2. Cesar de Alencar - Subsídios Para Uma Investigação Sobre o Problema de Sócrates No Brasil

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  • Investigao Filosfica, v. 6, n. 1, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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    SUBSDIOS PARA UMA INVESTIGAO SOBRE O PROBLEMA DE SCRATES NO BRASIL

    Cesar de Alencar1

    RESUMO: A inteno do texto dispor, por meio de uma leitura crtica dos principais livros que esto disponveis no Brasil atualmente, os elementos necessrios a uma investigao da persona e da filosofia de Scrates, sobretudo em vista dos importantes estudos, ainda no traduzidos ou no mais comercializados, que assentaram as bases da pesquisa atual sobre Scrates e o socratismo.

    PALAVRAS-CHAVE: Scrates; Questo Socrtica; livros; Brasil.

    Abstract: The intention of this text is available through a critical reading of the main books that are available in Brazil today the elements required for a research of Socrates' persona and philosophy, especially in view of the important studies have not translated or not marketed which laid the basis of current research on Socrates and the Socraticism.

    Key-words: Socrates; Socratic Problem; books; Brazil.

    1. O problema de Scrates e a literatura especializada

    Quando se trata de investigar seriamente quem foi e o que disse o Scrates de que muito ouvimos falar, mas sobre quem muito pouco se d garantias de unanimidade, ficamos como que refns de uma incerteza que no por acaso beira o ceticismo. At mesmo entre os especialistas do assim chamado caso Scrates vez ou outra possvel encontrar quem se proponha a defender uma tese cuja parfrase de Protgoras a define com maestria: sobre Scrates no podemos saber nem se existiu nem como viveu. O pice desta viso agnstica face ao caso Scrates encontrou no ceticismo de Duprel o seu excesso mais absurdo2: para o autor, a figura de Scrates, antes de ser referida a uma pessoa histrica particular, no foi seno a construo de certo gnero literrio cujo objetivo estava em conciliar os interesses diversos que os assim chamados socrticos alimentavam pelos estudos, veja s, dos sofistas. Em outras palavras, Scrates no passaria de uma persona criada em que se coadunam as mais distintas teses da primeira sofstica, para fazer frente s da segunda.

    1 Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Lgica e Metafsica da UFRJ.

    2 DUPREL, La Lgende Socratique, 1922 sobretudo p. 29-30 ; 259-262 ; 333-334. H traos de uma

    avaliao ctica do problema de Scrates em ROBIN, Fins de la culture grecque, in Critique, III, n 15-16, 1947, sobretudo p. 208 ss.

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    Afora o caso-limite de Duprel, um tanto dado a loucura dos exageros hipotticos3, h certamente um ceticismo mais brando, por assim dizer, e bem mais profcuo: foi o caso de Gigon, que insuflou novo flego aos estudos sobre o socratismo ao defender a tese de que a literatura socrtica, nossa nica fonte desse homem que nada escreveu, est definida por uma atitude no histrica em relao ao Scrates tal como ele foi, sendo, portanto, uma criao literria (Dichtung) e Scrates nada mais que sua persona. Embora no deixando de reconhecer, diferentemente de Duprel, a possibilidade de reportarmos a certos detalhes biogrficos menores, Gigon deslocou Scrates de seu lugar na histria do ocidente, pondo-o em troca como um smbolo do homem ideal criado pela imaginao platnica4.

    Mas nem s de cticos se fazem os estudos socrticos. Ficou igualmente conhecida a defesa que Burnet e Taylor5 fizeram da filosofia de Scrates como tendo sido preservada decisivamente pelo seu mais importante testemunho, Plato. O que mais chamou a ateno da pesquisa acadmica fora a tentativa de comprovar que aquilo que Plato ps na boca de Scrates era a filosofia de Scrates, e no a de Plato. O caso do Fdon seria paradigmtico: no pareceria justo com Plato se suspeitssemos que ele fez Scrates, em seus momentos finais de vida, defender uma filosofia que no fora a sua, junto a tantas personalidades do meio socrtico como o prprio Fdon, que d nome ao dilogo. Se Scrates fosse um mero porta-voz de Plato, o que teria levado o autor a subverter seu papel de condutor do dilogo nas obras de velhice, at ausent-lo de todo em Leis?

    A distino necessria e desejvel entre Scrates e Plato no interior dos Dilogos j uma postura presente em muitas fontes antigas6. Contudo, a dita teoria das ideias sempre foi considerada, pela tradio de estudos socrticos, como sendo prpria a Plato. Em vista da viso tradicional, Field7 voltou-se contra os argumentos apresentados pelos estudiosos escoceses, propondo com boa dose de moderao o Scrates histrico como sendo aquele da Apologia. Sua refutao, porm, no alcanou o todo da imagem do Scrates metafsico apregoada por Burnet-Taylor. No difcil imaginar que a polaridade entre as hipteses cticas e a novidade revolucionria dos 3 Cf. DIS, Autour de Platon, p. 182-209 p.209 : dans le livre que nous donne M. Duprel, les

    bauches dlaisses du livre prudent, ingnieux et solide quil pouvait et quil devait nous donner; ainda VILHENA, O problema de Scrates, p. 483 4 GIGON, Sokrate, 1947, sobretudo o primeiro captulo, p. 7-68

    5 Sobretudo BURNET, Introduction to Platos Phaedo, 1911; ; Greek Philosophy - Thales to Plato, 1914;

    The Socratic Doctrine of the Soul, 1916; tambm TAYLOR, Varia Socrtica, 1911; Socrates, 1932. 6 VILHENA faz um apanhado delas em O problema de Scrates, p. 114, n. 1.

    7 Sobretudo em FIELD, Socrates and Plato, 1913.

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    autores escoceses criou um mal-estar nos estudos sobre o socratismo, justificando Leon Robin a denunci-lo como um insoluble problme. O que chamo aqui de estudos bem fundamentados acerca do socratismo, ou seja, a literatura especializada recente, so as respostas a essa sensao dicotmica que iniciou o sculo XX.

    A primeira grande resposta veio atravs da volumosa interpretao de conjunto do problema de Scrates realizada por Vilhena (Le Problme de Socrate, 1952). Em conjunto com sua tese complementar (Socrate et la legende platonicienne, 1952), as duas foram as nicas obras de importncia traduzidas para o portugus. O detalhe infeliz j no ser mais possvel encontrar por aqui essas edies venda, s vezes sequer para consulta. O peso de suas anlises, a bem dizer, encontra-se: (1) no papel que a tradio possui como seu pano de fundo, no que ir conduzir seus esforos a partir do status questiones, o primeiro esforo de todo estudioso srio; assim como (2) na oferta de um olhar sobre Scrates que no toma como dadas nem as opinies comuns nem a opinio especializada dominante, mas procura oferecer, a partir de uma avaliao das fontes e de suas prprias particularidades, seu ponto de vista acerca do socratismo.

    O trabalho desse grande terico portugus formado pela Sorbonne mereceria receber novas edies, sobretudo para sua divulgao no Brasil8. Devemos a Vilhena a definitiva percepo de que no se trata de falar do Scrates tal como ele foi o chamado Scrates real, que nos est completamente inacessvel mas de lidar com o Scrates da histria, que nos ficou atravs de suas fontes e que para ns s pode querer dizer o socratismo: o Scrates histrico , em suma, aquele que entrevemos pelo socratismo. Nesse sentido, as incertezas avanadas pela opinio ctica, que ainda hoje se apresenta em recusa das fontes como puramente fictcias (por exemplo, Dorion e Kahn9), encontram sua melhor refutao na concepo, defendida por Vilhena, de que se devem considerar os diferentes autores a partir de suas intenes e do tipo de literatura que realizaram: j que s temos o Scrates tal como cada uma das fontes o entendeu, mister investigarmos o processo pelo qual cada autor realizou sua imagem do mestre em vista, sobretudo, da filosofia que tinham como modelo.

    Profundamente interessados na filosofia antiga em geral, os italianos aprofundaram a investigao atual sobre o socratismo a ponto de se tornarem hoje o

    8 Foram editados recentemente pela Calouste, a mesma editora que traduziu os textos de Vilhena referidos

    acima, alguns estudos do autor em filosofia antiga, at ento inditos, o que parece sugerir algum interesse latente da Fundao em se realizarem novas edies dos seus grandes trabalhos: Estudos inditos de filosofia antiga, 2003. 9 Cf. DORION, Compreender Scrates, 2006; KAHN, Plato and the Socratic Dialogue, 1994.

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    maior celeiro de teses sobre Scrates. Nomes como os de Mondolfo, Calogero, Capizzi, Adorno, Sarri, Rossetti, Montuori, Giannantoni figuram entre as melhores bibliografias a respeito do tema, e de l partem os atuais congressos do projeto Socrtica, profundamente devedor das pesquisas iniciadas por estes brilhantes estudiosos, acima de tudo os trs ltimos10. Infelizmente, por aqui, nenhum deles ganhou o devido interesse das editoras11. Mesmo os passos que foram dedicados a Scrates na Histria da Filosofia Antiga de Reale, embora referidos s ltimas obras sobre o tema, j pressupem, por isso mesmo, toda a discusso avanada por aqueles. Quem no os conhea tomar rapidamente por resolvida a questo de Scrates, quando na realidade a discusso est, ainda em nossa poca, no mesmo ponto de ebulio em que se encontrava desde o sculo passado12.

    Passaremos em revista agora os livros traduzidos para o portugus que no Brasil se encontram acessveis a quem esteja interessado na figura de Scrates. Vale mencionar que no se trata, aqui, de desqualificar ou desmerecer os trabalhos disponveis muito antes, a tese que se pretende demonstrar est em no encontrarmos obra alguma, das fundamentais acerca do problema de Scrates, traduzidas no Brasil e das quais depende a possibilidade de podermos avaliar os livros que as pressupem ou a ignoram. Trata-se de mostrar que falta o pano de fundo do debate com as fontes, porque a literatura que se encontra traduzida fruto da especulao mais ou menos assente sobre uma slida investigao socrtica que se faz esquecida entre ns. Isso nos convence de que, por aqui, a imagem de Scrates serve to-somente como figura caricata e no como objeto de estudos srios. Nosso objetivo fazer com que estes superem aquela.

    2. A literatura sobre Scrates traduzida no Brasil

    Quem siga a uma livraria em busca de algum exemplar a fim de conhecer a filosofia e a vida de Scrates no encontrar muitas opes seno obras que se

    10

    Cf. o site oficial www.socratica.eu. O nome de Giannantoni dos mais importantes atualmente, sobretudo em decorrncia da sua obra magna sobre Scrates e o socratismo: a mais ampla recolha dos fragmentos e das inmeras menes feitas a Scrates, dispersas at ento; ver Socratis et socraticorum reliquiae, 1990 (4 vol). O nome de Montuori est em grande parte associado ao impulso para os estudos socrticos na Itlia: o seu The Socratic Problem (1992) obra de referncia para o tema. 11

    Com a nica exceo do trabalho de ROSSETTI sobre os modos de pesquisa e de lida com as fontes da filosofia antiga, em Introduo Filosofia Antiga, 2006. 12

    Minhas contribuies problemtica do socratismo foram oferecidas em A caricatura da philosopha, Ato I Dissertao de Mestrado, UFRJ, 2013.

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    classificariam ou (a) entre as que se propem a ser um mero feixe de impresses acerca do que se entende desde tradio como sendo socrtico, sem um fundamento mais apurado das suas fontes em seu conjunto, e por isso acaba por privilegiar uma em detrimento de outra sem maiores razes; ou (b) entre as que se propem a estudar um ou dois traos do socratismo sem, no entanto, encerrar uma viso de conjunto, pois nos casos em que isso acontece, v-se denunciada sua fragilidade; ou por fim, entre (c) aquelas que almejam a diverso ou um conhecimento mais popular da figura do filsofo, apresentando vises de Scrates ao gosto do fregus.

    evidente que, segundo a descrio que fizemos acima sobre a questo de Scrates, as obras alocadas em (c) perdem o interesse acadmico o que elas realmente no almejam ao passo que (a) e (b) s tero importncias pontuais. O desejvel seria que os estudos acerca de Scrates fossem feitos sempre em vista da gama de elaboraes j apontadas, que levam as fontes crtica desejvel para o mnimo de fundamentao rigorosa esperada de um estudo srio. Por esse motivo, a meu ver, valioso um panorama em que se apresentem estes poucos livros existentes no mercado brasileiro, acrescido de uma avaliao crtica das informaes e das teses por eles defendidas, para viabilizar ao iniciante o territrio profcuo de uma compreenso mais interessante acerca do socratismo entre ns.

    a. Os livros que apresentam snteses com ou sem problematizao das fontes

    No nos sendo possvel reunir aqui os livros disponveis por data de publicao,

    sem dvidas mais interessante avaliar, de modo dinmico, primeiro as obras que pecam pelo tom especfico ou pela tese fragilizada, para ento seguirmos s que chamam nossa ateno pelas anlises profcuas ou pelo compromisso com a problemtica mencionada. Comecemos pela tentativa de Hadot (Elogio a Scrates, 2012), justificada em suas prprias palavras, de oferecer elogio a Scrates: elogio que perseguir no sua figura histrica, mas sua imagem ideal. Traada a partir daquelas imagens vinculadas a Scrates pela tradio (o Sileno, Eros, Dionsio), Hadot no se atentou para o fato de estar, por isso mesmo, a lidar com a figura histrica que subjaz o mito. Teceu os traos do filsofo quase em anttese ao mito criado por Nietzsche13, de um Scrates arauto do racionalismo cientificista moderno. Ambos, contudo, pecaram 13

    Sobretudo em seu Crepsculo dos dolos, II, mas tambm j em O nascimento da Tragdia, 13-14.

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    por amor s lendas. Embora inegavelmente belas, estas pginas apolneas em Nietzsche e dionisacas em Hadot ressaltam apenas parte do smbolo que Plato e os demais nos legaram. So partes de um todo mais amplo, que no encontra seu sentido em apenas uma delas. o todo que precisa ser levado em considerao.

    Mas quem poderia mesmo atingir o todo? A tentativa de Huisman (Scrates, 2006), embora caminhe na direo de uma viso geral de Scrates, transborda em imagens muito mais poticas que sbrias. Lembra aquela beleza estonteante pela leitura de Foucault, mas sem o rigor documental que este seu conterrneo demonstrara. Seu melhor desempenho se encontra nessa poesia que ele capta dos Dilogos de Plato: por trs do smbolo, Huisman quer fazer ver o homem Scrates. Menos potico, embora mais firmado em documentos, o tambm francs Duhot (Scrates ou o despertar da conscincia, 2004) produziu, a partir da ideia do Scrates mestre de geraes, uma tese sobre a nova configurao do saber imposta pelo filsofo: a exigncia da conscincia pessoal debruada sobre si mesma. Ao dar sentido s mltiplas imagens geradas entre discpulos e inimigos, a tese de Duhot pde fazer justia ao papel que Scrates desempenhara na histria das ideias e da filosofia ocidental.

    com esse mesmo objetivo que o livro do j renomado helenista Cornford (Antes e depois de Scrates, 2001) fez por marcar a indelvel contribuio de Scrates histria da filosofia de maneira a justificar o termo pr-socrtico a quem lhe antecede, alm de haver mostrado a dvida de quem lhe seguiu de perto: Plato e Aristteles. O feito de Scrates, diz Cornford, foi a descoberta da alma, mas de que maneira essa sua contribuio decisiva para entendermos a complexidade da imagem de Scrates ao longo dos anos algo que o pequeno livro de Cornford no pde dizer. No o pde

    tambm C. C. W. Taylor (Scrates, 2010), porque esteve preocupado apenas com os traos mais bem aceites sobre a vida e a filosofia de Scrates. Sentindo-se, por certo, limitado em tal retrato, voltou-se ao fim para a imagem de Plato, de onde e para onde a maior parte dos estudiosos acaba seguindo.

    Dos que resistem imagem platnica de Scrates, Dorion (Compreender Scrates, 2006) a mais grata surpresa. Seu livro dos nicos que, traduzido aqui, revela ao leitor parte da problemtica de lida com as fontes do socratismo. Com outros trabalhos enfocando a filosofia e a imagem de Scrates em Xenofonte14, Dorion firmou-

    14

    Ver DORION, Xenophons Scrates, in AHBEL-RAPPE, S. and KAMTEKAR, R. org. A Companion to Socrates. 2006; LAutre Socrate, 2013 ; h ainda um projeto, iniciado em 2000 e terminado recentemente, para a traduo das Mmorables, pela Les Belles-Lettres.

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    se como um dos grandes estudiosos do socratismo em cenrio internacional. Embora no tenhamos medido esforos para expor o problema de sua tese15, uma espcie de ceticismo moderado que se contradiz pela prpria moderao, no poderamos deixar de notar o excelente desempenho de seu livro para uma primeira noo acerca do problema de Scrates ao estudante brasileiro.

    Melhor que o livro de Dorion em tal desempenho, apenas o de Martens (A questo de Scrates, 2014). Lanado recentemente no Brasil, a obra talvez a melhor introduo vida e filosofia socrtica disponvel por aqui. Interessado na questo de Scrates a partir do duplo entendimento que a palavra oferece, o autor tece sua abordagem fundamentado na essncia mesma do debate sobre Scrates: encaminha o leitor ao encontro de uma filosofia da questo, ou seja, do questionar tal com Scrates o fez, sem perder de vista as mltiplas questes que ele por isso mesmo nos legou. Martens traa o inegvel pr-se em questo que configura, de um lado, a essncia da atividade socrtica e, de outro, a inescapvel lida com sua figura e sua imagem.

    Seria, por certo, incoerente, junto ao que dissemos, alocar os livros de Dorion e o de Martens entre aqueles de (a), referidos acima. A objeo tem razo mas se podemos obter alguma explicao, ela est no fato de que ambas, ainda que levem em conta os estudos de base do status questiones inerente j ao problema de Scrates, o fazem em relao parte de toda a problemtica. No quer-se dizer, com isso, que elas deveriam se ater ao todo da questo necessariamente, mas fato que aqueles que o fizeram se alocam em melhor papel de poder julgar no apenas as fontes em seu conjunto, como tambm os demais trabalho de interpretao que se apresentam. timos enquanto introdues questo, os dois livros no poderiam nos servir de parmetro de

    avaliao do conjunto da problemtica implicada.

    b. Os livros de temas especficos

    Afora os dois ltimos livros comentados, que deveriam servir como introduo bem mais que qualquer outro j traduzido aqui, ficamos com os ttulos que, atenciosos com certa questo ou algum tema socrticos, alocam suas impresses acerca de Scrates no esquema previsto pelos traos com os quais se interessam, e no por aqueles que

    vm naturalmente das prprias fontes. Aqui conta mais a imagem do detalhe que a do conjunto. 15

    Cf. a primeira parte de minha dissertao A caricatura da philosopha, 6-8, p. 34-46.

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    Um exemplo dessa literatura o, diga-se mesmo excelente, livro de I. F. Stone (O julgamento de Scrates, 2005), verdadeiro tratado documental sobre a experincia grega da democracia e dos limites ao livre pensamento. A obra impressiona pela abordagem do caso de Scrates, procurando traar um panorama vivo e obsessivo da Atenas do sculo V a.C, de um modo que Moss (O processo de Scrates, 1990) no fora capaz de fazer. Mas Stone era jornalista: seu faro investigativo cobrou dados para resolver questes que o incomodara em sua prpria poca. Se o fez brilhantemente, s temos a lhe agradecer pelo esforo em se comprometer com empresa to importante. Para nossa compreenso de Scrates, todavia, a obra no poderia ter seno a mesma funo do livro de Moss: oferecer os dados histricos e documentais que tornam possveis o trabalho filosfico posterior. Nenhum dos dois era, todavia, filsofo.

    Filsofo fora Kierkegaard que, como Nietzsche, interessou-se por Scrates enquanto um mestre com o qual poderia dialogar, aprender a filosofar, eventualmente criticar ou, no que coube a Nietzsche, recusar-lhe a paternidade. Como filsofo, Kierkegaard no poderia se ater filosofia de Scrates sem que com isso produzisse, ao mesmo tempo, a sua prpria. Em O conceito de ironia constantemente referido a Scrates (1991), o filsofo dialoga com as imagens de Scrates tal como foram traadas, sobretudo por Aristfanes e Plato: porm, seu dilogo, no fundo, com Hegel, o grande mestre. A ironia, que tambm serviu de tema a uma obra clssica de Vlastos16, serve aqui de passo para Kierkegaard defender sua tese, a de que Scrates encarnou-a como o Verbo divino encarnou-se no Cristo. Sua encarnao, porm, no foi capaz de alcanar a idealidade, dominada por Plato: Kierkegaard entende a filosofia de Scrates como negativa, como o a ironia por ele encarnada, depositando o que h de

    positividade em Plato, como se a positividade do Cristo estivesse em Joo. Scrates sem positividade um Scrates abstrato, como foi o de Nietzsche e o de Hadot.

    Alguma positividade, por certo, levou Scrates a beber a cicuta. Em pginas que lembram as de Dodds17 sobre um Scrates mestre espiritual, Grimaldi (Scrates o feiticeiro, 2006) tece suas consideraes acerca da relao entre o filsofo e a tradio do xamanismo, quase sugerindo que a viagem de Scrates a Potideia, em batalha durante a Grande Guerra do Peloponeso, o havia tornado um xam. H fontes para uma suspeita como essa, mas nos d uma avaliao mais ponderada o trabalho de Duhot, que duvida ser possvel formar-se um mestre espiritual de tal envergadura durante uma

    16

    VLASTOS, Socrates: Ironist and Moral Philosopher, 1991. 17

    DODDS, Os gregos e o irracional, 2002; sobretudo os captulos V e VI.

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    batalha com a de Potideia. O caso que a imagem de Scrates como mestre espiritual v-se confirmada pelo estudo do prprio Duhot, com outros dados, similares aos que Cornford havia levantado em seu Principium Sapientiae (1932). Taylor18 j havia apontado para o fato de que a acusao religiosa que ele sofrera em 399 a. C. no devia ser apenas de fachada, como sups Stone: um trabalho mais extenso sobre a condio religiosa de Scrates e de alguns outros filsofos e sbios, como Tales ou Xenfanes, ainda est por fazer.

    Levado morte por uma Atenas conturbada e bastante frgil aps a perda da Grande Guerra com Esparta, o Scrates no tribunal tema dos trabalhos de Wilson (A morte de Scrates, 2013) e de Johnson (Scrates: um homem do nosso tempo, 2012), insistentemente juzes frente a tal injustia. Bastante informados de fatos e verses sobre a situao poltica e cultural da plis grega poca da condenao, os livros de ambos marcam mais uma vez o tom mitolgico da figura de Scrates, espcie de antecessor perfeito do cristianismo ainda sem data para nascer. A morte e a plis como temas definem o trajeto at nossos dias, para nos fazer ver as constantes remodelagens e novas significaes que sua injustia reverberou ao longo dos sculos. O tom mitolgico, porm, atende bem a essa demanda mais palatvel ao pblico comum: mesmo um livro para o pblico comum a motivao pela qual Ismael (Scrates e a arte de viver, 2004) forjou o seu. As indicaes so preciosas no que diz respeito a ser possvel de algum modo aplicar as conquistas da filosofia socrtica ao cotidiano mas s enquanto boas indicaes algum interessado em tal filosofia poderia se aventurar por esses livros.

    E Por falar em indicaes, no poderia deixar de mencionar aqui a srie de livros

    de Peter Kreeft19, sobre os supostos encontros imaginrios que Scrates poderia ter tido com os mais importantes filsofos da poca moderna, em outro mundo no qual ambos acordam em perfeita oposio: Scrates, que sabe perfeitamente onde est e o que se passa, uma espcie de arauto divino, pe-se a purificar seus recm-chegados amigos filsofos, que nem sabem o que se passa nem parecem acreditar que aquilo seja de fato possvel. O ceticismo dado a Scrates nos textos antigos , na recriao de Kreeft, atributo de seus interlocutores, face a este mestre de cerimnias de um Purgatrio

    18

    Cf. o primeiro captulo de Varia Socratica, 1911. 19

    Pertencem coleo as seguintes tradues: Scrates encontra Marx (2012); Scrates encontra Maquiavel (2013); Scrates encontra Descartes (2012); Scrates encontra Hume (2014); Scrates encontra Kant (2014); Scrates encontra Sartre (2013), alm do Scrates e Jesus: o debate (2006), do mesmo autor.

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    sapiencial que Kreeft desenha a partir da imagem que nos ficou dos Dilogos de Plato. Os muitos encontros dessa purificao, no entanto, dizem mais sobre uma crtica do autor ao principal livro de cada filsofo que propriamente uma noo do que foi o socratismo. A essncia do projeto de Kreeft mostrar de que modo o tipo de filosofar iniciado por Scrates deve servir de parmetro para aquelas filosofias que lhe sucederam. E neste ponto seu mrito deve ser ressaltado.

    O tipo de filosofar socrtico tambm o tema proposto pelo interessante livro de Walter O. Kohan (Scrates e a educao, 2011). O autor pretende fazer ver, a partir das imagens de Scrates pintadas por pensadores contemporneos como Kierkegaard, Foucault, Nietzsche, Rancire e Derrida, o enigma que se esconde na verdade, torna-se revelado ao trazer estas imagens como uma proposta para pensar o ensino da filosofia, a dinmica entre o pensador que ensina e o pensador que aprende. Nesse fazer, como dir o autor, poltico do ensinar, trata-se de entender seu jogo de poder, o modo de exerc-lo na ao de provocar o pensamento, que Scrates pressupe em sua prpria atividade filosfica.

    Antes de serem as ideias polticas o enfoque oferecido, quer-se fazer ver o lugar poltico daquela proposta que o mestre de Plato iniciara: um espao, v-se bem, paradoxal e enigmtico, j que no possvel definir uma poltica para a atividade filosfica em seu ensino. Ela ser sempre de cunho tensional. E apenas em vista dessa tenso do ensinar, ao fazer Scrates dialogar com os pensadores elencados acima, que Kohan pde oferecer sua contribuio a certos elementos do socratismo: uma contribuio em dilogo. Elementos, no entanto, que geram tantos outros Scrates quantos, diz ele, todo professor de filosofia carrega dentro de si. Perdemos Scrates mais do que o encontramos.

    3. Concluso

    O que se quis demonstrar pelo levantamento da literatura sobre Scrates, passvel de ser encontrada no Brasil, a quase ausente oferta de ttulos que dizem respeito questo socrtica e ao socratismo, para fins de um melhor conhecimento da vida e da filosofia do ateniense que deu origem ao que ainda chamamos de filosofia. Naturalmente, a recenso oferecida aqui tem esse objetivo claro, e somente pelo ponto de vista da questo socrtica que se pode dispor tais obras da forma como o fizemos. Mesmo que cada uma traga o valor de sua contribuio sobre um ou outro aspecto, ou

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    mesmo uma viso geral que s vezes tem fundamentos nas pesquisas mais avanadas, foi nossa inteno mostrar que o estudioso no poderia acreditar possvel obter uma opinio bem fundada acerca de Scrates dispondo to-somente de tais obras.

    No poderia porque Scrates, para alm de ser um pensador deveras conhecido em meios to distantes quanto o acadmico e o empresarial, por exemplo, antes um problema histrico-filosfico, um enigma j em vida e que fora largamente ampliado aps sua morte. Scrates um ponto de inflexo do pensamento ocidental, um instante confuso e ao mesmo tempo privilegiado, em que se misturam os mais belos elogios e as mais lamentveis ms-compreenses. Ele , por isso mesmo, um motivo constante de reflexo. No seria preciso lembrar os dilemas e as absurdidades que podem se seguir de uma m-compreenso para a atividade reflexiva. O prprio Scrates ensinava a pormos nossas opinies em refutao constante. Em Scrates, elas so poucas, e no poderia ser diferente. Mas essas poucas so preciosas: foi por elas que perdeu a vida. Deveramos, se queremos honr-lo com a justia merecida, fazer o mesmo com nossas opinies sobre ele. o que pretendemos oferecer aqui, como um subsdio para que o estudante brasileiro possa iniciar um conhecimento mais slido e mais precioso sobre o pai da filosofia. Se a algum interessado em filosofia esse ttulo no o mover a melhor conhecer Scrates, talvez nada mais chegue a mov-lo.

    BIBLIOGRAFIA

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