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    \Pioneiros do vdeo e do

    cinema experimental naAmrica Latina

    Arlindo Machado

    PUC/SP, ECA/USP///////////////////////////

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    Resumo

    Abstract

    Palavras-chave

    Key-words

    H carncia de pesquisas e de dados sobre a histria do vdeo cria-tivo e do cinema experimental na Amrica Latina, principalmente

    sobre a sua pr-histria, ou seja, o perodo anterior ao surgimentooficial do cinema experimental e da vdeo-arte em todo o mundo(anos 1960). Este artigo pretende ser apenas o incio de uma longainvestigao em direo necessria recuperao de uma histriaque ainda est para ser contada. Ao mesmo tempo, ns nos per-guntamos sobre o que pode significar uma obra experimental numcontexto latino-americano e o que a diferencia das experincias rea-lizadas em outros contextos.

    There is a lack of research and data on the history of creativevideo and experimental cinema in Latin America, specially onits prehistory, in other words, the period prior to the official

    appearance of experimental cinema and video art worldwide(1960s). This article aims to be a beginning of a long path towards anecessary restoration of a history still to be told. At the same time, weask ourselves about what it can be an experimental work in a LatinAmerican context and what differentiates it from the experiencesmade in other contexts.

    Cinema experimental, vdeo-arte, Amrica Latina, audiovisuallatino-americano.

    Experimental cinema, video art, Latin America, Latin Americanaudiovisual.

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    Falar do vdeo e do cinema experimental na Amrica Latina sig-nifica falar de um duplo deslocamento. De um lado, porque latino-americano, esse cinema e esse vdeo sofrem a maldio deum quase completo desconhecimento: no h distribuio, no hacesso s obras (quando existem, pois muitas j desapareceram), ainformao existente mnima e a crtica ou a anlise so quase

    nulas. Tudo isso porque o foco das atenes do mundo no estvoltado para esse lugar neste momento (alguma vez esteve?). Deoutro lado, por ser experimental e no visar uma insero comer-cial, esse cinema e esse vdeo j so naturalmente excludos emtodo e qualquer lugar do mundo, inclusive nos pases de produoaudiovisual hegemnica. Imagine-se ento o que acontece no lugarda excluso propriamente dita: a Amrica Latina. Referindo-se aocinema de longa-metragem, Paulo Paranagu, em seu Tradicin yModernidad en el Cine de Amrica Latina, afirma que os filmes da

    Amrica Latina, son minoras suprimidas, desaparecidas, sin dere-cho a velorio ni duelo, como tantos difuntos del continente (2003,p.14). Podemos ento imaginar o que acontece com a produo au-diovisual no estandardizada, com temticas e estilos que escapams regras do mercado internacional, alm de realizada em bitolas eformatos no comerciais. Poderamos ento definir essa produoaudiovisual pela sua condio de quase absoluta invisibilidade.

    No entanto, esse cinema e esse vdeo existem e existem numaproporo e qualidade que impressionam os (poucos) que se dedi-cam aventura de busc-los, estejam onde estiverem. Ultimamente,

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    entretanto, esto surgindo algumas tentativas de buscar, mapear esistematizar informaes sobre essa produo invisvel, mas vigoro-sa. O projeto Videografas Invisibles (2005), uma produo conjunta

    da Espanha e do Peru sob a curadoria dos peruanos Jorge Villacortae Jos-Carlos Maritegui, um dos esforos mais extensivos nessadireo. Compreende uma mostra de 41 trabalhos de cerca de 50realizadores, abrangendo quase todos os pases latino-americanos,e tambm um livro-catlogo rico de informaes. Em 2008 foi lan-ada no Brasil a mostra Visionrios: Audiovisual na Amrica Latina(Moreira Cruz, 2008), com curadoria de Arlindo Machado (Brasil),Jorge La Ferla (Argentina), Marta Luca Velez (Colmbia) e EliasLevin Rojo (Mxico), abrangendo 67 trabalhos de realizadores de

    toda Amrica Latina, sejam eles contemporneos ou histricos.Essa mostra, a exemplo tambm de Videografas Invisibles, correugrande parte dos pases da Amrica Latina (e tambm da Europa)durante vrios anos, acompanhada de um livro-catlogo em trs ln-guas. E recentemente, saiu tambm na Espanha o livro Video enLatinoamrica: una Historia Crtica (2008), organizado por LauraBaigorri, com a participao de cerca de 20 crticos, curadores erealizadores de toda a Amrica Latina. A distribuio internacional

    desse livro tambm est sendo acompanhada por uma mostra, comcuradoria da prpria Laura Baigorri, abrangendo uma parte signifi-cativa da produo de vdeo na Amrica Latina. Vale lembrar aindaa mostra e o seminrio Cine a Contra Corriente: Latinoamrica yEspaa, especificamente sobre o cinema experimental na AmricaLatina, que um grupo de especialistas est preparando para outu-bro de 2010 em Barcelona.

    Paralelamente a isso, tem havido tambm muitos esforos de ma-pear a produo audiovisual de pases especficos da Amrica Latina,

    como o caso do projeto Made in Brasil (MACHADO, 2003; livroe mostra), abrangendo o vdeo brasileiro desde seus primrdios at ocomeo do sculo XXI; o livro Historia Crtica del Video Argentino(LA FERLA, 2008), abrangendo toda a histria da produo video-grfica na Argentina; a srie de mostras Fast Foward, com curadoriade Luisa Marisy, sobre a produo cubana de vdeo e cinema experi-mental; a mostra e o livro-catlogo La Condicin Video (AGUERRE,2007), sobre os 25 anos de vdeo-arte no Uruguai e muitas outras ini-ciativas que seria cansativo enumerar aqui. Embora ainda modestosem alcance, esses projetos esto permitindo aos seus promotores

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    correr toda a Amrica Latina em busca das informaes dispersas etambm em busca de contato direto com as obras e os realizadores,evitando dessa forma trabalhar em cima dos poucos documentos

    existentes, para no correr o risco de repetir o que j se sabe. Comoresultado, vem luz uma Amrica quase desconhecida, alm deenigmtica e surpreendente em sua luxuriante diferena.

    O que o experimental? At os anos 1960 os filmes costumavamser classificados como documentrios ou fices e no haviamuita margem de manobra para sair dessa dicotomia simplificado-ra. Mas havia uma produo emergente, em volume cada vez maisexpressivo, sobretudo fora do circuito comercial, que em hiptesealguma cabia nessa classificao obsoleta. Quando Stan Brakhage

    comea a fazer filmes colando asas de borboleta sobre uma pelculaem branco, sem nem sequer obedecer aos limites do fotograma, jno era mais possvel manter impunemente a dicotomia tradicio-nal. Foi ento tomado o termo experimental para designar essecampo at ento excludo do audiovisual. Mas o curioso que oexperimental s pde ser conceituado por sua excluso, por aqui-lo que ele tem de atpico ou de no-padronizado, por aquilo, en-fim, que no se define nem como documentrio, nem como fico,

    situando-se fora dos modelos, formatos e gneros protocolares doaudiovisual. O termo foi adotado com base no uso que j se faziadele no cinema underground norte-americano a partir de finais dosanos 1950. Antes, principalmente nos anos 1920, utilizava-se o termoavant garde para designar propostas desse tipo. No campo do vdeo,o equivalente do cinema experimental era a vdeo-arte, que tinhahorizontes e propostas estticas semelhantes.

    Naturalmente, o conceito de experimental envolve mais coisasque a simples demarcao de uma diferena com relao produo

    audiovisual estandardizada. Como sugere o prprio nome, a nfasedesse tipo de produo est na experincia, no sentido cientfico dedescoberta de possibilidades novas. Jairo Ferreira (1986, p.27) preferefalar de um cinema de inveno, um cinema interessado em novasformas para novas idias, novos processos narrativos para novas per-cepes que conduzam ao inesperado, explorando novas reas deconscincia, revelando novos horizontes do im/provvel. Outros,como Sheldon Renan (1970, p.1), preferem falar de um cinemasubterrneo (underground), uma exploso de estilos, formas ediretrizes cinematogrficas. J Gene Youngblood (1970) opta pela

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    expresso cinema expandido, que seria uma espcie de cinema latosensu, seguindo a etimologia da palavra (do grego knema - matos+ grphein, escrita do movimento), que inclui todas as formas de

    expresso baseadas na imagem em movimento, preferencialmentesincronizadas a uma trilha sonora. Observando o que estava acon-tecendo ao seu redor, principalmente no mbito do cinema experi-mental underground, Youngblood percebe que o conceito tradicio-nal de cinema havia explodido. Alguns cineastas faziam filmes paraserem projetados no mais em telas, mas nas roupas brancas de baila-rinas em situaes performticas; Ken Jacobs prope um filme (TomTom, the Pipers Son/1969) em que parte dele deveria ser projetadocom a pelcula fora da grifa e, portanto, sem exibio dos fotogramas;

    Andy Warhol concebe o seu Chelsea Girls para duas telas parale-las e simultneas, resgatando a experincia de Abel Gance com seuNapolon; alguns filmes j no eram mais feitos com cmeras, masdiretamente modelados e animados em computadores (como toda aobra dos irmos Whitney), enquanto outros (os de Nam June Paik,por exemplo) no usavam mais pelculas, mas fitas eletromagnticase eram exibidos em aparelhos de TV. Portanto, o conceito de cinemahavia expandido e podia ento designar fenmenos audiovisuais que

    at ento no cabiam em seus estreitos limites.Na Amrica Latina, o percurso do experimental teve desen-volvimentos muito variados e diferentes, dependendo do pas ondea questo se colocou. A vdeo-arte chega muito cedo a pases comoArgentina, Brasil e Mxico. Em outros, s nos 1980, ou at mesmono comeo dos 1990. No Brasil, a primeira gerao de vdeo-artistastrabalha com equipamento amador, sem recursos de edio, emcondies de semi-clandestinidade. J num pas como a Venezuela,onde o vdeo surge um pouco mais tarde, os trabalhos j nascem

    profissionais, com recursos tecnolgicos das televises pblicas, queabrem para os realizadores os seus estdios no horrio noturno. Umpas como Cuba, por sua vez, teve uma extraordinria experinciacom a cinematografia experimental, em grande parte dos casos deforma independente, tendo adotado o 16 mm como a sua bitola pre-dileta, pelo baixo custo, maior facilidade de exibio e at mesmopela autonomia que proporcionava em relao ao sistema vigente.Um cineasta como Juan Carlos Alom, por exemplo, revela, copia eedita em casa os seus filmes, sem passar pelos laboratrios e salas demontagem, tradicionais locais de controle e vigilncia, sobretudo,

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    como o caso, num pas como Cuba. Pases como a Venezuelae o Mxico (Brasil e Argentina tambm, numa proporo umpouco menor) conheceram um extraordinrio desenvolvimento

    do super-8, chegando mesmo a manter uma produo expressivade longa-metragens nessa bitola, como o caso da obra de DiegoRisquez, na Venezuela. No Uruguai, a partir dos anos 1980, ou seja,a partir da decadncia da ditadura militar, a cinematografia estavapraticamente aniquilada e o vdeo preencheu essa lacuna. Os uru-guaios chegaram a fazer at longa-metragens em vdeo, emborasempre experimentais, e os exibiam em salas de vdeo que simula-vam as de cinema, talvez j antecipando em dcadas as atuais salasde cinema com projeo eletrnica.

    Entretanto, faltam pesquisas, faltam dados sobre a histria dovdeo criativo e do cinema experimental na Amrica Latina, prin-cipalmente sobre a sua pr-histria, ou seja, o perodo anteriorao surgimento oficial do cinema experimental e da vdeo-arteem todo o mundo (anos 1960). Enquanto nenhuma prova em con-trrio aparea, Limite (1930), filme brasileiro de longa-metragemem 35 mm de Mrio Peixoto, provavelmente o marco inaugu-ral do cinema experimental na Amrica Latina, mesmo que esse

    termo ainda no estivesse em circulao naquela poca. Limitepoderia ser definido como um filme lquido, no apenas porquea maior parte de suas cenas se passa em mar aberto, mas tambmporque, medida que o filme avana, as imagens vo se liquefa-zendo, se desmanchando, at a abstrao total. Uma cpia res-taurada de Limite foi exibida no Festival de Cannes em 2007 pro-vocando estupefao numa platia predominantemente europia,incapaz de compreender como se pde fazer vanguarda ou experi-mentalismo num pas perifrico, situado fora dos centros hegem-

    nicos da cultura e ainda por cima em 1930! Mesmo uma estudiosacomprometida com a produo experimental, como o caso danorte-americana Annette Michelson, considera Limite uma esp-cie de exausto da avant garde (apud Adriano, 2007, p.16). Para osolhos colonialistas do primeiro mundo, a Amrica Latina parececondenada apenas a filmes e vdeos sociolgicos, que tematizam oseu prprio subdesenvolvimento.

    Depois de Limite, h trs exemplos remotos de cinema experi-mental na Amrica Latina. O primeiro no se sabe bem se pode serconsiderado um produto latino-americano, pois uma co-produo

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    argentina e alem, dirigida por Horacio Cappola (conhecido fot-grafo argentino) e Walter Auerbach (alemo). Trata-se de Traum(Sueo, em espanhol), realizado em Berlim em 1933 com pelcula

    de 16 mm. Um homem (Walter Auerbach), cado sobre uma mesa,dorme e manifesta gestos de quem est sonhando. Atravs de recur-sos de animao, objetos aparecem e desaparecem em sua mesadurante o sonho, inclusive a foto de uma mulher e uma nota dedinheiro. Outro personagem aparece e furtivamente lhe rouba afoto e o dinheiro. Quando um close up o identifica, vemos, surpre-sos, que o mesmo homem que dorme, como se fosse o seu double.Comea ento uma perseguio, em que o primeiro finalmenteagarra e nocauteia o seu ssia. O filme termina com o vencedor

    abraado com a moa da foto, os dois caminhando em direo aofundo do quadro. Uma espcie de William Wilson (Edgar AllanPoe) com um final chapliniano e feliz.

    Outro exemplo Esta Pared No Es Medianera, um curta-me-tragem em 16 mm realizado pelo peruano Fernando de Szyszlo em1952. Artista plstico j consagrado no Peru e em todo o mundo,mais identificado com a arte no-figurativa, de Szyszlo logrou comesse filme uma curiosa experincia com cinema experimental,

    que lembra remotamente o cinema surrealista do perodo mudo(Buuel, principalmente). O filme acabou desaparecendo por lon-go tempo, mas recentemente foi descoberta uma cpia em VHSque, segundo o prprio autor, est incompleta, como o caso tam-bm da cpia remanescente de Limite, que seu autor advogava,durante toda sua vida, estar incompleta.

    O terceiro exemplo La Langosta Azul (1954), filme colombia-no creditado ao jornalista e cineasta lvaro Cepeda Samudio e aoclebre escritor Gabriel Garca Mrquez. Embora muitos conside-

    rem que a concepo e a direo so devidas mais a Samudio, nose pode esquecer de que, nessa poca, o jovem jornalista GarcaMrquez tinha sonhos de tornar-se cineasta e chegou a estudarcinema na Itlia, no prestigioso Centro Sperimentale di Roma.Frustrado em seus sonhos cinematogrficos, muito tempo depoisele fundaria em Cuba a famosa Escuela de Cine y TV de SanAntonio de los Baos, enquanto Cepeda Samudio, por sua vez,continuaria sua carreira de cineasta. O filme ficou cerca de quaren-ta anos sem exibio, porque foi realizado em pelcula de 16 mmreversvel, portanto em cpia nica, sem negativo. Cada exibio

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    produzia danos na nica matriz do filme. Finalmente, em 1990,um internegativo foi providenciado para uma exibio em NovaYork e o filme pde voltar circulao.

    La Langosta Azul resultado dos encontros do chamado Grupode Barranquilla, composto por Cepeda Samudio, Garca Mrquez,o artista plstico Enrique Grau e outros que circulavam ao redor. Ofilme mudo, mas visualmente muito eloqente, de modo que nonecessita de palavras para explic-lo. Ele mistura duas coisas quaseimpossveis de estarem juntas. De um lado, h uma estranha histriade um forasteiro (o gringo) que vai a uma comunidade de pesca-dores em busca de exemplos de contaminao das lagostas azuis porradiao atmica, o que parece configurar uma espcie de fico

    cientfica. De outro, essa histria muitas vezes se perde e o filme sefixa na vida cotidiana dos pescadores, quase como um documentriodireto. Alguns personagens so cmicos (o recepcionista do hotelque est sempre enchendo bexigas, ou o voyeur que, com sua lu-neta, espia tudo o que se passa no vilarejo), outros trgicos (o grin-go) e outros simplesmente naturais (o pescador). H uma nfaseexagerada em detalhes absurdamente pequenos e que no esto emcompasso com a(s) histria(s) que est(o) sendo contada(s), a pon-

    to do plot narrativo resultar quase abstrato. Enfim, temos aqui umaestrutura semi-narrativa que j prenuncia todo o posterior desenvol-vimento do cinema experimental dentro ou fora da Amrica Latina.

    Em 1958, o brasileiro Glauber Rocha inicia a sua ruidosa carreiracinematogrfica com um curta-metragem em 35 mm, O Ptio, filmequase abstrato, rigorosamente encenado e com fortes referncias doconstrutivismo e da arte concreta, alm de dialogar com Limite. Nose sabe se Rocha chegou a ver Limite nos anos 1950, consideran-do que este filme ficou fora de circulao durante vrias dcadas,

    mas a mo de Mrio Peixoto est l, seja direta ou indiretamente,malgrado, anos depois, Glauber atacaria Limite como um exemplode cinema individualista pequeno-burgus. Na verdade, tendo pos-teriormente mudado completamente a sua esttica e adotado umestilo barroco e anrquico, Rocha atacaria Limite como uma formade atacar-se a si prprio e desautorizar O Ptio, de cujas experinciasformais ele se afastaria cada vez mais. Mas o filme poderoso em seurigor geomtrico e sua estranha visualidade. Num terrao de azule-jos em forma de xadrez, em Salvador, um rapaz e uma moa (SlonBarreto e Helena Ignez) evoluem lentamente: se tocam, rolam pelo

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    cho, se distanciam e se olham. Os planos das mos e dos rostosso intercalados com planos da vegetao tropical e do mar, ao somde fragmentos de msica concreta, recm inventada na Frana por

    Pierre Henry e Pierre Schaeffer. Infelizmente, experincias comoLimite e O Ptio no tiveram continuidade no Brasil, a no ser remo-tamente na obra do tambm experimental Jlio Bressane.

    Em 1962, o cineasta boliviano Jorge Sanjins lana seu pri-meiro curta-metragem, Revolucin, em 16 mm, iniciando umaverdadeira revoluo no cinema latino-americano, que depois seaprofundaria em obras como Aysa (1965), Ukamau (1966), YawarMallku (1969), entre outras. Utilizando apenas imagens, msica esons naturais, Revolucin se baseia nas tcnicas de montagem con-

    ceitual e dialtica (por conflitos) do diretor russo-leto SergueiEisenstein para compor um ensaio sobre a explorao e a misriado povo boliviano e sobre as possibilidades de superao atravsde estratgias revolucionrias. J se percebe ali a fora de um doscineastas mais originais da Amrica Latina. As imagens e os sonsso de uma eloqncia espantosa: no preciso nenhum discursoverbal para entender o que Sanjins est querendo dizer. Como noEisenstein de Que Viva Mxico! (1931), ou no Orson Welles de Its

    all True (1942/1993), por coincidncia duas malogradas incursesna Amrica Latina, cada plano tem a fora expressiva de um muralde Orozco, Rivera ou Portinari. Um resultado semelhante foi obti-do no mesmo ano pelo realizador argentino Alberto Fischerman,principalmente com seu curta em 16 mm Quema, um filme visu-almente impactante, politicamente implacvel, s perturbado porum comentrio offque lhe retira um pouco a fora.

    Surge ento Cosmorama, radical curta-metragem em 16 mmdo cineasta cubano Enrique Pineda Barnet, realizado em 1964, a

    partir de alguns rolos de filme virgem que o cineasta recebeu doICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indstria Cinematogrficos)para testar a qualidade. Pineda Barnet possivelmente o mais in-quieto dos cineastas cubanos, com uma obra extraordinariamentediversificada, imprevisvel e sem concesses, lembrando um pou-co a postura de um Jean-Luc Godard no ambiente europeu. Essaobra inclui coisas como um clssico do cinema cubano (La Bellade la Alhambra/1989), um semi-documentrio sobre a relao dosjovens com a revoluo castrista (Juventud, Rebelda, Revolucin/1969), uma hilariante pardia do plano econmico de Fidel Castro

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    para incrementar a produo agrcola em Cuba (ame/1970) e atmesmo uma das primeiras experincias cinematogrficas com v-deo digital em Cuba (Te Espero en la Eternidad/2007). Cosmorama

    o nome da mais famosa obra de arte cintica do artista SandDari, nascido na Romnia em 1906 e falecido em Cuba em 1991.O filme de Barnet baseado nessa obra de Dari e ao mesmo tem-po uma homenagem ao introdutor da arte abstrata e cintica emCuba. Trata-se de um poema espacial, como diz o subttulo dofilme, com formas e estruturas em movimento, com luzes e coresque produzem imagens plsticas em constante desenvolvimento. Atrilha sonora de alta complexidade resultado da mixagem de 13diferentes pistas de som, onde se incluem peas contemporneas de

    Bela Bartok, Pierre Henry, Pierre Schaeffer e Carlos Farina, associa-das a rudos naturais ou mecnicos. Embora realizado em pelculacinematogrfica, esse filme considerado pelos vdeo-artistas comoo precursor da vdeo-arte em Cuba. A pelcula, que se encontravaem avanado estado de deteriorao, foi recentemente recuperadagraas ao incansvel esforo da crtica e curadora Luisa Marisy paradar visibilidade produo experimental cubana.

    Da Argentina vm dois clssicos do cinema experimental latino-

    americano. O primeiro La Flecha y un Compas, de David Cohon,realizado ainda nos idos de 1950. Planos inclinados ou inslitos, efei-tos de fuso sobre imagens da cidade de Buenos Aires, inscries ex-pressionistas nas paredes e jogos de espelho escondem o drama deum suicida potencial, enquanto os crculos de sua vida se fechamcom um compasso. J Come out (1975), de Narcisa Hirsch, consti-tudo de um nico plano-seqncia de 22 minutos. Como o filme foifeito em 16 mm, evidentemente no um plano-seqncia de verda-de: ele tem cortes dissimulados que, todavia, no prejudicam o efeito.

    Primeiro aparece uma imagem impossvel de identificar porque estinteiramente fora de foco, acompanhada por um som repetitivo, queno final se revela como uma agulha de toca-discos patinando sobreum disco de vinil furado. H ecos nesse curta do clebre Wavelenght(1968) de Michael Snow, considerado a maior referncia do cinemaexperimental norte-americano e tambm uma interminvelzoom-inde 45 minutos sobre uma paisagem banal de Nova York.

    A maioria dos trabalhos produzidos pela primeira gerao derealizadores de vdeo brasileiros consistia basicamente no registrodo gesto performtico do realizador. Dessa forma, consolida-se o

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    dispositivo mais bsico do vdeo: o confronto da cmera com ocorpo do artista. Num dos trabalhos mais perturbadores do primei-ro perodo (Marca Registrada/ 1975), Letcia Parente bordou com

    agulha e linha as palavras Made in Brasil sobre a prpria plan-ta dos ps, apontada para a cmera num big close up. Essa obralimtrofe apontaria claramente um caminho de radicalidade semconcesses e marcaria para sempre a histria do vdeo brasileiro.Experincias como essa de Letcia Parente, que foram emblem-ticas do primeiro perodo, faziam eco com uma certa ala do vdeonorte-americano da mesma poca, representada por gente comoVito Acconci, Joan Jonas e Peter Campus, cuja obra consistiu como observou na poca Rosalind Krauss (1978, p.43-64) em co-

    locar o corpo do artista entre duas mquinas (a cmera e o moni-tor), de modo a produzir uma imagem instantnea, como a de umNarciso mirando-se no espelho.

    Alguns trabalhos viscerais foram produzidos nessa direo noprimeiro perodo do vdeo brasileiro. Snia Andrade, por exemplo,realizou quase uma dezena de experimentos de curta durao quepodem ser includos entre os mais maduros de sua gerao. Neles,ora o rosto da artista totalmente deformado por fios de nylon, at

    transformar-se num monstro, ora a artista se impe pequenas muti-laes, tosando os cabelos do corpo com uma tesoura, ora ainda elaprende a prpria mo numa mesa com pregos e fios. So trabalhosde uma auto-violncia latente, meio real e meio fictcia, atravs dosquais Andrade discorre sobre os tnues limites entre lucidez e lou-cura que caracterizam o ato criador.

    Dois nomes fundamentais na construo da vdeo-arte latino-americana so os da venezuelana Nela Ochoa e do colombianoGilles Charalambos, ambos tambm analistas da produo videogr-

    fica de seus pases, alm de artistas bastante originais. Ochoa umapioneira da arte do vdeo na Venezuela, mas tambm trabalha comdana, coreografia, pintura, vdeo-escultura, instalaes e, mais re-centemente, obras que lidam com biologia e gentica. Duas questesso bsicas em toda a obra da artista: a relao do corpo com seu en-torno e o gesto como forma expressiva primordial do homem, o quepoderia ser resumido na idia de embodiment. Considerando que,para grande parte das cincias contemporneas, as atividades cogniti-vas do homem so inseparveis de seu corpo, embodiment diz respeitoao corpo no no sentido fisiolgico do termo, mas como uma pre-

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    sena no mundo que precondio da subjetividade e da interaocom o entorno. Em outras palavras, embodiment o corpo entendidocomo uma interface entre o sujeito, a cultura e a natureza.

    Dentre cerca de duas dezenas de obras realizadas em vdeo,um dos trabalhos que mais se destaca na obra de Ochoa Que enPez Descanse (1986). Essa pea trata das vivncias de uma mulhercuja infncia esteve rodeada de gestos e ritos religiosos, onde se mis-turavam tradies e crenas de origem popular, como aquela queditava: todo aquele que se banhar na Sexta Feira Santa se transfor-mar em peixe (pez, em espanhol). Trata-se de um vdeo poderosovisualmente, com uma mise-en-scne ritualstica e alguns toquesbuuelianos, alm de uma coreografia rigorosa que transforma os

    movimentos dos atores num verdadeiro bal.Gilles Charalambos, por sua vez, o nome que mais se iden-

    tifica com a histria do vdeo na Colmbia. Alm de realizador,desenvolve tambm intensa atividade crtica e de curadoria, semprerelacionados com as artes eletrnicas de seu pas. O site Historiadel Videoarte en Colombia (http://www.bitio.net/vac/), organizadopor ele, a mais completa coleo de materiais escritos para seconhecer o percurso do vdeo na Colmbia. J a obra artstica de

    Charalambos das mais radicais e sem concesses em termos deAmrica Latina inteira. A maior parte dos seus vdeos constitudade rudos, distores, grafismos, pulses rtmicas, com predominn-cia de imagens no-figurativas e constante referncias televisoe a temas das cincias contemporneas. Distorsin, Intermitencia,Violencia en esta Informacin (1979), por exemplo, um vdeo fei-to base de rudos e desestabilizao do sinal eletrnico. Por suavez, Azar Byte Memory Sens (1984), En el Estilo de (1984) e NoEntendo ni (1984), realizados em parceria com Edgar Acevedo,

    so trabalhos conceituais que podem ser considerados como asprimeiras obras de arte computacional elaboradas na Colmbia.Personalmente TVideo (1985), em parceria com Pablo Ramrez, uma reflexo sobre a TV do ponto de vista da vdeo-arte e foi trans-mitido na prpria televiso, atravs do canal Cadena 3.

    00:05:23:27 (1994/99) um vdeo inteiramente realizado porCharalambos (direo, concepo, efeitos, edio e msica). Aobra, que utiliza imagens tomadas em vrios lugares do mundoe efeitos grficos de toda espcie, um estudo rtmico de vriascadncias, com inslitas propostas de sincronizao imagem-som,

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    alm de referncias esparsas a conceitos da fsica, biologia e psiquia-tria. O vdeo acompanhado de um texto lido em alta velocidade ecom distores que o tornam quase ininteligvel, a no ser com mui-

    to esforo do espectador. Esse texto funciona como uma espcie demetalinguagem do prprio vdeo, como se fosse a sua explicao,ou a chave de sua decifrao. O texto completo o seguinte:

    Este video utiliza una frecuencia de edicin con cambios cada cin-

    co cuadros, una velocidad de seis intermitencias por segundo; pro-

    duce fases de ondas cerebrales en ritmo teta. ste se parece mucho

    al ritmo alfa, pero se muestra ms lento, su frecuencia es de cuatro

    a siete hertzios y aparece en las sensaciones de placer y de dolor, as

    como en los sueos y los estados de agresividad; tambin se puededecir que es un ritmo emocional. Se presentan repeticiones conti-

    nuas con matrices de titilacin, estroboscopa, fulguraciones, paro-

    xsmica, vibracin y barridos; respuestas autonmicas en patrones

    de reconocimiento y cambios fisiolgicos activados por impulsos ul-

    trarpidos en la retina y matrices rtmicas de repeticin dirigidas

    al sistema nervioso; reas de interaccin ptica de formas, colores,

    sonidos y movimientos temporales transmitidas por estimulaciones

    fticas; interrupcin e introduccin de imgenes sin interpretacin

    concreta ni definicin de su forma y naturaleza perceptual; video

    psicofsico, estructura subconsciente con respuestas variables entre

    desrdenes involuntarios y traumas epilpticos; ataques neuroac-

    tivos generados por patrones rtmicos alternados; exposicin a un

    video psicotrpico por su estructura superconsciente con tendencias

    variables entre emotiva, concentrada y catatnica o alucinatoria;

    repeticin transformacional con apariencias figurativas de imge-

    nes con tratamientos distorsionantes y anamrficos en aspectos fsi-

    cos contranaturales; aparente animacin de imgenes sin correla-cin de continuidades; video anlisis por reordenamiento y sntesis

    de fenmenos cinematogrficos discontinuos o fragmentados; des-

    dramatizacin y sujetos no predictivos que causan un sistema re-

    flexivo particular; experiencia ilusoria producida por contrastes si-

    multneos e induccin de reacciones pticas, sus consecuencias en

    el sistema autonmico nervioso presentan funciones preconscientes;

    la exposicin a este video puede provocar respuestas desconocidas.

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    Outro importante pioneiro latino-americano o cubano EnriqueAlvarez e o seu vdeo Espectador (1989) considerado o primeiroexemplo de vdeo-arte cubana. Este trabalho lida com a ambigidade

    da condio do espectador de televiso, de um lado auto-conscientede sua prpria exterioridade com relao ao mundo televisivo e, deoutro, prisioneiro da pequena tela, em decorrncia dos mecanismosde projeo e identificao com que trabalha a mdia. Anne-MarieDuguet (1981, p.86) j havia observado que a perturbao dos sig-nos visuais e sonoros da televiso, bem como o retalhamento e adesmontagem impiedosa de seus programas constituem a matriade boa parte das pesquisas plsticas em vdeo. Da porque no seriaexagero dizer que a televiso tem sido o referente mais direto e mais

    freqente da vdeo-arte nos seus mais de quarenta anos de histria emtodo o mundo. Alvarez impiedoso com a televiso, inclusive coma televiso cubana, que, muito estranhamente, coloca no ar todos osenlatados norte-americanos, com base no argumento elementar deque, em decorrncia do embargo econmico dos EUA, os cubanosno precisam pagar direitos de exibio! O vdeo comea com umzapping pela programao televisiva e termina com um duelo mortalentre um protagonista de seriado policial e um espectador comum,

    cada um com sua arma favorita: um com uma pistola automtica eo outro com um controle remoto. Alvarez ainda traria outras precio-sas contribuies para a histria da vdeo-arte cubana, como o vdeoAmor y Dollor(1990) e a vdeo-instalao El Malestar de Sofa (2004).

    No ambiente argentino, Claudio Caldini outro pioneiro cujaobra tem sido objeto de redescoberta e referncia para as novas ge-raes. Entre 1970 e 1983, Caldini realizou uma obra bastante sli-da em termos de experimentao audiovisual, utilizando o super-8como bitola e low technology. Essa obra considerada uma ponte

    entre o passado cinematogrfico e o presente eletrnico. A partir dosanos 1990, Caldini adere ao vdeo, mas sempre com inseres cine-matogrficas, ainda que seu olhar e sua linguagem permaneam sem-pre resolutamente contemporneos. Dentre as quase duas dezenasde filmes experimentais realizados em super-8 por Caldini, podemoscitar Oferenda (1978), uma espcie de dana das flores cintilante emulticromtica, com resultados visuais quase abstratos. Trata-se deuma bela aula de edio e de sincronizao imagem-som, orques-trada pelo mestre argentino do cinema experimental, com base namsica de Alice Coltrane.

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    Adn y Eva en el Paraiso de Judith Gutirrez (1982) uma peque-na obra-prima em 16 mm, realizada pelo equatoriano Paco Cuesta.Trata-se de um passeio pela obra da destacada pintora Judith

    Gutirrez, tambm equatoriana, em que as figuras e paisagens doparaso perdido ganham vida atravs do extraordinrio trabalho deanimao e da complexa sincronizao sonora. O filme havia sidoperdido e s recentemente se encontrou uma cpia em avanadoestado de deteriorao. Infelizmente, as fortes cores da pintura deGutierrez se perderam com o tempo e hoje o filme s pode ser vis-to num colorido esmaecido. Posteriormente, Cuesta se dedicaria direo de televiso, trabalhando no canal equatoriano Ecuavisa.

    Tambm do Equador vem o nome de outro importante pioneiro

    do vdeo e cinema experimental: Miguel Alvear. Dentre as vriasvertentes do trabalho desse realizador, uma das mais interessantes o conceito desenvolvido por ele de pelcula caseira, que seria umfilme sem pretenses de construir um grande discurso sobre umgrande tema da histria, em troca de uma abordagem mais ntima,quase pessoal, de temas pequenos, quase sempre relacionados coma famlia e os amigos. uma forma de explorar aquilo que prpriodas bitolas e dos formatos amadores, como o caso do super-8 e

    do vdeo VHS, durante muito tempo utilizados massivamente comodispositivos de preservao da memria familiar. A partir dos anos1980, Alvear realizou uma srie de pelculas que vo nessa direo(embora tambm tenha trabalhos com temticas e estilos de outraordem), como o caso de Anima Mar(1990). A base desse filme/vdeo um material gravado muitos anos antes em super-8 e semsom da filha do realizador visitando pela primeira vez o mar, comnfase no movimento e expresso de seus olhos, que pareciam re-velar um misto de pnico e deslumbre. A pelcula foi editada casei-

    ramente com uma mquina de visualizao e fita adesiva e, algumtempo depois, transferida a 16 mm atravs de uma optical printer,explorando o desgaste e os detritos produzidos sobre a emulso pelopassar dos anos. Finalmente, mais algum tempo depois, ela foi trans-ferida a vdeo e a ela o realizador acrescentou uma trilha sonoracom o primeiroArabesque, de Claude Debussy. Pura epifania.

    Diego Risquez tambm tem seu nome ligado histria do su-per-8 na Venezuela, sendo possivelmente o seu mais eloqenterepresentante, mas vai na direo contrria de Alvear. Conseguiuuma coisa inslita, sobretudo em termos de Amrica Latina, que

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    produzir longa-metragens em super-8, para depois transferi-los a 35 mm. Assim foram produzidos os longas Bolivar SinfonaTropical (1981) e Orinoko Nuevo Mundo (1984), alm de Amrika

    Terra Incgnita (1988), este ltimo um Super-16 mm transferido a35 mm, todos eles exibidos no Festival de Cannes! Todos os filmesde Risquez tm uma forte influncia de Glauber Rocha, sobretudona temtica e na visualidade, embora sejam menos indisciplinadosna forma. So produes caprichadas que enfocam sempre temasviscerais da histria da Venezuela e de toda a Amrica Latina, masnum estilo desdramatizado, maneira brechtiana. A Propsito daLuz Tropical (1978) uma homenagem (em super-8) ao pintor ve-nezuelano Armando Revern, o artista que, como um antroplogo

    natural, buscou representar a viso do homem tropical, esse ho-mem cego de tanta luz. Revern aparece inicialmente pintandosobre uma tela-espelho que reflete a luz tropical. Voltamos ao pe-rodo branco do artista, onde nada se v de forma distinta, todas asimagens esto estouradas, dissolvidas no mar de luz, mas, aindaassim, pode-se distinguir vagas manchas daquilo que um dia pode-riam ter sido figuras e paisagens.A Propsito , enfim, uma radicalexperincia de incendiar a imagem.

    Gastn Ugalde um artista boliviano que trabalha sobre temasde seu pas, utilizando sempre materiais (objetos, roupas, artesanatoetc.) que dizem respeito cultura prpria da Bolvia, sobretudo daspopulaes majoritrias indgenas. Seu ateli em La Paz tambmuma galeria de arte especializada em arte boliviana contempor-nea, abrangendo trabalhos que vo da pintura e fotografia at asvdeo-instalaes. Marcha por la Vida (1986/92), um de seus tra-balhos mais eloqentes, uma obra em progresso, que j rendeudiversas verses e diversas associaes a instalaes. A obra est re-

    lacionada com a vida do homem andino e problemtica social daBolvia. Ugalde associa os tecidos coloridos elaborados pelos ndiosdas diferentes etnias do altiplano andino a valores culturais e polti-cos. Os tecidos, para os aimars e incas bolivianos, assim como paraos maias guatemaltecos, representam mais que mera vestimenta ouadorno; eles formam uma espcie de mdia txtil (expresso criadapor John Downing em seu livro Mdia Radical, 2002: 177/180): soformas de comunicao, de identidade e de manifestao poltica.Nessa obra, Ugalde associa a tessitura das mantas bolivianas cons-cincia coletiva e resistncia do povo contra a misria e a opresso.

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    Reconstruyen Crimen de la Modelo (1990) uma obra que mar-ca o encontro de dois dos mais importantes realizadores de vdeoda Argentina: Andrs di Tella e Fabin Hofman. O primeiro um

    documentarista dos mais prestigiados, com uma extensa lista detrabalhos em seu currculo, donde se pode destacar, por exemplo,Dezaparicin Forzada de Personas (1989), Montoneros, una Historia(1995) y La Television e Yo (2002). O segundo realizou trabalhoscomo Five Seconds (1982), Los Abuelos de la Nada en Obras (1983) eSubte Line (1985), todos em parceria com Carlos Trilnick, outro pio-neiro da vdeo-arte na Argentina. A partir de 1996, Hofman migroupara o Mxico, onde dirigiu o longa-metragem Panchito Rex (1999),que tem tambm uma verso interativa. Di Tella e Hofman juntos

    realizaram tambm 70 Metros (1989), 33 Millones de Financistas(1991) e Gua del Immigrante (1993). Reconstruyen parte de umanotcia defait divers: uma modelo famosa foi assassinada e o supos-to criminoso preso pela polcia. Mas no h imagens desse drama.Durante a acareao, o criminoso constrangido a fazer uma re-constituio do crime, no local onde ocorreu, substituindo a vtimapor uma mulher policial. vido de sensacionalismo, o Nuevodiario,telejornal do Canal Nueve portenho, grava a reconstituio e a edi-

    ta com requintes de dramaticidade, acompanhada de uma tensatrilha sonora, como se o fato, a reconstituio e o informe televisivocoincidissem. Por fim, os dois realizadores gravam o programa emsuas casas e depois o reeditam em cmera lenta e com distorosonora, desconstruindo a verso televisiva da verso policial de umfato cuja verdade nunca conheceremos inteiramente. Uma imensaacumulao de simulacros marca esse vdeo antolgico, que gerouprofundos debates sobre a natureza da verdade e o papel das mdiasna construo da realidade.

    Por fim, Enrique Colina um realizador cubano de semi-documentrios e tambm professor da Escuela de Cine y TV deSan Antonio de los Baos, alm de apresentador de um programade televiso sobre cinema, muito conhecido em Cuba. Dizemossemi-documentrios porque os documentrios de Colina, almde muito bem humorados, no tm pudores de acrescentar cenasreconstrudas, partes de fico, fragmentos de filmes e programasde televiso e toda sorte de hibridismos, que os torna de impossvelclassificao. A extensa filmografia de Colina est sempre vincu-lada a uma falsa pretenso de educar o cubano para os valores

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    da cidadania, embora, no fundo, ele se utilize desses pequenosfilmes aparentemente institucionais para fazer uma dura reflexosobre o fracasso da Revoluo Cubana. Entre seus filmes mais

    conhecidos, podemos citar: Esttica (1984), Vecinos (1985), MasVale Tarde que Nunca (1986), Yo Tambin Te Har Llorar(1984),Jau (1986) e El Rey de la Selva (1991).

    Chapuceras (1986) talvez o filme mais emblemtico da obrade Colina. Em espanhol, chapucera o nome que se d a qual-quer trabalho de m qualidade, servindo tambm para designar oembuste e a picaretagem. A pretexto de denunciar o chapucerocomo o incompetente que transforma tudo em destroos e sucata,o filme acaba funcionando como uma metfora de um pas que

    fracassou. Trata-se de uma comdia inclemente, disfarada de do-cumentrio, em que o chapucero aparece como um monstro dosfilmes americanos de terror dos anos 1930 e 40. O filme constru-do como se fosse um quest show de televiso com perguntas e res-postas sobre os tais monstros. Contaminado pelo prprio mal quedenuncia, at mesmo o filme termina destrudo pela m qualidadedo trabalho de seus realizadores.

    Esta pequena panormica dos vdeos e filmes experimentais

    latino-americanos evidentemente incompleta, como no pode-ria deixar de ser, sobretudo considerando a escassez de informa-o de que dispomos at o momento e os limites de pginas de umartigo. Ficaram de fora nomes fundamentais, como os dos colom-bianos Carlos Mayolo e Luis Ospina, do costa-riquense ManuelZumbado, do chileno Nestor Olhagaray, da mexicana XimenaCuevas, do argentino Carlos Trilnick, dos brasileiros ArthurOmar e Edgar Navarro, do venezuelano Carlos Castillo, entreoutros e apenas para considerar os histricos. Faltaram tambm

    nomes consagrados, como os dos chilenos Juan Downey e RaulRuiz, do porto-riquenho Edin Velez, da cubana Tania Bruguera,dos argentinos Marta Minujin e Jaime Davidovich, que, malgra-do latino-americanos de origem, desenvolveram a maior parte desuas obras no exterior, sobretudo nos Estados Unidos (Frana, nocaso de Ruiz). Mas podemos encarar as primeiras tentativas deabordar o vdeo e o cinema experimental latino-americano comoo incio de uma longa trajetria na direo da necessria recupe-rao de uma histria que no foi ainda contada. Um povo semmemria um povo sem histria.

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