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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 196-197, maro/maio 2002196
esta no a primeira traduo da obrade Snell em lngua portuguesa. Hou-ve outra com o ttulo A Descobertado Esprito (Lisboa, Edies 70,1992). O ttulo brasileiro, A CulturaGrega e as Origens do Pensamento Euro-
peu, aproxima Snell a preocupaes cor-
rentes. Pensamos, entretanto, que se afasta
das intenes do autor. Die Endeckung des
Geistes implica o esforo de investigar a
fonte psquica do texto. O livro de Snell
aproxima-se, desde o ttulo, do mentalismo
de Ingarden, teorizado em A Obra de Arte
Literria. Discutvel a busca do espri-
to fora do texto. O que se diz do esprito
no antes construo verbal que no des-
venda o que fica alm? Nesse caso, dever-
amos pensar em inveno e no em desco-
berta. Questionvel tambm o deter-
minismo evolucionista de Snell. Em mais
de um passo o autor procede como se o
o pensamento grego tivesse predetermina-
do o pensamento europeu. Havendo pre-
determinao, como esquecer a vertente
hebraica, fortssima nos ltimos dois mil-
nios de civilizao ocidental? O esforo de
sntese desencadeado na Idade Mdia afe-
DONALDO SCHLER professor de LiteraturaGrega da UFRGS etradutor de FinnegansWake/Finnicius Revm(Ateli Editorial).
A Cultura Grega e asOrigens do PensamentoEuropeu, de Bruno Snell,So Paulo, Perspectiva,2001.
Bruno SnellDONALDO SCHLER
O pensamento de
tou todos os conceitos gregos, o que levou
investigadores recentes tarefa de limpar
concepes gregas de contgio judaico-
cristo. claro que recuperar o que os
gregos realmente pensaram impossvel.
Mas um dilogo proveitoso com autores
helnicos prejudicado quando os exami-
namos por um vis que lhes foi estranho.
Traduzir psykhe por alma (Seele) pro-
blemtico. Somos tomados de desconfor-
to quando se afirma que autores gregos
ainda no alcanaram o que ns enten-
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REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 196-197, maro/maio 2002 197
demos por alma. Como se ns (ou Euro-
pa) reconciliasse beligerantes atuais, em
plena guerra conceitual. Dizer que Home-
ro despedaa o corpo ajuda a compreen-
der muitas passagens da epopia homri-
ca. Mas como entender os gregos afeitos
a banquetes (Ulisses mais que todos) se
lhes faltava estmago? (As Musas de
Hesodo reduzem na Teogonia, aparecida
no mesmo perodo arcaico, a estmagos
somente.) Muito menos se entende o
navegador que deslumbra Nauscaa, se ele
no era mais que braos e pernas. Trajano
Vieira acerta quando na apresentao ad-
verte que o exame do vocabulrio de um
autor no suficiente para a compreenso
textual. Tambm arriscado fazer consi-
deraes sobre o significado de palavras
extradas do contexto. justo atribuir ao
homem homrico mente primitiva,
oposta ao pensamento racional? O
fillogo no se assemelha ao restaurador
de quadros, como pensa Snell. Todo in-
vestigador traz o texto antigo para seu tem-
po. A perspectiva do receptor afeta a ma-
tria examinada.
Lido com a devida cautela, temos em
Bruno Snell um investigador srio, til para
quem se interessa pelos estudos helnicos.
Veja-se, por exemplo, a rigorosa distino
feita entre psykh, thyms e nos, nos poe-
mas homricos. Os trs substantivos se
referem vida do esprito. A psykh s
aparece quando se afasta do corpo, thyms
abriga emoes, nos produz imagens.
Snell acompanha cautelosamente as modi-
ficaes que o significado de psykh sofre
ao passar de Homero para a lrica e para a
filosofia. As observaes de Snell so rele-
vantes tanto para o tradutor quanto para o
intrprete. Snell responde dvida de al-
guns sobre a hipottica f grega nos deu-
ses. Crer no absurdo atitude crist desde
Tertuliano. Para os gregos os deuses reve-
lam aspectos do cosmo. Os deuses olmpi-
cos, agredidos pela filosofia, sobreviveram
na arte. As Musas vivem quando sagram
Hesodo poeta. Hesodo, em quem o sentir-
se estrangeiro aflora, canta em verso as
sombras que Homero evitava. O amor,
menos intenso em Homero, leva Arquloco
ao desmaio, beirando a morte. Para Pndaro,
um dos maiores lricos da literatura oci-
dental, s a cano salva os grandes feitos
da runa. Na tragdia, consagrada ao culto
de Dioniso, rompe-se o vnculo entre mito
e realidade. A tarefa de entender a realida-
de atribuda agora prosa (Herdoto,
Hipcrates), contempornea da tragdia. O
conceito de arte se renova. Aristfanes inau-
gura a crtica poesia. A irracionalidade
desvendada por Eurpides leva a Nietzsche.
O Scrates platnico, descontente com as
meras manifestaes da virtude, fundamen-
ta-a num conceito universal, o Bem. Virglio
o primeiro a introduzir a srio homens de
seu tempo no mundo divino.
A leitura de Bruno Snell estimula a re-
flexo.