande Révolu- tion" lança os fundamentos da História Contemporânea. Diversamente de todas as outras, entretanto, assistiu-se na França à primeira experiência democrática da His- tória. A Revolução derrubou a aristocracia que vivia do's privilégios feudais e liquidou a servidão, destruindo a base social que sus- tentava o Estado absolutista encarnado na figura do monarca Luís XVI. As massas populares urbanas esfomeadas, a pequena burguesia radical, os pequenos produtores independentes e uma parcela do campesi- nato ainda imersa na servidão mobilizaram- se nesse processo em que se pôs abaixo o Carlos Guilherme Mota é historiador, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de Nordeste 1817, Ideologia da Cultura Brasileira e A Revolução Fran- cesa.

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História e historiografia da Revolução Francesa, a partir das discussões travadas a época do seu bicentenário.

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OS FATOS E A INTERPRETAÇÃO

1789-1989:HISTÓRIAS DA

HISTÓRIAComo se deu que alguns ideais revolucionários

ressoassem nos tristes trópicos,mas sobretudo pela vertente, girondina

CARLOS GUILHERME MOTA

Robespierre representauma fase importanteda Revolução,e a contradiçãoentre o princípioda igualdade — e dascondições políticaspara implantá-la —e as exigênciasde liberdade

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DA REVOLUÇÃODESCONTÍNUA

"Temos de pensar que nemtudo é compacto na natureza, há vazios,

lacunas, e que nemtodo movimento se propaga

progressivamente "Voltaire (1694 - 1778)

A Revolução Francesa constitui um doscapítulos decisivos da longa e descontínuapassagem histórica do Feudalismo ao Capi-talismo. Com a Revolução do século XVIIe a Revolução Industrial do século XVIIIna Inglaterra, e ainda com a RevoluçãoAmericana de 1776, a "Grande Révolu-tion" lança os fundamentos da História

Contemporânea. Diversamente de todas asoutras, entretanto, assistiu-se na França àprimeira experiência democrática da His-tória.

A Revolução derrubou a aristocraciaque vivia do's privilégios feudais e liquidou aservidão, destruindo a base social que sus-tentava o Estado absolutista encarnado nafigura do monarca Luís XVI. As massaspopulares urbanas esfomeadas, a pequenaburguesia radical, os pequenos produtoresindependentes e uma parcela do campesi-nato ainda imersa na servidão mobilizaram-se nesse processo em que se pôs abaixo o

Carlos Guilherme Mota é historiador,professor de História Contemporânea daUniversidade de São Paulo e autor, entreoutros livros, de Nordeste 1817, Ideologiada Cultura Brasileira e A Revolução Fran-cesa.

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Antigo Regime. Além disso, instalou-seuma Assembléia Nacional Constituinte,onde se definiram os primeiros princípiosdm nova sociedade, guilhotinou-se o rei (aoemplo de Carlos I, da Inglaterra, no sé-oiio XVII), instaurou-se a Primeira Repú-bfica e foi abolido o sistema colonial.

Tendo produzido um slogan famoso -"Liberdade, Igualdade, Fraternidade" - e aDeclaração dos Direitos do Homem, a Re-•ciução trouxe à luz uma série de persona-gtns que tipifica concepções clássicas deEstória, como Luís XVI, Brissot, Danton,Robespierre, Saint-Just, Marat, Graco Ba-

Napoleão e tantos outros, como o«febre Marquês de Sade. Nesses densosdez anos (1789 - 1799), a história se ace-kra e traz ao primeiro plano a idéia da legi-Bnndade e da representatividade do poder,c principio da igualdade social - inclusiveãas raças - e a norma da inviolabilidade

dos direitos do cidadão. Mas ao princípioda igualdade - e das condições políticaspara implantá-la - quase sempre se contra-poriam as exigências de liberdade: Maratou Brissot? Danton-ou Robespierre? Ba-beuf ou Sieyès? Chénier ou Désorgues?Voltaire ou Rousseau?

A Revolução, derrubando a aristocraciae o absolutismo da dinastia dos Bourbons,abre caminho para a Monarquia Constitu-cional (1791), seguida da implantação daPrimeira Repúbüca (1792 - 1804). A Pri-meira República assiste aos períodos daConvenção (1792 - 1795, no qual o rei éguilhotinado em 1793), do Diretório (1795- 1799) e, após o golpe de Napoleão em1799, do Consulado (1799 - 1802).

Não só as idéias de Reforma e de Revo-lução dos filósofos da Modernidade (daIlustração inclusive), mas sobretudo a fomeaguda que grassava nos campos e cidades

O juramento dosconstituintes, a 17 de

junho de 1789.Aqui definiram-se

os primeirosprincípios da nova

sociedade,acabou-se com a

monarquia eaboliu-se o sistema

colonial

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Jean-JacquesRousseau e ossímbolos daRevolução. Diziaele: "Os frutossão de todos e aterra nãopertence a ninguém'

explicam o estouro da Revolução. A estru-tura jurídico-política baseada em Ordens(Clero, Nobreza e Povo) já não dava contados anseios da burguesia - nela incluída apopular pequena burguesia - e da sans-culotterie. Entre 1789 e 1799, novos canaispolíticos serão abertos (e alguns fechadosdepois) para expressar suas aspirações.

A França desse período será, juntamentecom os Estados Unidos, embora ainda es-cravistas independentes desde 1776, um doscentros irradiadores das idéias de democra-cia contemporânea. As idéias de Revoluçãose espraiam pelo mundo, inclusive naAmérica do Sul. Como se sabe, muitos es-tudantes e pesquisadores brasileiros estuda-ram na França nesse período, sobretudo emcidades como Montpellier, Bordéus, Tou-louse, Rouen. Nesse período, destruiu-se asociedade de Ordens do Antigo Regime ecriaram-se as condições para o desenvolvi-mento do capitalismo na França, ao se con-solidarem os princípios de liberdade de em-preendimento e de lucro. Num contexto de

violenta luta de classes e de embates entre"estamentos pretéritos e classes futuras"(Marx), apresentaram-se sucessivamente àcena histórica diversas correntes do pensa-mento social e político, desde as realistasabsolutistas e monarquistas constitucionais,às republicanas girondinas e jacobinas, atéas comunistas "primitivas" de Babeuf e, fi-nalmente, as "bonapartistas" autoritárias -articuladoras do Golpe de Estado do 18Brumário (1799).

Se, observada em seus resultados, a Re-volução deve ser conceituada comoburguesa, dela não se pode entretanto dis-sociar o movimento camponês e popular ur-bano que lhe deu sustentação e, depois, otravou. No caso dos camponeses, dura-mente atingidos pela crise econômica, a po-breza os assolava, jogando-os na miséria eaumentando a insegurança nos campos.Sua ira contra os senhores ampliava-se emtoda a França, com levantes, tumultos e rei-vindicações contra os direitos feudais. Comintensidade variável conforme a região, omovimento abala a aristocracia como umtodo. Nessa luta, segundo o historiador Ge-orges Lefebvre, "o meio mais eficaz consis-tia no incêndio dos castelos e dos seus ar-quivos ao mesmo tempo". Assim, a notíciada tomada por populares da fortaleza daBastilha e do Palácio de Versalhes em julhode 1789 correria de aldeia em aldeia, ge-rando o "Grande Pânico" que, se trazia te-mor e insegurança aos senhores feudais, re-forçava os ânimos da insurreição campo-nesa. Não foram poucas as vezes, diz aindao historiador, que os "senhores recusavam-se a se desfazer de seus pergaminhos - eos camponeses incendiavam o castelo e en-forcavam os seus donos".

A fome e a carestia da vida estavam nabase desses movimentos, e também umpouco das idéias do grande filósofo do sé-culo das Luzes, Jean-Jacques Rousseau(1712 - 1778), para quem "os frutos são detodos e a terra não pertence a ninguém".

OS MARCOSDO PROCESSO

"Obedecer às leis, isso não éclaro ..."

Saint-Just (1767 - 1794)

A crise do Antigo Regime e a eclosão daRevolução deveram-se em larga medida àconjugação de uma série de fatores comomiséria, fome, desemprego, carestia, novasconcepções de sociedade, de cultura e depolítica e um significativo aumento popula-

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ckmal - além das más colheitas de 1788, oque elevou brutalmente o preço do pão emjulho de 1789. A nobreza reage à crise, en-saiando reformas e provocando uma sériede conflitos que desembocam na convoca-ção dos Estados Gerais (1788) e, estes, naRevolução.

As más colheitas geraram a crise de ali-mentos, cuja falta era logo sentida nas me-sas dos sans-culottes e das classes popula-res. O Terceiro Estado opõe-se à Coroa eproclama a Assembléia Nacional. Esta,o? m o apoio de parte dos representantes dodero e de deputados reformistas da no-breza, passa a Assembléia NacionalConstituinte (9 de julho de 1789). A Basti-lha, prisão do Estado, é tomada a 14 de ju-lho de 1789. A 4 de agosto, a Constituinte,assustada, abole os privilégios feudais e, a26 de agosto, aprova a Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão. A revo-lução popular ganha as ruas (julho a outu-bro); o "Grande Pânico" se dissemina pelaFrança. A 5 de outubro, o rei Luís XVI é: brigado a voltar de Versalhes para Paris,sob pressão popular: tornara-se, em ver-dade, um prisioneiro da Assembléia.

No período de monarquia constitucional(1791 - 1792), o regime divide-se entre osroonarquistas (que preservam o poder dorei, independente) e a maioria dos represen-tantes à Constituinte, que defendem o papeldos cidadãos na fiscalização e controle dogoverno. A Constituição liberal de 1791,

obra maior da Assembléia Nacional Cons-tituinte, define a monarquia constitucional.Mas a guerra com a Prússia, a agitação po-pular que atemoriza os deputados da As-sembléia e a fracassada tentativa de fuga deLuís XVI agravam a situação, levando o re-gime ao colapso (21 de setembro de 1792).

Prisioneiroda Assembléia, o rei

tenta a fuga comsua família.

Em Varennes eles sãodetidos, a 21 de

junho de 1791

Cem. 1792, a Con-venção (1792 - 1795) estabelece a Re-pública, num grave quadro de guerra ex-terna. O movimento divide-se política eideologicamente entre Girondinos (liberaismais ligados às províncias e preocupadoscom o grande comércio e com a guerra) eMontanheses (representantes da pequenaburguesia, apoiados pelos sans-culottes deParis, e querendo prosseguir na guerra ex-terna e na revolução interna). Luís XVI éguilhotinado a 21 de janeiro de 1793.Instaura-se o "despotismo da liberdade": osJacobinos dominam a Convenção.

De junho de 1793 a julho de 1794, a Re-volução se aprofunda, liderada por Robes-pierre e pelos Montanheses Jacobinos,dirigindo-se ao mesmo tempo contra a in-vasão estrangeira e os levantes contra-revolucionários. É o Grande Terror. Com ofim da guerra, entretanto, e perdendo apoiopopular, Robespierre, Saint-Just e compa-nheiros são guilhotinados, a 28 de julho (10Termidor): é a Reação Termidoriana que

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Albert Sobouldesenvolveu uma tesenotável sobre ossans-culottes deParis. Acusado demarxista, declara-seapenas historiadorrevolucionário"clássico"

.

Absolvido peloTribunal

Revolucionário, Maraté carregado em

triunfo pelamultidão

vence na Convenção.No Diretório (1795 - 1799), a França

torna-se "um País governado por proprie-tários". A Constituição do ano III, que de-fine a democracia burguesa, representou omeio-termo do processo revolucionário.Contidas as forças estrangeiras (Prússia,Holanda e Espanha), o exército - que aba-fou o perigo de uma reação dos realistas -passará a ocupar o papel desempenhadopelos Montanheses Jacobinos e sans-culottes, iniciando a montagem da GrandeNação com a criação de "repúblicas-ir-mãs" em torno da França.

JILm 1796, o clubeigualitarista do Panteão é fechado em Parispor Bonaparte e fracassa a Conjuração dosIguais, de Graco Babeuf, última tentativarevolucionária da República. No ano se-guinte, Napoleão vence os austríacos naItália. Nesse período cresce seu prestígio,enquanto os republicanos moderados criamo "Círculo Constitucional", reunindoSieyès, Talleyrand, Benjamin Constant,Marie-Joseph Chénier, o general Jourdan,Madame de Staèl... Em 1798, a burguesiamoderada enfrenta ainda uma vitória eleito-ral dos Jacobinos. E, em 1799, a Assem-bléia é dissolvida e o Diretório substituídopor três cônsules provisórios: Napoleão,Sieyès e Ducos. É o golpe de 18 Brumário,que dá início ao Consulado. "A Revoluçãoacabou", pontuam os cônsules. Poucotempo depois, em 1804, a primeira Repú-blica chega ao fim.

DE HISTORIOGRAFIA.E DE HISTÓRIA

"La Révolution Française? Çà n'existepás", pontificou o historiador FernandBraudel ao jovem professor Albert MariusSoboul no fim dos anos 40, que o procuraraem busca de alguma orientação para seusestudos sobre a Grande Revolução. Claro,Braudel, o discípulo de Lucien Febvre e jáum dos mentores do grupo dosAnnales, su-geria sarcasticamente ao entusiasta dos tra-balhos do velho "père" George Lefebvre -o discípulo do socialista Jean Jaurès que es-crevera para a coleção Peuples etCivilisations dois fulgurantes e alentadosvolumes sobre La Révolution Française eNapoléon - a necessidade de se rompercom a tradição daquilo que imaginavatratar-se de uma medíocre história évé-nementièlle.

Não se descarte na apreciação contidanessa tirada braudeliana a surda disputa en-tre duas escolas: a liberal avançada e polifa-cetada da Rue de Varennes (a ex-VIe. Séc-tion de 1'École Pratique dês Hautes Études,sede também dos Annales) e a marxizante erepublicanista neojacobina centrada naSorbonne - onde desde 1891 instalara-se acátedra de História da Revolução Fran-cesa, sob a regência do professor AlphonseAulard, depois a Société d'Études Robes-pierristes criada por Mathiez, responsávelpelos clássicos Annales Historiques de Ia

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A cidadã camponesa do fim do séc. XVIII

Révolution Française e finalmente o Institutd'Histoire de Ia Révolution Française,criado em 1937 por Lefebvre...

Em verdade, trata-se de duas vertentesou famílias de pensamento: a dos Annales(Economies, Sociétés, Civilisations), deMarc Bloch, Lucien Febvre, e depois Brau-del, e a dos Annales Historiques de Ia Révo-lution Française, de Albert Mathiez (1914- 1932), G. Lefebvre (1874 - 1959), AlbertSoboul (1914 - 1982), e atualmente dirigidapor Michel Vovelle. A esta segunda"família" pertence Jacques Godechot, o au-tor de La Grande Nation, discípulo de Ma-thiez.

Luitas águas passa-ram sob as pontes do Sena, do Garonne, doRódano - mas o fato é que a resposta de-sencorajadora de Braudel a Soboul conti-nha um recado à (suposta) história factualou mecanicista por vezes cultivada seja pe-la tradição comemorativista-republicanista,seja pela marxista dogmática. O autor doLa Médüerranée sugeria - sem a suavidadede seu mestre Febvre - a necessidade de seatentar para a respiração das estruturas so-ciais, econômicas e civilizacionais nalongue durée - informado que estava daspesquisas de seu colega Eraest Labrousse,também um discreto socialista ("eu apenasquantifico o que Marx descobriu...", bla-gueava). Recorrendo a sofisticadas técnicasde quantificação, propunha ele uma nova edesmistificadora periodização para a his-tória da França nos séculos XVIII e partedo XIX. Afinal, Labrousse-Braudel já sa-biam que o 14 de julho não fora apenas o

dia da Tomada da Bastilha, mas também odia que o preço do pão esteve mais alto naFrança durante todo o século XVIII.. .Labrousse, particularmente, dada sua as-cendência intelectual, percebia que seus co-legas sucessores de Jaurès (autor de umanotável e volumosa História Socialista daRevolução Francesa), Mathiez e Lefebvresabiam pensar e manejar estruturashistóricas.

Soboul, militante do Partido ComunistaFrancês, orphelin de Ia Nation e de tradiçãocamponesa de Nimes, desenvolveu sua tra-jetória intelectual fora dos Annales de Brau-del. Mas no fim dos anos 50 surge com suatese notável Lês- Sans-culottes Parisiens àl'An II (Paris, Clavreuil, 1962), revelandoas características da organização e das for-mas de pensamento do mundo do trabalhoem Paris no momento mais crítico da Revo-lução. Tese profundamente heterodoxa seconsideradas as limitações do pensamento"marxista" da década de 40/50, mas genui-namente marxista pela metodologia empre-gada. Não se trata aqui de arrolar sua cons-tante e densa produção - sobre o ano I; so-bre Saint-Just, Robespierre, Danton, Cou-thon; sobre os soldados do ano II; sobre aPrimeira República; nem seu trabalho deedição de documentos, ou elaboração demanuais de haute vulgarisation - mas deindicar ao leitor brasileiro a existência, emlíngua portuguesa, de três livros de Soboul:História da Revolução Francesa (2? ed.,Rio de Janeiro, Zahar, 1974), A RevoluçãoFrancesa (3? ed., São Paulo, Difel, 1979) eCamponeses, Sans-Culottes, Jacobinos(Lisboa, Seara Nova, 1974), além de arti-gos referenciais, entre os quais Descrição eMedida em História Social, publicado naL'Information Historique (1966) e tradu-zido na Revista de História (USP, 1968, n?75) - um acerto de contas com o marxismoe com os Annales. Na apreciação de Gode-chot, Soboul "bien que marxiste depuis sãprime jeunesse, protestait avec véhémencelorsqu'on lê tratait d'historien marxiste. II seproclamait fidèle à l'historiographie révolu-tionnaire 'classique'." (J) (em L'Histoire deIa Révolution Française), "clássica", ouseja, a linhagem de Michelet, Jaurès, Mat-hiez, Lefebvre .. .

Na obra de Jacques Godechot, por suavez, o leitor poderá encontrar um manancialriquíssimo de informações atualizadas: emportuguês, ressaltam seus volumes As Revo-luções e Europa e América no Tempo deNapoleão, contendo o estado atual dasquestões, linhas de pesquisa e fontes a res-

(1) "ainda que marxista desde sua primeira juven-tude, protestou com veemência sobre a obra do histo-riador marxista. Ele se proclamou Jiel à historiogra-fia revolucionária clássica'."

Marx enxergouos embates

entre "estamentospretéritos e

classes futuras"

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Achille Occhetto,secretário do

Partido ComunistaItaliano, proclama:

"Somos filhos daRevolução Francesa."

Mas os revolucionários,diz ele, eramherdeiros do

despotismo

peito dos principais temas revolucionários(e contra-revolucionários) do período de1788 a 1815. Em sua extensa e variadaobra, cobrindo desde a história do Atlân-tico, a articulação das "repúblicas-irmãs", arevolução colonial até as petites histoires deespionagem, destaque-se uma importantecoletânea de escritos vários de sua autoria(Regards sur 1'Époque Révolutionnaire,Toulouse, Privat, 1980) que seus ex-estudantes editaram, contendo estudos so-bre a França revolucionária e sobre a revo-lução fora da França (inclusive sobre Por-tugal e a Revolução, sobre as instituiçõesnapoleônicas exportadas e sobre Robes-pierre e a América). E para consulta siste-mática, um preciso e atualizado instru-mento de trabalho: La Révolution Fran-çaise, Chronologie Commentée 1787 -1799 (Paris, Perrin, 1988), contendo minu-ciosa periodização e um instigante pequenodicionário biográfico dos personagens cita-dos, cerca de 400.

A análise historiográfica - sabem os his-toriadores profissionais - constitui o maisdifícil campo do conhecimento. "Que é umproblema histórico? É a história do pro-blema", dizia sempre Lucien Febvre. Alémdisso, a crítica historiográfica pressupõe acrítica ideológica, a demorada reflexão so-bre as "fontes", a experiência interdiscipli-nar, certos cuidados com os usos da His-tória.

O historiador da Grande Nation, dentrode uma tradição que remonta (termo fran-cês...) à linhagem jacobina, enfrentou emvárias épocas de sua vida a tarefa de ofere-cer o état actuel das pesquisas e discussões.Em primeiro lugar, nos Annales Histori-ques de Ia Révolution Française, dos quais

é um dos diretores, onde escreve regular-mente, e na Révue Historique (Paris), quepublica a cada três ou quatro anos umsubstancioso Bulletin Bibliographique; apartir de 1955 e durante muitos anos Jac-ques Godechot foi seu redator. Em se-gundo, publicou-se em português seu ba-lanço As Grandes Correntes da Historio-grafia da Revolução Francesa de 1789 aosNossos Dias (Revista de História, USP, n?80, 1970). E, finalmente, um extenso, atua-lizado e polêmico estudo historiográfico,L'Histoire de Ia Révolution Française (emHistoriens e Géographes, Paris, Buisson,fev.-março 1984, págs. 711-759) - em queindica os atuais centros de pesquisa, institu-tos, comissões, museus; as grandes corren-tes de interpretação; os manuais e guias, asgrandes sínteses; os estudos parciais sobrerelações internacionais, vida política e insti-tucional, social, das idéias e mentalidades,militar etc.; e biografias. Nesse estudo, Go-dechot apresenta, ao discutir as grandessínteses, sua perspectiva crítica: "As gran-des sínteses, publicadas nos últimos dozeanos, em verdade não trazem fatos novos.Elas se destacam essencialmente pelas di-versas interpretações que dão à Revolu-ção." E, de Soboul a Chaunu, a Cobban eFuret-Richet, e a Hampson, Mazauric e Ré-gine Robin, Godechot alinha restrições ouqualidades - fazendo notar todavia que foinos estudos monográficos que surgiraminovações. Nesse balanço, refere-se mais di-retamente à obra de François Furet e DenisRichet (La Révolution Française, Paris,Hachette, 1965), interpertação "revisio-nista", segundo pensa. Negando a luta declasses, para eles a Revolução teria sido ar-ticulada por uma elite intelectual saída das

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"luzes" e formada de burgueses e privilegia-dos:

"Ensuite elle a 'derapé' entrainée par lêsrevendications desordonnées de Ia paysan-nerie, puis de Ia plebe dês villes; elle est re-venue à sés objectifs primitifs avec Ia 'stabi-lisation révolutionnaire' de 1800" (2), sinte-tiza o autor de La Grande Nalion.

Na apreciação crítica de Godechot, essetipo de interpretação pode levar a conside-rar que o Terror não se deveu às circuns-tancias históricas, e que toda revolução im-plica Terror. Assim foi na URSS, assim naFrança..., e as sociedades dos Jacobinosprefiguram o partido único, o partido co-munista... Retomando a velha interpretaçãode Augustin Cochin, o autor, entre outras,de Lês Sociétés de Pensée et Ia Democratie(Paris, 1921), Furet-Richet aderem "àsalas dos historiadores mais hostis à Revolu-ção". Os argumentos de Furet podem serencontrados em sua instigante coletânea deensaios Penser Ia Révolution Française(Paris, Gallimard, 1978).

A polêmica sobre o "fim" da Revoluçãocontinua acesa, por vezes áspera, nas pági-nas dos Annales Historiques de Ia Révolu-tion Française, ou em torno de discussõesde filmes como Danton de Wajda, La Nuitde Varennes (Casanova e a Revolução) deEttore Scola e Marat/Sade de Peter Weiss/Brook. Ou ainda na agressão brutal a artis-tas por parte de jovens skinheads - os no-vos muscadinsl - durante manifestaçõesteatrais, num bairro de Paris, já neste anodo Bicentenário. Prova eloqüente de que aRevolução está viva.

"Somos filhos da Revolução Francesa",proclama por sua vez o secretário do Par-tido Comunista Italiano, Achille Occhetto,

(2) "Em seguida, ela 'derrapou' arrastada pelas rei-vindicações desordenadas da plebe das cidades; ela\-olta aos seus objetivos com a 'estabilização revolu-cionária' de 1800"

para quem as palavras recentes do dirigentesoviético Mikhail Gorbachev na ONU me-recem meditação:

"É ingênuo cogitar de resolver os pro-blemas de hoje com os métodos do passado.As duas revoluções, a de 1789 e a de 1917,mudaram o curso dos eventos humanos como seu excepcional impacto. Mas quem seinspira apenas numa ou na outra não dis-põe de soluções para o dia de hoje, porqueas duas não estão mais em condições deexaurir as problemáticas do presente." (En-trevista a Istoé Senhor, ri> 1014, 22.2.89).

Mas Occhetto repropõe corretamenteessa discussão: somos, com efeito, herdei-ros da Revolução Francesa. Herdeiros dosdireitos que ela proclamou, filhos da pri-meira experiência democrática. Mas os re-volucionários, eles sim, eram herdeiros dodespotismo.

A REVOLUÇÃOE A QUESTÃO

COLONIAL

". . . o melhor era esperarque viessem os Francezes, os quais

andavão nessa mesmadiligencia pela Europa, e logo cá chegarão"

Cipriano Barata (Salvador, 1798)

O colapso do Antigo Regime provocourupturas ou, quando menos, abalos nos sis-temas coloniais.

A independência das ex-colônias inglesasem 1776 e o ato revolucionário da'Conven-ção em 1794, acabando com a escravidãosem indenização nas colônias (São Domin-gos e Guadalupe), abriram uma nova pers-pectiva para as regiões de colonização.

A polêmicasobre o<"fím" daRevoluçãotambém passapelo cinema de hoje.Por exemplo,pelo Danton deWajda

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Recife, na tela deFranz Pôs t. Aqui,

depois da Conjuraçãodos Alfaiates (1798),

houve quemesperasse pelo

desembarque dosf>ranceses

José de San Martin,grande

personagem daindependência

argentina

Com efeito, as revoluções dos Estados Uni-dos e da França polarizaram os corações ementes não só das elites nativas coloniais,mas também do mundo do trabalho. A am-bigüidade da presença francesa será entre-tanto uma constante, sobretudo após Bona-parte restabelecer a escravidão nas Antilhasem 1802. A morte de Toussaint-Louverture, preso em Paris, dá origem aomaior dos mitos revolucionários do períodocolonial. O medo do haitianismo - o perigodo levante em massa de escravos - marcará

a América do Sul durante todo o séculoXIX, seja o mundo oficial local, seja o co-mando da South American Station, quecontrolava e administrava o império infor-mal da Inglaterra.

No fim do século XVIII, idéias de revo-lução circulavam pelo Atlântico, assistindo-se a um verdadeiro vendaval bibliográfico.Os movimentos de independência em gesta-ção tiveram seus agentes em revolucio-nários como Francisco de Miranda, que lu-tou nas tropas girondinas (sendo inclusiveculpado da derrota na batalha de Neerwin-den), José de San Martin ou em personali-dades como José Joaquim da Maia, o estu-dante que se encontrou com Jefferson emNimes para pedir apoio dos Estados Uni-dos para a revolução de Minas em 1789("Inconfidência"). Também as tropas deNapoleão eram esperadas (em vão...) emSalvador nos fins do século XVIII, paraajudar na libertação, por Cipriano Barata,um dos grandes revolucionários da Históriado Brasil: preso na Conjuração dos Alfaia-tes (1798), terá atuação avançada no pro-cesso de independência. Com efeito, nosprincipais portos brasileiros os franceseseram aguardados: Rio de Janeiro, Bahia,Recife...

Deixando de lado certas participaçõesconcretas de brasileiros que viveram naFrança nesse período, como o padre Ar-ruda Câmara (um dos inspiradores da Re-volução de 1817 e 1824 em Pernambuco),José Bonifácio (por curto tempo, em 1790 e91 em Paris, aluno em química e minerafo-gia de Fourcroy, Duhamel, Jussieu e Sage -

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este, adversário de Lavoisier e de Chaptal)ou como o baiano mulato e filho de carpin-teiro Caetano Lopes de Moura (o "brasi-.eiro soldado de Napoleão", médico e autorde uma biografia do corso), importa notaras relações intensas entre o processo revo-lucionário na França e a fermentação po-lítico-ideológica nas várias partes do Brasil.

As idéias de Revolução e de Reformavêm sendo estudadas com rigor, podendo-se ultrapassar a história noive das "influên-cias" e dos "reflexos". No imaginário daFrança, a presença do Brasil sempre foi no-íável, desde a famosa Fête brésilienne coma presença de indígenas em Rouen no sé-culo XVI, que tanto repercutiu na literaturae na filosofia de Montaigne a Rousseau. Sefiguras da revolução pensaram e menciona-ram o Brasil no período colonial - comoRaynal e Rèstif de Ia Bretonne - em contra-partida Rousseau, Mably, Montesquieu,Voltaire, Brissot, Raynal, Volney e mesmoBoissy d'Anglas, entre tantos outros, erammuito lidos aqui. Às vezes por brancos ad-vogados rebeldes, às vezes por artesãos mu-latos e pobres. Se, em Minas de 1789, a re-volução almejada era a dos proprietárioscontra a colonização, em Salvador de 1798era contra os proprietários.

'entre as leituras depensadores franceses, estudos recentes vêmdestacando a importância das idéias deRaynal na gestação do pensamento revolu-cionário no mundo colonial. ToussaintBréda, o futuro Toussaint-Louverture, des-pontou nas páginas de Raynal-Diderot,como bem analisou o historiador FernandoA. Novais, em estudo prodigioso sobre acrise do Antigo Sistema Colonial portu-guês, em que revela quais leituras eram fei-tas desses autores no universo colonial.

Em qualquer hipótese, na história dopensamento revolucionário no fim do sé-culo XVIII e começo do XIX ressalta a in-tensa circulação de idéias de reforma e re-volução, das metrópoles para as colônias, evice-versa, com refrações e matizesespecíficos. No Brasil, de 1777 a 1824,idéias de revolução, por vezes misturadas aum reformismo ilustrado, ajudaram a plas-mar a nova ordem - vencendo as propostasque conciliassem a revolução com a escra-vidão. Nada obstante, as "idéias france-sas", o "perigo francês", o "jacobinismo", a"francezia" sempre amedrontavam as for-ças da contra-revolução.

E a presença francesa pode ser notada deoutras formas. Na primeira revolução bra-sileira, no Nordeste em 1817, em que seiniciou o jovem frei Caneca - discípulo do

padre Arruda Câmara - não só militaresbonapartistas desembarcados dos EstadosUnidos chegam (tardiamente) para ajudar aRevolução e resgatar Napoleão em SantaHelena para um novo retorno à Europa.Também um comerciante bretão, o conser-vador Tollenare exclama aliviado, em seudiário, após a repressão ao movimento:

"Mais um pouco mais de tempo e tería-mos revisto os sans-culottes."

As novas idéias penetram, em níveismais profundos do sistema - aguardandonovas pesquisas. Um só exemplo: o advo-gado dos revolucionários nordestinos de1817 presos, Aragão de Vasconcelos, leitorde Brissot de Warville (que citava impetuo-samente, apesar de ser autor proibido), emseus argumentos mais fortes para justificara insurreição e libertar os revolucionários,utiliza-se de Rousseau, sem citá-lo embora:

"Nas revoltas a marcha ordinária nadaaproveita, é antes nociva, as leis ficam semvigor e os princípios que até então serviamde norma são mui mesquinhos para nosaferrarmos a eles,como âncoras de salvação,o homem volta como ao natural estado ..."

A morte deToussaint-Louverture,

preso em Paris,criou um dos maioresmitos revolucionáriosdo período colonial:

o medo do"haitianismo"

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Reunião jacobinaem janeiro de 1792,

segundo uma gravurasatírica. Entre 1793

e 1794, os Jacobinosapelaram para o

movimento popular,mas seu poder

foi efêmero

AS REVOLUÇÕESDA REVOLUÇÃO

"... esta não era uma época a ser medidapelos critérios humanos cotidianos."

Eric J. Hobsbawm

"... nesse emaranhado de raízes está ocerne das resistências que hoje temos de

vencer se não queremos apenas sobrevivercomo museus de r&folutas eras."

Vitorino Magalhães Godinho,(1970)

Nesse longo percurso de apenas dez anos(1789-1799), toda uma lição de História seapresenta, tornando clássico o exemplo re-volucionário da França. A crise do AntigoRegime; as reformas e a reação feudal; aaliança (e depois o confronto e, mais tarde,a conciliação) entre burguesia e nobreza; oassalto à Bastilha e a abolição da servidão;o confronto entre monarquistas e republica-nos e, depois, entre a República burguesa ea democracia popular; o embate do go-verno revolucionário com a ditadura jaco-bina; a disputa entre igualitaristas radicais erepresentantes da revolução burguesa; e, fi-nalmente, o golpe de Napoleão Bonaparte eSieyès em 1799 completam, etapa poretapa, um processo histórico que deixarámarcas profundas no pensamento contem-porâneo. Processo que oferece ao leitor arica, densa amostragem de posições - deestilos de pensamento, abarcando visão dehistória, de política, de arte, de filosofia, deliteratura - e de situações que se tornaramemblemáticas. E que, por esse motivo, se re-

petem, aqui e acolá, com novas roupagens eoutros disfarces. E freqüentemente muitasfarsas.

Nesse processo, houve várias revoluçõesdentro da Revolução. Mas a melhor síntesetalvez tenha sido a do próprio revolucio-nário Marat. Ao denunciar a traição aopovo pelos "conspiradores educados e sutisda classe superior", que a princípio se opu-seram aos déspotas e se insinuaram na con-fiança popular, voltando-se depois contra"os de baixo", escreveu:

"O que as classes superiores ocultamconstantemente é o fato de que a Revoluçãoacabou beneficiando somente os donos deterra, os advogados e os chicaneiros."

Nesta breve história, ressaltam as ocor-rências de dois momentos de ruptura naHistória moderna da França: a Revoluçãode 1789 e a Revolução de 1793. Revoluçõesque anunciam - e demarcam - as duas ver-tentes dominantes da então inauguradaHistória Contemporânea. Na primeira, aderrubada do Antigo Regime, a aboliçãodas feudalidades, a construção da cidada-nia; na segunda, a emergência dos movi-mentos populares e a primeira participaçãopopular no governo da rés publica, ao ladoda burguesia jacobina radical. O movi-mento popular, destruído depois dessa pri-meira experiência do ano II, somente vol-tará a se mobilizar na França nas revolu-ções de 1830, 1848 e 1871. Mas, para alémdesses dois momentos - 1789 e 1793 - deruptura, vislumbram-se outros traços quepermitem falar num movimento mais geral- a Revolução Francesa, processo decisivoda transição nem sempre contínua e com-pleta do Feudalismo ao Capitalismo(Dobb).

No contexto violento de reforma institu-

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O últimoretratode Luís XVI,no desenhode JosephDivreux

ff

ciunal unificadora e racionalizadora do Es-tado monárquico, instaurou-se uma seqüên-cia de lutas de classes que levou à revoluçãoburguesa. Revolução que possuía uma ló-gica muito própria: deslocados os monar-quistas do poder, a burguesia dos negóciosassume o comando do processo na Conven-ção Girondina, sendo logo ultrapassada pe-los Jacobinos que, para se sustentarem nopuder e vencerem a guerra externa, apelamao movimento popular em 1793/1794, mo-vimento logo cortado pela Reação Termi-doriana. A breve experiência dessaSegunda Revolução foi desativada pormeio de sucessivos golpes e manobras quelevaram a Revolução ao seu fim e à monta-gem férrea da ordem burguesa. Em qual-quer hipótese, o mundo do trabalho - asans-culotterie sobretudo - estava naFrança pulverizado entre uma concepçãode produção e de vida artesanal em declínio

e uma concepção industrial ainda em suasprimícias: dele não brotariam movimentosque denunciassem vigorosa e homogêneaconsciência de classe que confrontasse e ul-trapassasse o universo da "burguesia con-quistadora".

Nessa perspectiva, a burguesia era aúnica classe revolucionária defacto no sé-culo XVIII, como precisou Marx noManifesto mais de meio século após a Re-volução. Não há que se pensar, portanto,em "derrapagem".

Nada obstante, o avanço da Revoluçãono plano social foi significativo, sobretudo noperíodo da Convenção - e apesar de muitoatenuado no Diretório. Ao se destruir a so-ciedade de Ordens e se pôr abaixo a aristo-cracia que vivia dos privilégios feudais,eliminou-se a base social que sustentava oEstado absolutista encarnado na figura deLuís XVI. Ponto mais fundo da Revolução,

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Babeuf eseus igualitaristasradicais foramesmagadospela reação burguesa.Perdeu a cabeçana guilhotina,em 1797

a República da Convenção jacobina do anoII mobilizou - no limite de seus interesses,de suas possibilidades históricas e de suascontradições - as massas populares urba-nas esfomeadas, a pequena burguesia radi-cal, os pequenos produtores independentese, sobretudo, os camponeses ainda imersosna servidão.

Em seu transcurso, ocorreram episódiosque tornaram clássico o "modelo" revolu-cionário da França, dada uma certa se-qüência de "etapas" que penetrariam fundona imaginação histórica contemporânea: astentativas de reforma do Antigo Regime; areação aristocrática, a mobilização da(s)burguesia(s) e a convocação de uma Cons-tituinte; a Tomada da Bastilha, o aprisiona-mento do rei absolutista e a implantação deuma monarquia constitucional; a aboliçãoda servidão feudal e a proclamação da Re-pública. Já na República, o confronto entrea burguesia republicana e os ensaios e natu-rais exigências da democracia popular con-duzindo à associação e, depois, ao desa-certo entre o governo revolucionário e a di-tadura republicana jacobina; com a radica-lização das posições, assiste-se à reação daburguesia revolucionária conservadora (ter-midoriana) que, estabilizando a revolução,esmaga, no Diretório, os igualitaristas radi-cais de Babeuf e os jacobinos ressurgentes.

No fim do percurso, o golpe militar do18 Brumário (1799), um novo "pacto so-ciar" (sic) cimentando o regime dos "notá-veis": a aristocracia se recompõe com aburguesia revolucionária sob o manto con-sular e depois imperial de Bonaparte.

ALiem de profunda, aRevolução foi extensa. Consolidando-se, arevolução burguesa foi sendo exportadapara outros países, sobretudo no períodonapoleônico. Mas em qualquer hipótese,como se viu, torna-se impossível explicar aRevolução sem se considerar a dialética en-tre a guerra interna e externa. Quase toda aEuropa e as Américas - o Brasil inclusive -sofreram suas repercussões e, em contra-partida, a alimentaram; e também em largamedida, a Ásia e a África.

Jacques Godechot, estudioso da GrandeNation, chegou a formular a idéia de umaRevolução Atlântica - para frisar o caráterocidental e burguês do processo, tanto maisprofundo quanto mais próximo das regiõesribeirinhas desse oceano. Tal fórmula entre-tanto recebeu críticas daqueles que, comoseu amigo Soboul, julgaram esse conceitodemasiado abrangente, esvaziando a especi-ficidade dos movimentos nacionais e sociaisde cada região. Mas como deixar de consi-

derar a intensíssima circulação de pessoas,mercadorias, livros, armas e idéias peloAtlântico - sobretudo quando essas pessoasse chamam Tom Paine, padre Arruda Câ-mara, Francisco de Miranda, Thomas Jef-ferson, San Martin, Toussaint-Louverture eNapoleão? Ou mesmo José Bonifácio, o in-contido "patriarca" da Independência doBrasil - que em 1790-91 esteve estudandocom Fourcroy em Paris, cidade em que dei-xou uma filha, Elisa, com madame Delau-nay . . .?

A Revolução foi extensa também notempo, pois um dos dilemas centrais da Re-pública do Diretório permaneceu irreso-luto para a classe média francesa, segundoo diagnóstico do historiador Hobsbawm emA Era das Revoluções: como compatibilizarestabilidade política com avanço econô-mico adotando-se o programa liberal de1789-91? Ou seja, como evitar "ao mesmotempo" o duplo perigo da república demo-crática jacobina e do retorno do Antigo Re-gime? As experiências sucessivas e alterna-das do Diretório (1795-99), Consulado

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^1804), Império (1804-14), a Res-;ão com a monarquia Bourbon (1815-i volta da Monarquia Constitucional-48), a República (1848-51) e o Im-(1851-70) levam o historiador inglês ar que a solução só foi descoberta, ade 1870, com a república parlamen-

>mo "uma fórmula exeqüível para aparte do tempo . . ."

:ensa no tempo e no espaço, comonuma conferência recente o historia-

Vovelle, comentando um teste precisopor Godechot para se avaliar o

aento e a difusão da DeclaraçãoDireitos do Homem nos diferentesi: como repercutiu, qual o tempo, as

de recepção, as reações, os obs-a tradição jornalística em cada re-

' etc. Nessa mesma comunicação ao Sé-Congresso Internacional das Luzes

1987) sobre "A Revoluçãoe seu Eco", Vovelle chamava a

para a problemática das "ima---- Revolução e pela enorme quanti-

e riqueza de "leituras" possíveis nos

equivalentes semânticos quando falamosnas "repercussões" da Revolução: eco, res-sonância, influência, difusão, recepção, im-pacto, reações, legado, herança . . . E ad-verte: tal lista de palavras não é evocadapor simples curiosidade, "mas pelos matizesque sugerem na própria maneira de abordaro problema".

Assim, a circulação das idéias da Revo-lução deve ser cuidadosamente analisadaconforme a época, o contexto social e aconjuntura política - tanto dos emissoresrevolucionários quanto dos receptores. Poiso estudioso da revolução no Brasil poderáficar surpreso ao observar que, na Conjura-ção dos baianos de 1798, os rebeldes liamnão só Rousseau, mas também o conserva-dor Boissy d'Anglas - um dos redatores daConstituição do ano III, porta-voz da di-reita no Diretório e futuro liberal... Ouseja, o que é conservador na metrópolepode ser revolucionário nas colônias,'e vice-versa, conforme a vez e a hora. Afinal, em1817, a revolução no Nordeste brasileiro,que teve um cronista magnífico em Henry

Boissy d'Anglasé saudado pela plebeque carrega a cabeçadecepada de seuinimigo Feraud,a 20 de maio de 1795.Porta-voz da direitano Diretório, Boissyfoi autor muitolido no Brasil em finsdo séc. XVIII

,*-* i

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O historiador inglêsEric Hobsbawmconsidera aConvenção Nacional"a mais notávelassembléia nahistória doparlamentarismo

A marca daInconfidência Mineira

é o reformismodos proprietários

Koster, o nosso Henrique da Costa, consti-tuiu - pela bibliografia e pela ação - umadas pontas mais avançadas de seu tempo.

Concluindo, houve várias revoluções den-tro da "Grande Révolution", que ainda re-percutem cada uma a seu modo e tempodespertando nossa contemporaneidade. Edesdobramentos que permitiriam repensaras revoluções francesas numa seqüência demais longa duração: 1789, 1830, 1848 -como o fez Ernest Labrousse em seu estudonotável sobre as flutuações econômicas e ahistória social, demonstrando "como nas-cem as revoluções" desse período. Ou naseqüência 1789, 1793, 1830, 1848,1871 . . . Afinal, o neojacobinismo e o blan-quismo do século XIX muito devem aos re-volucionários de 1793, e o neo-hebertismodas poucas semanas da Comuna de 1871vincula-se à tradição popular sans-culotte,como demonstrou Soboul em seu estudoDo Ano II à Comuna de 1871.

Mas há que se perceber sobretudo a pro-funda revolução cultural - em sentido am-plo - desencadeada a partir de 1789, 1793,1796 e mesmo 1799. Não só medidas episó-dicas propriamente revolucionárias ocorre-ram - o guilhotinamento de Luís XVI, porexemplo - como a ruptura com a antigatradição estamental familiar (na ampliaçãoda herança, no divórcio, no reconhecimentodos bastardos etc.); a consolidação da uni-dade do Estado nacional por meio de umanova hierarquia de funcionários, adminis-tradores (prefeitos, por exemplo), juizes,universidades e escolas; a criação e consoli-dação da escola pública; a formação de mi-litares profissionais independentemente delinhagem familiar, além da triplicação docontingente e barateamento dos custosnesse curto período; a criação de moeda e

banco nacionais; uma sólida rede de insti-tuições públicas de ensino, de cultura e deestímulo à pesquisa em que se destacaram(inclusive na guerra civil, ao lado dos sans-culottes e, depois, com Napoleão) matemá-ticos, físicos, químicos, historiógrafos, es-critores e pintores como Monge, Lagrange,Berthollet, Champolion (o decifrador doshieróglifos na trágica e curiosa expediçãode Napoleão ao Egito) e David. E, paraalém de suas próprias deliberações revolu-cionárias, a Convenção Nacional - o mo-mento mais alto da Revolução, no períododa Convenção Jacobina - adota, revela etesta mecanismos de vivência republicanade uma instituição por Hobsbawm conside-rada "provavelmente a mais notável assem-bléia na história do parlamentarismo".

r ao foi pouco. Tes-tou-se a cidadania plena, sentiu-se o li-mite da História. Também novos costumesforam praticados, que o retorno ao discutí-vel modelo greco-romano - nas artes, como pintor David ou os irmãos Chénier, ou napolítica, com Robespierre ou Napoleão -não conseguiu encobrir. Novos costumesdos quais não se dissociam os nomes dosescritores Choderlos de Laclos, Réstif de IaBretonne e do Marquês de Sade, nem deMadame de Staêl ou de Théroigne de Méri-court, a "amazona de Liège" . . .

Sintoma de viragem mental, velhas pala-vras adquiriram novos conteúdos. E entreelas, "república", "patrício", "plebeu","proletário", "cidadão", "pátria",, "se-nado", "diretor", "cônsul", "impera-dor" . . . E, a mais forte, "Revolução" . . .

Revolução cultural que não se traduziu

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apenas no tratamento democrático por"tu", na instituição do divórcio ou no corteie cabelo ao estilo do imperador romanoTão - como a brasileira Maria Theodorada Costa adotaria em seu casamento com ofàer revolucionário Domingos José Martinsem Recife em 1817, demostrando publica-mente suas convicções republicanistas.Essa revolução cultural caminhou por meiode idéias, projetos, hipóteses, conceitos eideologias que foram sendo testadas, com-batidas, rejeitadas, perseguidas, adaptadase aplicadas.

"Ideologia", por exemplo, uma daspalavras-chave do vocabulário contempo-râneo, apareceu pela primeira vez naFrança naquele turbulento fim de século, noconflituoso período do Diretório: era utili-zada por gente - filósofos, ou melhor,"ideólogos" - como Destutt de Tracy, Ca-banis, Volney. E também por gente que de-testava filósofos . . . como Napoleão Bona-parte, ex-leitor de Voltaire. Napoleão, quese serviria de alguns "ideólogos" em sua ir-resistível ascensão.

A REVOLUÇÃOí FRANCESA

E A NOSSACONTEMPORANEIDADE

As idéias de contra-revolução do Termi-dor, do Diretório, do Consulado, do Im-pério e da Restauração - mais, muito maisque as pontas avançadas da Revolução de1789 e 1793 - predominaram, em seus di-versos matizes, ao longo da História doBrasil. Não por acaso as presenças deideólogos como Benjamin Constant e, de-pois, Mallet du Pan, Louis de Bonald e Jo-seph de Maistre pontificariam, através deseus livros e seguidores atentos, nas biblio-tecas e nos salões das elites dirigentes donosso século XIX. "Fui liberal" . ..

As atitudes e as formas de pensamentoconservadoras definiram o padrão político eintelectual da titubeante nação que emergiano contexto da Restauração - e quem a elee por ele não se alinhou foi exilado, silen-ciado ou morto. As histórias de vida de Ci-priano Barata, Gonçalves. Ledo e frei Joa-quim do Amor Divino Caneca são demons-trativas das férreas exigências do modelo deexclusão sócio-política e ideológica do im-pério tropical, modelo que tantaliza até hojeos estudos sobre a historicidade da "ques-lão nacional".

Mas já à época da Inconfidência Mineira(1789) e da Conjuração Baiana (1798) o

conservadorismo estamental de nossos revo-lucionários mostrou-se patente. Se no pri-meiro caso, em Minas, se lia a obra subver-siva de Raynal, em que o abade sugeriauma reviravolta no mundo colonial, side-rando gente como o cônego Luís Vieira daSilva e Domingos Vidal Barbosa (que o sa-biam de cor), não se deve esquecer todaviaque era um reformismo de proprietários, oude aspirantes à propriedade, que animavaos sediciosos. Descoberto e cortado o movi-mento, Vidal Barbosa figurará na relaçãodos delatores . . . Já na conjura dos "al-faiates" baianos de 1798, liam-se trechos deRousseau (a Nouvelle Heloise, é verdade),Mably, Volney mas também, como de-monstrou pioneiramente a historiadora Ka-tia Mattoso, Boissy d'Anglas, o pós-termidoriano homem do Diretório, um dosrepressores ao movimento jacobino e àConspiração de Babeuf. Em suma, de qualRevolução Francesa falamos no Brasil?,

Em contrapartida, José Bonifácio, o apli-cado e controverso "patriarca da Indepen-dência" de 1822, esteve em Paris em 1790 e

O pintor David,ligado aos Jacobinos,

ficou na prisãode Luxemburgo em

1794, Mas tevetratamento especial e

continuou pintandona sua cela,

transformada em ateliê.Ali ele fez este

Auto-retrato

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O diretor italianoPontecorvocontou no

filme Queimada,com Marlon Brando

no papel deagente duplo, umahistória simbólica

também nomovimento

republicanista de1817, em Pernambucoe em todo o Nordeste

1791, mas não parece ter bebido nas fontesmais generosas do movimento de Danton,nem de Marat, Robespierre, Saint-Just, oudo sábio e ativo abade Grégoire, e nemmesmo nas do girondino Brissot - um entu-siasmado defensor da libertação colonial.Ao contrário, anos depois, já em Portugal eantes de regressar ao Brasil, comandaria oAndrada um batalhão português contrauma tropa invasora liderada por Masséna,um dos generais de Napoleão.

Os "abomináveis princípios franceses",os "conventículos" em que se cultivavam"francezias" e as "idéias jacobinas", ator-mentavam as elites brasileiras que procura-vam encaminhar a independência sem revo-lução, isto é, sem modificação no sistemade trabalho escravista e no regime monár-quico. O movimento republicanista de 1817em Pernambuco e no Nordeste - a nossaQueimada (Pontecorvo), a primeira revolu-ção no mundo luso-afro-brasileiro - repre-senta o limite da Revolução nestas plagas.Seu prolongamento, na Confederação doEquador (1824), após a Independência de1822, em que se destacou frei Caneca, foiaplastado pelas forças reacionárias do novoImpério de Pedro I e de José Bonifácio:inaugura-se então a metodologia da contra-revolução permanente, que se desdobrariana repressão a todos os movimentos popu-lares do Império, da Primeira República, doEstado Novo, do regime de 1964-84, rema-nescendo até nesta diretorial "Nova Repú-blica". Confundem-se desde essa época - eo Patriarca é o nosso paradigma maior - oliberal e o conservador, o libertador e o re-pressor, o moderno e o ultra-arcaico,adensando-se o caldo cultural da Concilia-ção em que se atolam todas as iniciativaspara a construção de uma nova sociedadecivil, moderna, avançada.

José Bonifácio passou pela Revolução,mas evitou cuidadosamente o contágio

Em verdade, alguns ideais de Revoluçãoressoaram por aqui, como em outras re-giões da América Latina. Mas, diga-se, al-cançam os tristes trópicos sobretudo pelavertente girondina: as inspirações e cone-xões do "precursor" da independência naAmérica Latina, o venezuelano general Mi-randa (amigo do comerciante DomingosJosé Martins, líder da revolução de Per-nambuco), são expressivas. Como o hábiladvogado dos revolucionários de 1817,Aragão de Vasconcelos que, por sua vez,de-fendia, como vimos, os réus encarceradosbrandindo a obra Brissot de Warville. (E,sem citar a autoria, contrabandeava emseus arrazoados, zombeteiro, algumasidéias do interdito e inaplicável Rousseau...)Afinal, às burguesias comerciais da França,da Inglaterra, dos Estados Unidos, estas re-giões interessavam como mercado a ser

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aberto ou ampliado, fora dos marcos doerodido mercantilismo ibérico, ilustrado ounão.

A maior região escravista do Ocidente,entretanto, deveria ser mantida sem que os"de baixo" se manifestassem - afinal, o pe-rigo do haitianismo atormentava as elitesbrasileiras e portuguesas, a armada inglesada South American Station e os francesesdo Diretório, do Consulado, do Império e daRestauração. Só Toussaint-Louverture, umblack jacobin, igualmente leitor de Raynal,mostraria ao mundo a face colonial daR evolução: terminou seus dias num presídioda França, mas seus sucessores venceramas tropas de Napoleão...

f?-£uiiinalmente, os estu-

dos sobre a decantada "influência" da Re-volução Francesa no Brasil ainda aguar-dam análises que respondam a velhas per-guntas. Por que a esquerda brasileira nãopercebe que um escritor e homem de açãocomo Abreu e Lima, o "general das mas-sas" e autor de O Socialismo (1855), foi tãomarcado pelo conservador e golpista do 18Brumário, o abade Sieyès? Estarão, de fato,as idéias fora do lugar? Por que, no Brasilatual, a despeito de suas trágicas caracterís-ticas sócio-culturais e políticas, as "perigo-sas idéias jacobinas" republicanas e demo-cráticas, que trariam a nós as noções de ci-dadania plena e de legitimidade, continuama não vicejar, em contraste com este perma-nente ranço cultural do despotismo esclare-cido, do autoritarismo bonapartista e do gi-rondinismo de meia-confecção que ine-briam nossas elites, sem resgatar e implan-tar entretanto nem um só traço porventurapositivo daqueles projetos históricos? E acorrupção, os sucessivos golpes e o desgo-verno no período do Diretório (1795-1799),que termina com o golpe do 18 Brumáriode Sieyès e Napoleão, não iluminariam por-ventura - guardadas as proporções e sobre-tudo os talentos de ambos - os descami-nhos desta ínvia "Nova República" brasi-leira?

Quando um historiador austero comoJacques Godechot, meditando sobre o con-formismo contemporâneo da sociedade demassas, ressalta o aspecto positivo do abalocultural e político de 1968, no sentido de se-rem buscados novos padrões civilizatóriospara substituir formas agônicas de vida ede pensamento, não é da necessidade deuma nova e profunda Revolução Culturalque se está falando? Na China, na UniãoSoviética, na Europa às vésperas de 1992 -na Itália em particular -, ou na EuropaCentral, a releitura das revoluções france-

sas está em curso. Para a América Latina,entretanto, região periférica sempre vivendoa eterna antevéspera, fatigada embora deneocaudilhos e de neogirondinos "moderni-zadores", soa histórica a advertência re-cente do historiador Michel Vovello.

"Tenho visitado alguns países daAmérica Latina. Constato - e não julgo,mas apenas observo e aprecio como histo-riador das mentalidades - uma espécie deconsolidação da direita, e penso que issodefine bem um universo: o do medo."(Rio de Janeiro, 1987)

O golpe de Napoleãoe Sieyès de 1799

encerra o período dedesgoverno e corrupção

do Diretório.Qualquer semelhança

com a NovaRepública. ..

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