195 CULT Dossiê_Derrida

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23 DEZ ANOS DEPOIS, PASSANDO A LIMPO O PENSADOR DA DESCONSTRUÇÃO 25 A DESCONSTRUÇÃO 30 DERRIDA E A LÍNGUA DO OUTRO 34 [ ENTREVISTA ] PENSAR, TREMER, DESCONSTRUIR 38 ARTE E IMAGEM SOB OS OLHARES DA DESCONSTRUÇÃO 44 AS CIÊNCIAS, A RAZÃO E A DESCONSTRUÇÃO JACQUES DERRIDA DOSSIÊ

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Derrida, 10 anos depois - dossiê cult

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  • 23DEZ ANOS DEPOIS, PASSANDO A LIMPO O PENSADOR DA DESCONSTRUO

    25A DESCONSTRUO

    30DERRIDA E A LNGUA DO OUTRO

    34[ ENTREVISTA ]PENSAR, TREMER, DESCONSTRUIR

    38ARTE E IMAGEM SOB OS OLHARES DA DESCONSTRUO

    44AS CINCIAS, A RAZO E A DESCONSTRUO

    JACQUES DERRIDADOSSI

  • Depois da morte do filsofo Jacques Derrida, em 2004, muitas homenagens ao seu pensamento, sua obra e sua figura foram organizadas, escritas, publicadas. Entre tantos reconhecimentos muitos deles no colhidos em vida coube ao alemo Peter Sloterdijk publicar Derrida, um egpcio. O problema da pirmide judia (Estao Liberdade), livro em que a filosofia de Derrida articulada com sete outros grandes pensadores. Logo nas primeiras linhas, Sloterdijk escreve que Derrida foi o Hegel do sculo 20. Hegel no apenas como o nome prprio de um grande filsofo alemo, mas indicao de culminncia, esgotamento e nada mais a ultrapassar.

    CARLA RODRIGUES

    Dez anos depois, passando a limpo o pensador da desconstruo

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  • Dez anos depois da morte de Derrida, seus herdeiros, comentadores e leitores esto ainda diante da tarefa de levar adiante um pensamento que carrega tanto as marcas do auge da filosofia do sculo 20 quanto de seu possvel fim. Aqui, que no se enganem os crticos. Trata se do fim de um certo tipo de filosofia, no da destruio da experincia filosfica, mas sobretudo de sua possibilidade de renovao.

    Este dossi em torno da obra do filsofo franco argelino que fez do seu lugar de marginal Europa uma questo filosfica para o eurocentrismo e cujo judasmo impulsionou sua crtica s origens gregas do pensamento comea com artigo de Rafael Haddock Lobo no qual apresenta o pensamento da desconstruo como tentativa de empreender um sistema de pensamento sempre aberto, que nunca se enclausura em uma frmula ou um mtodo, e por essa razo necessita de uma arquitetura estratgica, para fugir da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um filsofo a fecharse em torno de seu prprio sistema. Empreender um sistema de pensamento aberto foi o gesto tico poltico com o qual Derrida confrontou a tradio filosfica e, sobretudo, pares metafsicos que restavam intocados.

    desses pares que fala a filsofa argentina Mnica B. Cragnolini em sua entrevista concedida a Carla Rodrigues. Para Mnica, o par humano/animal e todas as suas implicaes tico polticas que ainda interpelam os pesquisadores da obra de Derrida. Trabalhar nesse ponto de injuno entre o humano e o animal, no trato de pessoas, no que se trata os viventes humanos como animais o que Mnica considera tarefa. Como pensadora latino americana, Mnica tambm observa a importncia, no continente, de ler um pensador das margens, com o qual se pode questionar o eurocentrismo e a histria da violncia colonial, que aqui se singulariza nas polticas de dominao dos indgenas e dos negros.

    Seguindo no tema da dominao, o artigo de Olgria Mattos mostra como so borradas as fronteiras que pretendem separar o helenismo do judasmo. Para isso, ela remonta a um texto de Derrida sobre o filsofo judeu lituano

    Emmanuel Lvinas e retoma as perguntas: Ns somos gregos? Ns somos judeus? Mas quem, ns?. Ao trabalhar numa aproximao entre Derrida e o judasmo, tanto a partir de sua articulao com Lvinas como a partir de uma ligao com o filsofo judeu alemo Walter Benjamin, Olgria acentua o quanto o pensamento da desconstruo crtico de um ideal de origem que estaria implcito na violncia desse ns.

    Desconstruo da origem, da linguagem prpria, abertura alteridade, pensamento que a partir da margem interroga a ideia de centro: so heranas de um filsofo cuja abertura de pensamento foram perturbaes da ordem que marcaram sua abordagem desconstrutiva, como lembra Alice Serra em artigo sobre as ligaes entre Derrida e arte. O pensamento desconstrutivo no visa puramente a uma inverso, a uma desordem, mas aponta para as fraturas e incongruncias j inerentes ao que se apresenta de forma harmnica e solidificada, escreve ela. Por esse caminho, Derrida faz da arte um mbito privilegiado que, pontua Alice, assim como a alteridade, apresenta essa peculiaridade de perturbar sistemas de pensamento, deslocar lugares e hierarquias, convocar a pensar o que no pode ser apropriado pela filosofia.

    Por fim, no confronto permanente com aquilo que no pode ser apropriado, Derrida encontra se com a cincia, suas pretenses de objetividade, tema do artigo de Fernando Fragozo. Aqui, estamos diante de um crtico da tradio de pensamento que entende o conhecimento racional como um processo gradativo que, aos poucos, caminharia na direo de uma totalizao unificadora que seria capaz de explicar tudo o que existe: ns, a natureza, a realidade em geral. nesse ponto que se pode voltar comparao com Hegel. Ao desconstruir qualquer pretenso de explicar tudo o que existe, Derrida se inscreve na histria da filosofia do sculo 20 como o pensador que, ao mesmo tempo, nos pe diante de um esgotamento o conhecimento totalizante e homogneo sobre o que quer que seja e do auge da exigncia tico poltica de inventar novas formas de fazer filosofia.

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  • A desconstruo

    RAFAEL HADDOCK LOBO

    Em 1989, em uma palestra de abertura de um grande Colquio na Cardozo Law School, famosa faculdade de Direito nos EUA, o filsofo francoargelino Jacques Derrida parecia apresentar a fala que se tornaria um de seus mais respeitados livros a fim de responder a alguns de seus crticos, enumerando razes para se reconhecer que seu pensamento, que se convencionou desde a dcada de sessenta chamar de Desconstruo, mais do que uma teoria do conhecimento ou uma filosofia da linguagem, sempre teve como sua preocupao central uma postura tica e poltica. E, desde ento, seu pensamento comea a se debruar insistentemente sobre temas como a hospitalidade, os imigrantes ilegais, a democracia, o direito, a soberania etc., fazendo inclusive com que alguns de seus comentadores cunhassem o termo segundo Derrida ou Derrida tardio

    para se referir a essa suposta virada tica de seu pensamento. Mas como poderia ser possvel aceitar tal ideia de uma guinada ticopoltica se o prprio filsofo declarava que seu trabalho foi desde sempre motivado por questes ticas e polticas? Nesse sentido, o que temos que compreender, antes de qualquer anlise sobre a obra de Jacques Derrida, como e por que a desconstruo configura desde seu surgimento um gesto tico e poltico.

    Na referida palestra, que posteriormente foi publicada sob o ttulo Fora de lei: o fundamento mstico da alteridade, a afirmao de Derrida sobre o carter originariamente tico e poltico da desconstruo pde, na poca, parecer radical ou mesmo apenas estratgico, frente s crticas que recebia sobre a impossibilidade de a desconstruo fornecer uma matriz de pensamento que ajudasse a pensar a tica e a poltica, sobretudo depois da publicao em 1985

    Mais do que uma teoria do conhecimento ou uma filosofia da linguagem, sempre teve como sua preocupao central uma postura tica e poltica

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • do livro O discurso filosfico da modernidade, de Jrgen Habermas, em que tal crtica aparece explcita a Derrida. Contudo, nesse pequeno livro, em duas ou trs pginas, Derrida dedicase a enumerar diversas razes que ajudam a compreender tal gesto desconstrutivo em sua mais ntima inclinao: a preocupao com a alteridade. Desse modo, urge que, primeiramente, se compreenda como tal preocupao com a alteridade j se apresenta em seus primeiros trabalhos, sobretudo em sua maior obra (Gramatologia), para que, em seguida, se possa perceber como a chamada virada de seu pensamento muito menos uma mudana de rumo em seu pensamento, mas, mais propriamente, um desdobramento de um movimento que j vinha sendo feito.

    O ano de 1967 pode ser considerado como a grande estreia do pensamento de Derrida, com a publicao consecutiva de trs livros que tero um grande impacto no panorama filosfico da poca: A voz e o fenmeno, Gramatologia e A escritura e a diferena (os trs disponveis em lngua portuguesa). Essa tripla publicao, que faz com que os leitores nem ao menos saibam se h uma obra primeira ou original na arquitetura do pensamento derridiano, marca a entrada em cena desse pensamento que se, desde o incio, causa uma grande resistncia na filosofia, comea por outro lado a ser muito bem recebido por outras reas de conhecimento, sobretudo pela psicanlise e pelas letras. E tal resistncia da filosofia, que parece, aos olhos de Derrida, sobretudo sintomtica, acontece justamente pois seu pensamento busca quebrar barreiras e ultrapassar as fronteiras que parecem ter se estabelecido to seguramente ao longo da Histria da Filosofia.

    Mas o que seria, ento, a Desconstruo? E como essa tentativa de cruzar as margens da

    O ano de 1967 pode ser considerado a grande estreia do pensamento de Derrida

    filosofia e a preocupao com a alteridade conciliam se num mesmo gesto? A resposta est presente desde a primeira tentativa de Derrida de apresentar o que seria um esboo de um protossistema de seu pensamento. Isto que, na obra homnima, Derrida chama de Gramatologia, ou cincia do rastro, serve como exemplo paradigmtico para compreender as motivaes do filsofo francoargelino. Gramatologia a tentativa de empreender um sistema de pensamento sempre aberto, que nunca se enclausura em uma frmula ou um mtodo, e por essa razo necessita de uma arquitetura estratgica, para fugir da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um filsofo a fechar se em torno de seu prprio sistema. por tal razo que, sabendo que um sistema filosfico sempre se constri a partir da formulao de conceitos prprios, que funcionam como peas mestras nessa arquitetnica, Derrida, sem poder abrir mo totalmente de conceitos, direciona suas foras em cunhar o que viria a chamar de indecidveis, ou quase conceitos, ou seja, termos que no carregam em si nenhuma definio precisa, definitiva, mas que funcionam, numa cadeia de remetimentos, do mesmo modo como funcionariam os conceitos. Para ser mais preciso: conceitos que no conceituam, que no pretendem dar conta de um sentido ou um significado fechado e que, por isso, inauguram uma outra forma de relao entre as palavras e as coisas.

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  • Como exemplo, tomemos o quase conceito rastro, o substitutivo derridiano para aquilo que, na teoria da linguagem, chama se signo. Se signo refere se coisa e pretende representar o sentido desta em sua presena conscincia, ou seja, em termos mais simples, na pura significao do objeto, o conceito de signo sustenta se sobre a ideia de que garantido conscincia o acesso realidade das coisas nelas mesmas. No entanto, como veremos logo em seguida, se tal sentido do real, para Derrida, no nos garantido, a relao de significao aproxima se muito mais, em vez de um acesso s coisas em si mesmas, a uma espcie de rastreamento, como se trilhssemos as pistas de um animal, sem saber nem quando nem se, de fato, ele esteve presente em tal sulcamento da terra, de tal modo apagado pelo tempo que esses rastros estariam. Nesse sentido, mais do que observar a correo ou a pertinncia desse ou daquele signo com relao coisa, ou, ainda mais, em pensar em que medida o pensamento filosfico pode garantir a adequao dos signos s coisas, a tarefa do filsofo seria a de pensar o real como uma cadeia de rastros, como a infinitude de trilhas e pistas de animais em uma floresta chuvosa, no escuro, sem ao menos ter uma lanterna mo, tateando de modo incerto e impreciso numa interpretao hiperblica de tais rastros, uma espcie de aposta sem garantias, em que cada formulao ou teoria nada mais que uma espcie de jogo, sem nenhuma certeza seno nossa prpria vontade de que nossa aposta seja a correta.

    Tal cincia do rastro que Derrida rascunha em Gramatologia (que, na verdade, nada mais que a prpria impossibilidade de uma cincia rigorosa, pois o rigor extremo, o mais radical rigor nos obriga a aceitar que o real se apresenta conscincia to somente como rastro)

    consiste em uma radicalizao de seus estudos sobre a fenomenologia. Nessas interpretaes sobre o pensamento de Husserl, que Derrida parece tomar como paradigma da postura e do desejo de todo filsofo, o pensador da Desconstruo observa que h, no prprio movimento filosfico (obviamente com algumas excees, e so sobre estas que Derrida se apoiar) um impulso compreenso, apreenso, anlise, categorizao, definio etc., e todas essas atitudes sempre partem do princpio de que a realidade est diante de ns e que h sempre uma maneira correta de traduzirmos suas leis em palavras, de modo preciso e categrico. E esta seria a grande tarefa do filsofo: encontrar o idioma em que melhor se expressa o real. Entretanto, o rigor de Derrida pretende ir alm dessa vulgar concepo de realidade: para o filsofo, o real sempre escapa a qualquer conceitualizao, ou seja, nossas palavras, nossos conceitos, pretendem dar conta de algo que da ordem do escapamento, pois nada nos assegura, nenhuma frmula ou lei, que a realidade se d dessa ou daquela maneira, s nossa prpria afirmao de que assim que ela se apresenta.

    Por essa razo, Derrida faz sua afirmao controversa de que por detrs de toda teoria sempre h o elemento ficcional, ou seja, nos termos de Gramatologia, que toda teoria uma construo. Isso no um problema. O problema comea, justamente, quando cada filsofo acredita que sua construo apresenta a relao mais verdadeira com o real, que

    Para o filsofo, o real sempre escapa a qualquer conceitualizao

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • sua descoberta desvela a relao mais prpria e rigorosa com a realidade, criando, assim, um sistema fechado e violento de pensamento, voltando se contra toda e qualquer possibilidade de pensamento diferente, excluindo qualquer contradio e acreditando em sua efetividade. E assim que surge a ideia de desconstruo, um gesto de pensamento que pretende mostrar a violncia autoritria de um sistema fechado que se apresenta como nica maneira de compreenso do real e no se mostra, de maneira alguma, como mais uma construo na Histria das Construes (ou fbulas, como diria Nietzsche) que a Histria da Filosofia.

    A questo que surge na estratgia da construo de Gramatologia (pois, sim, a Desconstruo tambm uma construo, mas que se sabe e se assume como tal), a seguinte: como, ento, fugir a essa pretenso de verdade violenta? A resposta, como se antecipou, consiste na ideia de apresentar atravs desses quase conceitos um sistema aberto, que, no se fechando em si mesmo, no pretenda dar conta do real, ou seja, no esgotar as possibilidades de interpretao do real, pois sempre ser possvel que se conceba outras e outras maneiras de o pensamento relacionar se com a realidade. E, para isso, esses indecidveis, ou simulacros de conceitos, habitam uma regio bem estranha filosofia, numa proximidade com a literatura que desde a dcada de sessenta causou estranhamento aos filsofos mais conservadores. Enquanto a filosofia tradicionalmente constri seu discurso tentando descrever as coisas enquanto elas mesmas, ou seja, em sua realidade mais autntica, a desconstruo as descreve como se elas se apresentassem dessa ou daquela maneira, herdando e assumindo a estrutura

    ficcional da literatura como o lugar mais prprio da enunciao filosfica e, com isso, afastando o risco de violncia e excluso que, segundo Derrida, sempre se ancora por detrs da pretenso de verdade.

    A tarefa tico poltica da desconstruo, ento, seria a de desmontar certos discursos filosficos, a fim de mostrar ou brancos, os espaos, ou lapsos, ou seja, uma infinitude de outros discursos que se escondem por detrs da pretensa unidade de um texto, acreditando que h uma necessidade de se olhar tanto o no dito como aquilo que est expressamente dito em um texto, pois aquilo que est excludo, recalcado, reprimido, violentado em um texto constitui uma pea to valiosa anlise filosfica como aquilo que se expressa positivamente. Fica patente, nesse gesto, para alm da bvia herana que Derrida recebe de Nietzsche, quando v a ficcionalidade das estruturas conceituais, uma herana da psicanlise, enxergando por detrs do discurso linear e lgico que a filosofia pretende apresentar.

    Filosofias marginais, como as de Nietzsche, Blanchot, Bataille e Kierkegaard, literaturas como as de Artaud, Jabs e Mallarm e de uma psicanlise de matriz freudiana (em seu ntimo dilogo silencioso com Lacan), alm de sua relao com a lingustica de Saussure e a antropologia de Lvi Strauss, fazem da desconstruo derridiana um gesto completamente estrangeiro filosofia, em que ela obrigada a abandonar seu lugar tradicional e seguro e direcionar se a suas fronteiras, contaminando se assim por

    A descontruo tambm uma construo

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  • seus outros e tornando se, por conseguinte, estranha a si mesma, outra de si prpria. E esse discurso estranho, que no se pretende autntico nem original, pode ser, na perspectiva de Derrida, talvez o que haja de mais autntico e original na filosofia, um abandono do lugar de pureza, de autoridade, e a entrada em dilogo com tantos outros discursos, tantas outras perspectivas o que, para o filsofo, seria um trao, desde suas primeiras motivaes filosficas, profundamente marcado pela preocupao tica e poltica com a alteridade.

    Esse desejo de fazer justia ao outro o que faz com que Derrida afirme que a Desconstruo o que acontece, ela est no mundo, e, nesse sentido, cabe ento ao filsofo a tarefa de pensar tais acontecimentos, configurando um engajamento radical com a realidade (tal como entendida por Derrida). nesse sentido que, mais do que um desconstrutor, ou seja, o sujeito que desconstri, o filsofo deve ser aquele que pensa as desconstrues, pois as estruturas, os textos, os discursos j se apresentam a ns carregando no ntimo a prpria desconstruo. Como disse certa vez Derrida, a Desconstruo consiste em enxergar a partio no corao dos conceitos, pois estes j so desde sempre partidos e s conseguir ver tal partio o filsofo que tambm tiver seu corao partido, ou seja, que carregar nele mesmo a marca da interdio e conseguir suport la. O filsofo, em seu amor pelo mundo, deve suportar estar diante do trauma que a desconstruo do prprio mundo, da precariedade de sentidos e da espectralidade do real, e estar sempre disposto a denunciar toda e qualquer postura autoritria que tente apresentar o mundo em sua plenitude, o real em sua totalidade, espantando assim o assombro originrio que o que inaugura a prpria filosofia.

    bvio que a preocupao de Derrida com o que se entenderia por uma filosofia prtica fica mais aparente quando, a partir do final da dcada de oitenta, o filsofo comea a tratar dos temas mais propriamente inseridos no debate tico e poltico. Mas o que interessa aqui sublinhar que a matriz de seu pensamento permanece a mesma, como se o filsofo tivesse, em seus primeiros escritos, se dedicado a uma tematizao mais terica (como se existisse uma fronteira precisa entre teoria e prtica), como que a esboar esse quase sistema, para que, futuramente, para alm dos textos tericos, a desconstruo pudesse se

    direcionar, tambm, a textos ou discursos no tericos (pois preciso observar que a palavra discurso ou texto, para Derrida, inscreve se muito alm do que normalmente entendemos por texto, aproximando se muito mais de uma ideia mais larga de contexto). Assim, a anlise de textos que Derrida empreendia nas dcadas de sessenta e setenta, ou seja, o pensamento da Desconstruo desses textos, no se diferencia em muito das anlises que, a partir da dcada de oitenta, Derrida vai empreender, como, por exemplo, sobre o onze de setembro, sobre os discursos de Mandela, sobre a Europa etc.

    Por esse motivo, parece estranho ao prprio Derrida a ideia de uma virada tica em seu pensamento. A diviso em fases de um pensamento filosfico normalmente se d quando surgem, no discurso do pensador, novos conceitos que mudam estruturalmente um sistema. E isso no ocorre no caso de Derrida, pelo contrrio, pois os primeiros textos parecem ecoar ao longo das quase cinco dcadas de seu pensamento, conferindo ao pensamento da Desconstruo uma surpreendente coerncia e demonstrando que Derrida certamente um dos autores mais brilhantes da Histria da Filosofia.

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • OLGRIA MATOS

    Derrida e a lngua do outroA filosofia a cincia primeira

    No ensaio Violncia e Metafsica, dedicado a um debate com o filsofo Emmanuel Lvinas, Derrida revisita Ulisses, de Joyce, reavendo a questo: Ns somos gregos? Ns somos judeus? Mas quem, ns? Somos primeiro judeus ou primeiro gregos? Se para um judeu grego como Walter Benjamin, o messianismo e, portanto, a ideia de origem, um operador essencial, Derrida um grego judeu para quem a origem objeto da desconstruo. Para Derrida, a Filosofia a cincia primeira; para Benjamin, a Teologia. Derrida desconstri a noo de origem e, com ela, a ideia de Nao, compreendendo a no a partir da poltica, mas a partir da lngua, na diferena (diffrance) entre Nao poltica e Nao cultural, desconstruo que interroga a natureza da hierarquia poltica das Naes e do poder de que seu prestgio portador. A Desconstruo no a passagem da estabilidade garantida pela ideia de centro para a modernidade lquida, mas a apreenso da flexibilidade e do descentramento. Eis porque a diffrance no se refere mais ao logos, mas a foras que no se estabilizam em uma identidade.

    A diffrance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung deformao e deslocamento, pois a dfiguration diz respeito a uma incerta territorializao. Diferena e diferenciao, presentes no diferir, no adiamento, envolvem o tempo. este o percurso derridiano em Fichus, discurso de recepo do prmio Adorno em Frankfurt. Referindo se a um sonho de Walter Benjamin, Derrida desenvolve uma segunda Traumdeutung. Sono e viglia associam se em um transe sonanblico, na partilha incerta entre o sonho e seus restos diurnos, entre a inrcia do sono e a atividade diurna, entre a conscincia sonolenta e a viglia do inconsciente que vela e vigia todos os estados da conscincia desperta.

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  • Transe sonamblico dos insones, esses estados segundos da conscincia trazem a marca de uma atividade passiva, o prprio Fichus a narrativa deslocada de um sonho, que no do prprio sonhador, mas de um outro que no sonhou esse sonho e que o relata em um limiar conceitual, ultrapassando as convenes do gnero interpretao dos sonhos. Diz Derrida: neste exato momento, dirigindo me a vocs, de p, de olhos abertos, prestes a agradecer lhes do fundo do corao, com gestos unheimlich ou espectrais de um sonmbulo, at mesmo de um assaltante vindo para aambarcar um prmio que no lhe estava destinado, tudo se passa como se eu estivesse sonhando. At mesmo confessar: em verdade, lhes digo, ao saud los com gratido, penso estar sonhando.

    Para considerar esse estado e desenvolver suas anlises, Derrida refigura palavras, desloca um substantivo ou um adjetivo para um verbo, mas um verbo em sua forma simultaneamente ativa e passiva: eu sonambulo. Com isso, o filsofo no somente transgride, desestabilizando os, o estado de sono e o estado de viglia, como espectraliza decompondo os e fantasmando estados de conscincia, sonhando de olhos abertos e dormindo de p.

    Se Fichus um sonho que Derrida herdou de um outro, a questo saber se quem sonha o sonho aquele que o sonha ou aquele que o interroga. Questo que se desvia para uma outra, a da diferena entre sonho e realidade. Nas palavras do filsofo: o sonhador pode falar de seu sonho sem acordar?. Possveis respostas, Derrida as encontra no mbito da filosofia, da literatura e seus afins: o imperativo racional da viglia, do eu soberano, pois o que a filosofia para o filsofo? O acordar e o despertar. Mas a resposta do cineasta, do dramaturgo, do escritor, do msico, do pintor e mesmo do psicanalista pode ser outra: no responderiam no, mas sim, talvez, s vezes [...]. H pois uma lucidez, uma Aufklrung do discurso sonhador sobre o sonho [...]. Hesitando entre o no e o sim, s vezes, talvez, [acolhe se] os dois. Benjamin refere se a Adorno e aos sonhos que so danificados, mutilados, prejudicados pelo despertar, como se o sonho fosse mais vigilante que a viglia, o inconsciente mais reflexivo que a conscincia, a literatura ou as artes mais filosficas mais crticas, em todo caso, que a filosofia, como diz Derrida no discurso de Frankfurt.

    O sonho de Benjamin interrogado por Derrida a hermenutica de um sonho que de um outro, como a lngua que no a sua. E entre os sonhos e os sonhadores, como entre as lnguas, estabelecem se alianas, senhas, passagens e traos. Esta no coincidncia de uma coisa consigo mesma no significa que ela est fora de si, pois ela uma negatividade sem negao, inscries sem espessura, expresses de um entre dois, apario e desaparecimento em um intervalo incerto entre a ausncia de uma presena e a presena de uma ausncia. Por isso, Derrida indica os espectros, espectros da desconstruo, da fantomologia (hantologie). Je suis hant ser

    Entre os sonhos e os sonhadores, estabelecemse alianas, senhas...

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • assediado por algo do passado, por rastros obsessivos cuja arquiescritura so as ambivalncias judaico egpcias de Moiss.

    A fantasmologia diz respeito no identidade de toda identidade, na qual no h o retorno a uma especificidade anterior, mesmo que desejada, pois no mais profundo do que especfico grava se a marca indelvel do Outro. Quando Derrida afirma ter uma nica lngua e que ela no a sua mas de um Outro, d sequncia, deslocando a, interpretao de Freud sobre a questo da identidade e da origem.

    Nesta refigurao da lngua encontra se o sentimento perturbante, a situao prxima do pria, no paradoxo da impossvel incluso e da impossvel excluso. Derrida elabora a condio daquele que est margem, sem uma referncia a uma comunidade poltica. Na sequncia da Primeira Guerra Mundial, a queda do Imprio russo, do Imprio austro hngaro e do otomano, bem como os reordenamentos polticos do Leste europeu, as leis raciais sob o nazismo e a guerra civil espanhola disseminaram na Europa uma populao de refugiados como fenmeno de massa contnuo. O aptrida e o refugiado, embora comportem diferenas com respeito a pertencimentos legais e simblicos, dizem respeito, nos Estados industrializados, a residentes no estveis e no cidados, que no podem nem ser naturalizados nem repatriados.

    A relao ao Outro se realiza como trao, como rastro do Outro em mim, como presentificao espectral ou conciliao, como nas lnguas. Nas Margens da filosofia tratase da diffrance que no um processo de propriao em nenhum sentido da palavra, pois, ao contrrio da propriao heideggeriana, no h propriao que no implique em si mesma a dimenso mais originria ainda da despropriao. Por isso, para Derrida, a diffrance tem os sentidos de diferir, de ser a raiz comum das oposies, de produzir oposies e desdobramentos da diferena. Assim tambm nas lnguas.

    No judasmo, a lngua do paraso, a lngua originria anterior a Babel, era o hebraico que,

    como tal, era uma e una. A multiplicidade das lnguas foi, como para Benjamin, sua queda; j para Derrida, a lngua anterior a Babel era j mltipla em si mesma. Diferenas que comunicam diferenas, a lngua da origem Pentecostes avant la lettre, em que todos falavam lnguas diversas mas em que todos se entendiam em uma espcie de traduo simultnea.

    Derrida, grego judeu, aproxima se do mundo grego. Se, para este, a lngua da Idade de Ouro era o grego, ela o era por razes diversas do hebraico, pois Atenas procurava na origem a diffrance, sua potncia alucinatria e surreal, a diversidade dos sentidos, enquanto Jerusalm encontrava na lngua do Paraso uma origem unitria e essencial. Do heteros ao allii, a lngua, para Derrida, mista, contaminada, hbrida. Se o heteros o outro do Um, em si mesmo inalterado, allii so os outros no Mesmo. Se Babel condenao divina e perda da lngua universal, agora disponvel traduo, esta d incio desconstruo da torre como lngua universal e violncia: [Deus] dispersa a filiao genealgica. Ele rompe a linhagem. Impe e interdita, simultaneamente, a traduo, diz Derrida em Torres de Babel. Necessria e impossvel, a traduo diz impropriamente o prprio, Babel significando, justamente,confuso.

    Para Derrida, o marrano sem melancolia, o desenraizamento originrio encontra se no interior das prprias lnguas, as palavras contendo, como pharmakon, pelo menos duas significaes, solidria uma da outra ou das outras, no admitindo qualquer diviso interna ou externa, uma vez que s se conhece a prpria lngua se nos relacionamos com ela como lngua estrangeira. A ideia de eleio e origem de uma lngua acarreta os particularismos da eleio excluso.

    Ao analisar o pensamento de Lvinas, Derrida destaca um sentido peculiar da eleio de Israel como estranhamento absoluto e exemplar de um povo sem terra de origem. Entre a Grcia e Jerusalm, entre Ulisses e

    A hospitalidade no pede ao outro traduzirse em nossas tradies e nossa lngua

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  • Abrao a diferena a que existe entre nostos e xodos, duas formas de viagem e de partida. Se a primeira vive luz do retorno a taca, a segunda aspira uma ptria onde no se nasceu e cada passo dado em sua direo no aproxima uma terra, no uma casa que j pertencia: a afirmao da verdade nmade, observa Maurice Blanchot, distingue o judasmo do paganismo [...] O nomadismo a resposta a uma relao para a qual a posse no basta. Este movimento nmade afirma se no como privao perene de uma sede, mas como um modo autntico do habitar. Assim, a questo do que vem de fora e o que de dentro sempre algo que provm do estrangeiro, o portador da questo.

    Neste horizonte, o estrangeiro o terceiro, algum que sempre e apenas um intruso, aquele que chegou primeiro, que nos priva da segurana e faz advir o porvir. Este convidado ou visitante inesperado vem do futuro, contrariando a noo segundo a qual o que nos acontece determinado em relao ao passado: acontecimento inesperado e imprevisvel de quem chega, em qualquer momento, adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, sem ter sido convidado, sem avisar, sem horizonte de espera.

    Apenas aquele que perdeu uma morada, que fez a experincia da desolao, da perda de todo pertencimento, pode oferecer a hospitalidade. Esta hospitalidade sem reivindicaes o sentido da hospitalidade que no faz qualquer referncia soberania: para uma tal experincia [da hospitalidade], que se deixa atravessar por aquilo que chega e por quem chega, por aquilo que vem e por quem chega, do outro por vir, uma certa renncia incondicional soberania solicitada a priori. Esta hospitalidade radical, absoluta, , simultaneamente, invivel e necessria, permite ao outro

    ser outro, porque acolhe o apelo daquele que est sem mundo, aquele que no fala nossa lngua. Deve ser recebido, no na lgica da razo de Estado e dos direitos humanos universais, no por ser um homem como ns, mas porque ele traz consigo aquilo que nele no se reduz ao gnero e ao clculo do necessrio, tampouco lgica da doao e da gratido: o convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento passam [...] pelo dirigir se ao outro. Mas, o que sempre est espreita o dilema entre a hospitalidade incondicional que vai alm do direito, do dever e mesmo da poltica, por um lado e, por outro, a hospitalidade circunscrita pelo direito e pelo dever.

    A hospitalidade no pede ao outro traduzir se em nossas tradies e nossa lngua. Assim Derrida pode ento dizer eu s tenho uma lngua e ela no a minha, e ter iniciado seu discurso em Frankfurt com as palavras: eu peo desculpas, estou prestes a saud los em minha lngua. A lngua ser de resto meu tema: a lngua do outro, a lngua do hspede, a lngua do estrangeiro, at mesmo do imigrante, do emigrado ou do exilado. Nascido na Arglia, na periferia do Imprio francs, Derrida, judeu, perde, na Frana ocupada pelos nazistas na Segunda Guerra, a cidadania francesa. Na condio de estrangeiro sem ptria, Derrida se v privado, assim, da lngua que no lhe pertence mais. Ao t la como lngua estrangeira, pde dizer am la e conhecla, pois s se conhece a prpria lngua quando a recebemos como lngua estrangeira. Discursando em francs, na lngua em que encontrou hospitalidade, nessa lngua do Outro que seu ethos, Derrida reconhece um dom sem restituio, sem apropriao e sem jurisdio. tica hiperblica, para alm do para alm, para alm da jurisdio e do direito, a poltica da amizade.

    JACQUES DERRIDADOSSI

    33N195

  • A filsofa argentina Mnica B. Cragnolini prope em relao ao pensamento de Jacques Derrida uma ideia original: ao associ lo filosofia de Nietzsche, chama aos dois de pensadores do tremor. De fato, um dos pontos que une o filsofo do martelo ao pensador da desconstruo o abalo que, cada um a seu modo, produziu no chamado edifcio conceitual da metafsica, expresso sob a qual muitas vezes se pretende estabilizar dois mil e quinhentos anos de histria do pensamento grego ocidental. Derrida foi um pensador que, no rastro das aberturas proporcionadas por Nietzsche, teve o cuidado de perceber que essa histria no nica nem homognea. Ao contrrio, marcada por idas e vindas, rupturas, avanos e recuos. No entanto, se h algo em comum que subjaz no percurso da metafsica a sua fundamentao em um ideal de presena do sujeito, da conscincia, do contedo, da coisa mesma. Contra essa presena, o tremor percebido por Mnica foi um operador para desestabilizar os pares opositivos que ainda estavam mais ou menos intocados na segunda metade do sculo 20, quando o pensador franco argelino comea sua trajetria filosfica na Frana. Hoje, passados dez anos de sua morte, Mnica identifica ainda a necessidade de os leitores de Derrida levarem adiante a tarefa de desconstruir o par humano/animal e todas as suas consequncias violentas, como argumenta nesta entrevista.

    Pensar, tremer, desconstruirA filsofa argentina Mnica B. Cragnolini fala sobre a marca derridiana no pensamento contemporneo

    CARLA RODRIGUES

    ENTREVISTA

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  • designado ao outro em seu pensamento. Resto o que impede a totalizao, o fecho dialtico na sntese. O resto no o que falta de uma totalidade, uma vez desconstruda e desmontada em suas capas conceituais, se no aquele que impede que a totalidade se feche. A restncia indica tambm uma resistncia: j nos primeiros textos de Derrida aparecia a ideia de que o texto resiste traduo, porque est habitado por um excesso indecidvel. Um pensador do resto , basicamente, um pensador da alteridade, e creio que essa a marca derridiana no pensamento contemporneo. A isso soma se que, para Derrida, o animal o outro (no chega a s lo para Lvinas, por exemplo, j que no tem rosto).

    Dez anos depois da morte de Derrida - que do meu ponto de vista deixa incompleta a tarefa de pensar a democracia, na sua proposio de democracia porvir - de que forma se pode pensar desafios polticos contemporneos? Afinal, h como rebater a crtica mais frequente de que a desconstruo no teria nada a dizer?MNICA B. CRAGNOLINI Creio que a democracia porvir a figura do poltico em Derrida, e apresenta se sempre de maneira oscilante como impossibilidade possvel. A democracia porvir uma promessa, e o filsofo a pensou a partir da ideia de messianidade sem messianismo. A desconstruo mesma a experincia do impossvel, e isso est indicado no carter aportico da desconstruo.

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    Muitos autores atribuem a Derrida um momento limite da filosofia do sculo 20. Penso, por exemplo, em Patrice Maniglier, que considera a publicao de Gramatologia, em 1967, um verdadeiro momento filosfico, ou em Peter Sloterijk, que chama Derrida de o Hegel do sculo 20. Voc considera o pensamento de Derrida um marco filosfico? Por qu?MNICA B. CRAGNOLINI Creio que Derrida o grande herdeiro de uma ampla linha de pensamento aberta por Nietzsche, e que basicamente aponta para a desconstruo da ideia de subjetividade. Quando Nietzsche assinala ele pensa (Es denkt), comea a o caminho para pensar no apenas uma desconstruo da metafsica moderna, como tambm a possibilidade do acontecimento (quer dizer, do outro e o outro). Derrida se encontra nessa linha de pensamento, seguindo as possibilidades abertas pela filosofia pela noo de Ereignis (acontecimento) heideggeriana, e assumindo as crticas de Maurice Blanchot e Emmanuel Lvinas sobre os restos de subjetividade na noo de Dasein. Nesse sentido, o pensamento do outro me parece fundamental em Derrida, pensamento que j nos primeiros textos se expressava em termos de contaminao, a prtese de origem etc. Interpreto Derrida como um pensador do resto, e me parece que precisamente resto (reste) um termo que permite entender tanto o modo de fazer filosofia como o lugar

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • No momento poltico em que vivemos, voc acredita que a proposio da hospitalidade incondicional mostra se mais atual do que nunca? MNICA B. CRAGNOLINI Sem dvida, creio que a hospitalidade incondicional, que foi pensada em um contexto geopoltico da Unio Europeia e nos problemas que ela significou, tem uma enorme pertinncia no momento atual. Devemos pensar continuamente no problema do outro e nas figuras da alteridade por excelncia, que so, na minha opinio, o estrangeiro, o imigrante, a mulher, a criana e o animal. claro que existem leis de hospitalidade condicionada que levam em conta os imigrantes. No entanto, continuamente assistimos a problemas derivados da presena de estrangeiros em territrios que os expulsam ou submetem servido. Tambm certo que as crianas foram reconhecidas em seus direitos desde a Declarao dos Direitos das Crianas e, no entanto, assistimos diariamente a episdios de crianas prisioneiras de seus pais ou de figuras de autoridades, como professores e polcia. Tambm certo que os direitos da mulher tm uma longa histria, de mais de um sculo, no entanto continuamos sendo objeto de violncia domstica, assdio moral, desigualdade no trabalho etc. E ainda preciso falar dos animais, porque admitimos os direitos das crianas, das mulheres, dos estrangeiros e, por isso, nos horrorizamos diante das prticas que violam esses direitos. Mas boa parte da humanidade no se interessa pelo modo como so tratados os animais. necessrio pensar

    uma hospitalidade incondicional com o animal e acredito que essa a tarefa para o presente e para o futuro prximo.

    A Derrida atribui se uma grande contribuio aos estudos ps coloniais. Para ns, latino americanos, fazendo filosofia no hemisfrio Sul, em que o pensamento da Desconstruo pode nos ajudar a pensar numa geopoltica do conhecimento?MNICA B. CRAGNOLINI Acredito que a Desconstruo nos permite pensar muitos aspectos do modo em que nos constitumos como pases do Cone Sul, com uma histria de colonialismo que nos vincula com o outro de acordo com determinadas figuras de domnio. Um dos modos desse eu soberano do sujeito moderno que a desconstruo denuncia especifica se em nossas terras em termos das polticas de dominao dos indgenas, do negro etc. Ns somos aqueles que no podem ser outro para o colonizador, que nos pensou em termos de animalidade. As disputas em torno dos habitantes do Novo Mundo terem ou no alma do conta de que para os colonizadores, estivemos na situao daquele que naturalmente deve ser dominado, o animal. A conquista da Amrica evidencia muitos aspectos do exerccio da soberania e do eu autotlico e autodictico, como diz Derrida. No caso da Argentina, acho que o pensamento derridiano, a partir da noo de fantasma e de polticas de sobrevida, nos permitiu pensar uma questo concreta, que o tema dos desaparecidos, temos uma figura de memria muito

    Devemos pensar continuamente no problema do outro e nas figuras de alteridade por excelncia...

    ENTREVISTA

    36 N195

  • especial, aquele nem vivo nem morto, aquele que, por mais que seu corpo seja encontrado, segue sendo desaparecido. Na ditadura civilmilitar de 1977 1983, trinta mil desapareceram. A noo de desaparecido mostra de maneira estranha, o impossvel de todo luto e a impossibilidade do esquecimento, a figura espectral do desaparecido nos confirma a necessidade das polticas de respeito e de cuidado do outro. Por isso, cinzas, luto impossvel, fantasma, so noes derridianas que no caso da Argentina nos permitem pensar tambm nos aspectos de nossa poltica atual. As Mes da Praa de Maio e as Avs mantm a memria das cinzas: os julgamentos dos culpados dos crimes contra a humanidade, dos crimes da ditadura militar, no esgotam a demanda de justia, porque, como assinala Derrida, a justia da ordem do impossvel. A demanda de aparecimento com vida (dos familiares dos desaparecidos e de todos os argentinos) mostra que o carter de uma poltica impossvel, que no se conforma com a apario dos cadveres (tarefa levada a cabo pela Equipe de Antropologia Forense), e que nos coloca em um luto impossvel, em uma memria das cinzas, do inesquecvel.

    Um dos meus interesses no pensamento de Derrida foi a possibilidade de desconstruir alguns pares metafsicos que ainda se mantinham quase intocados, como masculino/feminino. Suas crticas ao falogocentris-mo tambm foram de grande importncia aos estudos de gnero. Voc acha que os

    ...que so, na minha opinio, o imigrante, a mulher, a criana e o animal

    leitores de Derrida herdam da desconstruo a tarefa de levar adiante a crtica a outros pares metafsicos?MNICA B. CRAGNOLINI Acredito que no momento atual o par que merece desconstruo e trabalho poltico o humano animal. Considero que essa a tarefa que o filsofo deixou para a Desconstruo: a tarefa que no pode ser separada do problema poltico de pensar melhores condies de vida para todo vivente. Derrida, no seminrio A besta e o soberano, vincula o tratamento de pessoas ao tratamento dos animais (para serem usados como alimento, roupa, experincias etc.). Considero que ali est a tarefa a se realizar pelos desconstrucionistas: trabalhar nesse ponto de injuno entre o humano e o animal, no trato de pessoas, no que se trata os viventes humanos como animais, para poder entender o que significa o tratamento dos animais. Est naturalizado que os animais devem servir s necessidades humanas, mas o trato de pessoas evidencia algo que um golpe para a conscincia dos homens: quando somos tratadas como animais. Se os que se alimentam de animais chegarem a perceber isso, acho que possvel pensar uma poltica de animalidade que leve em conta o vivente animal como um outro, que deve ser respeitado. As transformaes do direito nos prximos anos devem transitar por esse tema do tratamento que damos aos animais, para que o viver junto na comunidade dos viventes, a que me referi antes, seja possvel sem domnio de uns sobre os outros.

    JACQUES DERRIDADOSSI

    37N195

  • Derrida menciona um evento autobiogrfico que iria marcar a abordagem desconstrutiva. Nos alpendres de sua casa, em sua infncia na Arglia, o pedreiro colocara um ladrilho invertido ou deslocado. O menino Jacques Derrida demorava se em olhar para esse ladrilho. A Desconstruo comenta o autor em Rastro e arquivo, imagem e arte consiste justamente em colocar os ladrilhos do avesso, enfim, a perturbar uma ordem. Ao perturbar uma estrutura, o pensamento desconstrutivo no visa puramente a uma inverso, a uma desordem, mas aponta para as fraturas e incongruncias j inerentes ao que se apresenta de forma harmnica e solidificada. A arte torna se assim um mbito privilegiado para o

    ALICE SERRA

    Arte e imagem sob os olhares da desconstruoA inabilidade lastimvel das formas que desmoronam em torno de uma ideia

    Vincent Van Gogh, Shoes, 1888

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  • pensamento desconstrutivo, na medida em que tambm lhe peculiar configurar de outros modos uma dada relao de coisas, retirar objetos e materiais de sua funcionalidade cotidiana, instaurar o imprevisto. mais esse sentido de aproximao do que uma separao estanque ou uma hierarquia entre diferentes domnios arte e pensamento o que move os olhares da desconstruo para a arte.

    A Desconstruo no apreende a arte como um objeto dado ou construdo pela teoria, tampouco se dirige a obras e artistas com um sistema prvio de conceitos ou com um mtodo interpretativo a ser lhes aplicado. Derrida cuida para que a singularidade de cada obra e de cada artista estudado seja preservada em seus textos. As imagens trazidas aos textos no tm por funo ilustrar os argumentos do autor, mas atuam em sentido provocativo, retirando o texto seja de uma posio de autonomia diante da imagem, seja de uma pretenso de incluir a imagem no interior de um sistema terico. Por sua vez, alguns textos de Derrida desconstroem teorias de outros autores ao indicar outras instncias de sentido que teriam sido apagadas em interpretaes apresentadas como consistentes. Esses procedimentos pretendem contribuir para uma preservao do espao da arte e para uma abertura a diferentes espaamentos da arte no mundo. Tal preservao instaura duas diferenciaes principais: primeiramente, a obra de Derrida que se transforma no decurso das leituras e dilogos que prope; secundariamente, so as obras lidas pela Desconstruo que se diferenciam para o leitor ou espectador, desprendendo se de interpretaes prvias.

    O primeiro aspecto as diferenciaes trazidas pela arte na obra de Derrida entende se no sentido de que a Desconstruo no se apropria da arte como um tpico a ser

    integrado num sistema de filosofia, mas, antes, deixa se transformar a cada leitura que prope (sobre uma obra, sobre um artista). Esse efeito j se observa no modo como o pensamento desconstrutivo desloca para si conceitos dos autores que estuda, como se v nas leituras de Derrida sobre Levinas, Husserl, Freud, Hegel e outros. Ao serem deslocados de seus sistemas de pensamento prvios, os conceitos mudam de denominao e de abrangncia. Eles passam a atuar como quaseconceitos, prestando se a outras diferenciaes e a alteraes grficas, quando se faz necessrio. Essa apropriao de conceitos e modos de expresso de outros autores tambm desapropriadora. Ou seja, aquilo que apropriado logo se deixa despersonalizar, perdendo sua relao de pertencimento a um sistema de filosofia em que o autor pretendesse controlar a expresso e em que conceitos se subordinassem uns aos outros. De modo similar, o pensamento desconstrutivo deixa se contaminar pelos modos de configurao e pelas delimitaes trazidas pelas obras ou sries de obras de arte que estuda.

    Um bom exemplo, neste caso, o livro sobre Antonin Artaud, Enlouquecer o subjtil, escrito por Derrida em parceria com as intervenes da artista plstica Lena Bergstein. Para Derrida, no se trata de interpretar ou decodificar os traos de Artaud, quando o prprio Artaud que afirma, nos rasgos, rabiscos e pginas queimadas, uma impossibilidade de trazer a expresso a um significado e impossibilidade de projetar na pgina uma imagem previamente ideada. Derrida cita uma passagem em que o prprio Artaud se refere a um desenho seu como a inabilidade lastimvel das formas que desmoronam em torno de uma ideia. Para Derrida, Artaud denuncia a insuficincia de se pensar linguagem e arte

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • como transposies de significados e formas ideais dados conscincia. Se Artaud no trabalha somente com a palavra que transporta sentido, o livro que se pretende prximo a Artaud traz para suas prprias pginas inscries, remisses de Lena Bergstein a rasgos, letras, queimas, rabiscos que se encontravam nos cadernos de Artaud. Ao lado ou abaixo dessas incises e vazios, o texto de Derrida aparece como uma outra cena, esta alude a Artaud e suas inscries, mas no de modo descritivo ou analtico. E alude ainda a esse outro olhar, o olhar da artista que descentra do texto o autor. Nessas cenas contguas e remisses implcitas, o dilogo apenas possvel com um outro que se cala, retira se do mbito da palavra, mas permanece ao lado e alhures do texto de Derrida. como se, num lugar ambiguamente situado no texto e margem do texto, a singularidade da marca e a alteridade do artista se preservassem.

    Outro exemplo de diferenciao inscrita pela arte na obra de Derrida so os desenhos de cegos ou alusivos cegueira, em seu livro Memrias de cego: o autorretrato e outras runas, escrito para uma exposio no museu do Louvre. Ressalte se que foi Derrida quem escolheu o tema para a exposio a cegueira e quem fez a primeira seleo das imagens que foram expostas e reproduzidas no livro. Derrida aborda a cegueira como condio de possibilidade daquilo que, na pintura e no desenho, se d a ver: possibilidade do visvel, esta invisibilidade habitaria o visvel. Para Derrida, no cabe ao pensamento trazer ao visvel aquilo que na imagem se conservou obscuro. Como se v no autorretrato de Henri Fantin Latour que foi reproduzido na capa do livro e longamente comentado por Derrida, o lpis do artista deixou um dos olhos apenas subentendido na parte obscura

    da imagem, lugar em que estaria o rgo da viso, mas onde a no visibilidade se inscreve. Esse modo de expresso remete ao procedimento desconstrutivo anlogo, que resguarda uma margem de invisibilidade ou de ambiguidade em seus textos. A desconstruo nem apaga os aspectos obscuros e as incongruncias nem os traz a uma pretensa clareza, mas deixa os ao lado ou nas entrelinhas, como que perturbando o texto e turvando uma percepo ntida. Assim procedendo, a desconstruo aproxima se de uma atuao prpria arte. Para Derrida, a arte, assim como a alteridade, apresenta essa peculiaridade de perturbar sistemas de pensamento, deslocar lugares e hierarquias, convocar a pensar o que no pode ser apropriado pela filosofia.

    J um segundo plano de diferenciao diz respeito, como mencionado, aos efeitos do pensamento desconstrutivo sobre a obra abordada: ao pretender preservar o espao da arte, a Desconstruo insiste em desprend la de enfoques parciais e reducionistas, sejam estes de cunho historicista, psicologista ou outros, reconduzindo a a uma diversidade de remisses de sentido. Esse aspecto se observa, por exemplo, no texto de Derrida acerca da interpretao de Heidegger sobre os sapatos pintados por Van Gogh, publicado no livro A verdade em pintura. Abrindo seu texto com a pergunta No h fantasmas nos quadros de Van Gogh?, conduz nos Derrida ao tema do espectro. O fantasma ou espectro ronda o visvel e est presente a cada vez que se projetam significados sobre imagens e percepes. Projees fantasmticas ou imaginrias esto assim em toda interpretao sobre obras de arte e no podem ser eliminadas. O perigo, para a desconstruo, quando a interpretao

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  • Para Derrida, no cabe ao pensamento trazer ao visvel aquilo que na imagem se conservou obscuro

    se fixa obra ou pretende revelar a verdade da obra. Nesse sentido, na desconstruo da interpretao sobre os chamados sapatos de camponeses de Van Gogh, Derrida lembra, dentre outros aspectos, que o quadro a que se referia Heidegger no possua ttulo e remetia a uma srie de quadros em que Van Gogh pintou sapatos. Aludindo tambm metaforicamente ao fato de que os cadaros daqueles sapatos estavam desamarrados, Derrida indica a insuficincia de se interpret los segundo uma tese sobre sua origem e seu pertencimento. Os sapatos poderiam ser tanto de camponeses, como afirmou Heidegger, quanto sapatos do prprio Van Gogh quando de sua estadia em Paris, como sustentou o historiador da arte Meyer Shapiro. Ambas as significaes so possveis, mas no desvelam a verdade da imagem, inclusive por no considerarem suficientemente diversas outras instncias (materiais, polticas, econmicas etc.) que interferiram na produo da obra e em suas interpretaes.

    Nesse sentido, Derrida ressalta que seu livro A verdade em pintura no trata especificamente das pinceladas, formas e cores, mas enfoca sobretudo o que se passa em torno da pintura: o desenho, as bordas, a moldura, assim como especulaes tericas sobre a pintura e a circulao econmica das obras. Embora o autor tambm se dirija pintura e ao desenho num nvel discursivo, observa se essa diferena da abordagem desconstrutiva em relao a outros discursos tericos: enquanto a maioria destes se volta para o significado e o desgnio da obra (aquilo que o artista almeja; aquilo que a obra pretende significar), a desconstruo se esfora por reconduzir a imagem para o insignificante, para o trao inscrito. Neste passo, as leituras de Derrida sobre artes visuais conservam nuances que j se

    Henri Fantin-Latour, Self-portrait, 1859

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  • encontravam em outras especulaes suas sobre a escrita. Em contraponto metafsica clssica, que sempre teria privilegiado o sentido ideal e a linguagem falada em detrimento da inscrio grfica, Derrida pensa a linguagem como uma rede de traos diferenciais: seja num texto literrio ou filosfico, seja numa tela ou gravura, o trao inscrito institui diferenas, distingue se dos demais na medida em que se delimita e se relaciona com os demais, de um modo singular a cada vez. O trao inscrito no se subordina ao significado ideal, palavra falada, imagem ideada, ele no os representa. Ao poder se expressar de um modo diferente em relao ao que se pretendia, ele contamina o sentido ideado, podendo surpreender o sujeito que supunha controlar os modos de expresso.

    Derrida induz nos assim a pensar que no existe uma verdade da arte, sobretudo, que no existe uma verdade. Todavia, h que se lembrar que seu livro que justamente se intitula A verdade em pintura tambm parte de uma citao de Paul Czanne que afirma: Eu lhes devo a verdade em pintura e eu a lhes direi. Ao refletir sobre os sentidos dessa promessa de verdade, Derrida reprisa os sentidos de verdade que, em diferentes momentos da tradio filosfica, pretenderam circunscrever a arte verdade enquanto representao (de um objeto ou cena percebida); enquanto adequao (a uma ideia ou significado); enquanto manifestao (da verdade). A partir de algumas desconstrues, Derrida problematiza direta ou indiretamente com tais noes de verdade.

    A primeira dessas desconstrues a j mencionada desconstruo das noes de pertencimento e de origem da arte, como se indicou no exemplo dos sapatos de Van Gogh. Uma outra desconstruo, tambm j anunciada,

    consiste no deslocamento da dicotomia entre ergon (obra) e parergon (aquilo que circunda a obra), sendo que a esttica clssica teria privilegiado a obra e ofuscado o parergon. Para Derrida, ao contrrio, importa resgatar no interior da obra as interferncias do fora e do em torno. Citem se, neste caso, as interferncias provenientes da materialidade da obra e dos contextos, como o caso dos suportes dos quadros, dos lugares de exposio e instalao, da crtica de arte, do mercado e das implicaes polticas da arte. A remisso ao parergon parece assim implicar a necessidade de uma anlise infinita da obra; todavia, Derrida aponta tambm os limites da anlise, j que os vnculos e remisses em cada obra no se compem de elementos simples e no se deixam decompor de modo abstrato, o que se v propriamente no vnculo entre suporte e superfcie.

    Uma outra desconstruo atinge o privilgio do monumental e das imagens supostamente representativas, desconstruo que Derrida efetua no atravs de uma crtica direta, mas de anotaes dedicadas ao fragmentrio. Isso se v em suas observaes sobre os desenhos de Valerio Adami, bem como em suas anotaes dedicadas a uma srie de desenhos de Grard Titus Carmel, ambos os textos publicados em A verdade em pintura. Como se observa no desenho de Benjamin feito por Adami e reproduzido no livro, a figurao se quebra e se interrompe sob a interferncia de outras cenas e da escrita que se sobrepe. Por sua vez, a srie de cento e vinte

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  • e sete desenhos de Titus Carmel alusivos a uma mesma caixinha de madeira traz a Derrida a questo da relao entre unidade e srie, todo e parte. A singularidade de cada desenho aponta para uma quase ontologia dos restos: o resto o que se perdeu de uma totalidade, o que remete a outros restos contguos e sucessivos, mas que resiste a ser restitudo a um todo.

    Tais desconstrues no conduzem a uma tese sobre a verdade da arte. Elas indicam, antes, que tal verdade escorregadia como o quase conceito derridiano da diffrance. A diffrance est no modo como a percepo acontece, no modo como se vinculam sentido e imagem, no modo como a linguagem se manifesta e se retm: cada imagem, cada palavra, cada qualidade sensvel presente enquanto j se fragmenta, enquanto passa ao no visvel, enquanto temporiza se e espaa se, produzindo uma rede de diferenas. A cada presente, novas diferenciaes se sobrepem rede de diferenas precedentes, as quais s se do a ler posteriormente e de modo indireto. Assim pensada, a verdade no desenho e na pintura o que se d ao olhar e ao mesmo tempo se retira, aponta para um alm da obra a ser perscrutado e para uma origem da obra que no se alcana, mas que se promete no olhar e na mo que segura o lpis ou o pincel.

    Numa bela metfora inscrita por Freud e reinscrita por Derrida, apresenta se o hiato entre a mo que escreve sobre o papel transparente e a escrita que se retm desse ato: como ocorre naquele antigo brinquedo bloco mgico, essa escrita somente se conserva nas camadas situadas abaixo da folha transparente, ela se conserva l onde ela no visvel. Se ela se deixa ler e traduzir, apenas de modo indireto e deslocado em relao a sua origem. Pode se dizer que nessa outra metfora inscrita por Derrida a partir de Fantin Latour, a metfora do olhar, tem se um paradoxo semelhante: o olhar que foca o percebido e a ideia que se visa na imagem separa se do outro olhar, simultneo, mas sombreado e cego, na impossibilidade de reter no papel ou na tela a imagem que o outro

    olhar contemplou. Mas dessa simultaneidade de olhares, uma outra cena aparece, ora bela e bem ordenada, ora desfocada, ora provocativa, ora conturbada: as questes que as cenas da arte colocam desconstruo deixamse igualmente vislumbrar por um olhar que ao mesmo tempo as contempla e se extravia. Desvios em direo ao que, a partir de um lugar exterior obra, interferiu na obra, e em direo ao que a obra disseminou para alm de si. preciso desviar, contemplar e desviar, dir Derrida, porque esse extravio e algumas de suas disseminaes j se encontram naquilo que seria a origem da imagem. Ao seguir as pegadas e ao se demorar nos traos da imagem e da escrita, a Desconstruo no recompe a origem, mas preserva a arte enquanto promessa de origem origem de sentido, origem de um mundo.

    JACQUES DERRIDADOSSI

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  • Em geral, quando se fala de cincia, alguns qualificativos parecem se repetir sem que sejam propriamente questionados em seu uso corrente ou seu sentido. Assim, correntemente ouvimos falar de verdade cientfica, descoberta cientfica, de avano ou de progresso da cincia. Em geral, no se questiona muito o que podem significar verdade, descoberta ou avano nesses casos; em geral, a cincia pensada como um processo de conhecimento que, em seu progresso, descobre a verdade do mundo que nos cerca, e explica, paulatinamente, a realidade que somos e na qual nos encontramos.

    Mas ser isso mesmo a cincia? A discusso rica, diversificada e extremamente viva entre os chamados filsofos da cincia. Mas no apenas: pensadores dos mais diversos matizes, assim como cientistas das mais diversas reas, se debruam e se debruaram sobre a questo: afinal, como pensar a cincia?

    Jacques Derrida sem dvida um desses pensadores que buscou responder questo cincia com acuidade e amplitude, refletindo sobre suas origens, premissas e histria, num movimento de questionamento que busca situar a cincia moderna no mbito dessa herana mais ampla que nos constitui e que se chama Ocidente. No evidentemente o nico a faz lo com essa envergadura, claro. Outros grandes pensadores tambm propuseram e propem respostas para a questo cincia, e Derrida sabe, e o diz explicitamente, que tributrio dos caminhos abertos por, dentre outros, Husserl e Heidegger, que, antes dele, buscaram entender a cincia a partir de um profundo questionamento da filosofia.

    O que caracteriza Derrida, contudo, o fato de aprofundar esses caminhos abertos na direo de um questionamento prprio,

    FERNANDO FRAGOZO

    As cincias, a razo e a desconstruoAfinal, como pensar a cincia?

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  • que radicaliza a posio desses pensadores e elabora uma posio de permanente questionamento das grandes narrativas herdadas da filosofia e de sua histria, inclusive das narrativas herdadas desses pensadores que lhe abriram, por assim dizer, o caminho.

    Assim, um primeiro ponto que central na reflexo derridiana acerca da cincia a constatao de que, quando se fala de cincia, est se, de fato, diante de um fenmeno que muito dificilmente pode ser apresentado assim, no singular: a cincia. Na verdade, para Derrida (mas no apenas para ele), no faz sentido falar de cincia no singular: a pluralidade das cincias cada uma com seu objeto especfico de estudo, seu estilo, suas premissas, suas instituies, sua comunidade, sua necessidade e sua histria prprias coloca em questo a prpria possibilidade de se falar de cincia, assim, no singular.

    Ora, o que Derrida constata que essa tentativa de trazer essa pluralidade a uma pretensa unidade corresponde mais a uma ideia de cincia do que propriamente corresponde ao que de fato se vivencia no mbito das cincias. Trata se, para Derrida, de uma postulao que no encontra, a princpio, justificativa nem comprovao postulao ideal, segundo a qual a razo em geral, e as cincias a includas, tem uma vocao unificadora, totalizadora e sistemtica; vocao essa que seria, como prope Kant, a sua prpria natureza.

    Em outras palavras, o que Derrida constata que h toda uma tradio de pensamento que pensa o processo de conhecimento racional como um processo gradativo que, aos poucos, caminharia na direo de uma totalizao unificadora que seria capaz de explicar tudo o que existe: ns, a natureza, a realidade em geral. Mesmo que esse ideal nunca se realize, ele , contudo, para essa tradio de pensamento, a direo e o fim ideais que guiam (ou deveriam guiar) todos os esforos de conhecimento.

    Para Derrida, essa tradio propriamente a filosofia. Nela, como j apontara Heidegger, o que se busca uma fundamentao conceitual definitiva, certa e inabalvel que d conta

    racionalmente de tudo o que h. Nesse sentido, para essa tradio, a pluralizao das cincias (fenmeno que pode ser observado com cada vez maior intensidade desde o sculo 19) , sem dvida, extremamente desconcertante: o fato de haver racionalidades plurais, heterogneas, intraduzveis, no passveis de analogia, coloca radicalmente em questo o ideal de um conhecimento pleno, unificado e totalizante.

    Se Derrida est certo, se no h como articular as vrias cincias em uma unidade, se no h como traduzir as diversas linguagens dos diversos campos cientficos umas nas outras, h evidentemente um problema na postulao da unicidade ideal da cincia. Seria ento preciso repensar essa hiptese ideal do conhecimento de modo justamente a liberar as cincias dessa expectativa unificante e respeitar seus objetos, linguagens e procedimentos prprios e diferenciados. Continuar a pensar que as cincias tm de ser unificadas acaba por forar as cincias numa direo que pode no ser prpria a elas; acaba, em outras palavras, por desvirtulas. Assim, em nome dessas racionalidades heterogneas, de sua especificidade, de seu futuro e de sua histria, que Derrida prope pr em questo essa idealizao do processo de questionamento da realidade, chamando a ateno para o perigo que representa essa concepo unificante e totalizadora da razo para a possibilidade da existncia e do desdobramento dessa impressionante e rica pluralidade racional que so os diversos questionamentos e as diversas instituies cientficas. Perigo, porque esse ideal de cincia pode condicionar, direcionar ou mesmo limitar o questionamento cientfico, dando a ele uma direo prvia, um fim a atingir, uma finalidade pr determinada em uma palavra, uma teleologia.

    No faz sentido falar de cincia no singular

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  • Se essa idealizao unificante e teleolgica mais geral do processo de conhecimento tende a condicionar o questionamento cientfico, a pr orden lo numa direo especfica, no menos verdade que h outros condicionantes, controles e teleologismos mais especficos nos processos de pesquisa que podem inibir ou travar a possibilidade da descoberta. O que Derrida tem em mente quando fala desses teleologismos especficos, que podem interferir no desenrolar de uma cincia particular, no apenas o perigo de a pesquisa cientfica se ver perigosamente pautada e guiada por todo tipo de poderes ou instituies polticas, militares, religiosas, tecnolgicas, econmicas ou capitalsticas (e da a importncia das universidades terem condies de realizarem seus questionamentos sem condicionantes de qualquer espcie), mas tambm pelas orientaes que podem ser constitudas, internamente, no prprio seio de uma comunidade cientfica especfica, em torno do que Thomas Kuhn denominou de paradigma e que corresponde, em linhas gerais, a um conjunto de conceitos, definies, procedimentos, prticas, instrumentos e tcnicas que orientam uma configurao determinada de pesquisa e restringem ou descartam outros modos de questionar ou mesmo de definir os objetos daquele mbito cientfico especfico.

    Ora, para Derrida, uma descoberta apenas realmente uma descoberta quando foge dos padres pr determinados e das projees esperadas e demanda, por parte dos pesquisadores, toda uma nova reflexo e reordenao do conhecimento. Nesse sentido, ela propriamente um acontecimento, algo que no pode ser entendido, respondido e avaliado a partir dos parmetros at ento adotados, algo inaproprivel por parte dessas narrativas prvias. Se a adoo de um conjunto de conceitos,

    hipteses e procedimentos faz parte do modo de procedimento de toda cincia, o fato que, para Derrida, s h acontecimento cientfico, s h inveno e descoberta ali onde surge justamente, a partir das projees esperadas, o inesperado, e a inveno tcnicocientfica apenas encontra o que ela busca ali onde ela no programada por uma estrutura de espera e antecipao que anula a descoberta ao torn la possvel e portanto previsvel. A descoberta cientfica , para Derrida, um acontecimento inesperado.

    Sem dvida, o prprio movimento interno das cincias pode vir a fazer com que o acontecimento se d, o imprevisvel surja a histria ou as histrias das cincias nos contam certamente diversos casos dessas irrupes, dessas perplexidades que demandaram todo um esforo de reconceitualizao e elaborao de hipteses, na medida em que as descobertas colocaram os conceitos e as pressuposies anteriores em questo. Em Gramatologia, Derrida analisa dois desses casos mais detidamente, a saber, a lingustica e a gramatologia (cincia da escrita), e se pergunta se os conceitos e hipteses que guiavam essas cincias no deveriam ser radicalmente revistos diante das enormes descobertas que realizaram descobertas essas que deveriam no apenas abalar essas pressuposies cientficas mas tambm toda a conceitualidade filosfica que herdamos e que Derrida prope se justamente a desconstruir.

    Na verdade, Derrida se pergunta se no o caso de toda cincia, no seu prprio processo de desenvolvimento, levar paulatinamente ao questionamento das premissas conceituais e hipotticas que a constitui. O prprio movimento das cincias pode fazer com que o acontecimento se d mas isso pode no ser o caso justamente nas situaes em que os

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  • diversos teleologismos e as interferncias das mais diversas ordens condicionam a pesquisa e o questionamento. Nesse sentido, o que Derrida prope um trabalho conjunto da desconstruo, ou seja, do pensamento que se prope a constantemente analisar os seus fundamentos e limites, com esses processos especficos a cada cincia, no sentido de assinalar e denunciar os condicionantes que impeam a possibilidade da perplexidade e do acontecimento, da descoberta e da inveno, de modo a permitir que o processo de questionamento continue, numa radical reflexividade. A desconstruo assim definida por Derrida como um racionalismo incondicional que nunca renuncia a suspender de modo argumentado, discutido, racional, todas as condies, as hipteses, as convenes e as pressuposies, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades, a fim de abrir espao a uma democracia por vir.

    Porque isso que est em jogo para Derrida nesse radical processo de questionamento: a possibilidade de uma pluralizao de vozes sobre a realidade que tenham, cada uma, validade racional, argumentada, a fim de que o espao de jogo da democracia sempre se abra mais e, por isso, a democracia sempre por vir. E isso no quer dizer, para Derrida, que no se adotem hipteses, que no se proponham conceitos ou teorias, mas que essas sejam suficiente e permanentemente questionadas, criticadas e, mais importante, no sejam postas em funo de condicionamentos que predeterminem o que pode ou no pode ser questionado, pensado e discutido.

    Sem dvida, uma tenso aqui se gera entre um plo propriamente propositivo, condicionante e instaurador da racionalidade e outro, questionador, crtico e desconstrutor. Ora,

    para Derrida, a desconstruo no seria apenas um racionalismo hipercrtico, o polo por assim dizer negativo da razo, o mbito do permanente questionamento das condicionalidades. Ela seria tambm uma reflexo racional dos prprios limites do pensamento racional que visaria justamente ponderar entre essas duas necessidades da razo e do questionamento: a necessidade de estabelecer condies e a necessidade de question las. Ser racional, para Derrida, justamente realizar essa ponderao, que deve ser feita caso a caso, sem regra fixa previamente dada, sem segurana absoluta, precisando criar em cada caso as suas prprias regras e procedimentos.

    Assim, num caso bem especfico, central e fundamental, a saber, a questo dos direitos humanos, Derrida chama a ateno para a necessidade de pensar tanto a histria desse conceito, suas diversas ampliaes, e sua importncia hoje para o estabelecimento do direito internacional e o respeito vida humana. No entanto, chama tambm a ateno para a exigncia de justia incondicional que esses conceitos nunca preenchem totalmente, marcados eles mesmos por pressuposies, clculos, limites e interesses os mais diversos que os mobilizam, tanto o conceito de direito quanto o conceito de humano. Mais especificamente, nesse ultimo caso, e diante dos questionamentos cada vez mais incisivos de diversas cincias, da biologia antropologia, preciso pensar e questionar o que at aqui se entendeu como vida e corpo, humano e animal, no que supostamente haveria de definitivo nessas separaes e limites.

    E isso principalmente diante das inauditas possibilidades que se abrem, por exemplo, com a questo da engenharia gentica. Metonmia de todas as urgncias que nos interpelam hoje,

    Uma descoberta apenas realmente uma descoberta quando foge dos padres prdeterminados

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  • a questo da clonagem humana mobiliza, segundo Derrida, o melhor e o pior da razo, o clculo e o incalculvel, os poderes e a impotncia da razo diante das gigantescas perguntas acerca da essncia da vida, do nascimento e da morte, dos direitos da pessoa e do Estado. Para Derrida, o debate atual acerca da clonagem humana apresenta, em geral e esquematicamente, dois campos que se defrontam, sendo ambos marcados por pressuposies fortes e no de todo explicitadas e refletidas, que merecem ambas serem descontrudas. Assim, de um lado os defensores da clonagem, e principalmente da clonagem teraputica, que defendem a pesquisa sem limites, acenando para as possibilidades de cura mais diversas, mesmo que o risco, por mais calculvel que seja, possa abrir as portas para o incalculvel. De outro, aqueles que protestam contra essas experincias, chamando a ateno para a singularidade do humano, o direito de cada ser existir ao seu modo, a dignidade da vida e o perigo de programao militar, industrial ou comercial da vida humana. Ora, nesse caso, Derrida chama a ateno para o fato de que ambas as posies partem de conceitos e hipteses que precisam ser profundamente repensadas, o problema necessitando de uma outra radical elaborao na medida que o que est de fato em jogo nas possibilidades abertas pela engenharia gentica a necessidade de repensar o que somos e o que podemos ser, a questo

    da vida, do corpo, e a prpria definio de ser humano.

    Nesse sentido, diante da necessidade de decidir entre essas posies, preciso no apenas elaborar de modo profundo o questionamento mas tambm e principalmente separar de modo radical o processo de questionamento do processo de tomada de deciso. Isso porque, por mais que o questionamento se aprofunde, por mais que se conhea aquilo sobre o que se est pesquisando, h sempre um desconhecimento radical que no permite que uma deciso seja inteiramente calculvel e programvel. A rigor, o que Derrida aponta que, uma deciso enquanto tal, digna desse nome, aquela que se d quando no pode ser programada nem ter suas conseqncias inteiramente previstas. Uma deciso s deciso quando ela tem de decidir diante do que no se sabe, numa espcie de salto no escuro que, seja na direo que for, engaja a responsabilidade e assume o risco e o nus. Se o saber necessrio, se o clculo possvel, ele o at certo ponto quando no se sabe e um caminho tem de ser escolhido, a existe, para Derrida, a necessidade da deciso que engaja, direta e radicalmente, a responsabilidade. E, por isso, saber e poder, questionamento e deciso devem estar completamente separados.

    E se o verdadeiro local de um problema da razo hoje certamente a tcnica, com tudo o que ela implica como advento impossvel, imprevisvel e radicalmente outro, preciso, para pens la adequadamente, assim como para pensar a razo e a cincia, realizar o que Derrida chama de descentramento radical, e que corresponde, de fato, a elaborar um pensamento que no pode ser, ou no pode mais ser, apenas, um ato filosfico ou cientfico enquanto tal.

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