1968 · Ano mítico, 1968, marca a sua década, assim como as seguintes, por ter abalado as...

24
Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 28 • Agosto de 2007 Pág. 24 Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br Martins Pena Quando rir é pensar o Brasil O fim da era Blair Personalidade Págs. 2 e 3 Pág. 5 As luzes sombrias de uma era Págs. 18 a 21 Pós-modernidade e pós-modernismo, as marcas do triunfo capitalista em todas as facetas da vida humana. Um legado de indiferença, conformismo e barbárie à História e à cultura da civilização. Renunciando à liderança do Partido Trabalhista e ao terceiro mandato de premier britânico, Tony Blair encerra seu período na história política do Reino Unido. Reformar para quem? O futuro de milhões de beneficiários da Previdência Social está em jogo em um debate nada promissor. A universidade necessária em foco Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ, lançado pela Reitoria, provoca discussões polêmicas sobre o futuro da instituição. Págs. 16 e 17 1968 A revolução inacabada completa 40 anos Ano mítico, 1968, marca a sua década, assim como as seguintes, por ter abalado as tradições políticas, culturais e de costumes. Um dos organizadores do evento que vai rememorar aquele ano, Carlos Bernardo Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, concede longa entrevista ao Jornal da UFRJ na qual analisa aquele momento, segundo ele, desafiador dos modos de vida e das normas éticas e estéticas que marcaram as sociedades no pós-Segunda Guerra Mundial. Págs. 12 a 14 Delicado toque de Clarice Joana, Lóri, Macabéa, ucraniana, brasileira, mãe, metafísica, bruxa, judia, ousada, tímida... Apaixonante... É Clarice. Págs. 22 e 23

Transcript of 1968 · Ano mítico, 1968, marca a sua década, assim como as seguintes, por ter abalado as...

Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 28 • Agosto de 2007

Pág. 24

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 28 • Agosto de 2007

UFRJUFRJGabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 28 • Agosto de 2007

UFRJGabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 28 • Agosto de 2007

UFRJ Martins PenaQuando rir é pensar o Brasil

O fi m da era Blair

Personalidade

Págs. 2 e 3

Pág. 5

As luzes sombrias de uma era

Págs. 18 a 21

Pós-modernidade e pós-modernismo, as marcas do triunfo capitalista em todas as facetas da vida humana. Um legado de indiferença, conformismo e barbárie à História e à cultura da civilização.

Renunciando à liderança do Partido Trabalhista e ao terceiro mandato de premier britânico, Tony Blair encerra seu período na história política do Reino Unido.

Reformar para quem?O futuro de milhões de benefi ciários da Previdência Social está em jogo em

um debate nada promissor.

A universidade necessária em foco

Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ, lançado pela Reitoria, provoca discussões polêmicas sobre o futuro da instituição.

Págs. 16 e 17

1968A revolução

inacabadacompleta 40 anos

Ano mítico, 1968, marca a sua década, assim como as seguintes, por ter abalado as tradições políticas, culturais e de costumes.

Um dos organizadores do evento que vai rememorar aquele ano, Carlos Bernardo Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, concede longa entrevista ao Jornal da UFRJ na qual analisa aquele momento, segundo ele, desa� ador dos modos de vida e das normas éticas e estéticas que marcaram as sociedades no pós-Segunda Guerra Mundial.

Págs. 12 a 14

Delicado toque de ClariceJoana, Lóri, Macabéa, ucraniana, brasileira, mãe, metafísica, bruxa, judia,

ousada, tímida... Apaixonante... É Clarice.

Págs. 22 e 23

2 Agosto•2007UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: Belkis Valdman – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: Ângela Maria Cohen Uller – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Eduardo Mach Queiroz – Superintendente de Ensino SG-2: Nei Pereira Junior – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3: Célia Alves Soares Loureiro – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade – ETU: Maria Ângela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Coordenadoria de Comunicação: Francisco Conte

Pensando África: crítica, pesquisa

e ensino

Rafaela Pereira

Expediente

Fotolito e impressão – Gráfi ca e Editora Ediouro – 20 mil exemplares

JORNAL DA UFRJ É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DO SERVIÇO DE JORNALISMO IMPRESSO DA COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – Av. Pedro Calmon, 550 – Prédio da Reitoria – 2º andar – Gabinete do Reitor – Cidade Universitária – Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21941-901 – Telefone: (21) 2598 1621 – Fax: (21) 2598 1605 – [email protected] – Supervisão Editorial: João Eduardo Fonseca – Editor Chefe/Jornalista Responsável: Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE) – Pauta: Fortunato Mauro e Francisco Conte – Reportagem: Bruno Franco, Coryntho Baldez, Joana Jahara, Rafaela Pereira e Rodrigo Ricardo – Projeto Gráfi co: José Antônio de Oliveira – Editoração Eletrônica: Anna Carolina Bayer – Editora de Arte: Mácia Carnaval – Ilustração: Anna Carolina Bayer, Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Pina Brandi – Estagiária de Ilustração: Daniela Follador (EBA/UFRJ) – Revisão: Mônica Aggio – Estagiária de Jornalismo ECO/UFRJ: Mônica Reis – Fotografi a: Marco Fernandes – Resenhas: Francisco Conte

Instituições interessadas em receber esta publicação, entrar em contato pelo e-mail [email protected]

Como aconteceu nas edições ante-riores, os trabalhos serão realizados em conferências, mesas-redondas e mini-cursos abordando temas como Estudos africanos: pesquisa e divulgação; A África na sala de aula: questionamentos e estra-tégias; A cultura afro-brasileira em seus desdobramentos; Literatura, mito e me-mória; Literatura, história e artes: entre-laçamentos possíveis; Novas cartografias poéticas; Estudos de narrativa: tendências contemporâneas; O comparativismo literário: interdisciplinaridade e hibridismo; A voz e a letra: tradições orais reinventadas; A Litera-tura Africana para jovens e crianças.

Entre os dias 20 e 23 de novembro acontecerá o III Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. O projeto é uma iniciativa da

Faculdade de Letras (FL) da UFRJ com o Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), e conta com o apoio de outras instituições envolvidas nos estudos de

Literatura Africana.

A proposta é continuar as discussões dos encontros anteriores, priorizando o estudo das Literaturas Africanas de países de língua oficial portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), e também, abrindo-se a diálogos interdisciplinares com a História, a Geografia, as Artes Plásticas, a Música, o Cinema, a Sociologia, a Antropologia. De acordo com Maria Teresa Salgado, do Departamento de Letras Vernáculas, esse multifoco de abordagens será relevante, na medida em que contribuirá para o avanço das pesquisas desenvolvidas por vários dos pesquisadores da área.

Outro foco do encontro é o debate so-bre a Lei 10.639/2003 – que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temá-tica História e cultura afro-brasileira. Ma-ria Teresa explica ainda que outro objetivo do evento é a criação de uma Associação Brasileira de Estudos Africanos.

Outras informações e a programação do evento estão disponíveis no site www.letras.ufrj.br/pensandoafrica.

Bruno Francoilustração Jefferson Nepomuceno

O fim da era Blair

Com a renúncia de Tony Blair à liderança do Partido Trabalhista e ao terceiro mandato de

primeiro-ministro do Reino Unido, encerra-se um período da história

política britânica.

Nascido em Edimburgo, na Escócia, no dia 6 de maio de 1953, o advogado formado pela Universidade de Oxford, Anthony Char-les Lynton Blair foi eleito parlamentar pelo condado de Sedgefi eld, em 1983 e tornou-se líder do Partido Trabalhista em 1994, postos esses que foram mantidos até o dia de sua renúncia, em 27 de junho desse ano. Em 1997, os trabalhistas impuseram ao Partido Conservador – encastelado em Downing Street (sede do Executivo britânico) durante os governos de Margareth Th atcher e John Major – sua pior derrota eleitoral, em 165 anos. Blair foi então escolhido primei-ro-ministro, ganhando essa e mais duas eleições gerais consecutivas, feito inédito para os trabalhistas.

Blair ascendeu ao poder com uma proposta de re-novação batizada de Novo Trabalhismo (New Labour), que seria a aplicação prática da teoria política criada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, ex-diretor da Lon-don School of Economics, a chamada Terceira Via. Essa concepção buscava mudar a retórica tradicional da esquerda, encampando argumentos de se-tores mais à direita, como imigração, polí-tica monetária austera e controle de gastos públicos.

De acordo com Franklin Trein, coorde-nador do Programa de Estudos Europeus, do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), parecia então possível que se buscasse uma alternativa ao socialismo real e ao neoliberalismo, além do vazio deixado pelo socialismo democrático do Estado de bem-estar social (Welfare State) que vigorou na Europa Ocidental e não parecia capaz de se renovar. No entanto, “a pretensão da Terceira Via acabou servindo de cortina de fumaça para uma política de continuidade, de renovação do liberalismo na economia

britânica e em associação com setores das economias norte-americana e da Europa continental, e expandindo o que veio a se chamar de globalização, ou seja, a imposição de regras de mercado à economia mundial”, explica o professor do Departamento de Filosofi a do IFCS.

Recentemente, a Terceira Via sofreu uma outra defi nição: blairismo. “Termo esse que passou a ser objeto de descaso, a tal ponto que a imprensa tomou-o como sinônimo de blefe, de enganação. Nada mais é que a po-

lítica de Th atcher com outra roupagem”, esclarece Trein. O resultado foi o naufrágio dos trabalhistas nas votações desse ano. Na Escócia, o par-tido que mais se opunha ao governo, o Nacional Escocês (Scottish National Party), conseguiu 60% dos votos no último pleito. “Blair não deixa saudade àqueles que acreditavam na Terceira Via como uma alternativa inte-ressante a ser seguida pela União Européia e como uma nova etapa no desenvolvi-mento sociopolítico após a queda do muro de Berlim”, avalia Franklin Trein.

Três vezes vitorioso nas eleições gerais, como líder dos trabalhistas (whigs, como são apelidados – leite amargo consumido pelos pobres no século XVII),Tony Blair obteve na agenda doméstica – ao lado de seu carisma e eloqüência inegáveis – um de seus maiores trunfos. Entretanto, o Reino Unido tem hoje uma distribuição de riquezas mais perversa do que em qualquer outro período recente de sua história. “Cerca de 1% de britânicos é dono de 25% das riquezas do reino. E se so-marmos a esse contingente os outros 6% mais ricos, então chegaremos a 50% da riqueza produzida”, informa Trein, destacando que, de aproximadamente 60 milhões de britâni-cos, cerca de 11milhões vive com menos de dois dólares por dia, isto pelo critério de linha

“As intervenções de Blair não resultaram

em soluções positivas, e

nos permite dizer que ele

fracassou em sua política

internacional.”

Internacional

Agosto•2007 3UFRJJornal da

de pobreza determinado pela Organização das Nações Unidas – ONU.

No entendimento de Franklin Trein, o úni-co êxito de Tony Blair no plano interno, ao herdar de John Major (seu antecessor no cargo) uma política para a Irlanda do Norte, foi conse-guir levá-la adiante e pacificar o território, conturbado pelo conflito de movimentos armados católicos e protestantes. “No resto, todos os indicadores mostram que a economia britânica está pior hoje do que estava há dez anos, inclusive no que diz respeito à inova-ção tecnológica, que é o lastro de qualquer pretensão de recuperação dessa economia”, critica o professor.

Poodle de Bush?No plano externo, o fracasso foi retum-

bante. “Todas as suas ações se mostraram equivocadas e tiveram resultados muito ne-gativos”, analisa Trein. Beligerante, Blair não apenas acompanhou os Estados Unidos nas duas invasões ao Iraque, contrariando reso-luções da ONU e a vontade da maioria dos ingleses, como as forças armadas britânicas participaram ainda da ocupação do Kosovo, região da antiga Iugoslávia, que apesar da retirada das tropas continua longe da paz. O que, segundo Trein, mostra o equívoco da intervenção, nos moldes pelos quais foi con-duzida. Outra ingerência foi no Afeganistão, onde soldados britânicos continuam morren-do em ataques da milícia Talibã, e, por fim, em Serra Leoa, cujo objetivo manifesto foi o de pacificar um conflito interétnico – como tantos outros que existem na África, decor-rentes do colonialismo britânico.

As forças militares também já se reti-raram do continente, mas a região ainda

não está longe de alcançar a estabilidade. “O que mostra que as intervenções de Blair não resultaram em soluções positivas, e nos permite dizer que ele fracassou em sua polí-tica internacional”, arremata Franklin Trein. Foram cinco guerras em seis anos, um feito sem precedentes desde o desmantelamento do Império Britânico.

O alinhamento automático à luta esta-dunidense contra o terror, tanto em seus objetivos como em suas estratégias de atuação, valeu a Blair a antipatia de parcela significativa da opinião pública internacional e de seu próprio país. Em artigo intitulado “Reputado como cão de caça favorito do canil imperial”, publicado no jornal The Guardian, no dia onze de maio, o escritor paquistanês Tariq Ali toma emprestado as palavras de Rodric Braithwaite, ex-conselheiro de John Major, que descreveu Blair como “um so-taque britânico para a linguagem da Casa Branca”. Para Braithwaite e Ali, a ausência de independência de Downing Street em relação à Casa Branca destruiu sua influência junto à mesma.

No entanto, o primeiro-ministro não te-ria sido, meramente, o “poodle” do presidente estadunidense George W. Bush. Nas palavras do jornalista inglês Richard Gott – no artigo “O melancólico ocaso de Blair”, publicado no francês Le Monde Diplomatique, em 21 de junho – “a verdade é ainda mais deprimente. Das profundezas de sua própria ignorância, Blair acreditou firmemente em sua missão pessoal nos assuntos externos, indepen-dentemente dos norte-americanos. Se Bush tivesse relutado em ir à guerra no Iraque, Blair o teria pressionado”. Não raras vezes, a opinião pública, nos Estados Unidos, confiou

mais nas palavras bem trabalhadas do premier britânico do que na retórica de seu próprio chefe de Estado.

A a n á l i s e d e Gott é respaldada por Franklin Trein. “Chegou o momento em que ele se tornou artífice dessa política beligerante anglo-americana. Seria um parceiro na retaguar-da, mas ao assegurar à Washington sua participação, garan-tia um espaço de de-cisão que o governo n or t e - am e r i c an o não teria se estivesse sozinho. Caso Blair tivesse condicionado o apoio britânico ao respaldo das Nações Unidas isso teria mu-dado completamente o quadro para as de-cisões americanas”, acredita o professor.

A decisão de unir forças aos EUA no ob-jetivo de depor o então presidente iraquiano Saddam Hussein foi tomada exclusivamente por Blair. Conforme revelou seu ex-diretor do Departamento de Comunicação e Estra-tégia Alastair Campbell - no livro The Blairs Years (Hardcover, 2007), lançado no dia nove de julho, na Grã-Bretanha, e escrito a partir dos diários que manteve enquanto trabalhava junto ao líder do Novo Trabalhismo – “todos os assessores mais próximos de Tony Blair tinham severos momentos de dúvida” a res-peito de sua decisão de invadir o Iraque.

De costas para a EuropaA política britânica para a União Eu-

ropéia (UE) não foi diferente da realizada por governos anteriores, em especial pelo de Margaret Thatcher, que chegou a propor que se acabasse o processo de integração eu-ropéia. “Tony Blair não fez qualquer esforço para que a economia britânica se integrasse mais fortemente à economia européia. O Reino Unido não adotou o Euro como moeda e o país continua sem perspectivas de aderir ao mesmo” – exemplifica Trein – embora o antigo primeiro-ministro tenha se compro-metido com a Europa e a justiça social, logo ao tomar posse de seu segundo mandato. O Reino Unido tampouco adotou uma série de resoluções da UE no sentido da proteção social, que caiu vertiginosamente no país. “O que 30 anos atrás era exemplar no Reino Unido, como o sistema de saúde, hoje está sucateado”, critica Franklin Trein.

Além disso, o sistema educacional amargou um retrocesso que vai desde a pré-escola até às universidades que, de acordo com Trein, estão falidas. “Estão caçando estudantes mundo afora, pois os jovens ingleses não mais as procuram como forma de promoção social”. Os centros de pesquisa também minguam por falta de verbas e o Reino Unido mantém com a UE relações de permanente tensão. “Via de regra, a postura britânica, nas discussões acerca do processo de integração do continente, não é positiva, é sempre de abstenção ou mesmo obstrução”, afirma o pesquisador.

O legado de BlairCom a renúncia, Blair legou a chefia do

governo britânico à co-estrela do Novo Tra-balhismo, o também escocês Gordon Brown.

Quando eleito líder dos whigs e empossado como primeiro-ministro, Blair o escolheu como ministro das Finanças, com plena autonomia de gestão, o que fazia dele sabidamente seu sucessor. Embora a relação entre os dois tenha sido muito tensa ao longo do período em que conviveram em Downing Street – o que é ad-mitido mesmo pelo ex-colega Campbell – a parceria manteve o Reino Unido com taxas constantes de crescimento econômico ao lado de um dos índices mais baixos de desemprego, na Europa: somente 4,7%.

Para Trein, Brown não fará um governo muito diferente de seu antecessor, embora não participe do mesmo grupo e nem represente os mesmos interesses que Blair. “A relação entre os dois era muito difícil e se mantinha porque Blair fazia um discurso falso. Suas ações eram permissivas no sentido de viabilizar aquilo que Brown representava no exercício de suas funções como ministro das Finanças”, destaca o professor.

O presidente francês Nicolas Sarkozy de-clarou, antes de ser eleito, a intenção de ser o “Blair da França”. Na visão de Trein, isso é surpreendente, pois, embora a economia bri-tânica esteja em desenvolvimento sustentável há muito tempo, “esse é um crescimento pífio, que se faz à custa do acúmulo de potencial ocorrido no governo Thatcher. A economia britânica está agora com seus fundamentos muito comprometidos, de acordo com obser-vadores europeus”.

Blair prometeu também uma sociedade bri-tânica múltipla. Não foi o que ocorreu. “Hoje, os cidadãos britânicos nascidos fora da ilha, ou seja, na Commonwealth (Comunidade Britâni-ca de Nações), têm enormes dificuldades com assistência jurídica e social (saúde, educação e habitação), por exemplo”, relata Trein. Além disso, conforme reportagem publicada pelo jornal Valor Econômico, no dia 8 de agosto, a produtividade do trabalho, computada em termos de em homens/horas, do Reino Unido é ultrapassada por Noruega, Bélgica, Holanda, França, Estados Unidos, Alemanha, Suécia, Dinamarca, superando por sua vez o Canadá, a Espanha e a Coréia do Sul. Isso mostra que o trabalhador britânico produz menos que seus colegas de economias semelhantes, sendo que “ainda recebe menos”, informa Trein, “para quem o processo de concentração da riqueza é o legado mais evidente da era Blair”.

Internacional

4 Agosto•2007UFRJJornal da

Nacional

Biocombustíveis:

Bruno Francoilustração Patrícia Perez

Energia renovável

A nova menina dos olhos do governo federal para levar desenvolvimento econômico e inclu-são social ao meio rural, sobretudo no Nordeste, o etanol, vem recebendo grandes estímulos dos órgãos públicos e gerando números expressivos. De acordo com levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abasteci-mento – o Brasil deve produzir 20,01 bilhões de litros de álcool combustível na safra 2007/2008 de cana-de-açúcar.

Além disso, projeções do Departamento de Cana, Açúcar e Agroenergia, da Secretaria de Produção e Agroenergia, pertencente ao mesmo ministério, indicam que as exportações de álcool combustível devem chegar a 3,6 bilhões de litros, ante 3,4 bilhões registrados em 2006. O crescimento da colheita foi acompanhado da expansão da área plantada de 6,16 milhões para 6,62 milhões de hectares, um incremento de 7,4%. Ainda segundo informações do ministé-rio, o avanço das plantações ocorreu em áreas de pastagens, principalmente as degradadas.

Financiamento para o setor não falta. A chefe do Departamento de Gás, Petróleo e Fontes Alternativas de Energia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Cláudia Prates – em entrevista divulgada pela Agência Brasil – informou que os desembolsos da instituição para a área de etanol e biodiesel deverão expandir de R$ 2,1 bilhões, registra-dos no ano passado, para R$ 3,5 bilhões em 2007. Já estão em carteira R$ 2,5 bilhões para desembolso neste ano.

O lado negativo do investimento no etanol é a duradoura precarie-dade das condições de trabalho nas lavouras. Em São Paulo, estado que lidera a produção de cana-de-açúcar, cada trabalhador corta em média 10 toneladas por dia, ao preço de 24 reais. Para dar conta do servi-ço, percorre nove quilô-metros a pé, desfere 72 mil golpes de facão, faz 36 mil fl exões de perna e carrega 800 montes de 15 kg de cana, de acordo com o estudo Por que morrem os cor-tadores de cana? (Saúde e

Sociedade, 2006), de Francisco Alves, professor de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Promissor em longo prazoEmbora esteja em posição privilegiada no

promissor mercado do etanol, o Brasil tem rivais. Em artigo publicado no Jornal do Brasil, em 20 de maio passado “Biocombustíveis no Brasil e no mundo”, o consultor econômico Antônio Carlos Lemgruber, especialista em macro e microeco-nomia, avalia que “a cana-de-açúcar é realmente ‘planta mágica’ e o Brasil está muito bem si-tuado na produção de etanol proveniente de cana-de-açúcar. Mas às vezes nos esquecemos de que ‘países’ como Flórida, Louisiana, Texas e Havaí são importantes produtores de cana-de-açúcar”. Para o economista, não há nenhum impedimento de que “os Estados Unidos percebam a inconveniência da produção de etanol proveniente do milho, a estratégia pre-conizada pela administração Bush, e resolvam avançar naqueles quatro ‘países’, induzindo produtores a substituir qualquer cultivo para cana-de-açúcar e a produção de açúcar pelo etanol. Além disso, os países da América Cen-tral e Caribe são produtores de cana-de-açúcar, inclusive Cuba”. Lemgruber informa ainda que “é intenso o programa de pesquisas em univer-sidades e empresas nos EUA, para desenvolver o etanol de celulose”.

Lemgruber afirma, também, que a “vantagem comparativa brasileira, – em relação ao biodiesel – é menor do que no que tange ao etanol”, pois os Estados Unidos competem de igual para igual com o óleo de soja, Malásia e Indonésia competem com o óleo de palma, de alto rendimento, além do óleo de canola com o qual se destacam Canadá e alguns países europeus. Além disso, para o biodiesel, seja importante no futuro a opção por óleos não-comestíveis: como a mamona no Brasil, e o pinhão-manso na Índia e África.

O Brasil importa, atualmente, mais de dois bilhões de litros de diesel por ano. A produção doméstica de biodiesel substitui essa importa-ção. De acordo com Donato Aranda, professor de Engenharia Química da Escola de Química (EQ) da UFRJ, que possui tecnologia licencia-da e patenteada para produção de biodiesel, revertendo royalties para a universidade, o impacto social do biodiesel e do etanol é muito positivo, na medida em que – explica o professor – “diminuem as emissões de monó-xido de carbono e material particulado para a atmosfera. Isso já tem sido estudado em várias teses de alunos meus na UFRJ. Essa redução de emissões signifi ca menos mortes e menos internações devido a problemas respiratórios, sendo, portanto, também um caso de saúde pública. Além disso, nada gera tanto emprego quanto a agricultura”.

Um possível au-mento na produção norte-americana de etanol poderia afetar os produ-tores brasileiros em um primeiro momento, embora exista muito espa-ço para o cresci-mento do consu-mo de biocombus-tíveis no mundo e mesmo no mer-cado interno bra-sileiro. Segundo Donato Aranda, o Brasil pode ain-da aumentar – em muito – a utili-zação de etanol. “O mesmo ocorre com o biodiesel. O Brasil consome 45 bilhões de litros de diesel por ano.

Podemos substituir os dois bilhões que são importados e ainda mais. Quanto maior essa substituição melhor para a qualidade do ar e mais emprego seria gerado no campo”, acredita o pesquisador.

Investimento sustentávelConforme revela Aranda, projetos de

biodiesel são sustentáveis apenas quando a origem da matéria-prima é garantida, isto é, exigem produção verticalizada, do plantio a produção. “Muitas áreas devastadas po-derão ser recuperadas com culturas como palma e pinhão-manso. Além do combate à desertifi cação, produz-se biocombustíveis e gera-se emprego e renda no campo”, avalia o professor.

Para Edmar Almeida, professor do Gru-po de Economia da Energia do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, atualmente apenas é viável produzir biodiesel, no Brasil, a partir do óleo de soja. “As outras opções apresentam um grande potencial teórico, entretanto, ain-da existe um longo caminho de aprendizado agrícola para viabilizar a produção de óleo de palma, mamona ou pinhão-manso em larga escala”, pondera o economista.

De acordo com Edmar, o estímulo do go-verno federal ao etanol é crucial para o setor e se dá na forma de oferta de fi nanciamento para investimentos e, “principalmente, através de uma política tributária que onera o etanol me-nos que a gasolina. O etanol não paga a Cide (Contribuição por Intervenção no Domínio Econômico). Essa diferença de carga tributária é que torna o etanol economicamente viável”, explica o professor.

Para ele, o etanol pode levar desenvolvimen-to às regiões benefi ciadas pelos investimentos do setor. “A cana de açúcar gera muito mais emprego no campo que a soja ou outra cultura extensiva. As regiões canavieiras de São Paulo são justamente as que apresentam os melhores indicadores econômicos do país. Portanto, não é a atividade econômica em si que deve ser julgada, mas a forma como ela é desenvolvida”, justifi ca Edmar Almeida.

Quanto à preocupação de que a ampliação das áreas de cultivo destinadas à soja e à cana-de-açúcar prejudique o abastecimento de alimen-tos, o economista considera essa inquietação injustifi cada. Além disso, Edmar sublinha que a trajetória de desmatamento, que ocorreu para o plantio de palma, na Malásia, deve ser evitada. “O Brasil tem potencial de expandir muito sua produção agrícola, sem desmatar indiscrimi-nadamente”, conclui o economista.

Agosto•2007 5UFRJJornal da

Previdência Social

Reformar para quem?O futuro de milhões de beneficiários da Previdência Social

está em jogo em um debate nada promissor.Bruno Francoilustração Jefferson Nepomuceno

O governo federal criou o Fórum Nacio-nal da Previdência Social (FNPS), em janeiro desse ano, para promover o debate entre trabalhadores, governo e empresários sobre o aperfeiçoamento e sustentabilidade do re-gime de Previdência Social. Representando o governo estão os ministérios da Previdência Social (MPAS), o do Trabalho (MTb), o do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), o da Fazenda (MF), o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a Casa Civil (SPM).

Os trabalhadores são representados pelas centrais Autônoma de Trabalhadores (CAT), Geral dos Trabalhadores (CGT), Geral de Trabalhadores do Brasil (CGTB), Única dos Trabalhadores (CUT); pelas con-federações Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos (Cobap), Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Con-tag); Pela Força Sindical (FS), Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) e Social Democracia Social (SDS). Os em-pregadores por sua vez, expõem suas idéias por intermédio da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA); Confe-deração Nacional do Comércio (CNC); Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF); Confederação Na-cional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Transporte (CNT).

Denise Gentil, economista e professora do Instituto de Economia (IE/UFRJ), participou da 8ª reunião do FNPS, representando a bancada dos trabalhadores, quando expôs sua tese de que a Previdência Social brasileira é, ao contrário do discurso hegemônico, superavitária, e o balanço do sistema de Seguridade Social em 2006, che-gou a um resultado positivo de 50 bilhões de reais. Assim, não haveria como justificar uma reforma previdenciária em função de altos gas-tos, uma vez que as receitas são muito maiores. “O que as pessoas fazem é dizer que os gastos previdenciários crescem, e esquecem de dizer que as receitas também seguem o mesmo cami-nho, e em maior proporção. O que o governo faz é desviar esse superávit para cobrir gastos com custeio, investimentos e com a dívida pública”, expõe a pesquisadora.

O governo, quando menciona a necessidade de uma reforma da Previdência, alega déficit em sua contabilidade, baseando suas receitas previdenciárias somente nas contribuições ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade So-cial), o que – segundo Gentil – denuncia que está disposto apenas a proporcionar benefícios até o limite dessas contribuições. No entanto, a Constituição Federal estabelece, além desta, outras quatro vultosas fontes de receita que o governo não tem assumido como sendo receitas vinculadas à Seguridade Social: CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos e prognósticos e PIS/Pasep (Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) ainda irão patrocinar o seguro–desemprego.

A Seguridade Social engloba Saúde, As-sistência Social e Previdência. “O sistema foi pensado para ser integrado, para ser abrangente,

logo não há percentual estabeleci-do para esses três fatores. A Previdência veio pra suprir a renda na ausência do trabalho, na ausência do emprego”, esclarece a especialista.

Propostas em pautaUma das metas propostas pelo governo

– informa a professora – é o estabelecimento de uma idade mínima para as aposentadorias, idéia rechaçada pela bancada dos trabalhadores, por simplificar algo heterogêneo. “Uma idade mínima, estabelecida em 60 anos, poderia ser razoável em Brasília, onde a expectativa de vida é longa e a qualidade dessa é boa, mas pode não ser razoável para um nordestino, que poderia chegar a essa idade em condições precárias de saúde”, explica Gentil.

A idade mínima penalizaria trabalhado-res de grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, uma vez que dificilmente conseguem se manter em um emprego formal até os 60 anos. “Após os 50 anos, o mercado fica seletivo, substituindo trabalhadores mais maduros por outros mais jovens. O próprio avanço tecnológico faz com que os mais jovens se tornem mais habilitados aos postos de traba-lho. Como o jovem acabou de ser preparado, ele está mais inteirado dos padrões tecnológicos do momento” pondera a professora.

O tempo mínimo de contribuição hoje é de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os ho-mens, critério considerado brando, pois somente com o tempo de contribuição, desvinculado de uma idade mínima de aposentadoria, algumas pessoas se aposentavam, “precocemente”, aos 55 anos. De acordo com Gentil, essa é a situação dos que começam a trabalhar muito cedo, sa-crificando seus anos escolares e, justamente em função disso, apresentam mais desgaste físico, pois, por falta de formação profissional, exercem ocupações pouco qualificadas. “Por exemplo, qual a vida útil de um cortador de cana? Dez, doze anos. Esse trabalhador nunca terá direito a uma aposentadoria se a idade mínima for de 60 anos. Sacrificou sua escolaridade para trabalhar, tem um nível de desgaste enorme e tem dificuldades de contribuir, pois atua, predominantemente, no mercado informal,

mas se verá obrigado a contribuir por 30 ou 35 anos e ainda se aposentar com uma idade elevada”, explica a pesquisadora, para quem, são critérios que não investigam a situação do mercado de trabalho e uma grande parcela da população economicamente ativa sofreria grandes prejuízos com o estabelecimento de uma idade mínima.

Outras propostas do FNPS são a desvincu-lação do piso previdenciário do salário mínimo e a criação do Benefício Previdenciário Básico (BPB), corrigido pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), que garantisse apenas a reposição da inflação. Segundo Gentil, o go-verno deixaria de conceder aumentos reais para o piso previdenciário e eliminaria a diferença de idade (atualmente, de cinco anos) para aposen-tadorias de trabalhadores urbanos e rurais.

Nas aposentadorias por tempo de contri-buição, o prazo contributivo subiria de 35 para 40 anos. Nas aposentadorias por idade haveria elevação da idade mínima para concessão de benefícios para os novos ingressantes: 67 anos para homens e 66 para mulheres. Nesse segundo caso, o período de carência passaria de 15 para 25 anos até 2031. O valor da pensão por morte sofreria redução de 100% do valor da aposenta-doria do segurado falecido, para um valor entre 80% e 100% da pensão.

Priorizando gastos financeirosPara Gentil, o FNPS representa um curto

período de debates, no qual grande parte da população não participa, ainda que se suponha que ela esteja representada pelas centrais e fe-derações de empresários, “isso é muito pouco para um país das dimensões do Brasil, um de-bate de seis meses que atinge frontalmente os interesses da população mereceria um espaço mais didático e um período mais longo de dis-cussão”. A percepção da especialista é a de que “o governo quer fazer passar uma reforma que está de acordo com as pressões que as classes empresariais fazem sobre ele”.

“Por que o desemprego não é uma priori-dade de governo e a Previdência, ao contrário, se tornou uma delas, se o desemprego, mesmo em queda, se mantém em dois dígitos, sen-

do que o próprio governo reconhece que atualmente

não temos qualquer problema fis-cal?”, questiona Denise Gentil. Desde 1999, a economia brasileira gera superávits pri-

mários, ou seja, excedente de receitas face às despesas primárias do governo. De acordo com Denise Gentil, “a União

quer acomodar a política monetária que produz gastos financeiros altos com redução de custos previdenciários, portanto, precisa

achatar esses gastos para manter uma política de juros altos. O governo pre-cisa investir em infra-estrutura e sabe

disso. Mas, em vez de reduzir os gastos financeiros baixando a taxa de juros, quer cortar os custos previdenciários para poder investir”. O governo Lula faria, assim, uma política econômica idêntica à do Plano Real, de Fernando Henrique Cardoso.

Desrespeito às leisA Desvinculação de Receitas da União

(DRU) permite a liberação de 20% das receitas tributárias para que o Executivo possa fazer o que quiser com eles, porém, o próprio go-verno reconhece que extrapola esse limite, alegando fazê-lo em interesse da população. Segundo Gentil, o Executivo não se sente cons-trangido em fazê-lo, pois não sofre qualquer tipo de questionamento por parte dos demais poderes. “Alguns pareceres do TCU (Tribunal de Contas da União) indicam que não há dé-ficit na Previdência, mas não há pressão por sua revisão. Isso porque o governo manda a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária ao Congresso Nacional que as aprova e isso faz com que o Executivo se sinta respaldado para desrespeitar a DRU”, esclarece a professora, avaliando que isso é feito à sombra da ignorância da população, do autoritarismo do Executivo e da cooptação do Legislativo.

As transferências de renda, proporcionadas pela Previdência, são fundamentais para a so-brevivência da grande maioria da população. Na opinião de Denise Gentil, não há, no momento, nenhum programa de transferência de renda, do governo federal, que funcione com mais eficiência que a Previdência. “É justamente esse programa que o governo quer comprimir para abrir gastos financeiros e de infra-estrutura, recusando-se em pensar em outra possibilidade: fazer uma política monetária menos rigorosa, com uma taxa de juros mais baixa”, critica a economista.

Sendo a Seguridade Social superavitária, não obstante apresentada como deficitária, res-ta saber no que é empregada a diferença entre essas contas. De acordo com Gentil, os recursos estão sendo desviados para pagar aposentado-ria e pensão de funcionários públicos, o que é ilegítimo; para gastos com o serviço da dívida pública, compondo assim o superávit primário e, também, para custeio de outros ministérios.

6 Agosto•2007UFRJJornal da

EconomiaCelso Furtado

A teoria do subdesenvolvimento

Joana Jaharailustração Marco Fernandes

Grande parte da originalidade da reflexão de Celso Furtado (1920 – 2004) acerca das causas do subdesenvolvimento brasileiro e latino-americano – ao contrário de outros economistas que o tomam como uma etapa transitória no caminho do desenvolvimento pleno – advém de considerá-lo uma forma específica e histórica de inserção no sistema capitalista. Elisa Maria de Oliveira Muller sublinha que “para Celso Furtado, o subdesenvolvimento econômico é re-sultado do próprio desenvolvimento econômico, ou seja, os conceitos de subdesenvolvimento e desenvolvimento têm raízes históricas e ambos estão ligados intimamente à evolução do capi-talismo. Nessa linha de pensamento, Furtado encontra na divisão geográfica do trabalho – que é o resultado final desse processo de mudança que se inicia no século XV e se encerra com a Revolução Industrial inglesa – a primeira raiz histórica do subdesenvolvimento”, explica a pesquisadora das áreas de História Econômica, História de Empresas e História Financeira.

Em outras palavras: ao mesmo tempo em que a Inglaterra se industrializa, cria-se uma perife-ria para esse desenvolvimento, na qual o Brasil vai se inserir. “Furtado vai mostrar o tempo inteiro que o subdesenvolvimento corresponde aos diferentes ganhos no progresso técnico. A Inglaterra torna-se especializada na produção de produtos manufaturados e impõe ao mundo uma troca desigual porque os países da periferia do capitalismo acabam se especializando na produção de produtos primários”, acrescenta Elisa Muller.

Celso Furtado entende a colonização da América a partir da expansão ultramarina européia e ressalta que passamos a ter, a partir de então, um papel complementar àquela eco-nomia. “A etapa colonial moldou a trajetória de desenvolvimento do país e conferiu a ele um caráter de subdesenvolvido. As variáveis principais estão no progresso técnico e no destino que esse sistema econômico irá dar aos seus excedentes”, explica Muller, analisando a trajetória da economia brasileira com base nas contribuições furtadianas.

A economia brasileira se especializa na produção de alguns produtos primários, o que irá conferir a ela características próprias. “A economia açucareira se dá de fora para dentro. O motor principal dessa dinâmica é a demanda externa enquanto que, no mercado interno, não há um desenvolvimento expressivo das trocas monetárias. Para Furtado, não havia então uma economia doméstica que absorvesse o excedente e, nesse sentido, a economia açucareira teve pou-ca expressão do ponto de vista do fortalecimento do setor de subsistência”, destaca a professora.

Como parte do curso aberto “Clássicos do Pensamento Social Brasileiro”, o Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (Lema – JRT), do Instituto de Economia (IE) da UFRJ realizou no último dia 14, no auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), na Praia Vermelha, uma conferência intitulada “A teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado”, ministrada por Elisa Muller, professora do IE/UFRJ.

A partir da emergência da atividade mine-radora, ao longo do século XVI, Furtado afirma que o mercado interno ganha maior relevância. “A mineração vai conferir, ainda na colônia, maior liquidez à economia e integrar ativida-des que antes estavam dispersas (do Nordeste ao Sul). Além disso, ela será importante para a nossa territorialidade, porque não seríamos um país com as dimensões continentais que temos se, com a mineração, não tivesse caído a linha divisória do Tratado de Tordesilhas. Para os cariocas, ela foi fundamental porque permitiu o deslocamento da capital, na Bahia, para o Rio de Janeiro”, explica Muller.

Mas aquele ensaio de desenvolvimento de um mercado interno foi incapaz de superar o modelo primário exportador. Ainda que tenha perdido força, a cana-de-açúcar continuará como a cultura mais importante do período colonial. O fim desse regime, em 1822, não mudará substancialmente a economia brasilei-ra, pois, como mostra Furtado, o Brasil acaba herdando aquela estrutura colonial que somente começa a ser modificada com o advento da cafeicultura.

Elisa Muller divide o ciclo do café em dois momentos. De 1830 a 1850, período de abun-dância de terras e de mão-de-obra, e, pós-1850, com a assinatura da Lei Eusébio de Queiroz que, devido à forte pressão da Inglaterra, cessará o tráfico intercontinental de escravos. “Na visão de Furtado, é nesse momento que se inicia uma revolução que vai culminar com o apa-recimento do trabalho assalariado no Brasil e com a modernização econômica. A partir daí, a renda interna se torna o elemento relevante na dinâmica do modelo econômico da cafeicultura”, informa Elisa.

As dificuldades da cafeicultura, devido às res-trições em relação à mão-de-obra escrava, propi-ciarão o desenvolvimento de uma nova estrutura de transportes para o país. “Há um movimento forte de modernização com o ciclo de ferrovias e infra-estrutura econômica. Os capitais, que até então eram aplicados na importação de escravos, voltam-se para outras atividades econômicas, como bancos, companhias de navegação e segu-radoras. A modernização econômica se agiganta no pós-1850, mas, para Celso Furtado, sem possibilitar que nossa economia perca o caráter subdesenvolvido”, explica Muller.

Isso porque, segundo ela, os empreendedores capitalistas dessa etapa da economia brasileira – que cobre o período de 1850 até, pelo menos, 1930 –, vão desenvolver um padrão de consumo que penaliza a industrialização endógena: “o consumo das elites responsáveis pelo sistema não fica no país e, sem a acumulação no interior

da economia brasileira, as atividades industriais não são desenvolvidas. Com isso, Furtado conclui – e isso é uma originalidade – que parte das raízes do subdesenvolvimento são econômicas e parte culturais”.

Em seu livro O mito do desenvolvimento econômico (Paz e Terra, 1974), obra fundamental em sua trajetória intelectual, Celso Furtado su-blinha o caráter mítico que o desenvolvimento assume no pensamento econômico, “afirmando que a idéia dos povos pobres desfrutarem das formas de vida dos povos ricos é irrealizável, porque as economias da periferia nunca serão desenvolvidas no sentido similar às economias que compõem o centro do capitalismo. O mito do desenvolvimento se encontra, para ele, nas distorções dos padrões de consumo”, afirma Muller.

Furtado e MarxElisa Muller se refere às contribuições do

filósofo e economista alemão Karl Marx (1818 – 1883) em um exercício de imaginação, supor o que diria ele se tivesse para oportunidade de ler as obras de Celso Furtado. “Marx afirmaria, por certo, que Furtado escreveu teorias às avessas da dele” – acredita a professora – porém, sem deixar de ressaltar que tanto um como o outro constru-íram teorias a partir da análise histórica. Além disso, “ambos foram militantes, mas Furtado atuou no interior do Estado, na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), órgão das Nações Unidas, no BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), que nessa época ainda não operava com a lógica social, e na Su-dene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste). Enquanto Marx organizou o Partido Comunista e militou na esquerda”, compara a professora.

Mas, a ênfase dos autores é diferente. “A teoria do subdesenvolvimento de Furtado pode ser explicada, em parte, pela história, mas, ao contrário de Marx, as variáveis mais importantes estão, para ele, vinculadas à idéia de circulação, e são o consumo e o comércio. Furtado inverte a relação marxista entre produção e consumo e afirma que a tecnologia incorporada em nossa economia não se relaciona com o nível de ca-pital alcançado pelo país, mas com o perfil da demanda. Na realidade, a principal distorção do modelo econômico brasileiro adviria do fato de que consumimos bens e serviços que estão

desvinculados do nosso padrão de acumulação de capital”, avalia Muller.

Furtado sublinha, assim, a esfera do consumo enquanto Marx prioriza a da produção. O autor brasileiro acredita que o desenvolvimento econô-mico no Brasil tem somente uma saída: a atuação do Estado em direção à industrialização. Enquan-to Marx não acredita em um desenvolvimento econômico, sob o modelo capitalista, que supere as imensas desigualdades sociais do sistema. “A te-oria marxista centra-se nessa impossibilidade. No Brasil não se produziram máquinas e equipamen-tos, e a importação desses exclui a participação de enormes contingentes da nossa mão-de-obra do aparelho produtivo. Na visão de Furtado, para se alcançar desenvolvimento é necessário que haja renda, consumo e produção. Para Marx não há sequer o mito do desenvolvimento econômico capitalista, porque é impossível, segundo seu ponto de vista, conciliar acumulação e igualdade social”, reflete a professora.

Muller cita o livro Brasil, a construção inter-rompida (Paz e Terra, 1992), para discutir, um pouco, como Celso Furtado vê a trajetória recente da economia brasileira. Ela destaca que, para ele, apesar da industrialização do país, a dependência não havia sido superada, sendo agora mais de natureza financeira do que tecnológica. “Essa dependência do capital financeiro é acompanha-da de uma herança perversa: a das desigualdades sociais e das disparidades regionais que ainda subsistem”, conclui a professora.

Agosto•2007 7UFRJJornal da

E depois do Pan...Durante 15 dias em julho os XV Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro (Pan 2007) ocuparam a atenção da mídia e da população em geral. A conquista de medalhas de ouro, prata e bronze encheu de orgulho os

brasileiros e criou expectativas favoráveis para o desempenho de nossos atletas nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Enquanto isso, dirigentes esportivos e autoridades governamentais aproveitam a oportunidade para fortalecer a candidatura do Rio de Janeiro à sede das Olimpíadas de 2016.

Joana Jaharailustração Anna Carolina Bayer

Para Waldyr Mendes Ramos, professor e diretor da Escola de Educação Física e Des-portos (EEFD) da UFRJ e atual presidente da Associação Brasileira de Master de Natação, a mídia ajudou a colocar os Jogos em um pata-mar esportivo artifi cialmente elevado. “Todo país que é sede de um evento desse porte faz uma grande propaganda dele. Contudo, não acredito que o impacto teria sido o mesmo se o Pan fosse realizado nos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, devido ao envolvimento do país em outras atividades desportivas dentro e fora de seu território. Os EUA e o Canadá costumam enviar para os Jogos Pan-Americanos, salvo exceções, seus atletas ainda em formação, às vezes de ponta, mas que não são seus principais desportistas em dada modalidade”, avalia o professor, que foi medalhista na compe-tição de natação 4x100m Medley no Pan-americano de 1967, em Winnipeg, no Canadá.

Jogos Olímpicos 2016Segundo as autoridades,

a cidade do Rio de Janeiro está hoje preparada para abrigar as Olimpíadas. Um dia após o encerramento do Pan, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuz-man, reiterou a intenção da cidade se candidatar à sede dos Jogos de 2016 e também se disse satisfei-to com a segurança e os transportes ao longo da competição – áreas que despertavam preocupa-ções. Porém, de acordo com Waldyr Mendes, “apenas os empresários e as pes-soas ligadas à construção das instalações colheram efetivamente os frutos do Pan. A cidade nada ganhou. Nenhuma obra relevante foi feita, nem foi ampliado o saneamento, nem melho-radas as vias públicas ou o sistema de transportes da cidade”, aponta o diretor da Escola de Educação Física da UFRJ.

Segundo ele, a possi-bilidade de sediar eventos como esses é sempre inte-ressante devido aos investi-mentos que podem reverter em melhorias na infra-estrutura urbana. “Mas fi co receoso quando penso na

forma como a política é conduzida no Brasil. Creio que veremos uma disputa entre os três níveis de governo acerca dos louros do Pan, sem contar que ele poderá ser explorado nas próximas eleições”.

Embora não tenham cumprido promessas como o saneamento da baía de Guanabara ou da lagoa Rodrigo de Freitas, a ampliação de linhas do Metrô e o transporte de barcas – se para as autoridades o Rio está preparado, para Waldyr Mendes as instalações não são sufi -cientes para receber um grande evento como as Olimpíadas. “Mesmo do ponto de vista de facilidades, de estacionamento, de espaço para a imprensa e da capacidade em receber turistas as instalações são muito tímidas”, afi rma o di-retor, acrescentando que “a seis meses do Pan, o Comitê Organizador dos Jogos do Rio 2007

(Co-Rio) não tinha ainda noção completa das áreas que deveria administrar. A meu ver, o Pan foi uma maneira de aprender a realizar um evento esportivo, mas vamos considerar que essa competição é apenas um embrião de iniciativas mais ambiciosas. Na verdade, ele reuniu a mesma quantidade de equipes que costumam participar das nossas competições nacionais”.

E as instalações?O temor do diretor da Escola de Educa-

ção Física é que no pós-Pan as insta-lações os equipamentos evento sejam sucateadas. A preocupação é para que não se repita o caso dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. Um ano após as duas semanas de es-petáculo, as instalações que custaram bilhões

de euros estavam fechadas para o público. Sem planejamento, o governo ateniense demorou a defi nir o que fazer com elas. “Atenas, agora, não é mais sucata. Eles estão usando as insta-lações em programas universitários. Mas, como aconteceu na Grécia, no Rio não existe ainda um projeto de utilização daquelas áreas esportivas. É incrível que ainda não tenham decidido o que fazer”, critica Waldyr Mendes.

A Prefeitura do Rio de Janeiro já encontrou uma solução para o Estádio Olímpico Municipal João Avelange – o Engenhão. A concessionária Companhia Botafogo, que passará a administrar o estádio, ganhou a licitação para geri-lo por 20 anos, oferecendo R$ 36 mil por mês. “Para dar lucro, porém, o estádio vai ser descaracterizado e acabará realizando eventos diversos da sua fi na-lidade original. Ao contrário do que se apregoou,

ele não vai oferecer um local para que o jovem carioca desenvolva atividades des-portivas”, enfatiza Waldyr.

A Arena Olímpica do Autódromo de Jacarepaguá, utilizada nas disputas de gi-nástica artística e basquete, também segue o mesmo caminho. “Nem o Estado nem o município têm um projeto abrangente de prá-tica esportiva, sequer uma política engendrada para colher os frutos do Pan. Seria muito interessante, por exemplo, utilizar es-ses espaços herdados com programas voltados para estudantes da rede pública; mas não se trata de ensinar-lhes apenas a praticar uma determinada modalidade, mas de fazer com que os que se destaquem possam seguir adiante”, avalia o professor.

Segundo o educador, a base da cultura esportiva está na escola, e um país que pretenda se tornar uma po-tência nesse campo precisa desenvolver um trabalho metódico e sistemático des-de a infância. Para Waldyr Mendes, “se a escola ofere-cesse oportunidades efetivas às crianças, seja no esporte, seja na pintura, seja na música, naturalmente sur-giriam uma quantidade de novos talentos. Mas, hoje, as difi culdades são ainda maiores, porque, os clubes, que já foram celeiros de atletas, estão falidos”.

Esporte

8 Agosto•2007UFRJJornal da

Desengarrafando o trânsito Cidade

Bruno Franco

A solução? A mais óbvia e, ao mesmo tem-po, a menos implementada pelas autoridades públicas ao longo de décadas de história da cidade: planejamento (e sua consecução). A Região Metropolitana do Rio de Janeiro somen-te foi contemplada com um Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU) em 2002 – elabo-rado por técnicos da Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (Cen-tral) e da Secretaria Estadual de Transportes (Sectran), sem que o mesmo tenha, até o momento, resultado em ações efetivas.

O Rio de Janeiro enfrenta numerosos problemas no setor. De acordo com Licínio da Silva Portugal, pesquisador do Programa de Engenharia de Transportes do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ e autor dos livros Estudo de pólos geradores de tráfego e de seus impactos nos sistemas viários e de transportes (Edgard Blücher, 2003), em co-autoria com Lenise Grando Goldner, e Simulação de tráfego: conceitos e técnicas de modelagem (Interciência, 2005), essas adversidades restringem a mobi-lidade, degradam a qualidade de vida e impin-gem alto custo socioeconômico à população.

Segundo o especialista, apenas em termos de congestionamento e acidentes, sem levar em conta os impactos ambientais, esse custo, na Região Metropolitana, supera, anualmente, a cifra de um bilhão de reais, que é, evidente-mente, pago por toda a sociedade. “Não é por acaso que o Rio, junto com São Paulo, apresenta os maiores tempos médios de deslocamento residência-trabalho em nosso país, da ordem de uma hora e 20 minutos”, relata Portugal, que também é professor do Instituto de Física.

O docente ressalta que mais de um terço desses deslocamentos é realizado a pé, o que faz com que os pedestres representem mais de 40% do total de vítimas fatais em acidentes de trânsito. A precariedade social ajuda a ex-plicar esses números, pois parcela significativa da população de baixa renda se vê obrigada a caminhar longas distâncias para evitar com-prometer, com transportes, uma fração ainda maior do orçamento familiar.

Fruto da ausência de políticas públicas de planejamento urbano, o que comprometeu drasticamente seu sistema de transportes, o caótico trânsito da Região Metropolitana do Rio de Janeiro condena diariamente

seus usuários a uma verdadeira via crucis de engarrafamentos e retenções, além de submetê-los a riscos desnecessários de acidentes. De tabela, a sociedade paga alto custo com a ineficiência.

Problemas de metrópole

O gigantismo da metrópole carioca é, tam-bém, parte do problema. “Quanto maior e mais populosa for a cidade, mais complexa é a sua administração e tendem a crescer as distâncias dos deslocamentos e a propensão ao uso das modalidades motorizadas, particularmente de automóveis, sobretudo quando o transporte público não tem qualidade adequada nem é competitivo”, analisa Licínio. Para se ter uma idéia dessa complexidade, basta lembrar que o município do Rio de Janeiro, com os seus cerca de 1.200 km2, corresponde a quase 12 cidades do porte de Barcelona (Espanha).

Outro fator decorre da falta de políticas in-tegradas para transporte e habitação. Submetida a um crescimento desordenado, a cidade se ex-pande para regiões de periferia, as mais carentes de infra-estrutura de transportes. Naquelas em que ela é adequada, a população é relativamente reduzida, exceto em favelas. Segundo Licínio Portugal, nas áreas periféricas, como a Zona Oeste, “ocorre o denominado espraiamento, cuja ocupação do território é dispersa, envolvendo elevados custos para fornecer infra-estrutura de serviços (até mesmo nos Estados Unidos há preocupação em reverter esse modelo)”.

Além disso, o fenômeno contribui para o afastamento das atividades socioeconômicas (residências, locais de trabalho, escolas e instala-ções comerciais), restringindo, assim, as viagens a pé (apropriadas para distâncias não superiores a 2 mil metros) e por bicicleta (ao redor dos 5 mil metros), e incentivando, por conseqüência, o uso excessivo de automóveis.

O desejável, na opinião de Portugal, é pro-duzir alternativas habitacionais, em especial nos vazios urbanos, que já dispõem de certa infra-estrutura, como é o caso dos entornos das estações de trens. “A melhoria do transporte fer-roviário, ao promover maior acessibilidade, agre-ga valor às áreas no entorno das estações, o que pode ajudar a recuperá-las, tornando-as uma possibilidade mais eficaz e inteligente de política habitacional do que os processos vigentes de ocupação, que vêm conduzindo à favelização e à periferização”, explica o professor.

Além disso, a con-figuração da rede de transportes no Rio é fundamentalmente ra-dial, direcionada para o Centro e para a Zona Sul, que dispõem de condições relativamente privilegiadas de acesso a transportes, o que torna essa regiões mais valori-zadas e capacitadas em atrair investimentos.

Segundo Portugal, uma das características desse tipo de rede é concentrar a demanda de viagens em alguns corredores, o que via-biliza a operação de modalidades de alta capacidade, como o Metrô e os trens. “Mas, no Rio, contraditoria-

mente, esses corredores são atendidos, funda-mentalmente, por modalidades rodoviárias (mais de 90%), como os automóveis, as vans e os ônibus, que se caracterizam pela baixa produ-tividade por passageiro transportado e pela alta taxa de consumo de espaço urbano. E isso reflete outra carência do sistema de transportes carioca: a ausência de uma rede estruturante, baseada nas modalidades de maior capacidade e alimentada pelas de menor”, explica o pesquisador.

A rede estruturante proposta por Licínio Portugal serviria como um instrumento para integrar as diferentes modalidades de trans-portes e o desenvolvimento socioeconômico, reduzindo desigualdades espaciais. “Ela (a rede estrutural) deveria se basear nos sistemas ferroviários, metroviários, de barcas e mesmo em corredores rodoviários de média capacida-de, que, por sua vez, seriam alimentados por linhas de modalidades com menor capacidade”, explica Portugal, ressalvando que essas medi-das deveriam ser concebidas e implementadas em sintonia com o desenvolvimento de toda a Região Metropolitana.

Outra deficiência é a falta de planejamento. Ao contrário de outras metrópoles, mesmo brasileiras, “no Rio o planejamento ainda é freqüentemente visto como algo burocrático e não como um instrumento vivo de transfor-mação que pode contribuir com a geração de medidas para a melhoria dos transportes e da qualidade de vida de sua população”, critica o professor.

Investimentos públicosAs iniciativas conjuntas envolvendo di-

ferentes esferas do poder público são funda-mentais no setor de transportes, devido à com-plexidade e à magnitude de seus problemas, cujo enfrentamento necessita superar as ações pontuais e isoladas. Atualmente a boa relação entre o governo federal e o estadual, estabelece, na opinião de Portugal, um ambiente propício à negociação, o que favorece a obtenção de recursos necessários.

Os Jogos Pan-Americanos, recentemente sediados pela cidade, apesar das promessas de investimentos, pouco ajudaram a melhorar o sistema de transportes. Para Licínio Portugal, isso ocorre porque, normalmente, “cada projeto está vinculado a um governante, enfim, a um ‘dono’, em prejuízo do interesse comum”.

Em sua opinião, em vez de simplesmente responsabilizar o Estado como mau gerente, o importante seria capacitá-lo a desempenhar adequadamente suas tarefas constitucionais. “Esse esforço passa por incorporar, explicita-mente, o conhecimento no processo de decisão, atuando no fortalecimento das equipes técni-cas, na criação de sistemas de informações, na implantação de mecanismos de participação popular, no estabelecimento de um plano de transportes de longo prazo e de uma estrutura institucional articulada e unificada”, acredita Portugal. O mais importante, avalia o pro-fessor, “é - independentemente de estímulos externos, como os Jogos Pan-americanos e as Olimpíadas - termos capacidade de articular um projeto de desenvolvimento para a Região Metropolitana e garantir transporte digno para a nossa população”.

Planejamento contínuo e participativoPara Licínio Portugal, o plano de transportes

é uma oportunidade única para se construir uma consciência coletiva, que transcenda os interesses e as vaidades de políticos e partidos. Segundo ele, um dos princípios mais importan-tes a serem contemplados em um planejamento é o da integração das diferentes dimensões que compõem o seu campo de atuação: a institucio-nal e a dos municípios pertencentes à Região Metropolitana, a intersetorial (como os setores de transportes e de ocupação do solo, particular-mente no que se refere às atividades residenciais e de moradia), a das infra-estruturas (como a de transportes e saneamento) e a das modalidades de transportes.

As cidades com melhores qualidades de vida e de serviços são justamente aquelas que, a partir de um planejamento contínuo e partici-pativo, realizaram projetos de desenvolvimento e buscaram uma concepção de transportes para viabilizá-los. “Tipicamente, tal concepção se baseou nas modalidades metroferroviárias, por sua capacidade de estruturar a ocupação do solo e integrar os modos de menor capacidade de transportes. Considerando os cerca de 200 km de ferrovias subutilizados existentes no Rio, ao lado de corredores rodoviários saturados, é essencial revitalizá-los para que – em conjunto com o Metrô e as barcas – assumam o seu papel de articulador das demais modalidades”, cons-tata e propõe pesquisador.

Portugal considera essencial a elaboração de um plano de desenvolvimento da Região Metro-politana a partir dos planos diretores municipais e dos projetos de investimentos previstos para a região, e, com base em suas diretrizes e em alternativas sugeridas por ele, conceber a rede estrutural de transportes.

Além disso, ressalta o especialista, os im-pactos, a percepção e a importância dos atores afetados, devem ser considerados para que o governo tenha capacidade de hierarquizar e priorizar projetos, elaborar cronogramas de exe-cução e atribuir responsabilidades, “bem como estabelecer um sistema de acompanhamento das intervenções, apoiado em indicadores de mobi-lidade e qualidade de vida, prestando contas e interagindo com a sociedade”. Todas essas etapas disporiam de suporte técnico interdisciplinar, aproveitando o conhecimento já existente na administração pública e nas universidades do estado, e contanto com a participação essencial da sociedade.

No entendimento de Portugal, seria dese-jável o estabelecimento de convênios de longo prazo envolvendo a administração pública com as universidades fluminenses, utilizando o seu potencial na capacitação de pessoal e no desenvolvimento de projetos específicos: “a inexistência desses acordos demonstra como o conhecimento disponível não é satisfatoria-mente agregado à administração pública”.

Na opinião do professor, o argumento de que essa integração da universidade com o poder público apenas pode ocorrer em países mais desenvolvidos evidencia uma contradi-ção: são justamente em países como o Brasil, em que se observam usos mais inadequados de recursos, os que mais se beneficiariam dessa interação.

Agosto•2007 9UFRJJornal da

Comportamento

Em 2025, estima-se que a média da popu-lação idosa no Brasil seja de 30 milhões de pessoas. Diante desse número, previsto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE), diversas áreas acadêmicas estão empenhadas em discutir o envelhecimento. O objetivo, além de evitar a exclusão social, é melhorar a qualidade de vida desse segmento populacional.

O indivíduo nasce, cresce, procria, enve-lhece e morre. Assim, aprendemos, desde a infância, a partir dos livros didáticos, ser o de-senvolvimento humano. A velhice, uma dessas etapas, faz parte do nosso dia-a-dia desde que nascemos. A cada segundo, o organismo vivo envelhece, mostrando que o envelhecimento acontece quando ainda somos crianças. Tal percepção, por parte da sociedade, contribui para amenizar o preconceito contra os idosos, considerados meros espectadores do fim da vida. Além de favorecer melhorias públicas que busquem condições vitalícias para uma terceira idade saudável.

Produção acadêmicaOs primeiros livros de Gerontologia (estudo

do envelhecimento) datam do início do século XX. À época, centradas na saúde, as publica-ções tratavam a velhice como uma doença. A profusão acadêmica brasileira nessa área tem menos de uma década e, mesmo assim, vem acompanhando o envelhecimento dos brasileiros. “Quanto mais velha se torna a po-pulação de um país, maior a necessidade de se entender esse processo”, explica Sara Goldman, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, conselheira da Associação Nacional de Gerontologia do Rio de Janeiro (ANGRJ) e uma das pioneiras em estudos sobre envelhecimento no Brasil.

Com o aumento da população idosa em escala mundial, há um crescimento substan-cial do interesse de outros saberes pelo enve-lhecimento. Da Antropologia à Nutrição, da Filosofia à Arquitetura, segundo Sara, a busca de todos os campos por essa temática é muito rica. Porém, mais interessante é a tendência atual de interface, em prol de uma terceira idade com qualidade.

Para os estudiosos em envelhecimento é primordial entender seu conceito. O IBGE, em países em desenvolvimento, conceituou idosa a pessoa que ultrapassa os 60 anos de idade. Nas nações desenvolvidas, 65 anos é o início da terceira idade. Tal diferença marca o grau de complexidade que envolve o conceito de envelhecimento. O próprio IBGE, que, em 2000, lançou o Perfil dos Idosos Responsáveis por Domicílio no Brasil, reconhece, no docu-mento, que a idade não é o único parâmetro para definir o processo sociodemográfico do envelhecimento, mas facilita a análise de dados. Sara Goldman concorda, mas ressalta que são muitas as indicações favoráveis a um bom ou a um mau envelhecimento, como fatores sociais, econômicos e culturais.

Os cravosda idade

Exclusão e preconceito. Como enfrentar os desafios do envelhecimento?

Amanda Wanderley, da AgN UFRJ Praia Vermelha

Esperança de vidaOs avanços biotecnológicos em prevenção

e em cura de doenças contribuíram para o crescimento vegetativo e para o aumento gradual da esperança de vida, proporcionan-do uma evolução quantitativa da população idosa no país. Segundo o último Censo De-mográfico, realizado em 2000, pelo IBGE, o Brasil apresentava 14.536.029 pessoas com mais de 60 anos, 35,56% mais que em 1991. Os números podem chegar a 30 milhões, na segunda década do século XXI, como prevê o instituto.

O envelhecimento é diferenciado entre as regiões do Brasil. Sul e Sudeste levam vantagem, representado principalmente pela capital de maior incidência de população idosa, o Rio de Janeiro, com 12,8%. Em con-trapartida, a Região Norte apresenta a menor concentração de velhos. Palmas é a capital de menor índice, com 2,7%. Essas taxas acompa-nham o nível de desenvolvimento das regiões

e apresentam um dos maiores problemas enfrentados pela terceira idade brasileira: o acesso aos serviços de saúde, decisivo na con-figuração dos dados do envelhecimento. “Em um país, se faltam investimentos equilibrados em programas sociais e de saúde pública, o fator econômico vai interferir na velhice da população”, avalia Sara Goldman.

Os que podem buscar alternativas à saúde pública têm mais chances de viver sadiamente a terceira idade. Nesse contex-to, insere-se a urbanização dos idosos que, cada vez mais, saem do campo em direção à cidade a procura de aparatos especializados de saúde e facilitadores do cotidiano. Outra característica marcante é sua feminização. As razões são polêmicas e, uma delas, é a prevenção. “Culturalmente, o homem, em geral, considera fragilidade cuidar do corpo”, constata Sara Goldman, que cita a legislação trabalhista em defesa da mulher como outro motivo. Maus hábitos tipicamente masculi-

nos também são considerados catalisadores da expectativa de vida do homem. Apesar de o tabagismo atualmente estar presente em ambos os gêneros – por muitas gerações, os homens foram os maiores fumantes. Ainda hoje, o alcoolismo é uma prática de maior incidência no gênero masculino.

Preconceitos e legislaçãoAlém de todas estas dificuldades, a tercei-

ra idade ainda sofre preconceito por parte de outras gerações. Tanto é assim que, em 2002, o governo federal instituiu o Programa Na-cional de Direitos Humanos, em que considerou os idosos um grupo passível de discriminação. Sara Goldman coordena um grupo de pesquisa na ESS sobre conceitos e preconceitos entre idosos e outras gerações. Entrevistando os es-tudantes da escola, o grupo vem descobrindo as tendências que fazem dos velhos, pessoas, por vezes, desagradáveis.

Os resultados revelam que idosos tendem a ser reiterativos. Eles gostam de contar histórias, enquanto que os mais jovens não têm paciência para escutar. Os mais velhos são, em grande me-dida, conservadores, incomodando, com suas opiniões, aqueles que estão, teoricamente, mais atualizados. Outro fator preponderante são as dores comuns à idade avançada. “É difícil uma pessoa com reumatismo e dia-betes, por exemplo, estar de bom humor sempre”, opina Sara. Entretanto, para ela, a maior causa do preconceito contra a terceira idade é a atribuição da juventude como um valor em si. As pessoas costumam se sentir lisonjeadas quando chamadas de jovens. “Esse é o reflexo da nossa sociedade: o visí-vel e o consumo que torna obrigatória uma estética da velhice pautada na aparência”, conclui a pesquisadora.

Nessa relação de atritos entre idosos e outras gerações, Sara não aponta respon-sáveis: “cada lado tem sua parcela de culpa, não são apenas os jovens que devem ser so-lidários com os velhos, o contrário também tem de acontecer”.

Um dos caminhos para a boa velhice se encontra na legislação brasileira que, segundo Sara Goldman, é apropriada. Para ela, se a sociedade cumprisse corretamente a Constituição, não haveria necessidade de estatutos específicos como o do idoso. “A Constituição Federal determina que todo cidadão tem direito à dignidade, à saúde, à assistência, ao lazer entre outros tantos direitos”, enumera a professora. O Estatuto do Idoso, considerado referência de legislação; e a Lei 8.842, de 5 de janeiro de 1994, que define a Política Nacional do Idoso; são outros aparatos legais de assistência à terceira idade. “Quanto à legislação, os idosos não têm do que reclamar, o problema está no fosso existente entre a teoria e a prática”, comenta Sara, acreditan-do que, se postas em prática, diminuiriam a exclusão de cidadãos de terceira idade.

Tão importante quanto a lei, Sara acre-dita que políticas públicas engajadas desde a juventude, com programas de prevenção, aumentam a possibilidade de viver uma ter-ceira idade sem tantos espinhos.

10 Agosto•2007UFRJJornal da

Inaceitável é não enfrentar o problema

O 4º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) divulgado no dia 4 de maio, em Bangcoc, reafirma o papel dos

governos no combate ao aquecimento global.

Joana Jahara

Meio Ambiente

Membros de um dos grupos de trabalho que elaborou o documento, os pesquisadores Roberto Schaeffer e Emílio La Rovere, ambos professores do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, afirmam que basta von-tade política para a redução da emissão de gases que provocam o efeito estufa.

O Painel (IPCC – International Panel on Climate Change) é considerado o bra-ço científico da Organização das Nações Unidas (ONU) para questões relativas às mudanças climáticas. Criado em 1988, com a primeira reunião sobre o tema entre governantes e cientistas, realizada em Toronto, no Canadá, publicou o seu primeiro relatório em 1990, o segundo em 1995 e o terceiro em 2001. De acordo com pesquisadores, há diferenças identificáveis entre esses suces-sivos documentos. “Esse histórico é muito interessante porque a certeza científica aumenta, e muito, ao longo do tempo. Pois, até o terceiro relatório, questionava-se o fato da Terra estar aquecendo e se, efeti-vamente, a ação humana era a principal causadora do aquecimento global. Hoje não há mais dúvida a respeito disso”, afirma Roberto Schaeffer, professor do Programa de Planejamento Energético (PPE/Coppe) e especialista em Metodologias de Linhas de Base e de Monitoramento de projetos do Mecanismo do Desenvolvimento Limpo das Nações Unidas.

Emílio Lebre La Rovere, também profes-sor do PPE/Coppe, coordenador do Labo-ratório Interdisciplinar de Meio Ambiente da Coppe (Lima), acrescenta que o primeiro relatório “adotava uma linguagem muito cuidadosa porque, apesar dos indícios de mudanças climáticas em curso, não se tinha certeza se elas derivavam da ação do homem ou se correspondiam à variabilidade natural do clima no planeta. Na verdade, esse rela-tório serviu como base para as discussões prévias que culminaram com a assinatura da Convenção do Clima, na ECO 92 (nome pelo qual ficou conhecida a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro)”.

La Rovere afirma que, já no segundo re-latório há evidências científicas mostrando ser pouco provável que essas alterações pu-dessem ser atribuídas apenas às flutuações naturais de temperatura. “Em 2001, os es-tudos apontavam extremamente improvável o aquecimento global decorrer apenas de variações climáticas naturais. E em 2007, temos evidências seguras que comprovam ele ser causado pela emissão de gases de efeito estufa pela sociedade, decorrentes principal-mente da queima de combustíveis fósseis”, atesta o pesquisador.

Esses relatórios forneceram elementos im-portantes para a assinatura da Convenção do Clima e sua implementação, principalmente através do Tratado de Kyoto, redigido em 1997. La Rovere acredita que o quarto relató-rio subsidiará o processo de negociação dos governos para novas medidas nesse campo, dando continuidade aos acordos de Kyoto, após 2012.

Grupos de trabalhoO IPCC é dividido em três grupos de tra-

balho (GT) diferentes. O GT1 analisa cada trajetória de crescimento das emissões, como os gases interagem entre si e as conseqüências deles na atmosfera. La Rovere explica como foi possível distinguir a componente do aumento da temperatura devido ao ciclo natural do acréscimo gerado pela interferência humana:

“leva-se em conta, primeiro, como seria a flu-tuação da temperatura se não se considerasse a queima de combustíveis fósseis e desmata-mentos. Depois é feita uma simulação con-siderando a queima desses combustíveis e os desmatamentos, além de outros fenômenos que afetam a temperatura, como erupções vulcâni-cas e a variabilidade estatística normal, para, assim se realizar uma terceira simulação com modelos matemáticos, que representam todos os fenômenos quando considerados ambos os fatores. E, quando se compara o resultado das rodadas de simulação proporcionadas pelos mo-delos matemáticos com o registro histórico dos termômetros, verifica-se que, desconsideradas as emissões, a elevação da temperatura é muito diferente da observada; há um ajuste quase que perfeito quando se considera tanto a variabili-dade natural como as emissões”.

Estima-se que em 100 anos a temperatura média do planeta tenha se elevado em 0,7ºC e que a atividade humana seja a principal res-ponsável por isso. O GT1 também indicou que a tendência atual de crescimento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) poderiam acar-retar um aumento de 2º a 4,5ºC na tempera-tura média da superfície do nosso planeta, no final deste século. “Na era pré-industrial havia uma concentração de CO2 (Dióxido de Carbo-no) na atmosfera da ordem de 280 partes por milhão e hoje essa concentração está na faixa de 380. Os cenários apresentam sinais de que essa concentração disparará, podendo chegar a 750 partes por milhão. A luta é para manter a taxa em 450, o que provavelmente levaria a um aumento médio da temperatura, em relação à era pré-industrial, de 2ºC, um limite possível e desejado. A partir de 2ºC não se sabe ainda como uma série de processos climáticos se comportará”, explica Schaeffer.

O GT2 busca entender, a partir do cenário global, quais os impactos da mudança climá-tica nas diversas regiões do planeta e sobre os diversos ecossistemas. “Um aumento de temperatura acima de 2ºC compromete a produção de cereais e espera-se um grande aumento de inundações e tempestades. E, a partir de 4ºC, talvez haja uma perda de 30% das regiões costeiras. Acredita-se que nesse caso milhões de pessoas seriam afetadas anualmente e já se começa a considerar uma nova figura de imigrantes, a dos chamados refugiados ambientais. Pequenas variações nos oceanos podem afetar, de fato, dezenas ou centenas de milhões de pessoas”, afirma Schaeffer.

Entre as conseqüências previstas incluem-se impactos importantes na saúde humana. A elevação da temperatura contribui para a proliferação de vetores como mosquitos, o que aumentaria a incidência de doenças, como a malária e a dengue. “Há alguns anos, em uma reunião do IPCC, tive a oportunidade de jan-tar com um médico queniano que comentava naquele ano a estimativa de aumento de 500 mil casos de malária no seu país. Isso porque o aumento verificado na temperatura estaria sinalizando ao mosquito transmissor da mo-léstia que o verão havia ficado duas semanas mais longo”, lembra Schaeffer.

La Rovere afirma que o objetivo da Con-venção do Clima é estabilizar a concentração dos gases causadores do efeito estufa em um nível seguro, ou seja, que não comprometa a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável e permita aos ecossistemas se adaptarem naturalmente ao problema. “Exis-te certeza sobre os fenômenos em curso, mas não se tem ainda clareza sobre algumas conseqüências dos mesmos. Sabemos que a temperatura vai aumentar na Amazônia, mas não conseguimos ainda prever se vai chover

Roberto Schaeffer: “Na verdade a responsabilidade pelo aquecimento global não é somente proporcional ao que se emite hoje.”

Agosto•2007 11UFRJJornal da

Meio Ambiente

mais ou menos. O clima não é somente ca-racterizado pela temperatura. A precipitação influencia muito. Agora têm que ser estudados principalmente os impactos regionais”, obser-va o professor.

O GT3, por sua vez, considera as estraté-gias possíveis para mitigar as emissões dos gases de efeito estufa na atmosfera. “Nós trabalhamos com a necessidade crescente de se incorporar estratégias de desenvolvimento sustentável na medida em que a variável da mudança climática está se tornando uma preocupação relevante para qualquer setor da economia. Por exemplo, o setor de trans-porte precisa incluir essa variável seja para privilegiar determinados combustíveis em detrimento de outros, seja para repensar o papel do transporte privado em confronto com o público”, avalia Schaeffer.

Potencial de mitigaçãoMudanças no estilo de vida e nos padrões

de comportamento podem contribuir para a mitigação da mudança do clima em todos os setores. “Analisando os últimos 35 anos, pode-se notar que as emissões de gases de efeito estufa aumentaram mais de 50%, principalmente quando se considera o CO2. As estratégias possíveis para mitigar o problema estão no setor de energia, na indústria, nos transportes, no combate aos desmatamentos, na agricultura, na preser-vação de florestas e no tratamento adequado de resíduos”, afirma Schaeffer.

De acordo com La Rovere, algumas medidas são economicamente viáveis, em-bora não sejam adotadas por implicarem investimentos iniciais significativos. Para ele, “os cenários, porém, devem considerar o longo prazo, porque transformar o setor energético, por exemplo, é um esforço que envolve décadas. Na indústria, a substitui-ção, geralmente, é adotada quando equipa-mentos antigos cumprem a sua vida útil. Mas, hábitos de consumo e a eliminação do desperdício estão no nível básico e podem, em curto prazo, contribuir para a mudança em todos os setores”.

No segundo nível, La Rovere acrescenta a necessidade de uma gestão mais eficiente dos recursos. “Nossos colegas do PET/Coppe tra-balharam em um projeto chamado Riobus e mostraram que se houvesse um sistema de concessão de linhas de ônibus com base em itinerários racionalizados e em vans atuando como alimentadoras dos troncos de ônibus, seria possível atender melhor a po-pulação, reduzindo o número de viagens e, conseqüentemente, economizando cerca de 25% de combustível. Mais desenvolvimento com menos energia, e, portanto, com menos emissões”, sintetiza o professor, que sugere, em um terceiro nível, a necessidade de in-vestimentos em transportes: “tem que haver um serviço alternativo de qualidade, com metrô, melhorias nos trens, nas barcas e nos ônibus, para que o usuário do transporte privado opte pelo transporte público”. Para ele, inaceitável é não enfrentar o problema. É mais barato fazer do que não fazer.

“Ter uma geladeira velha em casa, com a borracha gasta, vai custar no final das contas mais caro do que comprar uma nova, isso porque o investimento inicial acaba rapidamente compensado com a redução das despesas com eletricidade”, exemplifica Schaeffer, acreditando que o setor de maior potencial de mitigação é o das edificações: “o que está por trás das edificações, grosso modo, são os eletrodomésticos e a ilumi-nação. No caso da lâmpada, há países da Europa que estão pensando em banir a incandescente. Uma lâmpada dessas de 60W é substituível por uma fluorescente compacta de 20W e, apenas em iluminação,

seria possível reduzir as emissões para 1/3 do que são hoje. As lâmpadas fluorescentes, como os novos eletrodomésticos têm um custo negativo, ou seja, sai mais barato fazer do que não fazer”.

Em relação à arquitetura das edificações, Schaeffer critica as alternativas adotadas no Rio de Janeiro que é “uma cidade quente que, contraditoriamente, adota a arquite-tura dos países frios. São prédios pretos em frente ao mar, janelas que não abrem, não aproveitando, assim, a iluminação e a refrigeração naturais. Isso acaba criando uma espécie de estufa que obriga a ligar o ar-condicionado o tempo todo na potência máxima”.

Eliminação de desperdício, melhor ges-tão, redefinição dos serviços de transportes, evolução do processo produtivo da indús-tria, novos eletrodomésticos, veículos, e, finalmente, mudanças culturais profundas. Para Schaeffer, a sociedade precisa adotar hábitos de consumo mais austeros. “Hoje, quando uma pessoa compra um carro, de maneira geral, o atributo que ela prioriza é o da aceleração e o da velocidade que chega a alcançar os 250km/h. Mas, se os carros saíssem de fábrica com a velocidade máxima limitada eletronicamente, o consumo de energia poderia ser reduzido em 30 a 40%. Temos tecnologias para carros muito efi-cientes, com um consumo de 30 a 40Km por litro, mas sem algum tipo de regulamenta-ção, as montadoras continuarão fabricando carros grandes, pois ganham muito dinheiro com eles”, critica o professor.

Para La Rovere, “a civilização do descar-tável não é compatível com a preservação ambiental. Devemos valorizar mais o ser do que o ter – embora isso leve tempo, tenho esperanças. É uma questão de imple-mentação. Os governos devem incentivar carros e eletrodomésticos mais econômicos e penalizar os ineficientes”. O pesquisador afirma que se o “G8 (grupo das sete maiores economias do mundo mais a Rússia) e seus cinco convidados (África do Sul, Brasil, China, Índia e México) quisessem fazer algo de concreto na última reunião, realizada no mês de junho, na Alemanha, poderiam

ter chamado essa dúzia de indústrias mul-tinacionais e estipulado um prazo de cinco ou dez anos para o cumprimento de metas de eficiência de motores. É uma forma de acelerar o combate à mudança climática”.

ResponsabilidadesA repartição do ônus das mudanças en-

volve custos, transformações e mudanças de hábitos de consumo, e isso tudo não é facilmente aceito. “Cada país gostaria que o problema fosse resolvido sem que tivesse que se sacrificar muito. A Convenção do Clima é uma discussão política sobre a re-partição desses esforços de mitigação”, afir-ma La Rovere, destacando que a definição dos critérios de equidade gera problemas. Mais de 170 países assinaram a convenção e todos são responsáveis, porém não foi estabelecido qual critério é justo para cada um. “Um dos critérios afirma que quem está contribuindo mais para as emissões de gases de efeito estufa deveria se sacrificar mais; outro sugere um compromisso maior daqueles países que podem pagar mais, já um terceiro estabelece parâmetros per capita, ou seja, cada um tem direito a uma cota de poluição do ar de acordo com sua população. E ainda há os que propõem que economias maiores tenham o direito de po-luir mais que a menor”, informa La Rovere. Essa é uma das dificuldades da negociação política.

De acordo com Schaeffer, os gases na atmosfera têm efeito cumulativo. Na ver-dade a responsabilidade pelo aquecimento global não é somente proporcional ao que se emite hoje, mas ao conjunto delas, des-de quando o homem começou a queimar combustíveis fósseis, ou seja, a partir da Revolução Industrial. “Quando se faz uma projeção do estoque de emissões, estima-se que, entre 2015 e 2020, as provenientes dos países em desenvolvimento excederão a dos desen-volvidos, sendo que essa relação apenas se inverta cerca de 100 anos mais à frente”, explica o professor.

O Protocolo de Kyoto em 1997 avançou em várias propostas. Segundo La Rovere, uma delas, a brasileira, com participação do

Coppe/UFRJ, sugeriu que o critério de redução das emissões fosse proporcional ao que cada país havia contribuído, até então, para a degra-dação da atmosfera. “Um critério absolutamente objetivo. Aqui no Coppe/UFRJ quantificamos, com base na soma de todo o consumo de car-vão mineral, gás e petróleo, desde a Revolução Industrial, qual seria o quinhão de responsabi-lidade para cada país. Obviamente, o primeiro lugar, até 1997, cabia ao Reino Unido. Mas, essa proposta não foi aceita porque os países de-senvolvidos afirmaram que não havia, até 1990, nenhum conhecimento científico que pudesse informá-los do prejuízo que estavam causando ao clima. Uma argumentação discutível”, afirma La Rovere.

O protocolo de Kyoto é válido até 2012 e ainda em 2007 começa a negociação do que virá depois. Para Schaeffer, está cada vez mais difícil para países como Brasil, Índia e China não assumirem algum tipo de compromisso. “A briga é diplomática. Os Estados Unidos e a Europa estão pressionando, mas Brasil, Índia e China, alegam que interessa mesma é a emis-são histórica. O Brasil não deveria ter medo de assumir esse compromisso, já que 75% das suas emissões são oriundas do desmatamento e 25% da queima de combustíveis fósseis, enquanto que no mundo ocorre exatamente o contrário”, ressalta Schaeffer.

O esforço para reduzir as emissões terá que ser colossal. Estabilizá-las significa cortar de 80 a 90% do que está sendo emitido. Mas, ao contrário do que se pensa, o custo a pagar não é tão elevado assim. “Em 2050, devemos diminuir entre 50 e 85% o volume de emissões. Um corte de pelo menos a metade do que se tinha em 2000, e continuar decrescendo suavemente até estabilizá-las. Isso vai custar algo em torno de 5,5% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial em 2050, o que significa uma média de 0,12% ao ano. Não parece ser muito caro, principalmente se comparado com o relatório publicado, em 2006, por Nicholas Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial (BID), que estima danos da ordem de 10 a 15% do PIB mundial se nada for feito”, afirma La Rovere, conclundo que “pode-se ter uma perda no PIB, mas é bem pequena, principalmente quando comparada ao custo de não fazer nada a respeito”.

La Rovere: “Cada país gostaria que o problema fosse resolvido sem que tivesse que se sacrificar muito”

12 Agosto•2007UFRJJornal da

1968Carlos Vainer

Entrevista

Coryntho Baldez

A revolução inacabada

completa 40 anos“As barricadas fecham as ruas,

mas abrem o caminho...”(Frase contida em inúmeros cartazes espalhados

por toda a velha Paris do maio de 1968)

Jornal da UFRJ – Relembrar os 40 anos de 1968 pode contribuir para o entendimento da nossa sociedade hoje?Carlos Vainer – O ano de 1968 pode ser pensado como um momento de conden-sação e aceleração da história. Ele marcou, por assim dizer, o fim do pós-guerra. Concepções de mundo, modos de vida, padrões de sociabilidade, normas éticas e estéticas, tudo aquilo que estrutura e organiza a vida social e as representações

Um furacão revolucionário virou o mundo de pernas para o ar em 1968, e tornou este um ano mítico por ter abalado arraigadas tradições no campo da política, da cultura e dos costumes. Como disse o filósofo Antônio Negri, foi uma revolução inesperada, que arrastou adversários e instalou um clima de felicidade coletiva desenfreada.

Em 2008, comemoram-se os 40 anos desse que foi um dos períodos mais marcantes do século XX. Carlos Bernardo Vainer – professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ – integra uma comissão que planeja uma extensa programação comemorativa das quatro décadas de 1968, que incluirá exposições, debates e mostras de cinema. Nesta entrevista, Vainer faz ampla análise daquele momento em que, segundo ele, “modos de vida e normas éticas e estéticas que marcaram o mundo pós-guerra foram desafiados”.

do mundo foi, naquele período, de uma maneira ou de outra, colocado em questão, ou, se prefere, desafiado. Certamente, nem todas as utopias sonhadas pelos que ocupa-ram as ruas e praças em todo o mundo se tornaram realidade. Mas desde as relações familiares e as relações de gênero até a es-tética e as formas de ação política, muito do que havia marcado o mundo do pós-guerra, foi revolucionado. E tudo isso, sem dúvida, está presente entre nós.

Jornal da UFRJ – O ano de 1968 pode ser considerado o mais marcante do século XX? Houve algo similar na história?Carlos Vainer – Não vejo como comparar momentos da história. Certamente o ano de 1968 está entre os momentos mais marcantes, pela profundidade e radicalidade dos pro-cessos sociais que então se desencadearam, mas também pelo seu caráter universalista. Como todas as grandes revoluções da Era Moderna, assistiu-se então a um rápido e

intenso processo de difusão do rastilho revolucionário. Assim também aconteceu com a Revolução Russa, com a Revolução Chinesa. Esses momentos, cujo primeiro na história talvez tenha sido 1848, afirmam e reiteram, ao mesmo tempo em que ques-tionam, a mundialidade do capitalismo e da sociedade moderna.

Jornal da UFRJ – Mesmo 40 anos depois, tem-se a sensação de que aquela impressio-

Agosto•2007 13UFRJJornal da

Entrevista

nante onda de eventos revolucionários que varreu o mundo ainda não foi completa-mente compreendida. Se isso corresponde à realidade, a que atribuir o fenômeno?Carlos Vainer – Na verdade, os processos históricos, e as situações revolucionárias e pré-revoluconárias em particular, são, sempre, permanente-mente, objeto de dis-puta entre múltiplas compreensões, visões, e análises. Cada mo-mento histórico pro-duz, a seu modo, visões de futuro e, também, visões de passado. Se, como observou Ernst Cassirer, a memória humana não é simples reprodução do passa-do, mas um permanen-te processo criativo e construtivo, o mesmo vale para o que se po-deria chamar de me-mória social. Lembrar é, também, recriar. E como vivemos numa sociedade heterogê-nea, desigual, contraditória e conflituosa, a construção da memória social é, ela tam-bém, campo e processo de disputa acerca da “verdadeira” interpretação do passado. Ao celebrar 1968, estaremos, por assim dizer, participando dessa disputa e reconstruindo nossa compreensão do “passado”.

Jornal da UFRJ – Aquele ano, de fato, de-flagrou uma série de mudanças políticas, éticas e comportamentais que afetaram as sociedades contemporâneas de maneira irreversível?Carlos Vainer – Heráclito já havia obser-vado que “um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”. Mas é com a modernidade que a temporalidade linear e irreversível se impõe como experiência sensível para, praticamente, todos os ho-mens. De uma maneira ou de outra, não há irreversibilidades na história. Por outro lado, sabemos que revoluções são passíveis de contra-revoluções. Desde a restauração monárquica que se seguiu à Revolução Francesa, o tema da restauração – termi-dor, brumário – assombra revolucionários e revoluções. A queda do muro de Berlim, a derrocada do socialismo real, o acelera-do desenvolvimento capitalista na China estão aí à nossa frente, para mostrar que a linearidade irreversível da história foi, ela também, um mito. Mas, certamente, a restauração nunca é total: a Rússia de hoje não tem nada a ver com a Rússia pré-revo-lucionária e é, apesar de tudo, um produto da revolução. E o mesmo se pode dizer da China. E o mesmo se pode dizer de 1968. O sonho revolucionário da irreversibilida-de revolucionária é tão utópico quanto a pretensão conservadora, digo, reacionária, da restauração. Quando o recém-eleito pre-sidente francês Nicolas Sarkozy lança uma convocação para que se liquide de uma vez por todas a herança de 1968, certamente nos dá razão para afirmar que muito de 1968 está presente na contemporaneidade.

Jornal da UFRJ – Teria sido 1968 o marco para que movimentos ecológicos, feminis-tas, de liberdade sexual, em suma, as cha-madas demandas das minorias ganhassem impulso? Por quê?Carlos Vainer – É comum que memórias e reconstruções de 1968 enfatizem a dimen-são política do que se passou. No Brasil isso é marcante, e talvez se deva ao fato de que vivíamos sob uma ditadura militar, tendo

as grandes manifestações representado um claro e aberto desafio ao regime. Mas 1968 transcendeu a esfera da política, para invadir a esfera da cultura e do comportamento. Tal-vez fosse mais adequado dizer que, em 1968, as relações entre política, cultura e compor-tamento foram, elas mesmas, revolucionadas.

A esfera da política foi invadida pela revolução cultural e comportamen-tal, e vice-versa. E o traço de união, o cimento des-ta nova fusão política-cultura-comportamento talvez tenha sido o desa-fio lançado à autoridade e às estruturas de poder estabelecidas na política, mas também na família, nas relações sexuais, nas relações entre gêneros e etnias. Ao mesmo tem-po em que desafiaram o poder, os movimentos de 1968 questionaram, sobretudo nos países cen-trais, o mito do desenvol-

vimento, fundamento radical e primeiro da sensibilidade ecológica. Jornal da UFRJ – O historiador Eric Hobs-bawm afirma que os movimentos que mol-daram a fisionomia de 1968 idealizaram a espontaneidade e se opuseram à tradição da esquerda de priorizar a liderança, a organização e a estratégia. Você concorda? Isso foi bom ou ruim?Carlos Vainer – Certamente Hobsbawm tem razão. Não foi apenas o mito do desen-volvimento capitalista e as formas de autoridade típicas da sociedade burguesa que foram desafiadas. Também as autoridades e verdades instau-radas no campo do pensamen-to de esquerda. Esse movimen-to lança suas raízes no processo de “desestalinização” aberto em 1956 pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), e foi alimentado ao longo de toda uma década por uma série de eventos relevantes, entre os quais certamente se destaca a Revolução Cubana. Mas, sem dúvida nenhuma, como em vários outros campos, também no campo do pensamento crítico, 1968 funcionou como um momento de condensação e ruptura. Bom ou ruim? Ora, a história não está aí para ser julgada, mas para ser enten-dida, apropriada, construída. É a essa disputa que eu fazia referência anteriormente. Para Sarkozy, certamente estas rup-turas foram ruins, razão pela qual propõe que a herança de 1968 “deve ser liquidada de uma vez por todas”. Eu, de mi-nha parte, penso que a herança libertária, autogestionária, antiautoritária, revolucioná-ria, enfim, de 1968, deve ser permanentemente resgatada, atualizada e mobilizada por-que é patrimônio do pensa-mento crítico e da prática política comprometida com a transformação social.

Jornal da UFRJ – Em que medida fatos como a luta pacifista contra a Guerra do Vietnã, nos EUA, a Revolução Cultural na China e o assassinato de Che Guevara, em 1967, influenciaram ou inspiraram os movimentos de 1968?Carlos Vainer – Como disse anteriormente, nem tudo o que se passou naquele período ocorreu em 1968. Estou convencido, porém, de que 1968 operou, e continua operando em nosso imaginário, como um condensador desses processos todos. A começar pelo XX Congresso do PCUS, em 1956, passando pelo processo de descolonização na África e na Ásia, pela Revolução Cubana e por muitos outros eventos. Veja-se, por exemplo, a Guerra da Argélia, sem a qual dificilmente se pode-ria entender a crise e as dissenssões por que passou o Partido Comunista Francês (PCF), e que iriam inspirar a radicalização de parce-la expressiva da intelligentzia e da esquerda francesas. Aliás, a independência argelina, assim como a Guerra do Vietnã, podem ser vistas como desvios de um processo de desco-lonização que, em grande medida, foi levado a cabo sob controle das antigas metrópoles. Tudo isto para reiterar a idéia de que 1968, assim como todos os processos históricos, não pode ser pensado com momento isolado, descolado de seu tempo e de dinâmicas que operam em ritmos mais lentos e em níveis mais profundos da estrutura social.

Jornal da UFRJ – O movimento hippie e a contracultura puseram em xeque, de fato, a sociedade industrial e de consumo?Carlos Vainer – A pergunta é sua própria resposta. Certamente o movimento hippie colocou em xeque a sociedade industrial de consumo, isto é, a sociedade capitalista. O mundo de afluência que se oferecia à juventude americana e européia ocidental era também o mundo da destruição das esperanças, da destruição ambiental, do genocídio no Vietnã. E isso foi denuncia-do e desafiado. Mas, certamente, não foi um xeque-mate. A sociedade industrial de consumo, que prefiro chamar de socieda-de capitalista burguesa, demonstrou sua extraordinária capacidade de regeneração, ou melhor, de captura e absorção dos de-safios que lhe são lançados. Ela não apenas sobrevive aos desafios, mas também sobre-vive graças a eles. E nisso o capitalismo e a sociedade burguesa se diferenciam de todas as formas históricas pretéritas. Por mais que isso frustre e revolte os seus desafiantes, o capitalismo parece ser capaz de transformar desafios em mercadoria e, dessa forma, domesticá-los e incorporá-los à sociedade de consumo.

Jornal da UFRJ – Que influência teve o filósofo Herbert Marcuse sobre 1968 ao defender que a contestação à ordem capita-

“As situações revolucionárias e

pré-revoluconárias em particular, são, sempre,

permanentemente, objeto de disputa

entre múltiplas compreensões,

visões, e análises.”

14 Agosto•2007UFRJJornal da

Entrevista

lista em sociedades como a norte-americana partiria não dos operários industriais, que estariam nela integrados, mas de minorias étnicas e dos que rejeitavam as benesses do sistema, como os estudantes?Carlos Vainer – Marcuse, e muitos outros pensadores e escritores, operaram como os intelectuais que produzem a teoria que explica, mas também legitima, determina-dos movimentos e sujeitos sociais. O mais importante, a meu ver, é recuperar esta crítica, reler esse e outros autores, para res-gatar o valor e a criatividade do pensamento crítico. Num momento em que muitos, em nossas universidades e no campo político, fazem genuflexões – intelectuais e políti-cas – diante das supostas inevitabilidades e inexorabilidades impostas pela arrogância de um capitalismo sem limites, ler e reler Marcuse e outros autores contemporâneos – poderíamos lembrar Guy Debórd, Lefeb-vre, entre outros – talvez alimente o espírito crítico tão escasso em nossa vida intelectual e política.

Jornal da UFRJ – As manifestações e protes-tos estudantis, como as famosas barricadas de Paris, foram uma das marcas daquele ano em todo o mundo. No Rio de Janeiro, o episódio da morte do secundarista Edson Luís, numa operação de repressão policial, foi o início do 1968 brasileiro?Carlos Vainer – Não sou um historiador, e nem sempre, ou melhor, quase nunca a me-mória é suficiente para se tratar da história. O que leio entre os que trabalham a questão é que a primeira e decisiva manifestação que, por assim dizer, no contexto brasilei-ro, abre o ciclo de ascenso e reconstrução do movimento estudantil, foi a invasão e o cerco da Faculdade de Medicina, em 1966. Ali, a mobilização foi maciça e a repressão violenta. Ali, ao que parece, estava nascendo algo novo.

Jornal da UFRJ – Depois de muitos embates, como a Passeata dos 100 mil e o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), no qual foram presos mais de mil estudantes, o ano terminou com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) o

fechamento do Congresso, a adoção da tor-tura como prática de Estado e a supressão das liberdades individuais e coletivas. A opção pela luta armada de parcela dos estudantes era previsível num cenário desses?Carlos Vainer – Pensando retrospectiva-mente, tudo parece previsível, não é mes-mo? Não, não creio que fosse, em 1965 ou 1966, previsível. Como tampouco era previsível que a ditadura militar fosse manter-se por tan-to tempo. Certamente, a Guerra do Vietnã e, mais que tudo, a Revo-lução Cubana haviam colocado na agenda da esquerda a questão da guerra revolucio-nária e da guerrilha. Na América Latina, os movimentos guerrilhei-ros se multiplicavam. A pífia resistência diante do golpe militar de 1964 denunciava a falência da linha política do velho Partido Comunista Bra-sileiro (PCB), incapaz de pensar e agir, congelado na mesma e velha análise da sociedade brasileira moldada segundo os cânones da III Interna-cional. A emergência de movimentos revolucio-nários armados assim lança suas raízes em processos mais profundos. Mas, sem dúvida, a violência ditatorial e as limitações crescen-tes para a expressão política contribuíram para que as organizações revolucionárias ampliassem seu recrutamento entre os jovens, sobretudo entre os estudantes.

Jornal da UFRJ – Pode-se dizer que a rebelião estudantil e a luta armada tiveram influência, mais tarde, sobre o processo de mobilização que pôs fim à ditadura militar?Carlos Vainer – Novamente, essa é uma questão de interpretação. Em minha opinião, as formas por que passou a transição demo-

crática no Brasil não podem ser entendidas sem que se considere a derrota imposta pelos militares aos movimentos revolucionários na primeira metade dos anos 1970. A transição lenta, gradual e segura (para os militares e adeptos da ditadura, entenda-se bem) foi expressão do controle inquestionável que os militares exerceram sobre a transição, como o

foi também a eleição indireta de Tancredo Neves. Estamos, ainda hoje, lamentavelmen-te, pagando custo altíssimo pela forma como aconteceu essa transição, assim de-monstra o silêncio que cerca os arquivos secretos da re-pressão – lamentavelmente, assegurado por sucessivos governos, inclusive alguns que se reivindicam herdeiros das lutas democráticas, a re-ferência aqui é aos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Essa transição democrática inacabada, incompleta e, sob certos aspectos, frustrada atualiza muito do que foi reivindicado pelos movi-mentos de luta contra a ditadura de 1968.

Jornal da UFRJ – Que lições a esquerda e os movimentos sociais ligados às chamadas minorias podem tirar, hoje,

das lembranças de 1968?Carlos Vainer – Não me sinto autorizado, em nome de quem quer que seja, a dar lições a partir disso ou daquilo. Mas, independen-temente, de minha percepção individual, o fato é que 1968 simboliza resistência, desafio ao poder, afirmação da necessária autonomia dos movimentos sociais, da auto-gestão. Eis valores que, a meu ver, podem e devem ser cultivados pela nossa juventude, pelos nossos intelectuais, pelos que, em nossa sociedade, são explorados, oprimidos, discriminados. Isso vale para minorias, mas vale também para as grandes maiorias miseráveis de nosso país, campeão de desigualdade.

Jornal da UFRJ – Fale um pouco sobre as comemorações que estão sendo organizadas para celebrar, em 2008, os 40 anos de 1968. Que setores da UFRJ participam dessa orga-nização?Carlos Vainer – Estamos ainda dando os pri-meiros passos. A idéia é relembrar e celebrar, trazendo para a contemporaneidade a riqueza dos processos políticos, culturais, artísticos e intelectuais daquela época. Não pretendemos que seja um movimento encerrado em uma universidade, em um grupo de indivíduos ou instituições. Estamos convidando a todos, os não tão jovens que vêm daqueles tempos e os mais jovens que não os viveram, a fazer dos 40 anos de 1968 um momento de atualização daquelas experiências e de enriquecimento de nossas agendas políticas e culturais. Estamos esperançosos que outros se juntarão a nós.

Jornal da UFRJ – E a programação, já está sendo pensada?Carlos Vainer – Debates, mostras de cine-ma, exposições estão sendo programadas. Também pensamos em promover concursos de redação, nas escolas de Ensino Médio, e de monografias, nas universidades. A UFRJ, digo, a então Universidade do Brasil foi um dos focos daquele riquíssimo processo. No CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira), no Instituto de Filosofia e Ciên-cias Sociais (IFCS), na então Faculdade de Economia e Administração, na Medicina, na Química, por toda parte, em nossos corredores e salas de aula, vivemos inten-samente aqueles tempos. E, também por isso, estamos engajados em participar desta celebração. Nossa idéia é criar um Comitê UFRJ e integrarmo-nos ao que já está em marcha. Aliás, a UFRJ já está integrada, e vem dando sua contribuição. Por exemplo, graças à Coordenadoria de Comunicação (CoordCOM) e ao Núcleo de Computação Eletrônica (NCE) já estamos na Internet, no site www.40anosde68.ufrj.br. As reuni-ões têm acontecido na Praia Vermelha. E colegas nossos já assumiram a concepção e organização de alguns eventos. Trata-se de ampliar esse processo e fazer de 1968 um ano de enriquecimento também para a UFRJ. Estamos, agora, lançados à discussão dos projetos e modelos de universidade; ora, nada mais propício para reler e repensar os modelos que em 1968 foram objeto de de-bates: a universidade crítica, a universidade democrática e popular, a universidade dos cursos noturnos.

Jornal da UFRJ – Qual a sua expectativa em relação a essa celebração?Carlos Vainer – Nosso desejo é que em cada cidade, em cada universidade, em cada organização e movimento social, de alguma maneira, 1968 se faça presente. Não há do-nos nem monopolistas das comemorações nem da memória, nem mesmo os grandes meios de comunicação, que, eles também, à sua maneira, querem reescrever a história. Quem diria? A Rede Globo contando a his-tória da luta contra a ditadura. Costuma-se dizer que somos um país desmemoriado. A expropriação da memória das experiências de luta é um poderoso instrumento para a reprodução da dominação. A luta pela memória, pela sua permanente atualização é tarefa que incumbe não apenas aos histo-riadores, mas a todos os que ainda acreditam que é necessário, e possível, mudar essa sociedade injusta e desigual. Na definição do futuro que queremos ter, nas batalhas que travamos no presente, assim como nos esforços que fazemos para resgatar nossa memória, eu diria que, assim como gritavam os jovens estudantes pelas ruas e praças em 1968, a luta continua.

as formas por que passou a transição

democrática no Brasil não podem

ser entendidas sem que se considere a

derrota imposta pelos militares

aos movimentos revolucionários

na primeira metade dos anos

1970.

Agosto•2007 15UFRJJornal da

Universidade

Uma língua feita de gestos

Libras

Rafaela Pereira e Kareen Arnhold, da AgN UFRJ, Centro de Tecnologia

Uma comunicação construída somente com gestos e expressões faciais. Esse é o caso dos portadores de deficiências auditivas, cuja surdez, e conseqüente mudez, já foram signos

de um silêncio e uma reclusão socialmente impostos. A difusão das línguas de sinais vem, porém, quebrando barreiras e ajudando a superar preconceitos seculares.

“O papel da escola é, portanto, o de ensi-nar ao surdo um sis-tema de escrita para

alguém que não tem o sistema da

fala internalizado.”

Exemplo disso é o reconhecimento acadê-mico da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a política nacional de inclusão educacional. Com essas medidas, os deficientes auditivos estão ten-do maiores oportunidades de acesso à cultura e conquistanto espaços nos bancos escolares.

De acordo com o Ministério da Educação, enquanto o número de estudantes surdos matri-culados no Ensino Fundamental chega a 69 mil, no Superior não ultrapassa 974. A explicação para esse desnível pode estar na dificuldade que têm em relação à Lingua Portuguesa, considera-da uma segunda língua para os surdos.

No Brasil, a educação voltada para esse segmento da população data do Segundo Império. Em 1857, foi fundado o Instituto Nacional de Surdos-Mudos – atual Insti-tuto Nacional de Educação de Surdos (Ines). D. Pedro II se empenhou pessoalmente na criação da escola, chegando a trazer, da França, um professor surdo com o intuito de dotar aquela instituição das metodologias mais avançadas da época. Contudo, as demais escolas públicas de, ou para, surdos continuaram precárias e, durante décadas, se chegou a proibir o uso da Libras no ensino. Essa determinação, que veio do Congresso de Milão, em 1880, estabelecia apenas o uso do método oralista puro em todas as disciplinas. A idéia, segundo os indícios encontrados, era que a surdez fosse totalmente revertida com a ajuda de próteses. Já em 1969 houve uma primeira tentativa de registrar a Língua de Sinais no país. Contudo, ela foi oficialmente reconhecida, apenas com a Lei 10.436/2002.

Como não são línguas universais e cada país possui a sua, essas normas legais conceituam a Libras como uma forma de comunicação em que a expressão de natureza visual-motora, dotada de estrutura gramatical própria, cons-titui um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos.

Pela lei, o poder público está obrigado a garantir formas institucionalizadas de apoio ao uso e à difusão da Libras e, por sua vez, os sistemas educacionais – federal, estaduais e municipais – devem incluí-la nos cursos de formação dos profissionais que irão de dedicar à educação especial, bem como nos de Fonoau-diologia e naqueles voltados para o magistério. Do mesmo modo as instituições públicas de assistência à saúde devem assegurar o atendi-mento e o tratamento adequado aos portadores de deficiências auditivas.

Libras na UFRJA UFRJ conta hoje com intérpretes/tradu-

tores de Libras/Português que acompanham as atividades acadêmicas das surdas Fernanda Araújo, aluna da Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), e Myrna Salerno Monteiro, professora da Faculdade de Letras (FL/UFRJ). Além dessa iniciativa, desde 1997 a UFRJ implantou, com pioneirismo no Brasil, a disciplina optativa

“Estrutura e Funcionamento da Libras”, nas grades curriculares da Faculdade de Letras (FL) e do curso de Fonoaudiologia, da Faculdade de Medicina (FM).

Mesmo assim, ainda carecemos de uma licenciatura, da qual sairão profissionais que ministrem aulas de língua de sinais nos cursos de formação de professores (Normal, Licen-ciaturas, Pedagogia e Educação Especial). De acordo com Deize Vieira dos Santos, professora e pesquisadora de Libras da FL/UFRJ, o curso de licenciatura deve ser destinado, principal-mente, aos deficientes auditivos, para exercício do Magistério. “O surdo, detentor da linguagem de sinais como língua nativa, provavelmente seria o melhor professor, assim como acontece com um professor de inglês originário da Inglaterra ou dos Estados Unidos, por exemplo”, avalia Deize dos Santos.

Também na FL/UFRJ, o Laboratório de Pesquisa e Estudo da Libras (Lapel) ofe-rece o curso de Ex-tensão de Libras c o m o f o r m a d e propagar a língua de sinais, principalmente na comunidade acadêmica. “Quanto mais gente souber, mais fácil será a comunicação. Diminuem as barreiras e aumentam o acesso das pessoas surdas à educação e ao ensino”, afirma Deize, também coordenadora do Lapel, que conta com a ajuda voluntária das pedagogas Cíntia Ribeiro e Flávia Caldas, surdas desde o nascimento.

A partir da observação das aulas do curso de Libras e das experiências colhidas em livros de línguas de sinais de outros países, o Lapel está trabalhando para construir um material didático próprio. As ilustrações já estão sendo desenvolvidas pelo surdo Áulio Nóbrega e o próximo passo é fazer a “costura” teórica. “É obrigação da universidade contribuir para a inclusão educacional dos surdos e de todos os portadores de deficiência”, ressalta Áulio.

A primeira línguaA alfabetização desses indivíduos em sua

língua nativa é, de longe, a questão crucial. A formação em Libras somente tem sentido na interação com a comunidade surda, assim como por meio de um sistema de educação apropriado, já que se trata de uma língua com características singulares.

Ao contrário do que supõe o senso comum, a apresentação sinalizada do alfabeto oral não é o modo principal de comunicação entre os surdos. Deize dos Santos destaca ainda que alguns sinais vão além da expressão manual. “No sinal para designar magro, por exemplo, junto com a configuração da mão (dedo míni-

mo estendido e outros dedos abaixados) e do movimento para baixo no espaço de sinalização, deve haver a expressão de sugar as bochechas. Sem esse conjunto de ações, a significação não seria completa”, explica a professora.

Como toda língua de sinais, a Libras utiliza os gestos e expressões faciais, captados através da visão. Vânia Godinho, estudante da FL e pesquisadora da Libras, chama a atenção para a necessidade da aquisição da Língua Portuguesa, outro pilar de grande importância para a edu-cação completa dos portadores de deficiências auditivas: “mais do que meio de expressão, o ensino de Português para os surdos serve como instrumento para compreensão da cultura que construímos em língua escrita, seja em livros,

em jornais ou, mais prosai-camente, em embalagens de produtos”.

Após passar por técnicas de aprendizado, que ora se restringiam à comunicação por gestos, ora criavam um português sinalizado (que não é Português nem Li-bras), o sistema de educação começa a adotar um método bilíngüe de formação, no qual o surdo adquire a lín-gua de sinais e, ao mesmo

temo, aprende Português. “O papel da escola é, portanto, o de ensinar ao surdo um sistema de escrita para alguém que não tem o sistema da fala internalizado”, aponta Deize dos Santos.

Em sua dissertação de mestrado, Deize analisou textos produzidos por alunos surdos e constatou semelhanças entre eles e os escritos em português por estrangeiros. “Há pistas que permitem identificar que foi um surdo quem produziu um determinado texto. O uso inade-quado das preposições, por exemplo, é caracte-rística de um estrangeiro. Esse é um argumento forte para se afirmar que o Português não é a língua primeira (L1) de um surdo”, constata a pesquisadora.

Tradução culturalClássicos como Alice no país das maravilhas,

de Lewis Carrol, Pinóquio, de Carlo Collodi, e Iracema, de José de Alencar, já povoam o imaginário infantil. A novidade é que desde 2003, com um projeto da Editora Arara Azul, em colaboração com o Ines, as crianças surdas também poderão dar asas à imaginação e co-nhecer aquelas obras literárias.

As histórias são narradas em Libras e em Português, no CD-ROM Clássicos da Literatura em Libras/Português. A proposta segue a linha da tradução cultural que é a de dispor não ape-nas duas línguas em contato, mas de relacionar duas culturas, no caso a cultura ouvinte, com toda sua tradição e poder, a cultura surda, com sua força e inovação. “Trabalhamos sem-pre com uma dupla de tradutores: um surdo que

domine a Libras e tenha bons conhecimentos do Português e um ouvinte que conheça profundamente a língua de sinais, a cultura surda e que, também, seja um ótimo leitor. O resultado é filmado, corri-gido pela dupla, refilmado e, assim, chegamos a um texto em Libras considerado como uma ‘proto-escrita’”, explica Clélia Regina Ramos, coorde-nadora de projetos da Editora Arara Azul.

A editora está no mer-cado desde 1993, quando então se chamava Babel Edi-tora. Segundo Clélia Ramos, a idéia surgiu quando cursava o mestrado na FL/UFRJ. “Na época eu já trabalhava com a possibilidade da produção de textos bilíngües Português/Libras, objeto de minha pes-quisa de mestrado e depois de doutorado, também na FL. Isso foi se desenvolvendo até que, em 2003, lançamos o primeiro volume da Coleção Clássicos da Literatura em Libras/Português – que foi Alice no país das maravilhas”, explica Clélia.

Hoje, a Arara Azul conta em seu catálogo com dez tí-tulos publicados pela coleção, alguns livros acerca da surdez, artigos, e-books gratuitos, além de publicar a Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade. De acordo com Clélia, a partir de dezembro de 2005, quando foi assinada a chamada Lei da Libras, a necessidade de ma-teriais pedagógicos bilíngües aumentou de maneira inédita. “Em função de a Libras ser uma língua gestual e traba-lharmos conjuntamente com textos escritos, a mídia digital é a ideal para nossas produ-ções. Assim, todas as escolas públicas brasileiras voltadas para surdos ou deficien-tes auditivos já receberam nossos materiais digitais. Faculdades de Educação, de Letras, de Fonoaudiologia e de muitos outros cursos já estão nos procurando para adotarem nossos materiais, seja para fonte de pesquisa, seja como suporte ao ensino”, informa Clélia.

16 Agosto•2007UFRJJornal da

Universidade

A universidade necessária em foco

Coryntho Baldezilustração Pina Brandi

Programa de Reestruturação e Expansão 2008-2012 provoca discussões polêmicas sobre o futuro da UFRJ.

Pela coragem de procurar encerrar um ciclo histórico de ensino elitista, fragmentado e – não raro – descolado da realidade das camadas mais sofridas do país, o Programa de Reestruturação e Expansão (2008-2012), proposto pela Reitoria da UFRJ, cujo título, Universidade Necessária, homenageia o educador e antropólogo Darcy Ribeiro, criador da Universidade de Brasília e incansável lutador pela reforma do Ensino Superior brasileiro, pretende ser um ponto de partida para a construção de uma nova identi-dade acadêmica e institucional da UFRJ.

Lançado no início de agosto, o programa tem a virtude de trazer ao debate temas, ao mesmo tempo estratégicos e polêmicos, que dizem respeito ao futuro da instituição, como a remodelagem da atual estrutura departamental e o reordenamento espacial da UFRJ com a trans-ferência de todas as unidades acadêmicas para o campus da Cidade Universitária, na Ilha do Fun-dão. Mas a sua principal novidade é assumir-se, também, como um projeto de desenvolvimento sócio-econômico do Rio de Janeiro.

Objetivo acadêmicoDe acordo com o reitor Aloísio Teixeira, a

retomada do projeto original da Cidade Univer-sitária – como não poderia deixar de ser – tem objetivo essencialmente acadêmico. A UFRJ é uma instituição de excelência, tem programas de graduação e de pós-graduação de alto nível, mas, segundo ele, isso não elimina o fato de que a instituição permaneça extremamente fragmen-tada. “Mais do que nunca, esse continua sendo um grave problema, pois vivemos um momento de crescente interdisciplinaridade e transdis-ciplinaridade na produção do conhecimento”, salienta o reitor.

Embora uma quantidade de informação cada vez maior possa ser, em tempo real, acessada a partir de qualquer lugar do planeta através das redes virtuais, Aloísio considera ainda a proximidade física como uma componente in-dispensável para a troca de idéias e experiências e, portanto, crucial à construção de saberes e ao desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Exten-são, que constituem o tripé de toda experiência verdadeiramente universitária. Com a mudança, os prédios do campus da Praia Vermelha e os das unidades espalhadas no centro da cidade – como o do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) e o da Faculdade de Direito (FND) – abri-gariam atividades consideradas mais adequadas à sua vocação e arquitetura, tais como centros culturais e museus.

Projeto para o estadoNo entanto, a reestruturação da UFRJ trans-

cende marcos de uma proposta intramuros. Durante a sua elaboração ficou claro – sublinha o reitor – que não se tratava apenas de um projeto para a universidade, mas para o estado do Rio de Janeiro: “se trouxermos as unidades para a Ilha do Fundão, teremos que abrir uma frente

de obras de grande valor, para, simul-taneamente, realizar a mudança. Isso geraria efeitos posi-tivos sobre o emprego e a renda da população”. Com a transferência, ainda, empreendimentos importantes para a região teriam que ser realiza-dos, em áreas como transporte e segurança.

A estimativa inicial do volume de investi-mentos necessários para viabilizar a proposta é da ordem de R$ 400 milhões – “montante que não será inteiramente atendido pelo programa do Ministério da Educação”, frisa Aloísio Teixeira. Mas, se o projeto se transformar efetivamente em uma iniciativa do Rio de Janeiro, o reitor acredita que será possível obter recursos junto ao governo do estado, às prefeituras da Região Metropolitana e à outras fontes do governo federal. Sem contar, também, com a possibilidade de ajuda financeira de empresas estatais que colaboram com da UFRJ e têm centros de pesquisas instalados na Cidade Universitária, como a Petrobras e a Eletrobrás.

Dobrar o acessoA concepção da Cidade Uni-

versitária, pela atual proposta, difere daquela que presidiu o Plano Diretor

original. “Naquela época, construía-se um prédio para a Faculdade de Arquite-

tura, outro para o Centro de Tecnologia, de modo compartimentado”, frisa Aloísio

Teixeira. Hoje, a idéia é fazer algo diferente, como construir pavilhões de salas de aula e de laboratórios de uso comum, favorecendo a integração acadêmica do campus.

Atualmente, a UFRJ conta com 32 mil alunos de graduação e oito mil de pós-graduação strictu senso (mestrado e doutorado). Cerca de 70% des-ses já estudam na Ilha da Cidade Universitária. Porém, nos próximos anos não serão apenas 40 mil estudantes que deverão se concentrar nela, já que uma das metas do programa é dobrar esse número até 2012. “Isso faz com que o projeto seja muito atraente para o Rio de Janeiro. A Ci-dade Universitária está localizada em um ponto estratégico do município, ou seja, a 20 minutos da Baixada Fluminense, uma das regiões mais densamente povoadas do país e onde não existe uma única universidade pública”, lembra o reitor.

Nessa expansão, um dos objetivos perseguidos é, portanto, trazer para a UFRJ jovens excluídos do acesso ao Ensino Superior, moradores de municípios que a integram.

Ao lado do reordenamento espacial, tam-bém está previsto um projeto de reestruturação acadêmica, com modalidades de acesso mais de-mocráticas e sem o filtro do vestibular. “Estamos retomando a idéia de fazer um convênio com a Secretaria Estadual de Educação (SEE/RJ), pelo qual faríamos uma avaliação das escolas da rede pública de Ensino Médio com o intuito de sele-cionar estudantes”, informa Aloísio Teixeira.

Com a consolidação de todos esses objeti-vos, ele acredita que o eixo da cidade acabará se deslocando um pouco para a Zona Norte, “o que é importante do ponto de vista econô-mico e social, configurando um projeto para a cidade do Rio de Janeiro e para os municípios da Região Metropolitana”.

Debate importanteTambém para Ângela Rocha dos Santos,

decana do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN/UFRJ), o Programa de Reestruturação e Expansão é bastante abrangen-te. “Ele prevê as necessidades da UFRJ para um período entre 15 e 20 anos”, afirma Ângela – que presidiu a Comissão para Análise do Plano de Desenvolvimento da Educação, constituída pelo Conselho Universitário (Consuni). O Programa, segundo ela, ainda precisa ser detalhado e dis-cutido em toda a UFRJ, incluindo as formas de financiá-lo e operacionalizá-lo. Frisa, ainda, que a proposta apresentada busca desenhar o futuro da instituição, ultrapassando, em muito, as metas do Reuni – o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, instituído pelo governo federal.

Para Ângela Rocha, essa é uma oportunidade sem precedentes para que a UFRJ enfrente o desafio de reformular seus mecanismos de aces-so e lance as bases de uma nova concepção de universidade. “Na discussão que se seguirá, será preciso perguntar que universidade desejamos instituir, que profissional queremos desenvolver, ou seja, se pretendemos formar pessoas para o mercado ou para a cidadania, entre outras ques-tões que deverão ser respondidas para orientar a construção de uma universidade com novos critérios de acesso”, analisa a decana, que é pro-fessora do Instituto de Matemática.

Em relação à meta de dobrar o número de matrículas na graduação e pós-graduação até 2012, Ângela Rocha considera vital mudar a atual estrutura, com o aumento do número de docentes e das verbas de investimento e custeio. Ao comentar a proposta de cons-trução de um projeto acadêmico unitário e transdisciplinar, a professora adverte que o programa é uma carta de intenções e as suas metas somente se traduzirão “em ações concre-tas com o apoio, a disposição e o esforço de toda a nossa comunidade”.

Agosto•2007 17UFRJJornal da

Para Luanda de Oliveira Lima, repre-sentante dos estudantes no Conselho de Ensino de Graduação (CEG) e ex-diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE Mário Prata), o Programa de Reestruturação supre algumas necessidades da UFRJ, como o aumento de vagas e a criação de cursos noturnos. Ela também considera importante a ampliação do Alojamento Estudantil, que hoje não atende a todos os alunos, mas que poderá ser viabilizada com o aumento de até 20% nas verbas da UFRJ.

Luanda Lima afi rma ainda ser plenamente viável a meta de dobrar o atual número de matrículas. “Hoje, a UFRJ tem uma relação de nove alunos por professor. Na Europa, a relação é de 30 alunos por professor, com cur-sos de excelência, e isso mostra que é possível ampliar as vagas e pensarmos em acabar com o vestibular”, defende a estudante do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (Ifcs).

Mais vagas e cursos noturnos

Segundo ela, na UFRJ se deverá chegar a uma relação de 14 alunos por professor, meta essa, defi nida pelo Conselho Uni-versitário. “É claro que os cursos que já estão com sua capacidade limitada, como Medicina e Direito, vão precisar de novos prédios e professores, mas isso está previsto no programa. E a construção do anexo do Centro de Ciências da Saúde (CCS), por exemplo, já está em andamento”, lembra a discente.

Embora Luanda ressalte que a concen-tração de alunos em um mesmo campus fa-cilite a integração, ela destaca a preocupação com a preservação dos prédios históricos da UFRJ: “os prédios do IFCS, da Faculdade de Direito – que passa por uma reforma para a implantação de um escritório modelo – e o Palácio Universitário, na Praia Vermelha, têm uma história de resistência que precisa ser preservada”, alerta.

UFRJ DebateAcaba de ser lançada, pelo Gabinete do

Reitor e pela Coordenadoria de Comuni-cação da UFRJ (CoordCOM), mais uma publicação da série UFRJ Debate contendo a proposta da Reitoria acerca da Universidade necessária – Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ 2008-2012 – Um projeto para o Rio de Janeiro e para o Brasil.

A publicação, com 40 páginas, contém uma Exposição de Motivos (Apresentação e Introdução), o Anteprojeto para Discussão na Comunidade da UFRJ (Programa de Reestruturação e Expansão e as Metas para o Ensino, a Pesquisa e a Extensão) e Anexos.

O documento pode ser encontrado nas decanias, nas unidades e no Portal UFRJ (http://www.ufrj.br/docs/20070708_universidade_necessaria-programa_de_reestruturacao_e_expansao_da_ufrj.pdf). Aloísio Teixeira: a

proximidade física é indipensável para a troca

de idéia e experiência.

Ainda insufi cientePara o decano do Centro de Tecnologia,

Walter Issamu Suemitsu, o Programa de Rees-truturação e Expansão, em linhas gerais, não leva em conta que as necessidades atuais da UFRJ superam os parcos orçamentos de pessoal e de custeio devido ao enorme défi cit de anos anteriores. Por outro lado, o decano propõe uma discussão mais profunda sobre o exercício da autonomia universitária. Diz-se a favor da autonomia, mas ressalta que a universidade deva prestar contas à sociedade e utilizar racional-mente os recursos recebidos implantando uma gestão efi ciente e socialmente comprometida. “Embora concorde que os recursos são insu-fi cientes, acredito que ninguém, hoje, saberia dizer efetivamente quanto seria necessário para manter o Sistema Federal de Ensino Superior”, sublinha Walter Issamu, que é professor da Escola Politécnica (Poli) e do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe).

Sobre a proposta de retomar o projeto original de implantação da UFRJ no campus da Cidade Universitária, classifica-a como excelente, pois “propiciará maior integração, tanto acadêmica como social, entre docentes, técnico-administrativos e estudantes”.

Acredita, também, que a meta de dobrar o número de matrículas vai obrigar a UFRJ a se posicionar em cur-to prazo. “A UFRJ já vem ampliando suas vagas periodicamente, portanto essa é uma meta factível”, destaca o professor.

Walter Issamu con-sidera importante, ain-da, repensar o modelo departamental de or-ganização acadêmica, como propõe o progra-ma. Para ele, “é preciso implantar, efetivamente, uma estrutura matricial, fortalecendo as coor-denações de curso de modo que os departa-mentos deixem de ser ‘donos’ das disciplinas, dos professores e dos alunos”.

Separar as propostasAdiantado no pro-

cesso de discussão, Mar-celo Corrêa e Castro, decano do Centro de Filosofi a e Ciências Hu-manas (CFCH), infor-ma que o centro por ele dirigido está elaborando um documento que não pretende ser pontual, aprovando ou desapro-vando medidas do anteprojeto elaborado pela Reitoria. “Queremos ir além da adesão ou da recusa, e apresentar uma cuidadosa leitura crítica do documento da Reitoria e avançar em propostas concretas para um projeto de reestruturação e expansão para a UFRJ”, explica Corrêa e Castro, que é professor da Faculdade de Educação.

Para ele, o anteprojeto em debate – “em uma primeira leitura”, frisa – parece reunir elementos que guardam entre si relação de forte assimetria e heterogeneidade. “Há pontos do PDI, das propostas do Reuni e de outros projetos menos discutidos”, realça o decano, identifi cando di-ferenças “tanto no que diz respeito ao grau de coletivização das discussões quanto no potencial de alcance e impacto de algumas propostas sobre a estrutura da UFRJ”. Por isso, sugere separar o programa entre propostas razoavelmente

consensuais, que podem ser apresentadas de imediato como forma de adesão ao Reuni, e propostas polêmicas e menos debatidas, que merecem maior tempo para refl exão, podendo vir a constituir um projeto a ser consolidado em um futuro não tão distante.

Ação emergencialNa opinião de Almir Fraga Valladares, de-

cano do Centro de Ciências da Saúde (CCS), – que avisa opinar apenas como professor –, há defi ciências crônicas de verbas para custeio e modernização da UFRJ, que faz do Programa de Reestruturação apenas uma medida emergen-cial. “Uma qualidade de vida futura, saudável e duradoura necessita de ações mais profundas”, afi rma o docente da Faculdade de Medicina.

Em relação à transferência das unidades para a Cidade Universitária, avalia que a proposta terá apoio de boa parte da comunidade acadêmica. “Cabe o trabalho progressivo, com clareza, sin-ceridade e humildade e, sobretudo, sem ilusões”, previne Almir.

Contudo, aponta equívocos no programa do governo federal – o Reuni – que considera temporário e parcial. Além disso, estabelece condições para contrapartidas de recursos, o que acaba impondo o que chama de “autonomia con-

dicionada” às univer-sidades. Ainda assim, afi rma que o Reuni é uma “terapêutica emergencial”, que pode dar sobrevida à instituição. “Ele tem o mérito de mobilizar para o debate, que agora se intensifica na UFRJ. Algo será construído e esse es-forço coletivo acaba-rá permitindo algum progresso”, completa o decano.

Críticas da AdufrjJosé Antônio

Martins Simões, presidente da Asso-ciação dos Docentes da UFRJ (Adufrj-Seção Sindical), tece diversas críticas ao Programa de Rees-truturação da UFRJ. Considera que a universidade públi-ca brasileira neces-sita de transforma-ções profundas para cumprir um papel de destaque na su-peração das enormes difi culdades do Bra-sil. “Infelizmente, o programa da UFRJ não dará conta des-se desafio”, afirma

o professor, avaliando que os problemas estão sendo analisados de modo superfi cial e que, ao lado do debate sobre aumento de vagas, seria imprescindível discutir também o conteúdo, as metas do Ensino e da Pesquisa e os objetivos da universidade.

As insufi ciências da UFRJ não podem ser atribuídas apenas à “estrutura departamental obsoleta, como faz a atual administração”, ob-serva José Simões. “Essa é uma visão por demais burocrática do problema e aponta para soluções também burocráticas, ou seja, uma simples reor-ganização de nossos cursos”, critica Simões, que é professor do Instituto de Física.

Segundo ele, o movimento docente, desde o início da década de 1990, condena o estran-gulamento fi nanceiro e administrativo “como instrumentos de um tipo particular e perverso de privatização no interior das Instituições

Federais de Ensino Superior (Ifes)”. Com salá-rios limitados, os professores são estimulados – continua – a se dedicar a outras atividades remuneradas, deixando em segundo plano o ensino de graduação. Simões lembra, ainda, que o fi nanciamento necessário para uma boa parte das pesquisas não passa pela administração da universidade. “As nossas atividades de Ensino e Pesquisa estão hoje completamente fragmenta-das”, ressalta o docente.

José Simões não vê como se possa “reestru-turar” a universidade se a Pesquisa e o Ensino estão dissociados e são, inclusive, avaliados e fi nanciados separadamente. Também não con-sidera plausível criar novos cursos de graduação se as atividades de Ensino e de Extensão dos professores não são reconhecidas e valorizadas. “Precisamos devolver à universidade pública o seu papel básico como instituição em que Ensino, Pesquisa e Extensão sejam atividades integradas”, conclui o dirigente sindical.

No entanto, Ana Maria Ribeiro, coorde-nadora Geral do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj), identifi ca no programa temas importantes para a UFRJ, como a ampliação de vagas na graduação, a política de assistência estudantil e a reestruturação acadê-mica. Embora pretenda concentrar as unidades na Cidade Universitária como meio de cons-truir a sonhada unidade acadêmica, o projeto, segundo ela, deixa, entretanto, de enfrentar alguns dos principais problemas da fragmen-tação: as unidades que somente oferecem

pós-graduação, a existência de fundações pri-vadas e a terceirização.

De acordo com a dirigente sindical, o pro-grama deveria se concentrar na reorganização acadêmica e administrativa, discutindo mais a transdisciplinaridade, novos cursos, vagas e assistência estudantil. “Propostas polêmicas, como a centralização na Cidade Universitária e os cursos de curta duração deveriam ser re-tirados do anteprojeto” avalia Ana Maria, afi r-mando, ainda, que a política do governo federal de aporte de recursos visando à reestruturação e expansão das Ifes é uma oportunidade rara para que se efetuem mudanças na universidade brasileira. Além disso – frisa – ao determinar que o plano de cada universidade deva ser aprovado no colegiado máximo, dá-se à universidade a possibilidade de exercer mais plenamente sua autonomia. “A questão é se saberemos usá-la de forma democrática. A meu ver, a aprovação do programa não deve se restringir à votação no Conselho Universitário”, observa a servidora.

Ana Maria considera possível superar a frag-mentação acadêmica da UFRJ, mas tem dúvidas se o objetivo será alcançado. “As disputas internas e a vaidade científi ca e acadêmica também são um grande empecilho”, critica. Outra confusão da proposta da Reitoria, segundo ela, é achar que fragmentação e distância física são sinônimas. Há muitas unidades – diz ela – que funcionam

no mesmo prédio, mas os departamentos não se comunicam, não interagem. “São

políticas acadêmicas, como a estru-turação curricular, a Extensão, a

mobilidade estudantil e de pes-soal, que podem fazer avançar

efetivamente a integração da UFRJ”, conclui a sindicalista.

18 Agosto•2007UFRJJornal da

As luzes sombrias de uma era

Pós-modernidade e pós-modernismo, as marcas do triunfo capitalista em todas as facetas da vida humana. Um legado de indiferença, conformismo e barbárie à História e à cultura da civilização.

Rodrigo Ricardoilustração Jefferson Nepomuceno

Cultura

Segundo Platão, no famoso “mito da caverna”, narrado no livro VII de A República, a maioria da humanidade, dominada pela ignorância, viveria como prisioneira acorrentada no interior de uma caverna escura, condenada a tomar como verdadeiras as fantasmagóricas sombras projetadas nas paredes à sua frente. Os poucos que conseguem se libertar percebem o engodo e são capazes de alcançar as luzes do conhecimento e da ciência. Metáfora do esforço persistente para superar o mundo das aparências e do imediato, ao mesmo tempo em que critica a condição humana, é esse percurso mesmo que será posto em questão pela cultura pós-moderna, ao propor-nos uma série de “des”: desreferenciação do real, desestetização da arte, desconstrução da filosofia, despolitização da sociedade, des-substancialização do sujeito, desmaterialização da economia etc.

A caverna abarca agora, porém, o mundo todo, retrucam seus críticos, e enquanto os olhos dirigem-se, indiferentemente, às galáxias mais distantes ou ao mais novo seriado de tevê, a civilização desmancha-se, subjugada pelo triunfo capitalista em escala planetária que estimula os mais hediondos instintos humanos, em especial, naqueles barrados pelo espetáculo de consumo. A maioria, claro, que fica do lado de fora, dividida entre os conformistas apáticos e os que se engalfinham alegremente para comprar o black-tie que lhes abra as portas da festa.

Antes fossem virtuais a indiferença e a barbárie que circulam, em tempo real, através dos monitores dos computadores ou das telas de tevê. Marcas de uma era ainda por conceituar – afinal muitos teóricos duvidam que esteja em curso ou, pior, que tenha começado –, suas conseqüências parecem desoladoras. Bem-vindos, portanto, à pós-modernidade e à cultura pós-moderna que, renunciando às metas-narrativas totalizantes do passado, parecem capazes apenas de nos oferecer, em seu lugar, um punhado de ilusões.

“No fundo, há uma coerência entre o que se passa na cultura e na história. De repente, desaba o muro de Berlim, o sistema soviético e, com eles, as idéias de utopia socialista”, destaca Ronaldo Lima Lins, professor e diretor da Faculdade de Letras (FL/UFRJ), autor de A indiferença pós-moderna (Editora UFRJ, 2006), livro instigado por um tentativa de assalto perpetrado por um adolescente contra o autor no Passeio Público da cidade do Rio de Janeiro.

“Ambos nos achávamos premidos por este instrumento que organiza a vida moderna: o relógio. Abrindo o sinal, o trânsito fluiria e o assaltante perderia a oportunidade de me extrair dinheiro. Eu queria a liberdade. Ele a temia. Encapsulado, nunca senti tanto o peso de um cerceamento. (...) Ameaçado de

se dispersar no confronto, cheio de pressa, ele redobrou as caretas e as batidas. Usava uma pedra pontiaguda embrulhada num pano porque, mais pelos golpes firmes do que pela força, conseguiu que o vidro se espatifasse, pulverizando em mil fragmentos”, narra, em sua obra, Ronaldo, que escapou ileso, estocando o agressor com sua bengala. Contudo, o que mais o surpreendeu foi a apática ausência de sensações.“Nem fui à polícia, porque não ia adiantar nada. Depois, fiquei pensando na trajetória daquele menino, certamente vítima dessa indiferença desde que nasceu. E nós mesmos a perpetuamos, ninguém faz nada. Nunca existiu um esforço da sociedade brasileira para encarar suas mazelas e sempre achamos um jeito de disfarçá-las. Criamos o mito do bra-sileiro cordial, quando aqui se construiu uma sociedade com base da matança dos indígenas e da escravidão dos negros. Vamos pagar um preço cada vez mais elevado por isso”, avalia o professor, lembrando que as profundas desigualdades sociais, violência e banditismo que marcam as contemporaneidade não são exclusividades brasileiras e acontecem em todas as metrópoles, estimuladas pelo exage-ros do consumo, que se disseminaram com a expansão da sociedade capitalista.

Conceitos e modismoLogo no prefácio de As ilusões do pós-mo-

dernismo (Jorge Zahar, 1996), Terry Eagleton, professor da Universidade de Oxford (Inglater-ra), distingue os conceitos de pós-modernismo e de pós-modernidade. O primeiro estaria ligado à forma da cultura contemporânea, enquanto o outro se referiria a um período histórico específico que questiona as chamadas grandes narrativas, em especial as concepções marxistas da história: “ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias, os serviços, as finanças e a informação triun-fam sobre a produção tradicional, e a política de classes cede terreno a uma série difusa de ‘políticas de identidade’”, esclarece o crítico inglês que vê nele um estilo cultural que reflete “uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre as culturas ‘elitista’ e popular, bem como entre a arte e a experiência cotidiana”.

Embora não tenham caído na boca do povo, os termos pós-modernidade e pós-moderno

ganham força no debate acadêmico. “Aos poucos, isso foi virando uma espécie de rótulo vazio e abstrato que segue a linha terminal dos fins. Não é possível entendê-lo se não fizermos a crítica apontada por Fredric Jameson em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (Ática, 2002). Um sistema mundializado, contemporâneo e tardio – termo cunhado pelo economista belga Ernest Mandel – que mudou profundamente a cultura”, afirma André Bueno, também professor da FL/ UFRJ, sublinhando que a grave crise em que se vive tem origem no domínio do capital, que também comanda a política, a economia, o poder militar e tudo ao seu redor.

“A zona da crise é atualmente muito nebulo-sa e o historiador não pode ser um futurólogo. O vir a ser não é da sua esfera. Hoje se mapeia essa hegemonia sob a batuta estadunidense, mas essa também está em crise e o que resul-tará daí pode ser algo até pior. Desejaríamos que fosse a volta das revoluções socialistas, mas a realidade é outra. Os intelectuais da mídia, inclusive os da universidade, sabem tudo, desde a Física Quântica até a novela, e têm diagnóstico e prognóstico para qualquer coisa. O intelectual sério não faz isso, porque isso é picaretagem. Não há uma resposta fácil, se disserem o contrário estão iludindo”, ironiza André Bueno.

A cavernaAutor do livro Formas da crise: estudos de

literatura, cultura e sociedade (Graphia Edito-rial, 2003), Bueno analisa O mito da caverna em consonância com a trilogia do escritor português José Saramago – Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes, (1997) e A Caverna (2000), todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Nas obras, tanto de Bueno quanto de Saramago, uma constante: a crítica à pós-modernidade que é capaz de ofuscar a visão dos cidadãos das sociedades contemporâneas.

“Dizer vida na caverna pós-moderna equivale a dizer vida nas sociedades urbanas do capitalismo avançado, apontando para a própria forma da crise da condição humana na época em que estamos vivendo. É sinônimo de uma cegueira muito profunda, pessoal e coletiva (...) mostrando como são frágeis os limites que

separam civilização e barbárie”, escreve Bueno em artigo intitulado A educação pela imagem e outras miragens (Trabalho, Educação e Saúde, 2003), destacando que “em plena crise, o traba-lho dos que deram forma a uma tradição críti-ca brasileira, pensando nosso lugar no mundo a partir de uma perspectiva realmente aberta e internacionalista, não pode ser deixado de lado como anacronismo, mas sim percebido como um poderoso ponto de apoio para to-mar pé no presente e enxergar um pouco mais adiante. Ao contrário da paidéia pós-moderna, que confia na mão invisível do mercado para educar os cidadãos e organizar a vida”.

Origens históricasSe a História voltará ou não a se repetir

somente o futuro poderá responder, mas por ela se buscam explicações e pistas sobre a cons-trução do pós. “Houve algo diferente e a crítica não encontrou um termo mais adequado, aliás, não se tem muita idéia de quem o inventou. Jean-François Lyotard trouxe à tona, contudo não foi o criador do termo”, sublinha Ronaldo Lima Lins, citando o filósofo francês que escre-veu, em 1979, A condição pós-moderna (José Olympio, 1998), obra que pôs em circulação o termo, pretendendo designar com ele as drás-ticas mudanças que aconteceu na sociedade contemporânea.

A publicação foi uma encomenda do conselho universitário do governo de Quebec (Canadá) sobre o estado do conhecimento contemporâneo. Lyotard bebeu nas teorias da sociedade pós-industrial de seu conterrâneo Alain Tourraine e nas palavras do egípcio Ihab Hassan, crítico literário nos EUA que, em 1971, havia ampliado o termo pós-modernidade para abarcar todos os campos artísticos, bem como para designar as transformações tecnológicas.

Passados 16 anos, o próprio Hassan, após assistir a uma exposição que ia de prendedores de papel a iates, lamentou, no artigo A guinada pós-moderna (The turn postmodern), na revista North-American Literature, que “encurralado

Agosto•2007 19UFRJJornal da

entre a truculência ideológica e a ineficiência desmistificadora, preso no seu próprio kitsch, o pós-modernismo tornou-se uma espécie de pilhéria eclética”.

Entretanto pelas ironias e contradições do próprio conceito, o termo, de início, veio ao mundo com o intuito de apontar uma marcha à ré no modernismo. Em As origens da pós-modernidade (Jorge Zahar, 1998), Perry An-derson, historiador e professor da Universidade da Califórnia-Los Angeles (UCLA), descreve que ele “surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes do seu aparecimento na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Foi Federico de Onís – então diretor da Revista Hispânica da Universidade de Columbia, Nova Iorque –, quem imprimiu o termo postmodernism. Usou-o para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo.

Perry Anderson traça o percurso do con-ceito que somente voltou a aparecer nos anos 1950 e, desta vez, como categoria de época e não estética, tendo como responsável o historiador inglês Arnold Toynbee, que o conceituou em um contexto de pós-guerra hostil ao naciona-lismo, em que os benefícios da industrialização estavam em suspeição e vivia-se os movimentos de descolonização.

Toynbee, um severo crítico do então cha-mado imperialismo, antes mesmo de publicar o termo no oitavo volume do Study of History (1954), apontava que “uma classe média oci-dental de prosperidade e conforto sem prece-dentes considerava lógico que o fim de uma

era da história de uma civilização era o fim da própria História – pelo menos no que lhe dizia respeito e aos de seu tipo. Imaginava que, em seu benefício, uma vida moderna sadia, segura e satisfatória tinha milagrosamente chegado para ficar, com um eterno presente”.

Eterno-presentePara Joel Birman, professor do Departamento

de Psicologia Geral Experimental do Instituto de Psicologia (IP/UFRJ), perdeu-se a capacidade da temporalidade, além do poder metafóri-co da linguagem, empobrecida e transformada em um discurso metonímico. “Antes éramos modernistas agitados, imaginando revoluções. Agora, sob o ethos da indiferença, vivemos um eterno-presente. Somos seres espacializados em escala planetária. Em um clique estamos em Tóquio. Nossa linguagem empobrece a olhos vistos, subjugada pelo mundo das imagens. Vide o linguajar dos adolescentes, alegorias que

criam um código quase indecifrável. Enfim, um tipo de cultura que perdeu a noção de história e do desejo”, critica Birman durante a abertura do seminário “Pós-modernismo, a indiferença e a barbárie”, promovido pela Faculdade de Letras da UFRJ, em maio passado.

“Hoje, com a chamada pós-modernidade, há um esvaziamento da intensidade emocional, ao mesmo tempo em que se ampliam as redes de comunicação de sofrimento à distância. Temos mil canais de televisão, dizendo que a dor está lá no Haiti ou do outro lado do mundo. O que nos restou foi o corpo, que se tornou, ao contrário

da felicidade como queria Aristóteles, o ‘bem supremo’ dessa cultura narcísica que faz das academias o seu santuário”, critica Birman.

“Não me sinto um defensor, mas tampouco um inimigo do pós-modernismo. Um conceito discutível, pois muitos acreditam que ainda estejamos numa extensão da modernidade, também chamada de hiper ou supermoderni-dade”, explica Massimo di Felice, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP),

Cultura

20 Agosto•2007UFRJJornal da

Cultura

lembrando que o momento propicia a busca de caminhos que superem os paradigmas clássicos – marxismo e psicanálise – que já não dão, segundo ele, conta da nossa realidade: “a crise das grandes narrativas é um fato descrito por Lyotard. Hoje, com o advento da sociedade de informação, pontos de vista historicamente silenciados, como os dos indígenas, passam a ser conhecidos. Há uma transformação da lin-guagem de mono para polifônica. Na Europa já existe uma corrente que defende a emergência de um pós-humano a partir do impacto das biotécnicas”.

Menos otimista, Birman prefere resgatar o modernismo como o desejo de ruptura com o ideário cartesiano do pensar enquanto existên-cia. Sai o sujeito como centro do mundo para a entrada da consciência crítica da modernidade gerida pelo conflito da vida psíquica e social. Nessa direção, surgem pensadores como Marx, Freud e, mais à frente, Nietzche, demolindo qualquer certeza depositada em verdades.

“Passamos ao descentramento do eu, em que vivemos numa situação desamparada fren-te a anunciada morte de Deus, nos restando a alternativa apenas de viver pela cultura. Sonhar é desejar, o que será a marca do pensamento modernista. Funcionando como uma espécie de alavanca, o desejo vai caracterizar o momento das experimentações e das vanguardas, que marca o final do século XIX e o início do século passado, quando, efetivamente, se produziram múltiplas experiências de rupturas, seja através da (re)invenção de novas linguagens, seja, na política, com o ideário das revoluções”, frisa Birman.

Vanguardas e maio de 1968Os movimentos modernistas caracterizaram-

se pela inovação, uma obsessão que se inaugura, no Ocidente, com a Revolução Francesa (1789). Na ocasião, chegou-se até a propor um novo ca-lendário, como parte da ambição de se instaurar uma sociedade em bases inteiramente novas, diferentes das do velho regime.

No final do século XIX, os impressionistas revolucionariam as artes plásticas. Anos após, viriam os cubistas, os futuristas, os dadaístas, os surrealistas, e uma série interminável de outros ismos. “Chegou a um ponto em que o novo

também se tornou uma tradição na sociedade de massa. Mas a experimentação não era um gesto inútil. Ela tinha um aspecto extremamente positivo e estava relacionada à ousadia e à von-tade de arriscar”, destaca Ronaldo Lima Lins, lamentando a tendência atual à acomodação.

Para ele, o maio de 1968 retoma aquelas idéias de inovação. “Uma utopia política, que se configurou mais como um surto e, na França, ficou restrita, sobretudo, ao movimento estudan-til, que conseguiu mudar o sistema universitário, mas não o de governo. Era uma época em que Jean Paul Sartre ainda estava vivo e havia toda uma vanguarda filosófica atuante. Depois, a cena cultural será tomada pelos chamados ‘novos filósofos’, todos eles profundamente conserva-dores. Atualmente já velhos, mas cada vez mais conservadores”, reflete Lima Lins.

Um dos participantes daquela geração que exigia o impossível, Andrea Lombardi, também professor FL/UFRJ, participante dos memorá-veis protestos, lembra do impacto que vinha das barricadas parisienses. “Era uma apropriação diferente da rua. Ainda reivindico aquele senti-mento, porque não é pensável viver sem se re-belar”, acredita o docente italiano, sublinhando, porém, que, já àquela época, o cineastra italiano Pier Paolo Pasolini identificava certa tendência ao nivelamento das emoções e expectativas humanas que sentenciava como o fascismo do senso comum – cuja origem radicaria em um conjunto de mutações tecnológicas e antropo-lógicas, que propiciaram a difusão da televisão e a emergência do consumo de massa – ao qual nos restaria apenas submeter.

“Não diria que hoje a alternativa seja a transformação do mundo, mas se necessita de uma postura diferente. Defendo nosso espaço de trabalho, que é o da leitura e o da literatura. Por meio dele, abrimo-nos à possibilidade de comunicar uma experiência autêntica. Se não se reivindica uma função crítica, está se aceitando a aniquilação virtual”, avalia Lombardi. Ética da leitura

Amigo do concretista Haroldo de Cam-pos, Lombardi conta que o poeta acreditava que o impulso modernista ainda não se havia esgotado. “Pode-se aceitar que estamos na pós-modernidade como época, desde a queda do

muro de Berlim, mas não no pós-modernismo como ideologia”, reage o professor, defendendo o que define como “ética da leitura”, através da qual o leitor possa estabelecer uma relação com o texto, principalmente com o literário, mas não somente com esse, capaz de abrir fissuras nas formas tradicionais de apreensão e criar espaços para novas interpretações.

“Ítalo Calvino classifica esse espaço como o clinamen de Lucrécio, ou seja, aquela pequena diferença na interpretação que o leitor preenche com sua responsabilidade, aceitando ou diver-gindo do texto”, explica Lombardi, destacando que Harold Bloom em A angústia da influência (Cotovia, 1991) – The Anxiety of Influence (Oxford University Press, 1973) –, propõe que um leitor radical deva ser capaz de se tornar, ele mesmo, um escritor.

“Para além dos impasses dessa época pós-moderna que, vinculada à efemeridade e ao fugaz, nos aprisiona a interpretações alheias, há a necessidade de uma leitura atenta que busque novamente a complexidade. Esse esforço não vai, por certo, nos trazer qualquer felicidade, mas propicia aquele efeito de espelho, a reflexão, que implica o redobrar do pensamento sobre si mes-mo e o mundo”, aposta Andrea Lombardi, ava-liando que manifestações como a Ola (onda), na Internet, apontam para algo além da perspectiva niveladora contemporânea. “Há esperança, mas não pra nós”, afirma, parafraseando Kafka.

Resistência e flexibilizaçãoEm outras épocas, grandes tensões foram

capazes de provocar reações proporcionais. O pós-modernismo aguarda as suas, e é bem possível que venham a ser diferentes de tudo tentado até agora, tais como as de jovens, pro-pondo maneiras inusitadas de atuação política, bem distantes das tradicionais formas de luta que visavam a conquista do poder e do Estado,

e que marcaram profundamente as gerações anteriores. Especulações à parte, insurgentes organizados já começaram a fazer sua parte. Os zapatistas, no México, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, criaram raízes sociais e ultrapassaram as bandeiras corporativas que estão em suas origens, e hoje marcham por questões mais gerais. Entre elas, o combate ao neoliberalismo que hegemonizou as políticas econômicas de grande parte dos países da América Latina nas duas últimas décadas.

Para André Bueno, as novas gerações não confiam mais nos modelos de organização nem nas formas de luta do passado, embora os movimentos de resistência não tenham sido silenciados. A luta antiglobalização e o MST – um movimento “forte, organizado, crítico e popular” – são exemplos de alternativas ao que Bueno define como sendo “um sistema partidá-rio cooptado” e ao “viés conformista que chega, aos nossos dias, emoldurado pelo conjunto das várias derrotas sofridas pela esquerda ao longo do século XX”.

“Isso aconteceu com o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e com o Trabalhista inglês (Labour Party). A experiência brasileira foi pelo mesmo caminho. O Partido dos Trabalha-dores (PT), que se propunha, ao mesmo tempo, social e democrático, se converteu em partido da ordem e do direito. Uma vez chegado ao poder, não encaminha as transformações necessárias. Nessa medida, Lula não é mais do que um ge-rente do capital. Essas são derrotas de um ciclo longo, que afetam, profundamente, o mundo do trabalho”, considera Bueno.

Em A condição pós-moderna sublinha-se a tendência contemporânea do contrato tempo-rário, tanto no que diz respeito às ocupações como às relações interpessoais, tornando, desta forma, os laços econômicos e emocionais mais

Curso multidisciplinar promovido pelo Centro de Letras e Artes (CLA) da UFRJ acontecerá de 3/10 a 14/11/2007, todas as quartas-feiras, de 14 às 17 horas, no Salão Azul, Térreo da Reitoria, na Ilha do Fundão.

O curso é aberto a estudantes, técnico-administrativos e docentes da UFRJ e ao publico externo com certificação de Ensino

Pós-modernismo: a arte na cena contemporânea

Médio. As inscrições podem ser feitas até o dia 28/9, de 10 às 15 horas, na Seção de Ensino do CLA; na Direção Adjunta de Intercâmbio Cultural da Escola de Belas Artes (EBA); na Coordenação de Extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU); na Coordenação de Extensão da Faculdade de Letras (FL) e no Setor Artístico e Cultural da Escola de Música (EM).

Agosto•2007 21UFRJJornal da

Cultura

fl exíveis. Lyotard afi rma, ainda, que qualquer alternativa pura ao sistema, fatalmente acabaria por se confundir com aquilo a que se opusesse. “A fl exibilização obriga o empregado a ter várias funções e a aceitar que amanhã poderá estar na rua. A ideologia ainda vai dizer que isso é bom para se exercer a criatividade”, ironiza André Bueno, comparando as comemorações do 1° de Maio aos efeitos que Guy Debórd aponta em A sociedade do espetáculo (1967): “tornou-se um programa de auditório a céu aberto. A tradição de luta é espetacularizada e suas energias absor-vidas. A indústria cultural, com seu fetiche em escala poderosa, transforma em mercadoria e estilo as revoltas de anteontem. É o che gueva-rismo pop”.

Cerco culturalLivres dos mecenas, os artistas tornaram-se

reféns da indústria cultural, que não impede a produção, mas cerceia a divulgação de produ-tos culturais que não sigam as fórmulas dos best-sellers. Para Ronaldo Lima Lins os editores apenas se interessam por obras com sucesso garantido. Para ele, uma mudança que se refl ete, a partir dos anos 1970, também no jornalismo literário. Os livros eram, até então, comentados por suas idéias e os suplementos literários, fator de prestígio para os jornais. No fi nal dessa déca-da, chama atenção, que os editores, interessados em atrair maior número de leitores, passam a investir em temas mais rasos. Por essa lógica, autores com a aspereza de Graciliano Ramos jamais seriam publicados.

“Apesar do cerco comercial, as pessoas continuam produzindo e isso não determinou a morte dos bons produtos culturais”, refl ete Ro-naldo, indicando que o nó atual se encontra na distribuição deles e no desvirtuamento do maior veículo de comunicação de massa: “quando surge a televisão na Inglaterra, se tem horários diferenciados, com programas voltados para a música sinfônica, para o teatro de Shakespeare etc. A idéia é que ela deveria ser um instrumento de elevação cultural do povo. Havia uma preo-cupação enorme, entre os europeus, para que as televisões pertencentes ao Estado não fossem entregues à qualquer aventureiro. Nessa época, apenas nos EUA, as tevês eram particulares, mas ao longo do tempo a pressão foi crescendo até chegarmos à situação atual, em que os canais privados somente têm compromisso com o lucro”.

Frente ao bloqueio da indústria cultural, vão surgir fenômenos como os blogs e sites alterna-tivos – acessíveis aos agraciados com as mara-vilhas digitais. O fato é que nunca se publicou ou se escreveu tanto como agora, o que, infeliz-

mente, não implica em qualidade ou, ao menos, em amplia-ção efetiva da leitu-ra. Afinal, o mun-do das aparências chegou a um ponto tal que, não raro, se compram livros não para lê-los, mas para preencherem estan-tes. No Brasil, onde ainda se mantém a idéia da cultura como ornamento, os emergentes (os nou-veaux riches da nossa época) são capazes de preencher biblio-tecas imponentes so-mente para, com as lombadas dos livros, decorar o ambiente.

“Aqui somos mais sensíveis a esse cerco por conta do nosso frágil ensino. Os europeus menos,

porque têm a tradição de cultivar seus grandes autores. Flaubert, por exemplo, todo mundo o lê na França, mesmo um simples trabalhador. Aqui quando apresento o escritor aos estudantes, eles o reconhecem como bom escritor, mas reclamam que é lento”, analisa Lima Lins, avaliando a socie-dade brasileira por demais aberta “à infl uência do cinema hollywoodiano de ação e explosões”.

O fosso do mesmoA ideologia do capital fi nanceiro sem pátria,

que desconhece fronteiras e idiomas, e nivela todos os produtos humanos, mesmo os mais sublimes, a preço, chega à cultura pós-moderna como refl exo invertido, por meio da crítica ao que considera o “elitismo” cultural da época anterior. Para Bueno, uma falácia populista que rebaixa os valores artísticos a um mesmo plano e induz os incautos a acreditarem que não existem hie-rarquias ou juízos, mas apenas diferenças. “Pre-

conceito, elitismo. É assim que pensam quando se procura fazer uma distinção de valor entre um Shakespeare e um Paulo Coelho. Vejo, em particular a pop-arte, como um gran-de exemplo dessa bobagem”, sublinha. “A história da arte não é uma linha reta evolutiva”, enfatiza o professor, destacan-do que a maioria dos artistas atuais pas-sou para o campo do entretenimento, numa posição polí-tica conservadora e integrada, que não consegue disfarçar o interesse por mais verbas.

Contra essa onda da relativização, Ter-ry Eagleton faz sobressair, de forma contundente, o fosso que os deslumbramentos pós-modernos pretendem suprimir, indicando que estabelecer valores faz parte da identidade e da vida social, que se extinguiria sem isso. “Um sujeito que realmente não discriminasse não seria de jeito nenhum um sujeito humano, talvez seja por isso que alguns sujeitos pós-modernos que vêem a apreciação como ‘elitista’ somente podem existir no papel. Também é difícil saber de onde eles tiram esse juízo de valor de que o valor é uma irrelevância”, escreve Eagleton.

De acordo com André Bueno, quem não tem acesso cultural fi ca sem o direito de escolher e à mercê do que dita a mesma indústria cultural. Ele também lembra que outra miragem con-temporânea é a tentativa de se formar cidadãos, prescindindo da leitura. “Telecursos, ensino a distância, tudo isso é uma cultura cosmética. Aqui temos um problema sério, as pessoas lêem minimamente e há poucas bibliotecas, além de

ser impossível concorrer com o rádio e a tele-visão. Mas cabe à universidade pública formar massa crítica. Esse é o nosso papel e não nos cabe ser extensão de empresas, de interesses tecnoló-gicos, ou escritório das grandes corporações”, pontua Bueno.

Pulverização e vaziosOutro aspecto da pós-modernidade é a afi r-

mação das políticas étnicas ou de identidades. São os movimentos das feministas, dos negros, que anunciam causas justas, mas acabam pul-verizadas em suas pelejas particulares. “Isso é o problema do Fórum Social Mundial. Como organizar essas lutas fragmentadas num projeto de crítica geral do capitalismo”, verifi ca André Bueno, ressaltando a importância dessas lutas e a imprecisão conceitual de se colocar mulheres e negros como minorias, quando são maiorias nesse país.

Não à toa, as ações afirmativas ganham corpo, desembarcando recentemente no Brasil, sob a denominação de política de cotas. Adepto do confl ito e da polêmica, Andrea Lombardi vê na medida um achatamento das questões fun-damentais. “Se pretende apaziguar diferenças sociais, mas essas ações se abrem, perigosamen-te, a um corporativismo total que pode acabar criando guetos. O multiculturalismo encerra-se no conservadorismo do politicamente correto”, destaca o professor, que avalia necessário “pen-sar que nossa sociedade, como um todo, está doente, embalada por prozacs e ecstasis”.

Segundo Ronaldo Lima Lins, a pós-moder-nidade leva a algumas aberrações, cuja expressão mais evidente é a proliferação de atos gratuitos de violência. “Nos EUA, um país rico, onde se optou por uma maior repressão à criminalidade, com aumento de penas de execução e com a terceirização dos presídios, alguém entra numa escola e mata todos, alunos e professores. Os sinais do presente são, portanto, muito preocu-pantes e não sabemos para onde vamos”, afi rma o professor.

Enquanto os espetáculos das mortes e das tragédias se sucedem na sala de jantar, a vida, reduzida à compra de coisas, abre buracos nas existências. “O ser humano sente a necessidade de algo a mais, mas o consolo espiritual oferecido são livros de auto-ajuda”, considera André Bueno, julgando a cultura da pós-modernidade uma fantasia ideológica interessada que não resiste à análise empírica mais elementar: “uma bobagem que vende liberdade, quando há cada vez mais controle, defi nições e limites em um mundo hostil e agressivo. Na vida cotidiana, as pessoas saem todos os dias para batalhar.”

Ronaldo Lima Lins: “Criamos o mito do brasileiro cordial, quando aqui se construiu uma sociedade com base da matança dos indígenas e da escravidão dos negros.”

22 Agosto•2007UFRJJornal da

Literatura

Delicado toque de Clarice

Rodrigo Ricardoilustração Pina Brandi

Joana, Lóri, Macabéa, ucraniana, brasileira, mãe, metafísica, bruxa, judia, ousada, tímida... Apaixonante.

Enigma tem nome: Clarice. Trinta anos de-pois de seu derradeiro encontro com a morte, ela segue viva nas estantes das livrarias e das bi-bliotecas, desafiando aos que ousam decifrá-la. Esfinge, não se importa em ser devorada pelos leitores. Uma legião de apaixonados que cultua o talento da autora e, não raro, a personalidade e as lendas que alimentam mitos sobre ela. No site de relacionamentos Orkut, por exemplo, inúmeras comunidades dedicam-se a celebrar a obra e a vida de Clarice Lispector. A maior delas reúne mais de 149 mil internautas, co-nectados às palavras e às ânsias da escritora: “Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.” (Anotação feita por Clarice que, hoje, faz parte do seu espólio, ainda pouco estudado.)

Haia, antes de Clarice, foi o nome que re-cebeu em uma pequena cidade da Ucrânia de 1920, Tchetchelnik. Seu nascimento ocorreu durante a viagem de emigração de seus pais, que aportariam em Maceió, dois anos depois. Rebatizada em solo brasileiro, como todos os membros da família judia que decidiu mudar-se para Recife, em 1925. Antes mesmo de alfa-betizada, a escritora já fabulava histórias e, na adolescência, produziu uma escrita “intensa, caótica e fora da realidade”, como afirmaria mais tarde. Essa vivência no Nordeste animaria em parte Macabéa, a quase heroína de seu últi-mo romance A hora da estrela (1977). A carreira da autora, que se definia como tímida e ousada

ao mesmo tempo, estreou com Perto do coração selvagem (1943), romance protagonizado por outra personagem feminina, Joana.

ExistencialismoPara Elódia Xavier, professora da Faculdade

de Letras da UFRJ, Clarice escreveu, sobretudo, sobre mulheres, tornando-se um marco da narrativa de autoria feminina. Antes, a maioria das escritoras limitava-se a representar e a redu-plicar os valores da sociedade patriarcal. “Esse questionamento fica claro no antológico conto “O ovo e a galinha”, do livro Laços de família (1960), cujo título trabalha com essa duplici-dade de significado: laços que protegem, mas também nos prendem e amarram ao sistema. Um homem também poderia ter escrito do mesmo jeito, mas não sei se escolheria os mes-mos temas”, explica Elódia, perdendo a conta ao tentar lembrar as inúmeras dissertações e teses que já orientou sobre a escritora. “Sempre há uma abordagem nova, isso se deve porque uma obra literária quando é grande – e a de Clarice inegavelmente o é – pode ser compreendida por diversos ângulos”. Elódia lembra o viés existen-cialista adotado pelo filósofo Benedito Nunes – autor de O drama da linguagem, uma leitura de Clarice Lispector (1989): “depois da segunda grande guerra (1939/1945), o existencialismo está em voga, através de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Nesse contexto, Clarice também é um produto de sua época com a náusea sartriana atravessando seus textos”.

EstranhamentoQuando Clarice surge na cena literária,

vivia-se a explosão do chamado romance psi-

cológico. A introspecção – o mundo interior dos personagens – passa a predominar sobre a narrativa de acontecimentos, distinguindo-se, assim, do olhar dos romancistas regionalistas, que dominou a cena literária brasileira entre 1930 e 1945 e estavam mais engajados às ques-tões sociais. Entretanto, o diferencial de Clarice está em sua inconfundível escritura, aparen-temente simples, mas que conduz o leitor ao “delicado essencial”, expressão cunhada pela própria escritora, lembra Rosa Gens, também professora da Faculdade de Letras da UFRJ. “É um estranhamento, mas não de superfície, distinto daquele que acontece quando nos deparamos com a sintaxe e a linguagem ins-tigante de Guimarães Rosa. É algo por baixo, na organização desse delicado essencial que se dá por transformações que, às vezes, não são tão visíveis, levando-nos a penetrar camadas de significação mais profundas”, reflete Rosa Gens, apostando que os leitores são apanha-dos por essa paixão, que impacta até mesmo os “leitores-cientistas” na faculdade. “Aqui, há também os seguidores de Clarice”, sorri a professora.

Seguramente uma das escritoras nacionais mais estudadas, ao lado de Machado de Assis e de Guimarães Rosa, os livros de Clarice Lis-pector estão hoje traduzidos em 15 idiomas. Em 1953, os franceses foram os primeiros a ter esse privilégio e parte dessa repercussão na Europa, aliás, deve-se à feminista e professora da Universidade de Paris, Hélène Cixous, que declarou que a literatura brasileira divide-se em antes e depois de Clarice. “Tenho medo dessas fundações contundentes. Sem dúvida há um estilo Clarice, que parte do universo do cotidia-

no de quatro paredes, que as pessoas não vêem, expandindo-se até quebrá-lo. Acredito que o encantamento da corrente feminista francesa se dê por conta das temáticas”, sublinha Rosa Gens, citando Lúcio Cardoso entre os escri-tores intimistas que antecederam Clarice e de quem, possivelmente, não haverá sucessores. “Quem chegou mais perto foi o gaúcho Caio Fernando Abreu, que era amigo dela e se dizia filiado à Clarice. Porém isto não a impedirá de continuar influenciando as próximas gerações. Há também muitos estudos em Literatura Com-parada associando Clarice à Virginia Woolf, embora existam aqui também divergências. Ela mesma negava essa relação” afirma Rosa, acreditando que a biblioteca particular da au-tora, que permanece fechada pela família, possa fornecer pistas sobre os escritores que, mesmo despercebidamente, perpassaram a tessitura textual de Clarice.

MísticaDiante de câmeras e microfones, o lado

tímido de Clarice aflorava. Seus poucos de-poimentos à imprensa foram marcados por frases curtas, quase monossilábicas, de acordo com sua convicção de que o papel do escritor deve ser falar o menos possível. À televisão concedeu uma única entrevista, no programa Panorama da TV Cultura, gravado meses antes de seu falecimento, em nove de dezembro de 1977, ocorrido às vésperas de seu aniversário. Em cena, revela que leu de tudo e que escolhia os livros pelos títulos por desconhecer seus autores. Entre eles, destaca o russo Dostoiévski e o impacto de ler, aos 13 anos, O lobo da estepe (1927), do alemão Hermann Hesse. “Tomei um

Agosto•2007 23UFRJJornal da

NacionalLiteratura

“Eu escrevo sem esperança de que o

que eu escrevo altere qualquer coisa.

Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está

querendo alterar as coisas. A gente está

querendo desabrochar de um modo ou de

outro...”

choque e comecei a escrever um conto que não acabava. Ao fim, o rasguei. No fundo, eu escrevo muito simples, não enfeito. Eu me deixo ser, não discuto com a escritora”, define-se Clarice, confessando seu sentimento de esvaziamento – “oca”, dizia-se ao terminar cada trabalho.

Dona de um texto esfíngico, Clarice con-quistou diversos públicos. Entre eles, os esoté-ricos que reverenciam pensamentos e frases da autora. Por conta do talento, chegou a receber elogios sobrenaturais. “Você deve tomar cuida-do com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria”, comentou o escritor Otto Lara Resende. Uma fama distorcida e reforçada pelo imaginário após uma viagem à Colômbia, na década de 1970, quando convidada para pro-ferir uma palestra num Congresso de Bruxas. Na ocasião, sentindo-se mal, pediu que fosse lido o conto O ovo e a galinha, considerado um enigma para a própria autora.

O Deus“Gritou-se muda de

repente, que o Deus me ajude a conseguir o im-possível, só o impossível me importa”, diz a per-sonagem Lóri, Em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), entre suas alusões ao trans-cendental. “Há um traço místico que não é o da re-ligião católica. Ela tinha o Deus”, explica Elódia Xa-vier, destacando a referência ao autor de Sidarta como uma das contribuições para o misticismo de Clarice. “Hermann Hesse apresenta aquele pensamento da busca. Evidentemente, como grande leitora que era, Clarice também deve ter lido Virginia Woolf. Mas não me apraz fazer esses vínculos. A leitura vai compondo uma bagagem, um capital intelectual que na hora da escrita aparece num processo inconsciente”, afirma Elódia, avaliando que a herança de Cla-rice é enorme, considerando os romances da década de 1980, de Lia Luft, como um exemplo de intertextualidade.

Judia, Clarice foi matriculada, durante o primário, no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, em Pernambuco. Lá estudou hebraico e ídiche (antigo dialeto dos judeus aschkanazitn, oriun-dos da Europa Oriental), num período em que escreveu a sua primeira peça de teatro Pobre menina rica (1930). Apesar da infância e das raí-zes familiares, nunca admitiu que houvesse algo propriamente judaico ou mesmo diaspórico em sua literatura. “Ela sempre negou isso, mas se observarmos com cuidado, essas dimensões também estão presentes, principalmente quanto à sua condição de exílio, porém diferenciado, porque a terra de Clarice era o Brasil”, afirma Rosa Gens, recordando que a autora, por ter sido casada com um diplomata, mudou-se inúmeras vezes de país, morando um longo tempo no exterior.

Estudante da UFRJEntre as primeiras colocadas do vestibu-

lar, Clarice ingressou, em 1939, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Mesmo com o diploma, decidiu trabalhar em redações, rumo comum para os bacharéis pouco afeitos aos tribunais. O registro de jornalista veio com sua colaboração no jornal A Noite, o primeiro dos muitos periódicos para os quais contribuiria, fosse como repórter, fosse como cronista ou colunista. Se como escritora renunciava à condição de profissional e fazia questão de ser amadora para manter a liberdade, encontrou na imprensa um meio de sobrevivência, em especial, após o divórcio. Rosa Gens lembra que Clarice editou até uma espécie de correio senti-mental, vulgarmente denominado de literatura

para “mulherzinha”, com conselhos de moda, culinária etc. Uma coletânea desses textos foi reunida e editada pela Rocco, em 2006. “Ela fez isso para ganhar a vida, inclusive com um pseudônimo (Tereza Quadros). Desse longo período na imprensa, percebe-se que a vivência ficcional é que se reflete na escrita jornalística da autora”, analisa Rosa.

Lavra maternalSolicitada pelo filho de cinco anos a escrever

uma história para ele, Clarice acabou por desen-volver outra faceta literária que lhe renderia cin-co livros destinados ao público infantil. Segundo Rosa Gens, um acontecimento comum entre os autores que se tornam pais ou avós, ressal-

tando que apesar dos trabalhos sérios feitos para as crianças ainda há certo preconceito com o gênero, que Clarice encarava com maior facilidade por se considerar mater-nal: “com adulto é mais difícil, pois pre-ciso me comunicar com o que há de mais secreto em mim”.

Por explorar as entranhas das pala-vras em todas as suas direções, os textos clariceanos assumem, por vezes, ares de pro-sa poética. “É e não é”, pondera Rosa, lem-brando que há produ-

ções que não cabem em um rótulo, admitindo que essa característica aparece com mais força em dois momentos bibliográficos: Um sopro de vida (1978) e Água viva (1973).

Para Elódia, a simbologia multifacetada da autora, aliada ao esmero obsessivo com a palavra, a aproxima de um trabalho de poeta: “o silêncio, as repetições, os paradoxos (‘era fascinante, mas ela sentia nojo’) são típicos de Clarice e inéditos para sua época”.

“Sonsos essenciais”Clarice costumava fazer anotações a qual-

quer hora para não perder a inspiração, mas trabalhava compulsivamente para concatená-las. De preferência nas primeiras horas do dia, com uma xícara de café e fumando um cigarro atrás do outro. À frente da máquina, lançava-se a árdua e incerta tarefa porque lhe era imprescindível. Afinal, escrevia para se manter viva, sem a esperança de que isso alterasse alguma coisa. Talvez por isso, chegou a ser acusada de “absenteísta” por alguns setores que lhe cobravam posições políticas explícitas e uma escrita mais en-gajada. “Ela não levan-ta bandeiras militantes diretamente, mas atra-vés daquela delicadeza essencial. Quem pensa o humano, pensa o social”, reflete Elódia, recordando que a es-critora também par-ticipou de passeatas contra a ditadura.

“Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. En-quanto isso durmo e falsamente me salvo.

Nós, os sonsos essenciais” – escreveu Clarice no conto Mineirinho (1964), apelido de um conhecido bandido da época, fuzilado com 13 tiros pela polícia fluminense. “Um só bastava, o resto era vontade de matar”, revelou Clarice em entrevista, sentindo-se também atingida pela última bala disparada.

A questão social aparece mais nitidamen-te em A hora da estrela, descrita por Clarice como a história “de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente”, mas também de uma “inocência pisada, miséria anônima”. A trama teria lhe nascido a partir de um passeio à tradicional Feira dos Nordestinos, em São Cristóvão, quando a autora se deu conta daquele “ar perdido” do retirante no Rio de Janeiro. O romance acabou ganhando as telas de cinema, com a cineasta Suzana Amaral que chegou a identificar a personagem principal como versão feminina de Macunaíma, de Mário de Andrade. “Talvez, caso se veja Macabéa como um signo da brasilidade, já que pode ser muito mais. A cada releitura é possível pensar em outras possibilidades: a condição feminina, a humana, o universo dos oprimidos”, avalia e enumera Rosa Gens.

Narrativa e reaçõesNuma analogia à linguagem cinematográfica,

pode-se pensar a escritura clariceana como uma inquieta câmera subjetiva. “O filme acaba mon-tando um roteiro um tanto linear, mas o livro vai além do contar uma história. ‘Macabéa é um cabelo na sopa, um beijo na parede, um parafuso dispensável’. O foco se desloca para a constrição, o fechamento, do como é ser para dentro”, destaca Rosa Gens, vendo nessa construção narrativa uma das arquiteturas literárias que encanta aos leitores. “A teoria conceitua que o autor é um ser civil e não deve se imiscuir na narrativa. En-tretanto, na dedicatória, ela pontua ‘na verdade Clarice Lispector’, marcando uma outra idéia. Depois, ela constrói o Rodrigo S. M. que vai ser o narrador efetivo”, destaca a professora.

Celebrizada pela crítica e pelo público, Cla-rice pôde experimentar um pouco o impacto da recepção de suas obras ainda em vida. Ao ter o trabalho lido, sentia-se gratificada e, não raro, espantada com as reações que provocava, como as daquele professor de Português que lhe bateu à porta para lhe dizer que não havia entendido nada de A Paixão segundo GH (1964) ou da ado-lescente que fazia do mesmo romance seu livro de cabeceira e não o cansava de reler. “Toca ou não toca, mas parece que ganho na releitura, o que é um alívio”, suspirava Clarice, que recusava

a pecha de autora hermética, apesar de não se intitular popular.

Elódia Xavier sublinha que Clarice não é de fato uma escritora fácil, exigindo que o leitor se ponha como cúmplice dela e queira penetrar o mundo de sua literatura. “Sempre aconselho que as pessoas comecem pelos contos de Laços de Família. Uma vez fui procurada por duas alunas, ainda iniciando a Faculdade de Letras, que queriam minha ajuda para ler Clarice. E não era porque tinham prova ou algum trabalho. No final, acabamos montando um laboratório de leitura, o que foi ótimo”, recorda Elódia, manifestando sua preferência pela contista: “os personagens sofrem um processo epifânico, uma revelação. E isto é perfeito para a estrutura dramática desse gênero”.

PaixãoNa biografia Clarice, uma vida que se conta

(1995), a professora da Universidade de São Paulo (USP), Nádia Battela Gottlib, aposta na versão de que Clarice foi se ficcionalizando, enxergando-se pouco a pouco como persona-gem. De acordo com Rosa Gens, Clarice fazia certo tipo Rubem Fonseca, que por aparecer pouco publicamente, suscitava ainda maior curiosidade. “Há toda uma mitologia cons-truída em torno dela. Dizia-se muita coisa estranha a seu respeito, como por exemplo, que ela somente tomava banho de chapéu. O fato é que era muito bonita e talentosa na fabricação das armadilhas do texto”, afirma Rosa, avisando de que Clarice esta aí, sobre-tudo, para ser lida. Mesma opinião de Elódia, uma partidária da leitura do texto, que clas-sifica a vida dos autores como secundária. “Realmente Clarice tinha uma feição miste-riosa, mas o anedotário em torno do autor não acrescenta nada, o que importa é o texto e os bons escritores precisam ser lidos muitas vezes”, afirma a professora, recomendando o hábito de leitura para quem quiser aprender com Clarice: “quem a leu uma única vez, não leu nada. Por sua obra ser tão bem realizada esteticamente, se torna atemporal”.

Para Clarice, o ruim do humano é a in-capacidade de se emocionar. Por ser uma escritora em que tudo era pathos, paixão, ela continua despertando o mesmo sentimento. “Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”, es-creve ela em “Aprendendo a Viver”, crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre os anos de 1967 e 1973.

24 Agosto•2007UFRJJornal da

Personalidade

Rodrigo Ricardoilustração Jefferson Nepomuceno

Martins Pena

Quando rir é pensar o BrasilCom o palco às escuras, estrangeiros acertam propinas, mortos

ressuscitam e malandros dão no pé com suas amadas. Amor, intrigas e corrupção compõem a matéria-prima com que Luís Carlos Martins Pena inaugura, impregnado de ambivalências e risos, o discurso brasileiro no teatro. Uma obra marcada, sobretudo, pelas comédias de costumes do Brasil Império. Vítima da tuberculose aos 33 anos, o autor viveu entre 1815 e 1848, escreveu cerca de 30 peças que trazem à cena personagens reais de uma sociedade marcada pelas aparências e hipocrisias e de olhos voltados à Europa.

Nas ruas cariocas, aristocratas de bengala e paletó, enquanto o negro escravo carrega a pasta e o fardo do trabalho. Entre um café e outro, a riqueza escoando para o bolso dos britânicos. Naqueles tempos impregnados de romantismo, um brasileiro ensinou que o riso pode desvelar as entranhas de uma época.

“Na hora em que ri o homem consegue refletir sobre as coisas e o mundo. Se nas obras dramáticas, Martins Pena seguia a linha européia, nas comédias era puramente brasileiro”, destaca Edwaldo Cafezeiro, professor emérito da Faculdade de Letras (FL) e do

curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação (ECO), ambos da UFRJ, lembrando que antes do autor, que escreveu apenas um drama de tema nacional, Itaminda ou o guerreiro de Tupã (1839), o público sofria com as tragédias. “O teatro nessa época ainda não era brasileiro, era todo estrangeiro. O Brasil do romantismo é um país de cópia. Martins Pena funda a expressão da língua falada em nossa terra com diálogos de gente da roça, da cidade, dos pobres, dos mascates etc.”, informa Cafezeiro.

O não-verbalAlém das nuances do texto, já transpassada por certo humor

negro, que se compraz em brincar com a morte, a linguagem cênica do teatro de Martins Pena também recorre a uma profusão de signos não-verbais. Apesar de não dirigir suas peças, o teatrólogo assinalava com as rubricas como deveriam se desenrolar as cenas. “Há aqueles caminhos divergentes – com cada um correndo para um lado – e desencontros próprios do cinema mudo”, compara Cafezeiro, autor de História do teatro brasileiro (UFRJ/Funarte/Uerj, 1996).

O jogo do escuro é a principal inovação para época. Em passagens cênicas sem nenhuma luz, o espectador percebia as ações sobre o tablado. Na peça Desgraças de uma criança (1846),

os pais vão à missa e o menino fica sozinho, em casa, vendo o namoro das irmãs e dos empregados. Os senhores retornam

e, de repente, tudo se apaga. Na volta da luminosidade, – ainda não havia eletricidade – casais trocados e aquelas

confusões típicas dos bons pastelões.

O poder da sátiraÓrfão de pai e mãe desde os dez anos, o autor

foi criado por tutores que o educaram para seguir carreira no comércio. Entretanto,

não resistindo à vocação artística, estudou Arquitetura, Desenho e Música na

Academia Imperial das Belas Artes, antecessora da Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ).

Observador atento de seu tempo, o também jornalista Martins Pena abasteceu-se de histórias do cotidiano

e fez críticas teatrais para o Jornal do Commercio. Como diplomata, no

Ministério dos Negócios Estrangeiros, pôde conhecer as entranhas de um Estado já envenenado por maracutaias e larápios oficiais.

Em meio aos risos, Martins Pena vale-se do poder da sátira para construir

críticas. Em especial, ao Segundo Reinado, que se inicia com a

maioridade antecipada de D.Pedro II, aos 15

anos, em 1840.

Além de personalidades do governo, estrangeiros e funcionários públicos são ironizados, sem qualquer dó, diante das platéias.

“Por meio de personagens bufas, ele goza com os gringos, retratados como enfadonhos e ladrões”, analisa Cafezeiro, contando que, em Os dois ou o inglês maquinista (1845), um dos súditos da rainha inglesa vem à Câmara brasileira propor uma máquina capaz de transformar couro de boi em sapatos e ossos em botões. Não contente, o sir ainda pretende casar com uma viúva para, em verdade, ficar com a sua filha. Na mesma peça, também há outro britânico, explorador de escravos, que se diz autorizado pela Justiça a aportar seu navio. Aliás, Martins Pena critica as instituições públicas em geral, como em Os meirinhos (1846), na qual servidores chegam a cobrar dinheiro para prender ou libertar as pessoas.

Muitas das peças somente seriam conhecidas e publicadas após o falecimento do teatrólogo, ficando inacabadas e não conhecendo o palco, a exemplo de Um sertanejo na corte. Seguindo a linha de descrever figuras do interior, mineiros ou paulistas, e abusando dos sotaques regionais, conquistaria o primeiro sucesso de público apresentado pela companhia do ator João Caetano. E claro, sem dispensar a ironia: “Meu amigo isto é falta de patriotismo. Vós bem sabeis que é preciso mandar gente para o Rio Grande; quando não, perdemos esta província”.

“E que me importa, eu com isso? Quem as armou que as desarme”, escreve Martins Pena em um dos diálogos entre o escrivão e o pai da moça, em Juiz de paz na roça (1838). O caso de Aninha e José tem como fundo o recrutamento dos pobres na luta contra a Revolução Farroupilha. Durante dez anos (1835/1845), imperialistas e republicanos promoveram o conflito mais longo da história brasileira. Por fim, celebra-se o “casório” em segredo, desobrigando o noivo de ir para a guerra no Sul.

MalandragemEm todas as peças de Martins Pena, o romance está presente.

Sempre há namoros, casamentos e adultérios que costumam naufragar. Isso, sem moralismos, na medida em que a traição era mútua.

O autor também levará para os palcos, além do linguajar coloquial, uma figura emblemática no imaginário carioca: o malandro. “É aquele cara inventivo, que por meio da sua inteligência não aceita a submissão e cria caminhos, quase sempre sinuosos, para escapar da opressão”, sublinha Edwaldo Cafezeiro a respeito de uma personagem que possui a capacidade (ou seria sabedoria?) de rir dos outros e de si mesmo. “O malandro é uma espécie de pícaro, personagem do teatro espanhol, que realiza grandes feitos”, informa o professor.

Pícaro representa um arquétipo teatral, que dependendo da cultura e do período histórico recebe interpretações de um ser não-convencional, ilusionista ou herói. Ao criar e valorizar a malandragem, Martins Pena contrapõe-se aos valores de sua época, em especial os do imperialismo britânico.

“Pelo ponto de vista satírico, ele faz oposição ao capitalismo”, acredita Antônio Lauro Góes, professor do curso de Direção Teatral da ECO/UFRJ, identificando a originalidade de Martins Pena e aproximando seu pensamento dos movimentos que se

sucedem contra o sistema. “O teatro europeu dessa época era lacrimejante, ultra-romântico, voltado para o salão. Aqui, o

fundador da nossa dramaturgia preferiu olhar para nossa realidade, escrevendo sobre temáticas nacionalistas, em uma língua mais próxima da população brasileira”, compara Lauro Góes.

Citando frase do poeta satírico Horácio, que viveu em Roma no séc I a.C, ridendo castigat mores (rindo corrigem-se os costumes), Lauro Góes suspeita que Martins Pena teria apostado nas comédias devido a sua maior aceitação popular. No próprio decorrer do século XIX, o gênero seria preterido em relação ao drama.

Patrono da cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, Martins Pena é revivido em cada remontagem de suas peças. O caixeiro da taverna (1845), O Judas em sábado de aleluia, O noviço (1845) e Quem casa quer casa (1845) são alguns dos textos freqüentemente visitados.

Sim, o riso continua desvelando as hipocrisias e as mazelas da nossa sociedade, ao mesmo tempo em que constitui instrumento de combate aos poderosos de ontem e de hoje.