1alem Do Bem e Do Mal Nietzche

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7/26/2019 1alem Do Bem e Do Mal Nietzche http://slidepdf.com/reader/full/1alem-do-bem-e-do-mal-nietzche 1/6 ALEM DO BEM E DO MAL A crença dos metafísicos é a crença na antinomia dos valores. Ele diz; sou eu quem pensa, que é absolutamente necessário que algo pense, q ue o pensamento é o resultado da atividade de um ser concebido como causa, que exi sta um "eu"; enfim, que se estabeleceu de antemão o que se deve entender por pensa r e que eu sei o que significa pensar. A independência é o privilégio dos fortes, da reduzida minoria que tem o calor  de autoafirmar-se. Dúvidas antigas sobre a moral humana: nossa essência é boa ou má? Nascemos bons e nos tornamos maus ou já nascemos maus e o meio é que nos coloca freios morais? Ou será que não nascemos nem bons nem maus, apenas dotados de instintos? E ainda, de on de surgiram os conceitos de bondade e maldade? Para Nietzsche, a religião, especia lmente o cristianismo no Ocidente, criou valores que limitam o homem a se supera r. A expressão instinto de rebanho em Nietzsche vem talvez de um conceito religioso,  no qual a moral ensina ao indivíduo a só atribuir valor em função do rebanho, que ta deria ser traduzido em Estados e sociedades. O homem virtuoso, escravo das expecta tivas dos outros, das boas e das más opiniões, faz-se dissimulado, ao mesmo tempo cu lpado e infeliz. Para Nietzsche, os valores não são verdades divinas imutáveis e sim criados po r nós, portanto dependentes do tempo e do espaço em que se manifestam. Os critérios re ligiosos de bondade e compaixão que nos foram impostos acabaram se tornando um ins trumento de barganha divina em troca de uma suposta imortalidade e felicidade et ernas. Quando Nietzsche disse Deus está morto, ele estava querendo dizer que a crença em Deus estava deixando de ser razoável. E o que seria então do homem abandonado a s i mesmo? Se Deus está morto e não serei mais recompensado e nem corro o risco de ser  punido, então vale tudo? Não existe mais o bem e o mal? Preferimos não nos confrontar com nossa realidade, pois se a conhecêssemos, possivel mente ela não nos agradaria, e quem sabe quando desejamos destruir algo no outro, queremos destruir aquilo que não suportamos em nós mesmos. A questão é até quanto podem suportar de realidade. No entanto, Nietzsche não pretende dar uma solução para esse co nflito essência/aparência, sendo o termo aparência na sua filosofia o mesmo que fenôm e a única maneira ao nosso alcance de conhecer e perceber o mundo. Não é para menos qu e o existencialismo, a filosofia analítica e a psicanálise tiveram em Nietzsche seu precursor. Embora os filósofos se orgulhem de seus pensamentos e muitas vezes se gabem de ter  encontrado respostas para as questões da existência humana, o homem continua a se e nvolver numa batalha consigo mesmo (o que talvez mais tarde, na psicanálise, Freud  definiria como conflito entre o Id e o Ego). Não há então para o homem resolução possí As soluções que lhe são propostas são meras ilusões. Ao mesmo tempo, a ilusão pode ser olução na medida que permite celebrar a vida dentro de seus limites, em uma espécie de  ilusão consciente. A vontade de verdade que todos os filósofos até então reverenciaram nos coloco u estranhas e discutíveis questões, mas é como se apenas começasse. Por fim, tornamo-no  desconfiados e aprendemos a questionar: quem nos coloca essas questões e o que no s aspira à verdade? Detivemo-nos à origem da vontade de verdade por longo tempo até fi nalmente chegar à questão fundamental: o valor da verdade. Por que não desejamos a inv erdade ou a incerteza? A questão do valor da verdade se apresentou à nós ou nós nos apr sentamos à ela? Talvez esse problema jamais tenha sido percebido, arriscado. Nele há talvez o maior risco.  Como poderia algo nascer do seu oposto, como a verdade do erro, a vonta de de verdade da vontade de enganação, do ato desinteressado do egoísmo? Semelhante gên se é impossível. As coisas de elevado valor não podem ter origem nesse mundo enganador  e mesquinho: devem ter origem outra, própria. Derivam-se apenas do deus oculto, d o seio do ser, da coisa em si. Este modo de julgar constitui o típico preconceito me tafísico, uma espécie de valoração que é base dos procedimentos lógicos a partir da qua

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ALEM DO BEM E DO MAL

A crença dos metafísicos é a crença na antinomia dos valores.Ele diz; sou eu quem pensa, que é absolutamente necessário que algo pense, q

ue o pensamento é o resultado da atividade de um ser concebido como causa, que exista um "eu"; enfim, que se estabeleceu de antemão o que se deve entender por pensar e que eu sei o que significa pensar.

A independência é o privilégio dos fortes, da reduzida minoria que tem o calor de autoafirmar-se.

Dúvidas antigas sobre a moral humana: nossa essência é boa ou má? Nascemos bonse nos tornamos maus ou já nascemos maus e o meio é que nos coloca freios morais? Ouserá que não nascemos nem bons nem maus, apenas dotados de instintos? E ainda, de onde surgiram os conceitos de bondade e maldade? Para Nietzsche, a religião, especialmente o cristianismo no Ocidente, criou valores que limitam o homem a se superar. A expressão instinto de rebanho em Nietzsche vem talvez de um conceito religioso, no qual a moral ensina ao indivíduo a só atribuir valor em função do rebanho, que taderia ser traduzido em Estados e sociedades. O homem virtuoso, escravo das expectativas dos outros, das boas e das más opiniões, faz-se dissimulado, ao mesmo tempo culpado e infeliz.

Para Nietzsche, os valores não são verdades divinas imutáveis e sim criados po

r nós, portanto dependentes do tempo e do espaço em que se manifestam. Os critérios religiosos de bondade e compaixão que nos foram impostos acabaram se tornando um instrumento de barganha divina em troca de uma suposta imortalidade e felicidade eternas. Quando Nietzsche disse Deus está morto, ele estava querendo dizer que a crençaem Deus estava deixando de ser razoável. E o que seria então do homem abandonado a si mesmo? Se Deus está morto e não serei mais recompensado e nem corro o risco de ser punido, então vale tudo? Não existe mais o bem e o mal?Preferimos não nos confrontar com nossa realidade, pois se a conhecêssemos, possivelmente ela não nos agradaria, e quem sabe quando desejamos destruir algo no outro,queremos destruir aquilo que não suportamos em nós mesmos. A questão é até quanto podemsuportar de realidade. No entanto, Nietzsche não pretende dar uma solução para esse conflito essência/aparência, sendo o termo aparência na sua filosofia o mesmo que fenôme a única maneira ao nosso alcance de conhecer e perceber o mundo. Não é para menos qu

e o existencialismo, a filosofia analítica e a psicanálise tiveram em Nietzsche seuprecursor.Embora os filósofos se orgulhem de seus pensamentos e muitas vezes se gabem de ter encontrado respostas para as questões da existência humana, o homem continua a se envolver numa batalha consigo mesmo (o que talvez mais tarde, na psicanálise, Freud definiria como conflito entre o Id e o Ego). Não há então para o homem resolução possíAs soluções que lhe são propostas são meras ilusões. Ao mesmo tempo, a ilusão pode ser olução na medida que permite celebrar a vida dentro de seus limites, em uma espécie de ilusão consciente.

A vontade de verdade que todos os filósofos até então reverenciaram nos colocou estranhas e discutíveis questões, mas é como se apenas começasse. Por fim, tornamo-no desconfiados e aprendemos a questionar: quem nos coloca essas questões e o que nos aspira à verdade? Detivemo-nos à origem da vontade de verdade por longo tempo até fi

nalmente chegar à questão fundamental: o valor da verdade. Por que não desejamos a inverdade ou a incerteza? A questão do valor da verdade se apresentou à nós ou nós nos aprsentamos à ela? Talvez esse problema jamais tenha sido percebido, arriscado. Nelehá talvez o maior risco.

 Como poderia algo nascer do seu oposto, como a verdade do erro, a vontade de verdade da vontade de enganação, do ato desinteressado do egoísmo? Semelhante gênse é impossível. As coisas de elevado valor não podem ter origem nesse mundo enganador e mesquinho: devem ter origem outra, própria. Derivam-se apenas do deus oculto, do seio do ser, da coisa em si. Este modo de julgar constitui o típico preconceito metafísico, uma espécie de valoração que é base dos procedimentos lógicos a partir da qua

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busca pelo saber, pela verdade. Uma crença nas oposições de valores. Até os mais cuidadsos metafísicos não duvidaram da existência da oposição de valores e nem desconfiaram qos valores populares e suas oposições, nas quais os metafísicos fundamentavam seu saber, eram perspectivas provisórias, de baixo para cima. Com tanto valor que merece o verdadeiro, é possível atribuir um valor mais alto e fundamental à vida ao egoísmo, à tade de engano, à cobiça, à aparência. É até possível que aquilo que constitui o valor sas boas e honradas consista no fato de serem aparentadas, unidas ou essencialmente iguais às coisas ruins e aparentemente opostas: talvez. Os filósofos de hoje, ao contrário dos que existiram, ocupam-se cada vez mais com o talvez.

 A maior parte do pensamento consciente, inclusive o pensamento filosófico, deve ser incluída entre as atividades instintivas. O estar consciente não se opõe aue é instintivo: o pensamento consciente é guiado por instintos. Por trás da lógica há orações, exigências fisiológicas para a preservação da vida. Valorações como determinaer mais valor que indeterminado e aparência poderiam, inobstante a importância regua para nós, serem avaliações-de-fachada, uma tolice necessária para a preservação de seomo nós  supondo, por óbvio, que não seja precisamente o homem a medida das coisas.

A falsidade de um juízo não constitui objeção à ele. A questão é em que medida serva a vida; e a nossa inclinação é afirmar que os juízos falsos (entre os quais os sitéticos a priori) nos são os mais essenciais: abrir mão das ficções lógicas e os juízos seria abrir mão da vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida significa enfrentar perigosamente os habituais sentimentos de valor; uma filosofia que se atreve a tanto se coloca além do bem e do mal.

Não é a inocência dos filósofos que nos faz olhá-los com desconfiança e ironia,por não serem íntegros, enquanto fazem barulho quando abordado o problema da veracid

ade: agem como se tivesses descoberto suas opiniões pelo desenvolvimento autônomo de uma dialética fria, pura: mas no fundo é uma tese adotada de antemão, uma intuição, umsejo íntimo tornado abstrato e submetido a um crivo, que eles defendem com razões que buscam posteriormente. São advogados dos seus preconceitos que batizaram de verdades. Assim fez Kant, com suas tartufices que levavam ao imperativo categórico; assim fez Spinoza com a matemática que cobria sua filosofia.

 Toda a grande filosofia foi, até então, a confissão de seu autor, memórias invluntárias; as intenções morais (ou imorais) de toda a filosofia foram o germe de todaa planta. Para afirmar como surgiram as remotas afirmações metafísicas de cada filósofose deve perguntar a que moral isto (ele) quer chegar. Não é o impulso ao conhecimentoo pai da filosofia, mas outro impulso que se utilizou do conhecimento (e do desconhecimento) como instrumento. Quem analisar os impulsos basilares do homem descobrirá que estes impulsos (gênios, demônios, duendes) já filosofaram alguma vez e cada

m quer se apresentar como a finalidade da existência, o senhor dos outros impulsos. Todo impulso deseja dominar, e, por conseguinte, filosofar. Entre os cientistas, porém, pode haver um impulso ao conhecimento, um pequeno mecanismo que se põe a trabalhar quando acionado. Os verdadeiros interesses do homem douto se acham em outra parte: na família, no dinheiro, na política. Pouco importa a área de atuação: filó químico, etc., ele não se caracteriza por se tornar isso ou aquilo. Todavia, no filósofo nada é impessoal: e particularmente sua moral dá um decisivo testemunho de quemele é, da hierarquia em que se dispõem os impulsos.

Epícuro chamou Platão e os platônicos de adoradores de Dionísio: puxa-sacos seris e atores que nada têm de autêntico: aborrecia-lhe a grandiosidade reservada à Platãoe seus seguidores  e de que Epícuro nada era reservado. Foram precisos trezentos anos para a Grécia descobrir quem fora Epícuro  e não o descobriu.

Há um ponto em toda a filosofia no qual a convicção do filósofo entra em cena:

egou o asno, belo e muito forte.Os estóicos prescrevem que vivamos conforme a natureza, mas um ser como na ntureza é um ser indiferente, sem misericórdia ou justiça. Viver é avalizar, preferirnjusto, querer ser diferente. E por que fazer um princípio do que já somos e vivemos? O viver conforme a natureza dos estóicos, em verdade, é o oposto: querem incorporarnatureza sua moral, seu ideal; viver conforme a Stoa. Mesmo com amor à verdade, se obrigaram a ver a natureza de modo falso, estóico, ao ponto de não mais ver a natureza de fato. Estoicismo é tirania consigo mesmo, e os estóicos ainda acreditam que podem tiranizar a natureza por fazerem parte dela. Em mesmo erro dos estóicos se incorre quando a filosofia começa a acreditar em si mesma: cria um mundo á sua imagem e

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não consegue evitá-lo. A filosofia é um impulso tirânico, uma vontade de poder, de criao mundo, de causa primeira.

A astúcia com que se discute a questão do mundo aparente e mundo real leva a ensar; se ouve no fundo uma vontade de verdade. Em casos raros pode haver realmente uma vontade de verdade, uma ambição metafísica de manter o posto perdido, a preferênca por poucas certezas em desfavor de muitas possibilidades, fanáticos puritanos da consciência. Isso, em todo caso, é niilismo, sinal de almas em desespero, por maisque pareçam valentes. Entre os pensadores mais fortes parece ser diferente: ao seposicionarem contra a aparência e pronunciarem com altivez a palavra perspectiva,ao dar tão pouco crédito ao corpo quando à evidência visual, não querem reconquistar aldo velho patrimônio da fé, a alma imortal, o velho deus, idéias com as quais se podver melhor do que com as idéias modernas? Nisso há descrença e desconfiança frente às i modernas e de toda a obra do passado e presente, há desgosto e desdém com o bric-à-brac de conceitos, com que hoje o positivismo se apresenta. Deve-se dar razão aos céticos anti-realistas: o que os afasta da realidade moderna não está refutado. O essencial não é que desejam ir para trás, mas que desejam ir embora: um pouco mais de impulso e arte e desejariam ir para além.

Em toda a parte há esforço para afastar os olhos da influência de Kant na filosofia alemã. Ele se orgulhava de sua tábua de categorias, de haver descoberto juízos sintéticos a priori. Sobre como seriam possíveis tais juízos, Kant respondeu que seria m virtude de uma faculdade: respondeu não com poucas palavras, mas com um cerimonioso que se atenuou para a tolice alemã escondida na resposta. O júbilo chegou ao máximo quando Kant descobriu, além de tudo, uma faculdade moral no homem: os jovens teólogos se embrenharam no mato em busca de faculdades, em época em que não se distinguia o

que era achado e o que era inventado. Acharam uma faculdade para o supra-sensívele Schelling a batizou de intuição intelectual. Esse sonho acabou, e Kant foi o maissonhador: em virtude de uma faculdade seria mais a repetição da pergunta que uma explcação.É tempo de substituir a pergunta como são possíveis juízos sintéticos a priori? pelaecessária a crença em juízos sintéticos a priori?  compreender que para a conservação como nós é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros; com o que eles também poiam ser falsos! Juízos sintéticos a priori não deveriam ser possíveis: não temos direit eles, em nossa boca são somente juízos falsos. Mas temos que crer em sua verdade que pertence à ótica-de-perspectivas da vida. Não se duvide que certa virtus dormitiva participou nisso: nobres ociosos, virtuosos, místicos e artistas estavam encantados de possuir, graças á filosofia alemã, um antídoto para o sensualismo que transbordou d século passado  sensus assoupire.

O atomismo materialista foi bem refutado. Boscovich nos ensinou a renunciar a crença na substância, na matéria, o átomo: o maior triunfo sobre os sentidos  se obteve. Mas também é preciso liquidar o atomismo da alma, a crença que vê a alma coo algo indestrutível, eterno, indivisível: essa crença deve ser eliminada da ciência. Nnecessário livrar-se da alma mesma. Está aberto o caminho para novas versões da almacomo mortal, alma como pluralidade do sujeito e alma como estrutura social dos impusos e afetos querem ter direitos na ciência. Ao pôr fim à superstição, é como o se o ncólogo se lançasse em um novo ermo e em uma nova desconfiança  os velhos psicólogos esondenados também à invenção e, quem sabe, à descoberta.

 Uma criatura viva quer, antes de tudo, dar vazão a sua força  a própria vida ontade de poder, o impulso cardinal. O impulso de auto-conservação é apenas uma das indiretas conseqüências disso. Cuidado com princípios teleológicos supérfluos, como o impo de auto-conservação (fruto inconseqüente de Spinoza). Assim pede o método, que deve s

r economia de princípios.Também surge a idéia de que a física é apenas uma interpretação e disposição do não uma explicação. Todavia, na medida em que se apóia na crença nos sentidos, ela paspor explicação: ela tem olhos e dedos em seu favor. Em um período de gosto plebeu, isso exerce um efeito fascinante e convincente  surge o cânon da verdade do sensualismo popular. O que esclarece? Primeiro, o que pode ser visto e tocado. Em oposição à evidência dos sentidos estava o modo platônico de pensar, de homens que permaneciam mestres desses sentidos mediante cinzentas e frias redes de conceitos que jogavam sobre o variegado torvelinho dos sentidos. Nessa interpretação havia um gozo distinto daquele que nos oferecem os físicos de hoje, darwinistas e anti-teleólogos. Onde o h

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omem nada encontra para ver e pegar, nada tem para fazer é um imperativo distinto do platonismo, mas justo para uma raça dura e laboriosa de futuros mecânicos e engenheiros, que terão apenas trabalho grosseiro a executar.

 Para praticar a fisiologia é preciso saber que os órgãos dos sentidos não são enos no sentido da filosofia idealista: como tais não podem ser causa. Assim, o sensualismo como hipótese reguladora ou princípio heurístico  como? Outros dizem que o mndo exterior é obra de nossos órgãos, mas seria o nosso corpo obra de nossos órgãos e oossos órgãos obra de nossos órgãos: uma radical redução ao absurdo (reductio ad absurduupondo que o conceito de causa de si mesmo (causa sui) seja algo absurdo.

 Há ainda ingênuos observadores de si mesmo que acreditam em certezas imediatas, como eu penso (Descartes) e eu quero (Schopenhauer), como se o conhecimento apndesse seu objeto puro, como coisa em si, sem que ocorresse uma falsificação nem da prte do sujeito e nem do objeto. Certezas imediatas, conhecimento absoluto e coisa si envolvem contradição no adjetivo (contradictio in adjecto): devemos nos livrar dasedução das palavras. Decompondo-se o processo expresso na proposição eu penso, obtémrmações temerárias, de fundamentações difíceis ou impossíveis: por exemplo, que sou eua, que há necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ue é pensado como causa, que existe um Eu, que já está estabelecido o que designar nsar  que eu sei o que é pensar. Se já não fosse decidido a respeito, por qual medida julgaria que o que acontece não seria talvez um sentir ou querer? O Eu penso pree se compare o estado momentâneo com outros estados conhecidos para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um saber de outra parte, ele não tnenhuma certeza imediata. No lugar dessa certeza imediata, surgem questões metafísica tais como de onde retiro o conceito de pensar?, por que acredito em causa e efeito

?, o que me dá direito de falar de um Eu  de um Eu como causa, de um Eu como causa d pensamentos?. Quem se aventurar a responder tais perguntas metafísicas invocando uma espécie de intuição do conhecimento será questionado: provavelmente você está erradpor que sempre a verdade?.

 Sobre a superstição dos lógicos, sublinhe-se aquilo que eles não admitem de bo grado, que um pensamento vem quando ele quer e não quando o Eu quer; é um falseamea realidade afirmar que o Eu é condição do predicado penso. Isso pensa: dizer quedecantado Eu é suposição, não uma certeza imediata. O isso contém uma interpretaçãonão é parte dele. Se conclui com o hábito gramatical: pensar é uma atividade, toda atiade requer um agente, logo. A partir desse esquema o atomismo buscou o pedaço de matéia onde fica e a partir do qual atua, o átomo. Mas cérebros rigorosos aprenderam finalmente a passar sem esse isso, a que se reduziu o Eu.

 O fato de uma teoria ser refutável é um dos seus atrativos: isso atrai as m

entes sutis. A teoria do livre-arbítrio persiste apenas por atrair interessados em refutá-la.Filósofos costumam falar da vontade como se fosse a coisa mais conhecida.

Schopenhauer propôs que apenas a vontade é realmente conhecida por inteiro  ele tomou um preconceito popular e o exagerou. O querer é uma coisa complicada, que apenas como palavra constitui unidade. Em todo querer existe: 1) uma pluralidade de sensações: a sensação do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensaçãeixar e do ir, e a sensação muscular concomitante que inicia-se como que por hábito,go queremos. Muitos tipos de sentir devem ser tidos como ingredientes do querer. 2)o pensar: em todo ato de vontade, há um pensamento inseparável que o comanda  sem o pnsar não há querer. 3) a vontade é sobretudo um afeto de comando. O chamado livre-aro afeto de superioridade em relação àquele que obedece  essa consciência se esconde emda vontade, bem como a atenção rígida, o olhar que fixa uma coisa, a valoração que infe

que algo e apenas algo é necessário agora, a certeza de que haverá obediência e tudo qu for próprio da condição de quem ordena. O indivíduo que quer comanda algo dentro de sique obedece, ou que ele crê que obedece. O que é mais estranho na vontade: na medida em que somos simultaneamente a parte que comanda e a parte que obedece, como parte que obedece sentimos coação, sujeição, pressão, resistência, movimento, que inicia- o ato de vontade. Na medida em que somos habituados a ignorar essa dualidade através do sintético conceito do Eu, uma cadeia de conclusões erradas e falsas valoraçõontade se agrega ao querer  de modo que o querente acredita, de boa fé, que o querer basta para agir. Como, em grande parte dos casos, só houve o querer (ordem) quando se esperava a obediência, a aparência traduziu-se em sensação, como se houvesse nece

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sidade de efeito; o querente acredita que vontade e ação sejam a mesma coisa  atribui o êxito à vontade, aumentando a sensação de poder que todo êxito acarreta. Livre-arbítexpressão para o estado de prazer do querente, ordenador e executor da ordem, que também goza do triunfo sobre as resistências, mas pensa que foi sua vontade que assuperou. O querente junta as sensações de prazer dos instrumentos executivos bem-sucedidos, as sub-vontades ou sub-almas (o corpo é uma estrutura social de muitas almas), ao prazer do ordenador. O efeito sou eu: ocorre o mesmo que em toda comunidade bem-sucedida: a classe regente se identifica com o êxito da comunidade. Em todo querer a questão é mandar e obedecer, sobre a base de uma estrutura social de muitas almas: razão pela qual se deve situar o querer em si no âmbito da moral  moral como teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno vida.

Os conceitos filosóficos individuais não se desenvolvem por si: crescem em relação e em parentesco um com o outro, pertencem a um sistema como a fauna de uma região. Embora pareçam independentes uns dos outros com sua vontade crítica ou sistemátic, algo neles os conduz numa ordem definida, um após outro, naquela afinidade entre conceitos. O seu pensamento é mais reconhecimento e relembrança que descoberta. A familiaridade do filosofar indiano, grego e alemão explica-se pelo parentesco linguístico: é inevitável, graças à filosofia da gramática em comum (domínio e direção inconscmesmas funções gramaticais), tudo esteja pré-direcionado para a evolução de similares temas filosóficos  na mesma medida também encontram limites comuns. Filósofos de lingugem búlgara e húngara se acharão em trilhas diferentes das dos indu-germânicos: o encano por funções gramaticais é o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicesposta à Lock sobre a origem das ideias).  A causa de si mesmo (causa sui) é a maior auto-contradição já imaginada: mas o

rgulho do homem conseguiu se enredar nesse absurdo. O anseio de livre-arbítrio, de carregar a responsabilidade das próprias ações, desobrigando deus, mundo, ancestrais, acaso e sociedade, é justamente essa causa sui: o arrancar-se do nada em direção à existia. Caso alguém se livre desse livre-arbítrio, há de se livrar também do seu oposto, docativo arbítrio  um abuso de causa e efeito. Não se deve coisificar causa e efeitoazem os pesquisadores da natureza, espremendo a causa até que se produza efeito; deve-se utilizar a causa, o efeito apenas como conceitos puros, ficções convencionaia fins de designação, entendimento  não de explicação. No em si não há laços causaierdade psicológica, o efeito à causa, lei. Somos nós que criamos as causas, a suceiprocidade, a relatividade, o número, a lei, a finalidade; e ao introduzir nas coisas esse mundo de signos, como algo em si, agimos como sempre fizemos, mitologicamente. O cativo arbítrio é mitologia: na vida real há apenas vontades fortes e fracas.ase sempre um sintoma daquilo que nele falta, quando um pensador sente em toda co

nexão causal e necessidade psicológica um quê de coação, exigência, obrigação de seg delatoras, a pessoa se trai. E em geral a não-liberdade de arbítrio é vista como proma por dois lados, mas de maneira pessoal: alguns não querem abandonar sua responsabilidade, o direito ao mérito (raças vaidosas); outros não querem se responsabilizarpor nada e, por autorrespeito, procuram depositar o fardo de si em outro lugar  estes costumam tomar defesa dos criminosos: compaixão socialista é o disfarce. O fatalismo dos fracos de vontade se embeleza enormemente quando se apresenta como a religião do sofrimento: esse é o seu bom gosto. Essas leis da natureza de que falam os físicos não constituem realidade de fato, umxto, mas apenas uma arrumação e distorção de sentido ingenuamente humanitária, com a qazem concessão aos instintos democráticos modernos. Igualdade perante a lei: nisso anatureza não é diferente e nem melhor que nós  uma dissimulação na qual se disfarça aade plebeia a tudo o que é privilegiado e senhor de si, e igualmente um segundo e

mais refinado ateísmo. Nem deus, nem senhor: assim querem vocês, e viva a lei natural! Mas isso é interpretação, e não texto, e poderia vir alguém com intenção e arte oposna mesma natureza a imposição de reivindicações de poder, de toda vontade de poder, ando que o mundo tem um curso necessário não porque existem leis, mas sim por faltarem absolutamente as leis: os físicos diriam se tratar de interpretação e objetariam.

O que afinal Nietzsche quer dizer quando fala em ir além do bem e do mal?É possível que ele queira nos fornecer coragem para transcender o nosso modo de ser, ou melhor dizendo, um modo de consciência que observa o mundo sem definir as coisas como boas ou más, e sim apreendendo-as como se revelam para nós. Quem sabe podemo

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s chamar essa condição de uma grande lucidez.