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2 Democracia, poder constituinte e política 2.1 A teoria política maquiaveliana: da necessidade de novos conceitos sobre política e poder constituinte Nenhum conceito um dia criado pela inteligência humana pode ser tido como imutável. A utilidade de um conceito não reside na possibilidade de captar e apreender a essência de um fenômeno ou fato, atribuindo-lhe caráter definitivo, e sim pela condição que ele oferece de resolver problemas aos quais está associado. Os conceitos, portanto, jamais podem ser considerados como dados já postos na natureza, por mais que a tradição de seus efeitos assim possa fazer parecer. 2 Deleuze e Guattari demonstram que a história e as questões que nela emergem se relacionam necessariamente com a criação de novos conceitos. Isto implica, ainda, em admitir que a pertinência de um novo conceito deva ser mensurada pela possibilidade que ele apresenta para identificar novas nuances e variações sobre os problemas e fatos que perpassam nossa existência. 3 Os conceitos, portanto, não são eternos, muito embora isso não implique em afirmar que têm sobrevida temporalmente definida. A incapacidade de se apresentar como instrumento de análise e de proposição de rumos marca o termo final da sua utilidade. Partindo destas considerações, não se constitui temerário afirmar a necessidade de se construir novos conceitos de política e de poder constituinte. Suas formas tradicionais não dão conta de oferecer respostas aos problemas que se apresentam nesta seara, ao menos se subsiste pretensão de considerá-los como conceitos necessariamente vinculados à democracia. O conceito tradicional de poder constituinte apresentado pelo constitucionalismo nos lança em um deserto 2 Deleuze e Guattari identificam a filosofia como disciplina que consiste em criar conceitos, justamente pelo fato de que os mesmos não se encontram completamente feitos. Os filósofos - acrescentam os autores - não podem se contentar com os conceitos que lhes são apresentados, sendo imperioso que os criem e persuada os homens a utilizá-los. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 13-14. 3 Como explicitam os autores, “se um conceito é ‘melhor’ que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um acontecimento que nos sobrevoa” Ibidem, pp. 40-41.

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2 Democracia, poder constituinte e política

2.1 A teoria política maquiaveliana: da necessidade de novos conceitos

sobre política e poder constituinte

Nenhum conceito um dia criado pela inteligência humana pode ser tido

como imutável. A utilidade de um conceito não reside na possibilidade de captar e

apreender a essência de um fenômeno ou fato, atribuindo-lhe caráter definitivo, e

sim pela condição que ele oferece de resolver problemas aos quais está associado.

Os conceitos, portanto, jamais podem ser considerados como dados já postos na

natureza, por mais que a tradição de seus efeitos assim possa fazer parecer.2

Deleuze e Guattari demonstram que a história e as questões que nela emergem se

relacionam necessariamente com a criação de novos conceitos. Isto implica,

ainda, em admitir que a pertinência de um novo conceito deva ser mensurada pela

possibilidade que ele apresenta para identificar novas nuances e variações sobre

os problemas e fatos que perpassam nossa existência.3 Os conceitos, portanto, não

são eternos, muito embora isso não implique em afirmar que têm sobrevida

temporalmente definida. A incapacidade de se apresentar como instrumento de

análise e de proposição de rumos marca o termo final da sua utilidade.

Partindo destas considerações, não se constitui temerário afirmar a

necessidade de se construir novos conceitos de política e de poder constituinte.

Suas formas tradicionais não dão conta de oferecer respostas aos problemas que se

apresentam nesta seara, ao menos se subsiste pretensão de considerá-los como

conceitos necessariamente vinculados à democracia. O conceito tradicional de

poder constituinte apresentado pelo constitucionalismo nos lança em um deserto

2Deleuze e Guattari identificam a filosofia como disciplina que consiste em criar conceitos, justamente pelo fato de que os mesmos não se encontram completamente feitos. Os filósofos - acrescentam os autores - não podem se contentar com os conceitos que lhes são apresentados, sendo imperioso que os criem e persuada os homens a utilizá-los. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 13-14. 3Como explicitam os autores, “se um conceito é ‘melhor’ que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um acontecimento que nos sobrevoa” Ibidem, pp. 40-41.

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de possibilidades. De fato, um poder constituinte limitado no tempo e no espaço,

que submerge em latência indefinida após fundar uma nova ordem jurídica não

guarda qualquer correspondência com a perene ebulição social da qual decorrem

inúmeras manifestações democráticas. E mais: um conceito que associa o poder

constituinte a uma finalidade específica – elaborar a lei maior -, tal qual o faz o

constitucionalismo, se presta apenas a estigmatizá-lo como produtor de efeitos

jurídicos, dissociando-o do campo social e político. Relegado ao ostracismo após

cumprir seu papel de inaugurar a ordem jurídica, o poder constituinte é

sumariamente ignorado pelo direito constitucional como categoria jurídica.4 O

conceito tradicional de política, por sua vez, tampouco nos auxilia a compreender

a lógica com a qual opera a democracia e os sujeitos nela implicados. Se a política

decorre da atuação dos poderes constituídos e opera pela lógica do consenso – ou

pela necessidade de evitar o conflito – o plano social é conduzido, mais uma vez,

a um estado de hipostasia que em nada se harmoniza com o ideal democrático.

Como afirma Gilberto Bercovici, o constitucionalismo não apenas restringiu

o poder constituinte à mera atividade de revisão constitucional, como reduziu a

defesa da constituição ao instituto do controle de constitucionalidade5,

circunscrevendo este controle ao plano do direito. No entanto, a interpretação da

constituição, entendida esta como texto em que se expressa de forma mais

evidente a interligação entre o político e o jurídico, não prescinde da análise de

ambos os planos. Não há mal para o qual o constitucionalismo não aponte pronto

reparo: habilmente tratou de encobrir a política com um verniz jurídico, ocultando

seu caráter sob o manto do tecnicismo.6 Ao imputar caráter estritamente jurídico

ao que continua - ainda que oculto - a ser também político, confere-se um poder

exuberante às cortes de justiça: decidir sobre matéria política, dissimulando que

não o faz, escudando-se no fundamento técnico-jurídico contra o qual não se

admite interpelação dos leigos. O resultado que se obtém deste artifício é

4BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 14. 5Ibidem, p. 16. 6Como destaca Bercovici, “o direito constitucional não é meramente técnico, mas é político, pois deve tratar da difícil relação da constituição com a política. A constituição não pode ser compreendida de forma isolada da realidade, pois é direito político, isto é, a constituição está situada no processo político”. Ibidem, pp. 14-15.

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conhecido: transfere-se àquelas cortes a última palavra sobre questões políticas

afetas ao coletivo.7

O sistema político, assim concebido, confere fortes cores aristocráticas a

um modelo que se pretende democrático. A ocultação da política sempre foi

extremamente cara ao pensamento liberal – e ao constitucionalismo dele derivado

– por um simples, mas fundamental motivo: na democracia os conceitos de

política e de poder constituinte se imbricam indissoluvelmente8; é justamente

contra a emergência do poder constituinte que o liberalismo digladia desde que

impôs o Termidor9 à Revolução Francesa.10 Reconduzir o debate da atuação dos

tribunais ao campo democrático exige, portanto, a criação de outros conceitos de

poder constituinte e política que se afastem do tradicionalmente posto pelo

constitucionalismo.

Nesta seara, a relação entre poder constituinte, política e atuação

democrática do Supremo Tribunal Federal revela-se especialmente sensível, tendo

em vista o crescente afluxo de demandas de teor político que deságuam no

referido tribunal. Em torno do que se costumou denominar judicialização da

política, travam-se calorosos debates sobre a legitimidade de o Supremo

pronunciar-se, em franco ativismo judicial, sobre matérias tradicionalmente

atribuídas como próprias aos poderes executivo e legislativo. Contudo, a tentativa

de impedir que a mais alta corte de justiça conheça de matéria impregnada com

teor político revela-se inócua, ao menos nos sistemas em que se prevê controle de

constitucionalidade. O processo de interpretação da constituição pelas cortes de

justiça é, assim, necessariamente permeado pelo político. Os problemas que

derivam desta competência revelam, em verdade, o desencantamento da teoria

liberal que endossara a neutralidade do ordenamento jurídico como mecanismo

7Trata-se de uma distorção que consiste em tornar o constitucionalismo o árbitro último de um conflito do qual ele é parte. Ibidem, p.17. 8NEGRI, Antonio. Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 7. 9Por Termidor se compreende o momento que pôs fim à revolução democrática francesa, inaugurando a fase em que predominaram ideais contra-revolucionários burgueses. Em decorrência disso, o termo é também utilizado para se referir aos movimentos reacionários de interrupção da atuação do poder constituinte. 10A respeito da contraposição entre democracia e liberalismo, Domenico Losurdo afirma que as conquistas democráticas se deram a despeito, e não, em decorrência do modelo liberal. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Unesp, 2004, p. 51.

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eficaz para afastar contingências políticas dos julgamentos dos tribunais.

Apresenta-se necessário, portanto, deixar de ocultar a realidade sob o manto de

uma neutralidade jamais observada.11 A impossibilidade da existência de um

poder neutro revela-se na contradição de se supor possível a existência de um

poder constituído que prescinda de limites em decorrência de uma suposta

essência apolítica. A questão central sofre, assim, um deslocamento: da estéril

exigência que o Supremo se atenha a atuar de forma técnica e neutra, para a

discussão sobre os limites a que ele deve estar adstrito, justamente por manejar

com questões de teor político.

Neste debate, a maior causa de perplexidade se revela por uma ausência. A

falta de qualquer referência ao poder constituinte e ao sujeito da política reduz a

discussão a uma mera definição de qual poder constituído apresenta legitimidade

para definir os rumos da sociedade. Os espaços da política oscilam, neste cenário,

entre assembléias e tribunais; os seus sujeitos, entre parlamentares e magistrados.

Ao longo deste primeiro capítulo o poder constituinte será reconduzido ao centro

da discussão, no intuito de compreender a dinâmica própria da política. Este

movimento se ancora em uma premissa que não se concilia com o reducionismo

próprio do constitucionalismo: a democracia deve ser compreendida – e

efetivamente vivenciada – como o governo de todos, por todos, em que o coletivo

governa e não se deixa submeter à regulação por nenhum grupo qualificado por

qualquer espécie de título distintivo de nobreza, sapiência ou riqueza. Trata-se de

uma premissa que extrai validade da teoria política desenvolvida por Nicolau

Maquiavel em sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.12 Neste

estudo Maquiavel apresenta uma teoria política revolucionária, permeada por

idéias originais e provocadoras, que inspiraram Antonio Negri e Jacques Rancière

em seus estudos sobre poder constituinte e política, e que contribuirão para a

compreensão do tema ora tratado. As pesquisas de Negri e Rancière,

contemporâneas dos efeitos atuais das questões ora postas, configuram-se como 11“A neutralidade das constituições é ilusória”. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p.17. Se assim o é, menos neutra ainda, qualquer interpretação que delas se pode extrair. 12Adota-se, portanto, concepção de matriz britânica sobre o pensamento maquiaveliano, identificando nele o compromisso com a liberdade. Esta concepção encontra-se bem retratada por Quentin Skinner - SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. Trad. Maria Lúcia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1998 -, e por Pocock - POCOCK, J.G.A. The machiavelian moment: florentine political thought and the atlantic republican tradicion. New Jersey: Princeton University Press, 1975. Nesta mesma vertente inclui-se Negri, ao tratar da teoria política de Maquiavel em sua obra O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade.

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indispensáveis fontes de conceitos, úteis para compreender as relações entre

política e poder constituinte. No entanto, é a teoria política legada por Maquiavel

que serve de matriz para deflagrar o debate. A partir dela abrem-se caminhos para

definição de um sistema materialmente democrático, jornada a qual se somam as

teorias de Negri e Rancière.

O primeiro relevante aspecto do pensamento maquiaveliano, refere-se ao

método de leitura dos fenômenos políticos. Maquiavel é averso ao modo

transcendente de compreender o mundo; as formas imaginadas de governo,

portanto, não se prestam como modelo para explicar a realidade.13 Esta

característica revela-se de suma importância para os desdobramentos deste

trabalho. Com efeito, a discussão sobre imanência e transcendência apresenta-se

vital para entender as distorções que desfiguram a democracia.14 Os conceitos de

soberania, representação e poder neutro, sobre os quais se estruturaram os

sistemas políticos ocidentais na modernidade, foram paridos do modelo

transcendental de compreender a política. A tal fato se atrelam, conforme será

adiante analisado, os modos distorcidos pelos quais tradicionalmente se

identificam os sujeitos do atuar político, os espaços nos quais se manifesta esta

atuação e os modos de emergência do poder constituinte.

A segunda característica que confere originalidade à teoria política

maquiaveliana revela-se na importância que ele confere ao tempo e à mutação.15

As ascensões e degenerações dos regimes políticos imprimiram em Maquiavel a

certeza da importância da mutação para a edificação de governos fortes e estáveis;

mutação - registre-se - decorrente da intervenção humana nos processos políticos.

Trata-se de pensamento inovador para uma época em que, pelo senso comum,

estabilidade associava-se à imutabilidade das coisas. Igualmente revolucionária a

13MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Antonio D`Elia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 101. 14Esta discussão será tratada mais detidamente no item seguinte. No entanto, uma breve introdução sobre imanência e transcendência faz-se necessário: a transcendência está associada à existência de um principio superior, posto acima das relações concretas do plano material, que, no entanto, influência a regência destas relações de forma determinista. Ela se expressa como um comando superior, divino, contra o qual não cabe discussão, apenas obediência. Pela imanência, em sentido diverso, as inscrições no real são influenciadas pela intervenção e participação dos seres humanos, livres do julgo de qualquer poder transcendente que não possa ser contestado por fundar-se em argumento de autoridade soberana. O tema será aprofundado no item que se segue. 15Esta vinculação, conforme se verá, é traduzida pela análise que Negri realiza sobre os escritos maquiavelianos, resultado de um olhar sobre a obra do pensador florentino - principalmente os Discurso -, livre dos preconceitos do senso comum que o associam ao elogio à cavilosidade política para preservação do poder.

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(re)condução do ser humano ao centro das decisões políticas. Não se trata de

negar o influxo de eventos externos, naturais ou cuja ocorrência não dependa da

vontade dos governantes. Maquiavel se insurge contra o sentimento de fatalidade

perante o destino, contra a completa dependência de uma intervenção de fatores

exógenos que determinem o futuro da república. A ação humana deve ser dirigida

para evitar que imprevisíveis – e inevitáveis - eventos levem o bom governo à

ruína.16 A praxis humana convive com o imponderável, mas por ele não se deixar

arrastar, retirando-lhe a condição de destino inexorável. O tempo, sob esta original

perspectiva, adquire caráter dinâmico, afastando-se da concepção estática que o

medievo lhe imprimiu ao fazer o futuro dependente da vontade transcendente de

Deus. Nele se desenrolam as práticas humanas, as relações sociais e políticas, que

determinam a constituição incessante de novas instituições, novos modos de ser,

pensar e produzir.17 Em Maquiavel a política é deslocada para o campo imanente

da atuação histórica dos homens. O poder de constituir o novo apresenta-se como

processo aberto no tempo, que não cessa de demandar pela virtù coletiva e

individual dos homens, no intuito de que não se tornem reféns da fortuna.18 Por

meio da atuação criativa e produtiva de seus membros como sujeitos políticos

singulares abre-se para a comunidade a possibilidade de conferir força e

estabilidade à república.

No entanto, se este engenhoso pensamento reconduz à política a prática

humana, ele não é capaz, por si só, de garantir que a política não seja apropriada

como prática afetada a um grupo restrito de cidadãos. A leitura do qüinquagésimo

16 Conforme ressalta Newton Bignotto: “O realismo de Maquiavel exige a crença na mutabilidade das coisas e na presença da fortuna como parte da cena pública, o que não significa que não seja possível constituir um saber sobre política.” BIGNOTTO, Newton. Introdução a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXVI. 17Negri demonstra a genialidade de Maquiavel ao vincular tempo e poder: “O tempo é, portanto, a matéria de que são constituídas as relações sociais. O tempo é a substância do poder. O tempo é o ritmo no qual se encadeiam e ordenam todas as ações constitutivas.” E prossegue, mais adiante: “[...] Maquiavel constrói uma função científica que arranca a mutação ao destino e faz dela um elemento da história.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp. 61-62. 18Na teoria maquiaveliana, virtù e fortuna não mantêm uma relação de negação, sendo compreendidas em conjunto. A fortuna representa o fluxo dos acontecimentos que não se colocam sob o domínio humano, as alterações das circunstâncias que perturbam as ações políticas, mudam os rumos dos acontecimentos e impedem a perfeita previsão do futuro. A virtù é a força de que o homem é dotado para agir e não se deixar tornar refém dos caprichos da fortuna, evitando, assim, a corrupção do governo. A virtù não se traduz na previsão dos acontecimentos, muito menos na obediência a um modo específico de agir diante do que poderia ter sido previsto. Em sentido diverso, trata-se das qualidades humanas de agir na direção do fortalecimento da república, diante das ocasiões postas pela fortuna. Desta forma, uma sociedade sem virtù está fadada à corrupção por restar entregue às instabilidades da fortuna.

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quinto capítulo dos Discursos confere pistas para evitar esta corrupção. Maquiavel

relata que as repúblicas que não se corromperam, mantiveram-se fortes por manter

a igualdade entre seus cidadãos. E assim o fizeram ao impedir que os senhores e

os gentis-homens19 possuíssem, além da riqueza, poder político extraído da

propriedade de castelos e de súditos obedientes.20 Nas palavras de Maquiavel:

[...] as repúblicas nas quais se manteve a vida política e incorrupta não suportam que nenhum de seus cidadãos se apresente nem viva como gentil-homem; aliás, mantêm a igualdade entre seus cidadãos […] E o que dizemos é provado pelo exemplo da Toscana […] naquela província não há nenhum senhor de castelo e nenhum gentil-homem – ou, se os há, são pouquíssimos -, mas há tanta igualdade, que um homem prudente, que tivesse conhecimento das antigas cidades [civiltá], facilmente introduziria lá algum tipo de vida civil.21

Se a igualdade aparece na teoria maquiaveliana como caráter distintivo das

repúblicas não corrompidas, a liberdade figura como condição para que as cidades

prosperem e mantenham-se fortes.22 Observa-se que a liberdade e igualdade

imbricam-se no pensamento de Maquiavel, conferindo à sua teoria política um

caráter materialmente democrático. A tal constatação se alcança com a análise que

o autor realiza sobre a forma mais adequada para se promover a guarda da

liberdade. Ao final do quarto capítulo do primeiro livro dos Discursos e ao longo

de todo o seu quinto capítulo, Maquiavel expõe que nas repúblicas convém que se

deposite a guarda da liberdade nas mãos da plebe: deve-se conceder a guarda de

alguma coisa àqueles que possuem menos interesses em usurpá-la.23 Há, portanto,

dois humores diferentes, duas formas inconciliáveis de enxergar o poder: os

humores do “povo” e os humores dos “grandes”.24 Comparados os interesses dos

plebeus e dos nobres, Maquiavel expõe que estes atuam imbuídos em grande

desejo de dominar, ao passo que aqueles nutrem apenas o desejo de não ser

dominados. A plebe, ciente da impossibilidade de dominar, preserva com maior

cuidado a liberdade para não ser objeto de dominação pelos nobres, estes sim 19Maquiavel esclarece o que denomina por gentis-homens: são aqueles que “vivem ociosos das rendas de suas grandes posses, sem cuidado algum com o cultivo ou com qualquer outro trabalho necessário para a subsistência”. Estes homens, arremata o pensador florentino, “são perniciosos em todas as repúblicas e todas as províncias”. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 161. 20Ibidem, p. 161 21Ibidem, pp. 161-162. 22Assim o demonstra Quentin Skinner: “Segundo Maquiavel, um estudo da história clássica revela que a chave para se entender as realizações de Roma reside em algo que pode ser resumido numa única frase. 'A experiência demonstra que as cidades não se expandiram em termos de domínio ou de riqueza exceto enquanto estiveram em liberdade'.” SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. Trad. Maria Lucia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 83. 23MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 24. 24Ibidem, p. 22.

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detentores dos meios para oprimir.25 Daí a preservação da liberdade depender do

povo em armas.26 Neste sentido, Maquiavel defende não apenas que as repúblicas

não possam depender de armas que não lhes são próprias, como afirma que se

deve delegar o ofício da defesa armada aos cidadãos. Assim concebida, a

liberdade encontra-se necessariamente associada à concepção democrática de

autogoverno. Neste sentido, destaca Skinner:

Ao dar tanta ênfase à liberdade, o que Maquiavel tem em mente é, antes de mais nada, o fato de que uma cidade que se decida a alcançar a grandeza deve permanecer livre de qualquer forma de servidão política […] Isto, por sua vez, significa que dizer de uma cidade que ela tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade. Assim, a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno […] o mesmo compromisso para com a liberdade é reiterado, quando Maquiavel elogia as leis de Sólon por terem estabelecido “uma forma de governo baseado no povo”, para, em seguida, mostrar que essa organização é equivalente a viver “em liberdade”.27

Há, no entanto, outra questão a ser dirimida pela teoria maquiaveliana. A

dimensão heraclitiana que Maquiavel confere à política ao constatar seu caráter

mutável, aberto no tempo e associada à necessidade da ação criativa da virtù, não

explica a mecânica pela qual a política se desenvolve. Neste ponto a teoria de

Maquiavel demonstra toda sua originalidade ao apresentar a desunião como

elemento propulsor da política. Esta concepção apresenta-se contraposta às teorias

contratualistas que convergem ao atribuir à ausência de conflito condição sem a

qual não se pode instituir um governo pacífico e estável. Em Maquiavel, a lógica

que rege a política é inversa: ela se traduz pela desunião entre classes que

compõem a comunidade. Foram os conflitos entre nobres e a plebe, pontua

Maquiavel, a causa da garantia da liberdade em Roma, pois deles decorreram

instituições que permitiram ao povo tomar parte na administração da cidade28, a

comprovar que da desunião nascem leis e ordenações mais justas.

25Ibidem, p. 24. 26Idem. O príncipe, pp. 88 e 95-96. A conveniência em tornar o povo guardião da liberdade corrobora a afirmação de que as armas próprias que devem garantir a república são para o povo, e não para o príncipe. 27SKINNER, Quentin. Maquiavel, pp. 83-84. 28MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p. 23. Nesta passagem Maquiavel faz referência à criação dos tribunos da plebe. Sua formação decorreu da resistência da plebe ao modo cruel pelo qual eram tratados pela nobreza. Após confusões e tumultos, à nobreza foi imposta aceitar a criação dos tribunos da plebe que tinham como função garantir segurança a estes, contendo a “insolência dos nobres”. Ibidem, pp. 20-21. A criação dos tribunos será tema de análise mais aprofundada quando do estudo da política na concepção de Jacques Rancière.

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O ideal de unidade do corpo político exposto pelo contrato social é, assim,

desmistificado. A plebe e os nobres não dividem harmoniosamente o poder

político; o corpo político encontra-se cindido. Os sujeitos constituintes que por

sua força criativa e produtiva (virtù) defendem a liberdade, se contrapõem a todo

o momento àqueles para quem a ordem vigente deve ser cristalizada como

garantia da submissão à sua vontade. A desunião, imbricada ao caráter

democrático que adquire a teoria política maquiaveliana, revela as trincas que a

teoria do governo misto, idealizada por Políbio, apresenta ao advogar um suposto

equilíbrio na partilha harmônica do poder, representado pela mescla entre

democracia, monarquia e aristocracia.

Uma digressão a respeito do modelo polibiano de governo se faz necessária

para abrir passagem à emergência do caráter democrático na teoria política

maquiaveliana. No Livro VI de História, Políbio narra a existência de seis formas

de governos: três virtuosas e três degeneradas. Às três primeiras correspondem à

monarquia (governo de um), aristocracia (governo de poucos) e democracia

(governo de muitos) e suas respectivas formas degeneradas: tirania, oligarquia e

oclocracia.29 Estas formas de governos se sucederiam em ciclos em que alternam

formas boas e ruins. Assim, a monarquia inexoravelmente degeneraria para

tirania. Esta, por sua vez, suscitaria a reação de um grupo de homens nobres e

corajosos que deporiam o tirano e seriam, por tal glória, elevados a governantes,

fazendo nascer a aristocracia. Tal forma de governo naturalmente se corrompe em

oligarquia, implicando na revolta de muitos contra os poucos que governam. Disto

emerge a democracia que, por sua vez, degenera em oclocracia, o governo da

desordem das massas. Por esta concepção a transformação de uma forma de

governo à outra é inexorável e decorre da própria natureza de cada uma.

29POLÍBIO. História. Trad. Mário Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 327. Válido transcrever a descrição que Políbio faz dos ciclos de governos, no intuito de demonstrar que o autor entende a anaciclose como uma sucessão natural: “A primeira de todas essas espécies a aparecer foi a autocracia, cujo surgimento é espontâneo e natural; em seguida nasceu a monarquia, derivada da autocracia por evolução e pela correlação de defeitos. Esta se transmuda em sua forma afim degenerada, quero dizer a tirania, e em seguida à dissolução de ambas é gerada a aristocracia. Esta degenera por sua própria natureza em oligarquia, e quando maioria, inflamada pelo ressentimento, vinga-se desse governo por causa das injustiças cometidas pelos detentores do poder, é gerada a democracia; finalmente, da violência e do desprezo à lei inerentes a esta, resulta no devido tempo a oclocracia.” Ibidem, p. 327.

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A idéia de anaciclose (anakyklosis), acima exposta, deriva, por sua vez, da

teoria política de Aristóteles.30A originalidade de Políbio não decorre deste

regresso à concepção aristotélica e sim ao meio que propõe para estabilizar o

governo e pôr fim às causas que promovem a corrupção das suas boas formas.

Políbio propõe que monarquia, aristocracia e democracia sejam mescladas em um

modelo misto de governo, de forma que “o rei”, “os aristocratas” e “o povo”,

tenham representados seus poderes de forma equilibrada, possibilitando a

estabilidade do governo e impedindo sua degeneração. A constituição mista,

composta pelas boas formas de governo reunidas, evitaria, assim, os conflitos que

impedem a ordem e a harmonia política.31

A análise do modelo polibiano de constituição mista apresenta-se primordial

por dois aspectos. Em primeiro plano, o ideal de equilíbrio de poderes entre

monarquia, aristocracia e democracia, influenciou decisivamente a teoria de

Montesquieu sobre separação de poderes, teoria esta que se apresenta como um

dos pilares do constitucionalismo e fonte da idealização do poder neutro como

mecanismo de estabilidade do Estado liberal. A análise desta influência será

retomada adiante.

Impõe-se analisar, neste momento, o segundo aspecto referente à

constituição mista, e que se apresenta de suma importância para compreender o

teor democrático da teoria maquiaveliana sobre a política. Maquiavel recorre à

idéia de constituição mista no início do primeiro livro dos Discursos e, não

obstante, apresenta a desunião como mecanismo que, ao permitir o equilíbrio

entre a plebe e os ricos, conduziu Roma à prosperidade.32 De que forma conciliar

o teor democrático que se afirma extrair da teoria de Maquiavel, com o elogio que

o pensador florentino faz ao equilíbrio de forças entre os cônsules (poder régio),

30No quinto capítulo do terceiro livro de sua obra Política, Aristóteles desenvolve a teoria das seis formas de governos – monarquia, aristocracia e democracia (bons governos) e tirania, oligarquia e anarquia (governos corrompidos) - que se alternam em ciclos, da qual Políbio retirou inspiração. ARISTÓTELES. Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 89-94. 31Este seria o motivo do sucesso da legislação de Licurgo: “prevendo esta inexorabilidade [da anakyklosis], então, Licurgo não elaborou uma constituição simples e uniforme, mas uniu nela todas as características boas e peculiares às melhores formas de governo, de tal maneira que nenhum dos seus componentes pudesse crescer indevidamente e degenerar nos males a eles inerentes, e que, sendo a força de cada um contrabalançada pela dos outros, nenhum deles prevalece por longo tempo em estado de equilíbrio [...].” POLÍBIO. História, p.332. 32MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, pp. 18-19.

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senado (aristocracia) e o povo (democracia)? É preciso destrinchar este feixe de

aparentes incongruências.

Afirmar que Maquiavel segue a tradição polibiana em seu conteúdo

implicaria reconhecer que a sua teoria preserva a lógica de funcionamento do

governo misto. No entanto, ao estabelecer a desunião como núcleo da dinâmica do

governo livre, Maquiavel afasta-se completamente da idéia de harmonia

explicitada no modelo polibiano, negando-o, portanto, em seu cerne. A desunião,

entretanto, não deve ser compreendida como caos; ela está associada a duas

dimensões complementares do pensamento maquiaveliano: a dimensão dinâmica

(movimento) e a dimensão mecânica (corpo). A dimensão dinâmica é

representada pela mutatio, conforme visto; a dimensão mecânica, por sua vez,

decorre da necessidade da comunidade conferir-se instituições que possibilitem a

emergência da virtù coletiva. As instituições, nesta perspectiva, não devem ser

desenhadas com o objetivo de impedir mudanças, de conservar o estado das

coisas; devem ser erigidas de forma a se apresentar como ambiente que se abre à

desunião e possibilita a mutatio.33

Em sentido diverso do que propõe Políbio, portanto, Maquiavel apresenta a

desunião como o motor do devir político, dinâmica que faz a república retornar

aos seus princípios fundadores.34 Ao idealizar o governo misto, Políbio pretende

33Bignotto destaca a revolução que Maquiavel provocou no campo das instituições políticas ao demonstrar que os conflitos são saudáveis para o estabelecimento de boas leis, advertindo, no entanto, sobre o importante papel que as instituições desempenhavam nessa dinâmica: “Para serem positivos é necessário que os conflitos sejam travados dentro de um quadro institucional reconhecido por todos como legítimo. A simples luta entre as partes componentes do corpo político ou a disputa violenta pelo poder não são suficientes para garantir a grandeza da cidade. Maquiavel acredita que boas instituições são aquelas que trazem para dentre da cidade os conflitos, mas estabelecem regras e limites para que eles ocorram.” BIGNOTTO, Newton. “Introdução aos discursos sobre a primeira década de Tito Lívio de Nicolau Maquiavel”. In: Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXV. 34Em sua obra O poder constituinte, Negri critica a proposição maquiaveliana sobre a necessidade das repúblicas retornarem, de tempos em tempos, aos seus princípios. Negri enxerga nessa assertiva um índice jusnaturalista, pois predeterminaria o conteúdo das mutações, a impor restrições à criatividade do poder constituinte. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 429. A crítica, contudo, desmerece todo o esforço teórico de Maquiavel no sentido de demonstrar o quão imponderável o futuro e o quanto estéril tentar controlar todos os seus eventos. Desta forma, o retorno aos princípios não parece se apresentar como fórmula predefinida a ser eternamente revisitada. Basta, para demonstrá-lo, que se analise o princípio da igualdade como aquele que informa a democrática: o retorno a este princípio não implica em determinismo jusnaturalista por não prever, necessariamente, os conteúdos das novas estruturas de sua realização; ele apenas aponta que as mutações, caso se pretendam democráticas, devem ter por norte a atualização do princípio da igualdade. Quanto a este ponto, o estudo da teoria de Rancière apresenta importante contribuição, conforme se verá. A crítica negriana, no entanto, alerta para os riscos do poder

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justamente retirar o conflito do cenário político por entender a ordem como maior

garantia de estabilidade de um governo. Os mecanismos de funcionamento da

política em ambos são tão distintos que se poderia dar por encerrado o paradoxo.

Mas, o que dá vida a esta mecânica revela ainda mais a disparidade entre as

formas polibiana e maquiaveliana de compreender a política.

Políbio elabora um modelo formal e estático de constituição que, apenas por

sua estrutura, se pretende ideal para evitar conflitos e a degeneração do governo.

A constituição formal mista, por si, garante a estabilidade do bom governo. A

atuação do ser humano no plano social, portanto, não se apresenta como variável a

ser considerada pela teoria política polibiana. Aqui a política encontra-se

completamente desraigada do social, operando por meio de uma fórmula

preconcebida e imutável, que reparte os poderes entre o rei, a aristocracia e a

plebe, a despeito do que se materializa na sociedade. Políbio propõe que a mera

forma da constituição do governo é capaz de esvaziar a possibilidade de se

deflagrarem conflitos. Em resumo, o modelo polibiano é formal, estático e

fundado na cisão entre o político e o social.

Maquiavel, ao seu turno, aparta-se de Políbio em cada aspecto acima

tratado. Sua teoria tem por base entender a política como processo mutável e

plasmado pelo social. A constituição que Maquiavel enuncia é constituição

material decorrente da virtù coletiva. Materialidade que se expressa no povo em

armas como poder constituinte.35 Interessante observar que a narrativa da qual o

próprio Políbio se vale para demonstrar a degeneração das boas formas de

governo confirma a distinção aqui posta. Analisando os relatos contados por

Políbio, conclui-se que o ponto de convergência entre todos os processos que

levaram à ruína aqueles bons governos é, justamente, a ausência de conflito, e não

o inverso. A monarquia degenera pelo fato de o rei, diante da consolidação de sua

condição de superioridade, exigir submissão aos seus caprichos e suas veleidades,

a ponto de se tornar tirano. A certeza de que nada lhe pode ser negado permite ao

constituinte ser identificado por fórmulas estáticas e preconcebidas como naturais, pois, como expressa o autor, o poder constituinte se manifestou, ao longo da história, “como oposição radical e contínua ao jusnaturalismo, encarnando a dinâmica contra a estática, a criação contra o contrato, a vitalidade e a inovação contra a ordem e a hierarquia.” Ibidem, p. 428. 35Nas palavras de Negri: “A capacidade de agir sobre o tempo a partir do próprio tempo, de constituí-lo ou sobredeterminá-lo deve ser armada – a virtù faz-se poder constituinte neste momento, uma vez que, em sua relação com as armas, ela constitui a ordem social”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 92.

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rei exercer a tirania. A inexistência de desunião entre o monarca e outras classes

lhe confere esta condição, degenerando a monarquia.36 A aristocracia, boa forma

de governo que substitui a tirania, também degenera pela ausência de desunião: os

filhos dos primeiros aristocratas, ilustres e magnânimos homens que se insurgiram

contra a tirania, herdam suas prerrogativas, mas não se comportam com a

dignidade dos seus pais. Criados sob a doce proteção dos privilégios paternos têm

por legítimos a cupidez e o ganho desenfreado de dinheiro. E assim se passa,

afirma Políbio, pois tais privilegiados nunca viveram tempos de infortúnio e

desconhecem a igualdade política.37 Vivem em tempos sem conflitos, em que se

enxergam como naturais detentores daqueles privilégios. Não há grupo que lhes

apresente a desunião. Em sentido oposto, o restabelecimento dos governos

virtuosos se dá, na narrativa polibiana - sem que o próprio Políbio disso se dê

conta - apenas através do conflito, mediante o qual a comunidade, ou parte dela,

reage contra um governo degenerado, plasmando uma nova ordem política mais

justa. Assim, a tirania só é arrostada pelo movimento de parte da sociedade que se

insubordina contra o tirano, dando origem a aristocracia. A desunião como

restabelecimento de uma boa forma de governo se apresenta clara, nesta

passagem. Não é diverso o processo que leva a oligarquia a ruir. O povo se opõe

frontalmente aos abusos oligárquicos. Desta desunião nasce a democracia.38

O que se deixa entrever é que as boas formas de governo nascem do

conflito, e sua ruína do fato de instaurar-se a inércia social. Políbio recusa-se a

realizar esta leitura e adere ao automatismo de associar necessariamente ordem à

idéia de bom absoluto e conflito à noção de originariamente mau. A narrativa que

Políbio desenvolve para explicar a anaciclose poderia levá-lo a caminho diverso:

compreender, como fez Maquiavel, que o conflito permite manter a virtude do

governo e que, a tentativa de construir mecanismos para sufocar a desunião – ou

relegá-la ao desprezo e indiferença – é o primeiro passo para a sua ruína.39

Ademais, como última nota sobre o desacerto de considerar a teoria política

36 POLÍBIO. História, pp. 329-330. 37POLÍBIO. História, p. 330. 38Ibidem, pp. 330-331. 39Este tema será retomado, pela relevância que guarda para a pesquisa, ao se analisar a proposta de separação de poderes de Montesquieu. Nele o temor à desunião é evidente. Montesquieu sabe que através do dissenso se articula o social ao político. A constituição mista, entretanto, não é suficiente para Montesquieu. Ela não evita o último traço de conflito: o dos poderes entre si. Daí a necessidade de se instituir um poder neutro, que amorteça qualquer conflito.

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maquiaveliana inscrita na tradição do elogio ao modelo de constituição mista,

convém ressaltar o caráter natural que Políbio confere à anaciclose. A

degeneração dos governos, sua origem e transformações ocorrem em sucessão

natural40, inexoravelmente. Seja qual for a atuação dos homens, a fatalidade se

abate sobre os mesmos, levando à ruína seu sistema político. Daí a necessidade de

reunir todas as formas de bom governo em uma única constituição. No seio do

governo misto, o modo como o sistema político encontra-se formalmente

estruturado, torna despicienda qualquer intervenção da virtù humana na tarefa de

mantê-lo estável e próspero. Nada mais antimaquiaveliano que esvaziar de virtù o

conceito de política.41

Ultrapassada esta questão - decisiva para ratificar a eleição da teoria de

Maquiavel como norteadora de uma compreensão sobre democracia diversa da

que explicita o constitucionalismo liberal – impõe-se retornar à discussão sobre a

necessidade da adoção de novos conceitos de poder constituinte e política. Neste

desiderato, as teorias de Antonio Negri e Jacques Rancière apresentam-se como

convites a percorrer caminhos mais acidentados, que obrigam a (re)ver os modos

40POLÍBIO. História, p. 327. 41Os caminhos opostos que traçam as teorias políticas de Maquiavel e Políbio comprovam apenas esse distanciamento, e nos permite avançar no estudo tendo por fundamento a concepção de política maquiaveliana, sem o risco de reproduzir o modelo de constituição mista, tão caro ao constitucionalismo liberal produtor de inúmeros diques contra a democracia. No entanto, resta pendente o questionamento sobre os motivos que levaram Maquiavel a se valer do modelo polibiano. Newton Bignotto, recorrendo a Claude Lefort, nos alerta para o fato de que a compreensão dos Discursos depende do leitor ter em mente “seu caráter sinuoso, sua referência constante a fatos e teorias conhecidas, seu uso da linguagem forjada pelos humanistas para abandonar os paradigmas medievais e, sobretudo, seu caráter inovador”. BIGNOTTO, Newton. Introdução a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. XXVI. Bignotto afirma, ainda, que não se pode esquecer que este signo novo sob o qual deve ser pensada a obra de Maquiavel decorre de um estudo em que a novidade é tramada no convívio com o passado, em confronto com crenças fortemente arraigadas sobre a política, relembrando os riscos implicados em contrariar dogmas estabelecidos pela tradição. Ibidem, pp. XXV-XXVI. A interpretação de Antonio Negri sobre a referência à teoria polibiana em Maquiavel capta a sinuosidade do discurso maquiaveliano a que se refere Bignotto. Negri recorda que a idéia de constituição mista integra a ideologia do humanismo florentino, o que explica a referência do modelo por Maquiavel. NEGRI, Antônio. O poder constituinte, p. 99. No entanto, afirma Negri, a inserção do princípio democrático e sua associação ao princípio da desunião na teoria de Maquiavel revelam os caminhos que o levaram a ultrapassar a influência polibiana. Ibidem, p.96. Esta influência polibiana, conclui o autor, observada no início dos Discursos e abandonada ao longo deles, trata-se de “uma influência que é muito mais relativa à erudição e ao método classificatório do que à filosofia. Com efeito, quanto mais levamos em consideração a retomada insistente e contínua do modelo polibiano de governo misto, mais constatamos a profunda repulsa de Maquiavel à possibilidade de deixar-se encerrar e deter na teoria da recorrência dos ciclos políticos (anakyklosis)”. Ibidem, pp. 98 e 99. Em sentido diverso, compreendendo que a teoria de Maquiavel se afina com o conteúdo do modelo proposto por Políbio ver BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Ed. da Univ. de Brasília, 1992.

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como a democracia se propõe a avançar a despeito – e não por graça – do modelo

liberal.

A força transformadora da teoria política de Maquiavel é retomada por

Negri e Rancière. Sobre o que nos interpelam os ensaios maquiavelianos a

conduzir ao estudo das teorias de Rancière e Negri? Em primeiro lugar, sobre a

necessidade de um conceito de poder constituinte que não se identifica com o

modo pelo qual o constitucionalismo rotineiramente define o seu papel. Um poder

constituinte ilimitado no tempo e no espaço, força que, uma vez organizadora de

uma nova ordem, não se encerra com a elaboração de um texto constitucional e se

propaga para além dos escaninhos da ciência jurídica. O poder constituinte que

corresponde ao povo em armas - que tendem a ser de diversas naturezas em

contexto diferentes42-, e que tem na desunião a força motriz para garantir à

coletividade a posse destas armas. Em um segundo momento, a teoria de

Maquiavel promove interpelações sobre o papel das instituições criadas por este

poder constituinte. Instituições que não se tornam sujeitos condutores da política,

e sim instrumentos para atuação dos verdadeiros sujeitos políticos que resistem

contra a submissão à vontade de um grupo detentor de títulos de nobreza,

sapiência ou riqueza.

Partiu-se, portanto, do conceito de democracia como experiência efetiva,

material, que define e redefine o conteúdo da constituição pela força produtiva

coletiva; poder que age sobre o real transformando-o, constituindo um novo real,

poder constituinte que não encontra limites espaciais ou temporais. Nesta

concepção, os sujeitos constituintes jamais se encerram na figura de um

parlamentar ou de um magistrado. Os espaços da política jamais se limitam às

assembléias ou tribunais. Os sujeitos que podem conduzir a política são inúmeros

42As armas devem ser de naturezas diversas, como afirma Negri: “[...] a forma adequada de resistência muda historicamente e deve ser inventada a cada nova situação [...] um revolver já não é mais uma arma adequada de defesa [...] Com toda a evidência são necessárias novas armas para defender a multidão.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 430. Neste mesmo sentido, Francisco de Guimaraens anota que não se trata de transpor para os dias atuais a criação de milícias armadas. Trata-se apenas, explicita o autor, “de um exemplo muito interessante onde se definem mecanismos populares de contenção do poder”. GUIMARAENS, Francisco de. Direito de resistência e a receptividade de doutrinas jurídicas. Direito, Estado e Sociedade, n° 30, janeiro-junho 2007; Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica – Departamento de Direito, 2007, p. 172.

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e nunca predeterminados, derivam de incontáveis associações entre múltiplas

singularidades. O processo constituinte apresenta-se aberto e ilimitado, e o poder

constituinte já não pode se identificar como ator que abandona o palco da política

após a promulgação da Constituição.

As considerações acima apresentadas requerem que se ponha sob discussão

conceitos que se encontram diretamente vinculados ao tema e que, não obstante,

são solenemente desconsiderados pela doutrina jurídica brasileira ou, ainda,

esterilizados como mera retórica para legitimar a atuação do Supremo Tribunal

Federal. Aprofundar a pesquisa sobre os conceitos de poder constituinte, política e

revolução apresenta-se, assim, essencial para o enfrentamento do tema proposto.

E mais: para além de debater se o Supremo deve ter um posicionamento mais

ativo ou mais tímido frente às questões impregnadas de teor político, convém

questionar se aquela corte, na qualidade de poder constituído, tem se comportado

como instituição permeável às demandas por atualização do principio democrático

ou se atua no sentido de conter o poder constituinte, apresentando-se como órgão

primordial e naturalmente talhado para exercê-lo. Isto porque, ambos os

movimentos – atuação e abstenção da corte perante demandas políticas – podem

ser conduzidos, a depender do caso, de forma a alargar ou restringir a democracia.

Em outros termos: não é a simples existência de maior ou menor grau de ativismo

judicial que, por si só, reflete a atuação democrática do Supremo Tribunal

Federal.

Assim, alguns conceitos que pareciam já sedimentados para a ciência

jurídica revelam a atualidade e necessidade de serem postos à prova diante de uma

teoria democrática que proponha ultrapassar o modo transcendente de entender o

poder constituinte. A imbricação entre os conceitos de poder constituinte, política

e revolução; o tempo, espaço e sujeitos a elas associados, tudo isso que parecia

remeter a um passado já encerrado, sempre esteve constantemente presente, certa

e propositadamente sob uma alcunha mistificadora e, não raro, pejorativa:

sedição, arruaça, vandalismo, histeria. As manifestações de Seattle e Gênova, a

organização do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, a revolução

feminista, dentre inúmeros outros processos de subjetivação que emergiram como

luta política, se inserem nesse contexto.

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Necessário, portanto, retornar à gramática da democracia, entendida naquela

concepção do governo de todos por todos. Esta tarefa nada fácil requer um

instrumental teórico que possibilite a efetiva conexão entre democracia, poder

constituinte e política. O uso de teorias que operam no plano da transcendência

revela-se inapropriado para esse desafio. Com efeito, o contratualismo, sob o qual

se edificou o conceito hegemônico de política na modernidade, revelou sua

insuficiência em compreender a realidade, com suas nuances, complexidades e

paradoxos. Conforme alertara Maquiavel, a busca pela verdade das coisas

constitui-se o primeiro pilar sobre o qual deve se sustentar uma teoria política. Da

transcendência, em sentido oposto a este enunciado maquiaveliano, decorre o

reducionismo do real em um modelo ideal e, portanto, monolítico e imutável, de

todo impróprio para compreender a realidade errática, difusa e em constante

transformação.

As teorias de Antonio Negri sobre poder constituinte e de Jacques Rancière

a respeito da política se afiguram como potente manancial teórico para enfrentar

as questões aqui suscitadas. Não apenas pelo caráter imanente, ressalte-se, como

pelo profundo comprometimento com o ideal democrático de suas teorias, tais

autores possuem concepções de poder constituinte e política que se entrelaçam,

permitindo compreender como a força criativa e liberadora do poder constituinte

pode emergir pela atuação de diversos sujeitos políticos. As antagônicas formas

de se entender o poder constituinte e a política, acima enunciadas, decorrem de

uma questão mais profunda a que a ciência jurídica se esforça para fazer parecer

já resolvida: a tensão entre transcendência e imanência. Necessário, portanto,

compreender as implicações desta tensão.

2.2 Transcendência versus imanência

O estudo sobre as formas transcendente e imanente de compreender a

política é indispensável para compreensão dos mecanismos de aprisionamento do

poder constituinte. Os conceitos de soberania, representação e poder neutro,

essenciais para identificar a tensão entre poder constituinte e poder constituído,

foram extraídos, historicamente, de uma concepção transcendente de compreender

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a realidade. Necessário, portanto, tecer breves considerações a respeito destes

modelos. Conforme expresso por Francisco de Guimaraens:

[...] transcendência é registro do real que supera a capacidade humana de intervenção neste mesmo real, e imanência é o plano ou registro da realidade no qual se inserem o ser humano e as demais coisas existentes e do qual os mesmos participam, sendo capazes de realizar intervenções ativas ou serem afetados pelo que é imanente. ”43 A causa que opera no plano de imanência, afirma o autor, produz ali seus

efeitos e rejeita qualquer idéia que, originada de um plano exterior, lhe venha ditar

efeitos. Trata-se do plano onde os eventos ocorrem e os conceitos não estão prévia

e exteriormente dados; são construídos no âmbito de um processo aberto no qual a

atuação do homem e seu poder criativo edifica a história.

A transcendência, em sentido oposto, supõe a intervenção de um princípio

superior que determina a dinâmica de processos cuja nossa impossibilidade de

conhecer ou alterar nos conduz à mera obediência ou negação. A criatividade

humana, na concepção transcendente, não rege a contínua construção do real; este

já existe por uma ordem natural externa, cabendo ao homem apenas compreender

e atuar conforme os ditames desta ordem. Se assim o é, resta inócua a intervenção

humana na direção de modificar esta ordem natural que rege o real. A atuação

criativa – individual ou coletiva – não é a matéria com a qual se possa construir

uma nova ordem, interferindo na sua condução.

Conforme ressaltado por Espinosa, a transcendência é a lógica própria com

a qual operam as religiões, com seus dogmas e desígnios divinos aos quais cabe

apenas resignação, por ato de fé, ou refutação, por ausência dela. Eis por que,

conforme pontuado pelo pensador, a teologia se destina ao ensino da obediência.44

Ela não se propõe a explicar as ciências e debelar a ignorância, e sim impor

aceitação incontestável aos comandos divinos decifrados pelos escritos

sagrados45. Não há necessidade de compreensão destes comandos, exige-se

apenas subordinação. A relação entre teologia e filosofia é, portanto, de total

43GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito além da modernidade hegemônica. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 34. 44ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 291. Como explicita Espinosa nesta mesma passagem: “a doutrina evangélica, por seu lado, não contém senão a simples fé: crer em Deus e adorá-lo ou, o que vem a dar no mesmo, obedecer-lhe.” Ibidem, p. 34. 45Ibidem, p. 285.

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oposição. Esta se encontra a serviço do saber, da construção de novos conceitos

decorrentes das relações e atuações humanas. No plano religioso, plano de

transcendência, passa-se o oposto: não há ação humana possível que altere o

princípio superior, divino, que ordenada o mundo real. A teologia opera, assim,

através de uma lógica de servidão.46

Se a teologia se opõe em tudo à filosofia, em relação à política ela guarda,

ao menos, um ponto de contato. Ambas - teologia e política - lidam com a

pretensão de legitimação de poder.47 Ao longo da Idade Média os teólogos

lograram reunir poder divino e poder secular sob uma única rubrica ao

transplantar para a política o ideal de transcendência através do qual explicavam a

criação e organização do mundo por Deus. Como demonstra Marilena Chauí, a

teologia cristã erigiu um sistema jurídico-político voluntário e teocrático48 com

base na idéia da transcendência da divindade; sistema no qual o governante

terreno é ungido por Deus, e por sua graça detém o poder de político de mando.

Chauí destaca a conseqüência imediata de assentar o poder político sobre a

transcendência da pessoa divina:

Deus é o imperator mundi porque teve o poder absoluto de tirar o mundo do nada e tem o poder para conservá-lo ou aniquilá-lo, mas sobretudo porque ocupa o lugar onde estão inscritas as marcas do verdadeiro poder, quais sejam a separação e a transcendência. O governante terreno é imperator porque recebeu de Deus o poder para fundar o Estado, criando as leis, e porque, como Deus, seu poder o separa e o destaca da sociedade, pairando acima dela [...]49

A sacralização do poder político origina, assim, um sistema que impõe

submissão inquestionável ao representante divino autorizado pelos céus a exercer

46CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.84. 47A respeito deste ponto de contato Marilena Chauí pontua que a contraposição entre filosofia e teologia corresponde à oposição entre liberdade e servidão, e ressalta que “a teologia ocupa um campo muito próximo ao da política que, como ela, também se refere à obediência e à autoridade”. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa, p. 84. Autoridade aqui é utilizada como termo necessariamente vinculado à idéia de servidão, numa relação de mando e obediência que legitimou o exercício do poder político na Idade Média, bem como, na modernidade. Ressalte-se que a política, na perspectiva adotada no presente trabalho, afasta-se da idéia de obediência e autoridade classicamente apontadas como fundamentos da teoria política erigida no medievo e continuada pela modernidade hegemônica. A política, na forma aqui apresentada, inscreve-se na tradição maquiaveliana de possibilidade de liberação pela atuação dos homens dotados de virtù. Política como liberação, nunca como servidão; abolição da noção de autoridade como sujeito que determina, de um patamar superior, o destino político da comunidade. 48O caráter voluntário se expressa na máxima “O que apraz ao rei tem força de lei”, ao passo que o elemento teocrático deste poder político é revelado pelo quanto dito nos Provérbios: “Por mim [Deus] reinam os reis e governam os príncipes”. Ibidem, pp. 86-87. 49 Ibidem, p. 87.

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seu comando sobre os homens na Terra. Ao fazê-lo, destituiu das relações

humanas qualquer fundamento de legitimidade de exercício do poder, atribuindo-a

a um comando superior, inquestionável e imutável.

A transição do medievo à modernidade vincula-se diretamente às

modificações observadas nos mecanismo de legitimação do exercício do poder.

Na aurora desta passagem irão se confrontar projetos diversos de organização da

sociedade. Interessante observar como a transcendência é novamente inserida no

pensamento político da modernidade, certamente de modo dessemelhante à forma

como foi engendrada na Idade Média, mas com o mesmo intuito de conter a

liberação do poder constituinte, erigindo estruturas de manutenção da servidão,

disciplina e conservação do poder. A modernidade foi marcada pela disputa entre

dois modos de se conceber o mundo: o imanente e o transcendente. Deste embate,

do qual a modernidade da transcendência se sagraria vitoriosa como modelo a

substituir a estrutura de regulação medieval, derivaram, ao menos, dois modos

distintos de conceber a política e o poder constituinte.

Impõe-se, portanto, analisar a tensão entre imanência e transcendência que

marcou a transição do medievo à modernidade. O esgotamento do modelo político

que vigeu ao longo da Idade Média acompanha as fissuras impostas, durante

séculos, ao modo transcendental de compreender o real. Antonio Negri e Michael

Hardt demonstram como, entre os séculos XIII e XVI, evidenciou-se

paulatinamente para os homens a dimensão libertadora da sua capacidade criativa

e produtiva. Apesar de continuarem sob o julgo da transcendência, a mutabilidade

do mundo se fazia evidente e estes mesmos seres humanos se davam conta de que

eram atores constituintes destas mudanças. Deixaram como legado, afirmam

Negri e Hardt, a idéia de produção da ciência derivada do experimento humano,

além de se perceberem como edificadores de cidades, produtores de história e de

seu próprio destino.50

Este longínquo percurso foi conseqüentemente acompanhado do processo

de secularização do poder político e culminou com a negação da legitimação

divina do poder terreno dos monarcas. O plano da transcendência, sobre o qual os

teólogos edificaram a relação de dominação e submissão medieval, parecia

50HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. São Paulo: Record, 2006, p. 89.

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fraturado, fadado ao passado que jamais retornaria. O mundo vivenciava a

descoberta do plano da imanência, terreno fértil do qual brotam a potência do ser

humano e sobre o qual as relações sociais se desenvolvem pela atuação criativa

dos homens. O conhecimento não mais provinha dos céus; é agora fruto da

intervenção humana, de sua possibilidade de transformar a realidade, construindo

novos saberes. Este processo, a que Negri e Hardt atribuem a passagem do

conhecimento do plano de transcendência para o plano de imanência51, espraiou

seus efeitos por todos os campos do conhecimento. Da filosofia às artes, das

ciências duras à economia, nada escapou ao impacto da descoberta do plano da

imanência. Iniciava-se a revolução humanista contra sacralização do poder que

atribuía à fortuna a condução dos destinos humanos.

Diverso não se passaria com a política e as formas de compreender os meios

pelos quais se legitimava o exercício do poder. Não se torna difícil imaginar que a

alteração radical de concepção de mundo instaurou uma crise no campo político,

opondo uma nova realidade - divorciada da necessidade de mediação teológica

para compreender os desígnios divinos que constituíam o real - às carcomidas

instituições que anteviam a ruína de seu poderio político. A modernidade se inicia,

portanto, como processo revolucionário, no qual se compreende o poder como

possibilidade de liberação, não de submissão; um processo em que se abre para

todos os homens a possibilidade anteriormente atribuída apenas a Deus: construir,

modificar e predeterminar a realidade.52

A esta concepção imanente, liberadora e criativa, que emerge nos princípios

da modernidade, irá se opor uma antiga opção pela relação de dominação e

submissão. À revolução operada pela descoberta do campo da imanência, tão bem

captada por Maquiavel ao apresentar a política como sistema dinâmico

impulsionado pela virtù, se observou uma reação dos núcleos de poder que viram

sepultados os fundamentos que lhes propiciavam o controle da sociedade. O que a

revolução humanista havia inaugurado anunciava um brusco deslocamento do

centro de gravidade das relações de poder: se o homem conquista a liberdade ao

se compreender artífice dos próprios caminhos, ruem as engrenagens que

51HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p.91. 52Ibidem, pp. 90-91.

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dependiam de sua servidão voluntária53 para perpetuar a mecânica da dominação.

Os poderes régio e eclesiástico entendem exatamente os riscos aos quais se

encontram submetidos. A desnecessidade de mediação do poder por um soberano

que representa Deus na Terra abre perspectivas de dimensão igualitária para os

homens. Já não é possível conter a imanência do humanismo renascentista pela

transcendência medieval. Impõe-se edificar um novo arcabouço teórico que possa

efetivamente conter a onda revolucionária. Eis por que, contra a revolução

humanista se instaura uma contra-revolução com intuito de restabelecer ideologias

de comando e autoridade54 e os mecanismos dos quais ela se vale remete, mais

uma vez, à transcendência. Não mais a que se observava no medievo, e sim uma

transcendência própria da modernidade que guarda relação com aquela apenas

pelos efeitos pretendidos. O conflito entre imanência transcendência é, assim, a

crise que define a modernidade.55

O campo da teoria política é profundamente influenciado por esta crise. Já

restou anotado como Maquiavel conseguiu captar magistralmente a potência

liberadora da imanência. Em sentido oposto, Thomas Hobbes desenvolve seu

pensamento político tendo por pedra angular a necessidade de se instituir um

mecanismo de mediação do exercício da potência humana.56 A idéia de um

53A manutenção da servidão por meio da força sempre produz mais custos e riscos. A criação de um de sistema que dociliza os corpos e entorpece as mentes de forma a introjetar nas pessoas o sentido de naturalização de um modelo opressor, garante a estabilidade de uma classe no poder. Este projeto não se inaugura com o tipo de modernidade que reage ao humanismo. A Idade Média foi regida por um modelo de dominação que se impôs, por séculos, como natural. A ruptura deste modelo, e a possibilidade de liberação da sociedade no início da modernidade, obrigou à idealização de uma nova estrutura, uma outra máquina que, conquanto tenha que ser erigida com diferentes engrenagens, tem objetivos semelhantes à anterior: naturalizar um modelo de dominação e obter servidão voluntária, ainda que as classes que se beneficiem desta mecânica possam alterar ao longo da história – do que a ascensão da burguesia e a vitória de seu projeto de modernidade são provas. 54HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 93. 55Ibidem, p. 93. As guerras e revoltas que se espalharam pela Europa na Idade Moderna têm por raiz o embate entre as duas formas de modernidade acima referidas. 56A necessidade de mediação é apontada por Negri e Hardt como característica do aparelho transcendental criado para conter a revolução humanista que revelou a potência constituinte dos homens. Conforme os autores, a mediação foi imposta como meio de compreender a complexidade das relações humanas e considerada inevitável condição de “toda ação, arte e associação humana”. Ao pensamento revolucionário do humanismo, pontuam os autores, “opôs-se uma tríade por intermédio do filtro dos fenômenos; o conhecimento humano não pode ser adquirido exceto por meio da reflexão do intelecto; e o mundo ético é incomunicável a não ser pelo esquematismo da razão. O que se está em jogo é uma forma de mediação, ou, mais exatamente, um esmorecimento reflexivo e uma espécie de débil transcendência, que relativiza a experiência e abole todas as instâncias do imediato e do absoluto na vida e na História humana.” Ibidem, p. 96. No campo da política, a mediação voltaria como a necessidade de se encontrar um

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soberano que determina as leis, impõe a ordem e organiza a sociedade em prol da

salvação pública retornaria, assim, sob nova roupagem. O soberano mediador não

pode ser mais aquele decorrente da vontade divina e Hobbes, propondo um

método racional, matemático, para identificar este mediador, trata de afastar

qualquer possibilidade de retorno ao pensamento medieval neste particular. Sob

os influxos da guerra civil inglesa, Hobbes identifica a luta por poder como razão

dos embates fratricidas, e aponta a necessidade de concentração e centralização do

poder em um núcleo para obtenção da paz. Do titular deste poder soberano

deveria emanar a lei civil - obrigatória e ordenadora - que disciplina todo o corpo

social e rege o sistema político.57 A teoria de Hobbes é centrada na definição do

estado de natureza e no contrato firmado entre os homens como mecanismo para

se protegerem dos efeitos deletérios daquele estado. Hobbes principia seu estudo

analisando em que condições o homem se encontrava inserido na natureza antes

de se agregar em sociedade. O que distingue este hipotético estado de natureza é o

fato de não existirem diferenças suficientes entre os homens a ponto de garantir

que um se sobreponha ao outro.58 O poder está pulverizado de modo equânime em

cada indivíduo. Desta igualdade decorre a esperança dos homens atingirem seus

fins e o conflito para obter os mesmos bens59; instaura-se, assim, uma guerra de

todos contra todos60, tornando instável a paz e a ordem. O medo da morte e a

impossibilidade de gozar seus bens acompanham o homem no estado de natureza

hobbesiano.61 A igualdade, que em Maquiavel se apresenta como princípio ao

qual a república deveria sempre retornar para garantir liberdade e estabilidade,

aparece em Hobbes como a raiz da insegurança e da instabilidade.

soberano que relativizaria o poder dos homens e definiria uma ordem – pré-constituída e com pretensão de imutabilidade – pela qual todas as ações deveriam se pautar. 57BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição; pp. 86-87. 58Hobbes descreve a igualdade como característica do estado de natureza no início do capítulo XIII do Leviatã: “observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.”. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. Alex Marins; São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 96. 59“Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Se dois homens desejam a mesma coisa, portanto, eles se tornam inimigos.” Ibidem, p. 96. 60Ibidem, p.98. 61Hobbes vaticina que no estado de natureza não há sociedade e, o que é pior, “há um constante temor e perigo de morte violenta”. Ibidem, p.98.

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Se a guerra decorre da igualdade que permite que cada homem se governe

apenas pela sua própria razão e detenha o direito a todas as coisas, a paz decorre

do pacto pelo qual os homens renunciam mutuamente ao direito a todas as coisas

e atribuem ao Estado o poder pleno de fazer cumprir este pacto.62 O estado de

igualdade é um estado de guerra63 e o modo mais racional de evitá-lo é saindo do

estado de natureza pela criação do Estado detentor da espada, garantidor da

segurança e da ordem, através da força. Renato Janine Ribeiro sintetiza com

acuidade o pensamento hobbesiano:

É a igualdade que dá aos homens a vontade de se matarem e roubarem uns aos outros, que os faz almejarem o poder sobre seus semelhantes; é na igualdade entendida como agressão, em suma, que se encontra a raiz das diferenças, ou seja, da desigualdade. Para garantir a paz devemos apoiar-nos neste efeito, a desigualdade, o poder; agravá-lo; e de um golpe abolir a raiz igualitária que torna tão incerta a sorte dos homens. ‘O estado de igualdade é o estado de guerra’. É situando a desigualdade no centro, dando-lhe o primado, que se alcança a paz. Para impedir a perpétua insegurança das relações de poder, é necessário o advento do Estado, tentativa de tornar a desigualdade irreversível de tão temida.64

A ordem e paz restam, assim, condicionadas à verticalização e unicidade do

poder na figura de um soberano – seja uma pessoa ou uma assembléia – que

represente o Estado. A ele cabe estabelecer as leis às quais os contratantes devem

cega obediência. O ato que estabelece a soberania decorre de um pacto, um ato

jurídico que não pode ser rompido unilateralmente. O Estado Leviatã nasce como

uma pessoa única - diversa daqueles indivíduos que aceitaram ceder parte de seus

direitos ao soberano - e dotada de vontade única.65

62Assim Hobbes define os termos do pacto, mediante o qual nasce o Estado e a soberania: “A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros [...] é conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes deles próprios [...] Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações’. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.” E continua: “Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os outros são súditos”. HOBBES, Thomas. Leviatã, pp. 130-131. 63Ibidem, p. 140. 64RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã: linguagem e poder em Hobbes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 29. 65BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 89.

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Na passagem do estado de natureza para o estado de sociedade civil pode se

identificar a sagacidade da construção teórica erigida por Hobbes, consistente em

criar um mecanismo de controle sem precisar recorrer à idéia de um soberano

legitimado por uma ordem divina. Sua teoria opera, inicialmente, no campo da

imanência por não determinar a existência do soberano como derivada de

nenhuma força superior, externa, e sim, oriunda das relações humanas. A criação

do pacto que faz nascer o Estado e a figura do soberano decorre unicamente pela

atuação da razão dos homens diante dos desafios que lhes impõe as agruras do

estado de natureza. Porém - e aqui reside a sutileza do aparelho transcendente

elaborado por Hobbes - o processo metafísico que leva à legitimação do soberano

acaba por desaguar em uma transcendência que se sobrepõe à imanência. Uma

vez ungido, o soberano se descola completamente do corpo social que

hipoteticamente o autorizou e já pode atuar como poder externo e superior, de

acordo com sua própria vontade, restando limitado apenas pela obrigação de zelar

pela salvação pública: proteção do Estado dos riscos externo (invasão) e interno

(sedição e desordem). Diante disto, revela-se a pertinência da afirmativa de

Francisco de Guimaraens no sentido de que a teoria de Hobbes permitiu o

controle da imanência por mecanismos transcendentes.66

A metafísica, na teoria hobbesiana, tem o papel de permitir a construção de

um modelo transcendente67 sem a necessidade de se recorrer à legitimação divina.

A transcendência hobbesiana, no entanto, não se encerra na metafísica. Esta é

apenas um meio para realizar a transição entre a imanência do estado de natureza

para a transcendência da soberania. Em Hobbes, a transcendência opera função de

conferir autonomia à política, desgarrando-a do social68, refreando todo o

potencial criativo que o humanismo pôs em marcha no início da modernidade. Por

este modelo não há possibilidade de o social vincular-se ao político.69 O social é,

66GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 38. 67 Negri e Hardt explicitam o vínculo entre a política e metafísica européia moderna, ao identificar a metafísica como mecanismo essencial para que a forma transcendente da modernidade, preocupada em conter a revolução humanista, erigisse seu aparelho político de dominação. Para os autores a metafísica “forneceu um maquinismo transcendente que pôde impor ordem à multidão e impedi-la de se organizar espontaneamente e expressar sua criatividade de forma autônoma.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, pp. 100-101. 68GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 39. 69Como expõe Francisco de Guimaraens: “o que há de mais interessante na teoria hobbesiana é o fato de que tal autor, inicialmente aceita a imanência, parte dela, para depois abandoná-la em favor da regulação extrínseca às forças sociais”. Ibidem, p. 38.

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assim, disciplinado pela política verticalmente exercida numa relação de mando e

obediência. O poder político, nesta concepção, independente das forças sociais.

Em verdade, conforme pontua Renato Janine Ribeiro, Hobbes “monta um Estado

que é a condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o

Estado”.70 Hobbes atribui ao soberano o poder de um Deus na Terra e, assim,

sacraliza a soberania e revela o campo transcendente sobre o qual opera sua teoria

política.71 Ao fazê-lo, aproxima-se dos mecanismos de obediência, impedindo sua

contestação. Mas essa obediência nada tem a ver com o temor ao Deus Imortal.

Decorre, antes, da contrafática autorização dos homens ao soberano, que faz da

representação o meio transcendente e legítimo pelo qual a soberania é exercida.

Hobbes propõe, assim, o encerramento da crise da modernidade pelo

entrelaçamento entre soberania e representação. Da autorização que possibilita a

representação nasce a soberania. A legitimidade das decisões do soberano decorre

do próprio ato de autorização de cada indivíduo, pelo que não cabe outra postura

que não a de obediência.72

O momento histórico durante o qual Hobbes desenvolve sua teoria é

marcado pela disputa do poder político entre o parlamento e o rei, na Inglaterra73,

a incutir no pensador inglês a certeza da inadequação do exercício da soberania

entre núcleos de poder diversos. Nesta divisão do poder residiria o fruto da

sedição, o incentivo ao facciosismo. A soberania, na concepção hobbesiana, é,

assim, marcada pelo seu caráter absoluto, uno e indivisível. O contrato que

atribuiu poderes ao soberano não o submete a obrigações outras que não a

garantia da segurança dos contratantes. Seu poder é ilimitado e centralizado;

emana apenas de sua pessoa e seu exercício não é compartilhado por outros

centros de poder como se supõe pela teoria do governo misto. Estão lançadas as

bases sobre as quais se edificaria o Estado moderno. A partir de Hobbes, se

70RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: Os clássicos da política, v.1; Francisco C. Weffort (org.); São Paulo: Ática, 2006, pp. 51-77, p. 62. 71A associação é feita pelo próprio pensador inglês: “Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda a reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.” HOBBES, Thomas. Ibidem, p.131. 72HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 102. Francisco de Guimaraens explicita, no mesmo sentido: “Hobbes resolve a tensão entre a transcendência e a imanência valendo-se de um aparato político transcendente ao corpo social. A transferência de poder enseja a capacidade do soberano de decidir de acordo com sua própria vontade, na medida em que exerce a representação dos contratantes”. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 39. 73BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo, p.112.

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introduziu definitivamente a imbricação entre os conceitos de soberania e

representação na teoria política. Como ressaltam Negri e Hardt, o modelo

hobbesiano possibilita a edificação do esquema transcendente em todas as formas

de governo, inclusive, na democracia. A associação entre soberania e

representação, passará, depois de Hobbes, a ser cara ao desenvolvimento da teoria

política ocidental, inclusive ao constitucionalismo liberal.

Mas há algo, ainda, de suma importância sobre a teoria hobbesiana: a forma

pela qual a propriedade é tratada em seu âmbito. Como não poderia ser diferente,

os fatores econômicos influenciaram decisivamente a construção da teoria política

de Hobbes. Renato Janine Ribeiro pontua que, à época em que o Leviatã foi

escrito a classe burguesa já iniciara a luta para afirmar o poder absoluto do

proprietário sobre seus bens. Esta relação sofria limitações na Idade Média, mas

na modernidade o proprietário iria somar ao direito de uso do bem, o direito a seus

frutos e o de dispor do bem da forma que lhe aprouvesse.74 Neste aspecto

específico, a teoria de Hobbes se aparta dos interesses da burguesia por atribuir ao

soberano o poder de controle sob todas as terras e bens. Não há uma lei que

subordine o soberano ao dever de respeitar a propriedade privada. O Estado é

quem tutela o direito de propriedade de acordo com a vontade do soberano.75 Nas

palavras de Renato Janine Ribeiro:

Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade – e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhada em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada – mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens estão controlados pelo soberano.76

No entanto, se o golpe na pretensão por autonomia do direito à propriedade

afasta a burguesia da teoria hobbesiana, o mesmo não se passa quanto à

concepção sobre as atribuições do Estado. A burguesia não procurou conferir

função diversa ao Estado que não a de mero garantidor da ordem e da segurança

do modelo liberal. O processo de acumulação de bens e lucro não pode recusar a

atuação estatal a impor disciplina social. De fato, a guerra civil lança os 74Conforme ressaltado por Renato Janine Ribeiro, na Idade Média a propriedade era um direito limitado. O autor exemplifica algumas limitações neste sentido: “o senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra”. RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança, pp. 51-77; p. 72. 75Bobbio, Norberto. A teoria das formas de governo, p.108. 76RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança, pp. 72-73.

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proprietários em um espiral de incertezas sobre a possibilidade de manutenção de

seus bens e da própria ordem que os assegura. A revolução inglesa, vivenciada

por Hobbes, iria tornar palpável esta possibilidade. Os anos de guerra civil inglesa

foram marcados pelo confronto entre modos opostos de se entender a propriedade.

A conflagração da guerra desnuda o conflito entre essas diversas formas de

interpretar o mundo. A perpetuação angustiante da vigília pela guerra que se

prenuncia leva Hobbes a propor a soberania absoluta como único meio para

conservar o gozo da propriedade. A luta política aflige o social. Deve-se, pois,

encerrar as disputas políticas centralizando o poder político no soberano como

meio de pacificar a sociedade. O ideal hobbesiano do Estado garantidor da ordem

pública e da proteção ao gozo propiciado pela propriedade privada jamais será

abandonado pela teoria liberal.

Tudo se passa de forma diversa para James Harrington. Para este

revolucionário inglês a profunda desigualdade na distribuição da propriedade é

que se revela fator determinante da instabilidade política. Não se trata, portanto,

de encerrar a revolução e, sim, ativá-la como mecanismo para alcançar

estabilidade política. A partilha do poder político resulta da disputa pela

igualitária distribuição das terras. Na exata expressão de que se vale Bercovici, “o

governo estável é aquele em que o balanço do poder corresponde ao da

propriedade.”77 Harrington concebe um estado de igualdade mutável, mas que se

dinamiza sempre na direção do reequilíbrio; uma dinâmica que reconduz ao ideal

do povo em armas tendo por fundamento a apropriação comunal da terra. Eis o

modo como Bercovici apresenta essa relação, que é central na teoria de

Harrington:

A posse das armas é vinculada à posse de terra, contrapondo a vassalagem à apropriação livre. A espada pertence a um senhor ou à coletividade. Os proprietários devem portar livremente armas para a ação política e a virtude cívica.78

O pensamento de Harrington aproxima-se, assim, de Maquiavel. Isto se

deve, explicita Negri, à forma como o pensamento de Maquiavel foi recepcionado

77BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p. 101. 78Ibidem, pp. 101-102.

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na Inglaterra.79 Ali os conceitos da teoria maquiaveliana foram absorvidos em sua

potencialidade revolucionária. A desunião como mecanismo incessante de ruptura

de uma ordem em direção à igualdade, traz para o plano material da sociedade -

plano da imanência - a possibilidade de construção e reconstrução da política. Ela

agora é determinada pela virtù, individual e coletiva, dos sujeitos sociais. Vê-se

claramente que a política em Harrington em nada remete à transcendência do

absolutismo hobbesiano.80 Não há súdito submetido à vontade do soberano e, sim,

um projeto de liberação de potência dos integrantes de uma comunidade

igualitária. Não se trata, em Harrington, de disputar a condição de soberano, e

sim, lutar pela modificação da lei agrária, pelo estabelecimento das terras

comunais como condição para que não houvesse soberano a disciplinar a

sociedade. A luta contrapõe liberação das forças produtivas populares à regulação

da divisão social do trabalho regida pela concentração da propriedade. A desunião

maquiaveliana se expressa em Harrington na luta entre a plebe sem terra e os

proprietários como cerne material da ruptura e reequilíbrio da constituição

política.81 Como expõe Negri:

A “desunião” entre as estruturas da propriedade e os direitos sociais dos cidadãos deve estabelecer a base e a forma da união de seus direitos políticos na constituição republicana. A constituição deve fundar uma situação na qual a virtù tenha condição de exprimir-se livre e continuamente, sem se tornar presa da fortuna.82

Harrington faz da distribuição da propriedade a base material da república: o

equilíbrio constitucional depende do equilíbrio entre as propriedades.83 A lei

agrária constitui, assim, uma lei constituinte baseada na constituição material e a

79Com efeito, pode-se extrair de Pocock referência à relação entre Maquiavel e a teoria proposta por Harrington: “As in Machiavelli, the bearing of arms is the essential medium through which the individual asserts both his social power and his participation in politics as a responsible moral being; but the possession of land in nondependent tenure is now the material basis for the bearing of arms.” POCOCK, J.G.A. The machiavelian moment. 390. [Tal como em Maquiavel, portar armas é o meio essencial pelo qual o indivíduo afirma tanto seu poder social e sua participação na vida política, como na qualidade de um ser moral responsável; no entanto, agora, a fruição da terra constitui-se, a base material para o porte de armas].[tradução livre]. 80Não obstante, convém ressaltar, como o faz Negri, que ambos, Hobbes e Harrington, compreenderam “o elemento espacial (a propriedade) e o elemento temporal (arranjo jurídico e constitucional) como determinantes da síntese política”, conferindo tratamentos diversos a tal percepção. NEGRI, Antônio. O poder constituinte, p.164. 81Ibidem, p. 163. 82Ibidem, p. 159. Segundo Negri, a virtù maquiaveliana no contexto da República-Commonwealth harringtoniana implica em afirmar que “a república é o lugar no qual a “desunião” se faz Estado, que a legitimidade do Estado se forma através do reconhecimento e da organização dos eventos que o atravessam, que a força do Estado nasce da síntese republicana da virtù individual e coletiva de seus cidadãos.” Ibidem, p. 158. 83Ibidem, p. 183.

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liberdade, tal como em Maquiavel, é garantida pela recondução da força e da

autoridade para o povo. É certo que Harrington entende necessária a representação

popular perante o parlamento. Ele propõe a conjugação da lei agrária com uma lei

que estabeleça não apenas a rotatividade no exercício do poder, como a brevidade

de tal exercício a evitar que o representante se prolongue neste munus, passando a

deturpá-lo como direito próprio. Nas palavras de Harrington:“the fundamental

laws of Oceana, or the centre of this commonwealth, are the agrarian and the

ballot: the agrarian by the balance of dominion preserving equality in the root,

and the ballot by an equal rotation […]”.84

No entanto, é a lei agrária igualitária que oferece as bases que dinamizam o

sistema político, retirando do representante o caráter de condutor e produtor da

realidade política. O político não se impõe ao social pela representação. Em

sentido inverso, a igualdade material, imanente, é que sustenta a liberdade

política. Disso decorre, como ressalta Negri, uma livre e direta vinculação entre

eleitor e o eleito, a estabelecer a comunidade como condutora da política e o

“povo como contrapoder, limite fundamental contra todo uso aristocrático ou

absolutista da constituição mista”.85 Harrington percorre o caminho oposto àquela

concentração da autoridade na figura de um soberano que implica em naturalizar e

eternizar as relações sociais desiguais. A igualdade agrária como lei perene evita

que o povo reste subjugado por uma aristocracia que concentre a propriedade de

terras em suas mãos. Conforme defendido por Harrington:

An equal agrarian is a perpetual law establishing and preserving the balance of dominion, by such a distribution that one man or number of men within the compass of the few or aristocracy can come to overpower the whole people by their possessions in lands.86

Sua idéia de representação, resta evidente, não se confunde com a

representação transcendente do soberano hobbesiano ou mesmo a que o próprio

84HARRINGTON, James. The commonwealth of Oceana. Trad. J.G.A. Pocock. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; pp. 100-101. [As leis fundamentais de Oceana, ou o núcleo desta república, são a agrária e a das eleições: a agrária mediante o equilíbrio da propriedade preservando a igualdade em sua raiz, e as eleições mediante uma alternância equitativa]. [tradução livre]. 85NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 178. 86HARRINGTON, James. The commonwealth of Oceana, p. 33. [Uma lei agrária igualitária é a que estabelece e preserva o equilíbrio das propriedades mediante uma distribuição pela qual nenhum homem ou grupo de homens possa, no âmbito de uma aristocracia, subjugar todo o povo através de suas propriedades de terras]. [tradução livre].

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parlamento inglês realiza ao longo da revolução. Em Harrington, as armas não

pertencem a um soberano – seja ele o Rei ou o Parlamento. Elas pertencem ao

povo, às milícias populares87, na esteira o pensamento maquiaveliano. Como

expõe Negri: “é sempre o povo que deve levantar a espada, pois é no povo que

reside o poder. O povo é a força que autoriza a lei.”88

Para o parlamento inglês, ao seu tempo, a revolução inglesa importava na

limitação do poder régio e transferência da soberania para seu âmago. A

contraposição entre Parlamento e a Coroa britânica marca a disputa de poder entre

a burguesia ascendente e a dinastia Stuart. Neste embate entre absolutismo e

liberalismo, o ideal igualitário de Harrington não conseguiu se estabelecer como

hegemônico mesmo após a execução de Carlos I e a instauração da república. O

Protetorado de Cromwell, que se seguiu ao regicídio, alicerçou seu poder no apoio

do exército e da burguesia puritana.89

No plano econômico, as considerações de John Locke a respeito da

propriedade que fornecem o fundamento teórico para o discurso liberal. Ao

contrário do que dispõe Hobbes, Locke afirma que a propriedade é um direito

natural que antecede à formação do Estado.90 E mais: com a criação do dinheiro, a

propriedade teria perdido seu caráter limitado, possibilitando a expansão do

comércio e a ilimitada acumulação de riquezas. Eis por que, ao longo da revolução

inglesa, o regime de propriedade não chegou a ser alterado, mantendo a

concentração contra a qual Harrington lutava. De fato, da revolução inglesa não se

extraiu uma profunda mudança na estrutura social na forma proposta pelos

Levellers - grupo revolucionário que pregava a socialização da propriedade e do

qual Harrington fazia parte. O poder popular, retoricamente utilizado pelos

87Ibidem, pp.15-16. 88NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 176. 89ALBUQUERQUE. J.A. Guilhon. John Locke e o individualismo liberal in Os clássicos da política, 1. Francisco C. Weffort, organizador. São Paulo: Ática, 2006; pp. 81-110; p. 82. 90 No início, sustenta Locke, o direito de propriedade era limitado pelo uso dos produtos obtidos pelo homem pela força do seu trabalho. O homem adquire propriedade sobre tudo o que pode realizar com o seu trabalho, mas não lhe toca o direito à propriedade do excesso de produtos que podiam perecer pela falta de uso. Tal limitação é ultrapassada com o advento do dinheiro. Em suas palavras: “[...] é evidente que os homens concordaram com a posse desigual e assimétrica da terra, tendo descoberto, pela aceitação tácita e espontânea, a maneira de alguém possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso do produto, ouro e prata que pode guardar sem causar dano aos outros, uma vez que estes metais não se deterioram nem se estragam.” LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 47-50.

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revolucionários, sempre foi reconduzido pelo exercício da soberania pela Câmara

dos Comuns,91 controlada pelos liberais. O parlamento inglês operou, assim, em

um duplo negar: refutou o absolutismo, conquanto tenha absorvido e remodelado

sua estrutura vertical de regulação para uso próprio; e impediu a constituição de

uma nova ordem que tivesse a igualdade de terras como base material da

constituição.

A revolta popular que se reinstala após a queda de Cromwell decorre

justamente das frustrações da plebe, acima aventadas. O acirramento desta divisão

só será extinto com a Restauração Inglesa por meio da Revolução Gloriosa: uma

revolução sem povo e sem luta, orquestrada pelo parlamento inglês como forma

de impedir que uma iminente revolução democrática fosse deflagrada. A

Revolução Gloriosa depõe James II e conduz ao trono William de Orange, após

sua anuência ao Bill of Rights, mediante o qual o parlamento limitava os poderes

do rei. A um só tempo, com o fim da revolução e a consolidação do poder de

produzir o político nas mãos do parlamento, libertava-se a propriedade privada do

poder ilimitado do soberano hobbesiano e a salvava do teor socializante da lei

agrária de Harrington. Concretizava-se, assim, a hegemonia do modelo liberal na

Inglaterra.

A divisão do poder entre o rei e o parlamento na Inglaterra foi estruturada

como um modelo de limitação de poder que pretendia conferir moderação e

neutralidade ao atuar político. O poder popular restou transmudado em mito, que

se exercia transcendentemente pela soberania do parlamento. A tensão entre

transcendência e imanência nesta experiência britânica restou encerrada pela

consolidação do sistema misto de governo. Como destaca Bercovici, após a

Revolução Gloriosa, “a constituição mista passa a ser o modelo teórico-

interpretativo dominante da constituição inglesa, com suas características de

soberania do parlamento, checks and balances e separação de poderes.” 92

Tais características influenciariam decisivamente o pensamento de

Montesquieu. Para Montesquieu, a monarquia ao estilo inglês possibilitava que o

poder se apresentasse dividido e, portanto, passível de ser contido. E mais:

91BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp. 105-106. 92BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, p.107.

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qualquer regime de governo deveria prever em sua estrutura política uma

instância que exercesse o papel moderador que a monarquia inglesa apresentava;

uma instância de poder, independente, que exercesse o efeito moderador tal qual o

realizava a nobreza na Inglaterra, a garantir a estabilidade e segurança política. A

teoria política de Montesquieu exerceu forte influência nos modelos liberais

francês e norte-americano que se impuseram como reação ao caráter democrático

que suas revoluções apresentaram. Por meio dela, institucionalizaram-se a

separação de poderes e a representação política como mecanismos para distanciar

o povo das decisões políticas. O temor pela participação popular nas decisões

públicas revela-se cruamente em Montesquieu:

A grande vantagem dos representantes é que estes são capazes de discutir as questões públicas. O povo não é, de modo algum, apto para disso, fato que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia. [...] ele [o povo] só deve tomar parte no governo para escolher seus representantes, e isso é tudo o que pode fazer.93

O “povo” não pode ser contado como integrante da comunidade política. Ou

melhor: a integra apenas na qualidade de incapaz, eternamente condenado à

menoridade política. A política não é o lugar do demos. A representação, que em

Harrington extraí-se concretamente pela condição de igualdade material conferida

pela lei agrária, aparece de forma abstrata e transcendente em Montesquieu. O

projeto liberal – triunfante – consistiu justamente em criar uma democracia sem

povo. Os conceitos de soberania e representação, oriundos do modo transcendente

de compreender a política, forneceram à teoria liberal os fundamentos para

estruturar um sistema político como dique contra as reivindicações populares por

igualdade material. O constitucionalismo nasce da necessidade do liberalismo

legitimar o exercício do poder político com base nestes ideais.

Com efeito, o que Maquiavel apresenta ao imbricar a dinâmica da desunião

com a necessidade do retorno da república aos seus princípios fundadores -

expresso na democracia pela possibilidade da contínua (re)fundação de uma

ordem mais igualitária – não se harmoniza com a pretensão liberal por cálculo,

previsibilidade e obediência, entendidos como fatores necessários para a

93MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002; pp. 168-169. O pensamento de Montesquieu, fundamental para disseminação da teoria do poder neutro, será objeto de estudo mais aprofundado ao longo do segundo capítulo.

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acumulação de riqueza no capitalismo. Trata-se, em sentido oposto, de liberação

da potência de sujeitos sociais que devem constituir a ordem política atentos à sua

base material. Para o liberalismo, torna-se imperativo impedir qualquer volta ao

modo imanente de compreender a política. Poder constituinte: eis o que a teoria

maquiaveliana inaugura e contra o qual o constitucionalismo é erigido. Esta

contraposição apresenta-se camuflada pelo fato de o constitucionalismo não negar

a existência do poder constituinte, e sim absorvê-la como integrante da sua

estrutura. O que ele faz é apropriar-se da idéia central do poder constituinte -

poder que funda uma nova ordem - conferindo-lhe um novo conteúdo, redefinindo

seu conceito à feição liberal.

A disputa para definir o significado do conceito de poder constituinte, e os

efeitos dele extraídos, contrapõe democracia e liberalismo. De certa forma, revela-

se como uma extensão do embate entre os dois modos da modernidade: a

imanente e a transcendente. Não por acaso, soberania e representação, conceitos

estruturadores do aparato político liberal transcendente, atuam como mecanismos

de contenção do poder constituinte. O constitucionalismo permitiu que se

aprisionasse o conceito de poder constituinte em um esquema estático e estéril, no

qual a política se restringe à atuação de poucos sujeitos e não se imbrica ao plano

social, revelando sua incompatibilidade com a dinâmica da democracia. Impõe-se

neste momento, portanto, procurar caminhos para reconduzir os conceitos de

política e de poder constituinte às suas origens democráticas.

2.3 O conceito de poder constituinte na teoria de Antonio Negri

O conceito tradicional de poder constituinte que se estabeleceu por força da

hegemonia do constitucionalismo, gestado na passagem do século XVIII para o

século XIX, carrega consigo um ideal de limitação que, para além de não

possibilitar sua expansão, nega o caráter absoluto do poder constituinte. Um

conceito que anula as dimensões democráticas do poder constituinte e, portanto,

não se presta como instrumento de compreensão das relações sociais e políticas

contemporâneas. O estudo sobre o conceito de poder constituinte demanda análise

sobre os protagonistas do processo constituinte, sua dimensão temporal e os

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espaços em que se expressa, bem como, das formas pelas quais se expressa,

incluindo aí, sua interligação com os conceitos de política e revolução. Para este

fim, Negri adota um método materialista, em que analisa as contribuições de

grandes revoluções políticas para expansão do conceito de poder constituinte em

sua perspectiva democrática.94 Este método remonta a Maquiavel na busca pela

verdade, que se extrai das relações humanas concretas e que entende o poder

constituinte como necessariamente uma causa imanente. A contraposição do

conceito de poder constituinte defendido por Negri àquele tradicionalmente aceito

pela ciência jurídica não deixa de ser, neste contexto, um reflexo da tensão entre

transcendência e imanência. Assim, convém apresentar a teoria negriana ao tempo

em que se explicita sua contraposição com o modelo constitucionalista. Este

último encontra expressão no pensamento de Emmanuel Sieyès. Após Sieyès a

crise entre transcendência e imanência seria traduzida por uma nova terminologia.

Esta mesma tensão continuaria operando seus efeitos sob a insígnia da relação

entre poder constituinte e poder constituído, relação com a qual a ciência jurídica

encontra-se familiarizada.

O constitucionalismo atribui a Emmanuel Sieyès a teorização da mecânica

do poder constituinte.95 No âmbito dos acontecimentos que deflagram a

Revolução Francesa, Sieyès defendera a legitimidade da ruptura com a estrutura

despótica do absolutismo, substituindo-a por outra ordem na qual o Terceiro

Estado96 ocupasse o lugar de preponderância na condução política nacional. O

fundamento é simples: o Terceiro Estado é responsável pelo trabalho que sustenta

94Francisco de Guimaraens revela que o próprio conceito de poder constituinte é aberto, em permanente construção o que se revela pelo próprio método utilizado por Negri, que se vale “de noções provenientes das experiências revolucionárias” ao longo da modernidade. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 149. E na visão do próprio Negri: “as grandes revoluções que se sucederam exprimiram a continuidade de um princípio constituinte que responde às necessidades de racionalizar o poder, de um princípio constituinte cuja crise foi revelada pelo nascimento e desenvolvimento do capitalismo, bem como pela forma de organização que este impõe à sociedade [...]” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 421. 95BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 142. Em sentido diverso, Francisco de Guimaraens argumenta que Maquiavel já havia descrito, com mais pertinência, o poder constituinte. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 127. Esta descrição da mecânica constituinte leva Negri a denominar os estudos políticos maquiavelianos de “fenomenologia do poder constituinte”. NEGRI. Antonio. O poder constituinte, p. 423. 96Na França os Estados Gerais eram divididos em três ordens – o Primeiro Estado correspondia ao clero; o Segundo, à nobreza e o Terceiro, ao resto da população, dentre os quais, comerciantes e banqueiros (burgueses) e camponeses, pequenos artesãos, servos e trabalhadores assalariados. A análise sobre as condições em que ocorreu a Revolução Francesa será aprofundada no capítulo seguinte, no qual trataremos do poder neutro como mecanismo de bloqueio à democracia.

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a sociedade francesa97 e, portanto, deve ter espaço político proporcional a tal feito;

o clero e a nobreza, privilegiados pela desnecessidade de laborar e pagar

impostos, parasitam o trabalho nacional e, não obstante, detêm todo poder

político. Sieyès insurge-se, portanto, contra o que considera um notório

desequilíbrio na representação política das forças econômicas. O poder político

deve refletir a força do trabalho e do poder econômico. Esta imbricação entre

social e político poderia conduzir a identificar uma tentativa de Sieyès em propor

um modelo imanente de poder constituinte. Ocorre que, assim como na teoria

Locke, o trabalho não é apresentado como meio de liberação e permanência do

poder constituinte; ele não cumpre o papel de motor do devir histórico como força

criativa que constitui novas relações em um processo aberto no tempo, e sim,

como elemento legitimador, quando não instrumento retórico, para justificar o

acúmulo de capital, em Locke, e para o aprisionamento do poder constituinte nas

mãos de uma classe, em Sieyès.98 O manifesto de Sieyès pretendeu legitimar a

transmissão do poder dos notáveis (clero e nobreza) para a burguesia. Tal

afirmação se extrai do modo como Sieyès conceitua o poder constituinte e como

ele prevê seus mecanismos de exercício.

Para Sieyès, a nação é o sujeito do poder constituinte. Ela é soberana,

independente de qualquer lei positiva e sua vontade se impõe contra todo direito

político constituído.99 Impõe-se, no entanto, ter em mente que o conceito de nação

em Sieyès encontra-se muito mais atrelado ao aspecto econômico que à identidade

97SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État? Trad. Norma Azevedo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 2. Eis porque o Terceiro Estado é tudo, e o clero e a nobreza desnecessários. Estes últimos não contribuem em nada para a formação da nação. Ibidem, p. 5. 98A demanda de Sieyès, no sentido de que seja conferida representação ao trabalho, é legítima, afirma Negri. O trabalho constitui tudo, social e economicamente. No entanto, ressalta o pensador italiano, a proposta não deixa de possuir um caráter conservador, pois, para Sieyès “é preciso mudar o sistema de representação para manter intactos e tornar funcionais a ordem e o tecido econômico-social da nação. O tema do trabalho entra no debate constitucional moderno como tema conservador.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 308. Neste mesmo sentido, ao analisar a forma limitada que Sieyès empresta ao trabalho, Francisco de Guimaraens destaca que o revolucionário francês constrói uma imagem pálida do poder constituinte, pois, “não pensa o poder constituinte como produção de um novo real, mas apenas enquanto mecanismo de afirmação de um real já constituído social e economicamente.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 111. 99“[...] uma nação é independente de qualquer formalização positiva, basta que sua vontade apareça para que todo o direito político cesse, como se estivesse diante da fonte e do mestre supremo de todo o direito positivo.” SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 51. E ainda: “a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei.”. Ibidem, p. 48.

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de um povo. A nação aparece aí como um conceito econômico, de forma que a

soberania é canalizada para a classe que detém a possibilidade de produzir

riqueza. Ao explicitar que o Terceiro Estado é tudo, é toda a nação100, Sieyès

atribui, àquela ordem, o direito de romper com a estrutura de poder vigente

(constituído), fazendo prevalecer a vontade nacional101 como expressão do poder

constituinte. O modo de exercício deste poder encontra-se indissoluvelmente

atrelado à idéia de representação. Uma lei comum e uma representação comum

fazem a nação, afirma Sieyès.102 Ela exerce sua soberania por meio de

representantes, e estes se dividem em duas categorias: os ordinários - responsáveis

por exercer a administração rotineira da nação de acordo com os ditames da

constituição – e os extraordinários que, reunidos em Assembléia Nacional, em

momentos muito específicos, substituem a nação expressando a vontade geral, não

se encontrando, por isso, limitados por nenhuma norma positivada.103

Sieyès encarna os ideais da modernidade da transcendência. O sistema

representativo por ele proposto é apresentado como forma de mediar a tensão

entre imanência e transcendência ao prever mecanismo de convivência harmônica

entre o poder constituinte (extraordinário) e poder constituído (ordinário). Ambos

encontram-se atrelados ao sistema representativo e ocupam tempo e espaços

diversos. Este ponto é crucial para compreensão do conceito limitado de poder

constituinte que o constitucionalismo adota. Ele define as relações do poder

constituinte com o tempo, espaço e forma de expressão, em consonância com a

concepção liberal, impondo freios à emancipação popular.

100 “O Terceiro Estado abrange, pois, tudo o que pertence à nação. E tudo que não é Terceiro Estado não poder ser olhado como pertencente à nação. Quem é o Terceiro Estado? Tudo.” SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 5. Arguta a observação de José Afonso da Silva ao apontar que Sieyès vale-se da idéia de nação não em seu sentido sociológico, mas “como equivalente ao Terceiro Estado, ou seja, como conjunto de indivíduos que pertencem à ordem comum”, e que assim o faz por necessitar de um fundamento para transformar aquela ordem em titular da soberania. SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 83-84. 101A vontade nacional, explicita Sieyès, “é o resultado das vontades individuais, como a nação é a reunião dos indivíduos”. SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, p. 69. 102SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa, pp. 8-12. 103Ibidem, p. 52. Como expressa Sieyès, o poder constituído (representação ordinária) “só pode se mover nas formas e condições que lhe são impostas”, ao passo que o poder constituinte (representação extraordinária) “não está submetida a nenhuma força especial.” Ibidem, p. 53. Este é o fundamento de que Sieyès se vale para comprovar que a reunião dos três Estados não pode dar à França o que ela precisa: uma nova constituição. Para isto, impõe-se convocar a nação, o poder constituinte exercido por representantes extraordinários, reunidos em Assembléia Nacional.

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A representação será erigida como procedimento que faz dos representantes

correia de transmissão da vontade geral, conferindo à relação entre poder

constituinte e poder constituído caráter de contínua normalidade. A limitação

temporal do poder constituinte, neste caso, resta evidente. Ele emerge apenas

excepcionalmente, em casos específicos em que as circunstâncias extraordinárias

exijam a manifestação da vontade da nação104, restando apenas latente em tempos

de dita normalidade. A idéia de poder constituinte como poder extraordinário,

inaugurada por Sièyes, consolidou-se na ciência jurídica.

A relação do poder constituinte com o tempo, entretanto, é de outra ordem,

revela Negri, em consonância com a teoria maquiaveliana. O movimento do poder

constituinte é ininterrupto, ele se apresenta como processo aberto no tempo, no

qual a cooperação de múltiplas singularidades conforma o real, cria novas

relações, constitui novas instituições e protagoniza acontecimentos nunca

predeterminados: a incessante mutação operada pela virtù como meio de tornar

forte a república.105 O passe de mágica com o qual Sieyès faz o poder constituinte

ser posto em estado de latência – ludibriação em que se funda o

constitucionalismo - em nada corresponde ao seu caráter original e ilimitado.

Tratava-se de evitar que a ordem liberal restasse ameaçada pela possibilidade

constante de mudança, implícita no processo constituinte. Editada a constituição

liberal, impunha-se encerrar a revolução.106 A partir da constituição de concepção

liberal, o poder constituinte, para ser novamente exercido, deverá seguir as regras

previstas no texto constitucional, como um ritual pelo qual deva atravessar para

acordar de seu sono profundo. O poder constituinte é, assim, enclausurado nos

escaninhos transcendentes do sistema representativo, disciplinado pela

constituição que outrora legitimara. O criador resta prisioneiro da criatura. O

poder constituinte obedece, agora, a um procedimento fechado, previamente

regulado pela constituição e conduzido pelo poder constituído. Ao fenômeno a

que o constitucionalismo inicialmente atribui caráter ilimitado, são impostos

limites temporal e espacial. A teoria se aparta da realidade, e deve ser obedecida a

104NEGRI, Antonio. O poder constituinte, pp.8-9. 105Ibidem, p. 61. 106BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição, p. 158.

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despeito desta.107 Este caráter paradoxal do constitucionalismo é destacado por

Negri:

O constitucionalismo é transcendência, mas é sobretudo o policiamento que a transcendência exercita sobre a totalidade dos corpos para impor-lhes a ordem e a hierarquia. O constitucionalismo é um aparato que nega o poder constituinte e a democracia. Não parecerão estranhos, portanto, os paradoxos que surgem quando o constitucionalismo tenta definir o poder constituinte – ele não pode aceitá-lo como atividade distinta e, conseqüentemente, sufoca-o na sociologia ou agarra-o pelos cabelos através da construção de definições formalistas.108

A teoria de Sieyès prestou-se à pretensão burguesa de naturalizar a ordem

liberal como único caminho para alcançar a democracia, a despeito de sustentar

sua legitimidade em um conceito de poder constituinte antagônico às

características do regime democrático. Melhor dito: a pretensão de cristalizar

qualquer ordem – inclusive a liberal - é refratária à concepção de poder

constituinte como processo absoluto em relação ao tempo, espaço e sujeitos nele

implicados. Não por outro motivo que as ordens constituídas e as classes que

nelas desfrutam de posição privilegiada tendem a erigir diques de contenção ao

processo constituinte.

No primeiro momento, o constitucionalismo procura limitar a temporalidade

revolucionária do processo constituinte. Conforme denuncia Negri, torna breve o

período de atuação do poder constituinte, mediante criação artifícios para

bloquear sua permanência que empresta ao poder constituinte o caráter de

excepcionalidade.109 A limitação, no entanto, não se restringe ao tempo fugidio de

permanência do lampejo constituinte. Ela alcança os espaços de emergência e seus

meios de expressão, vinculando-o a uma finalidade única: legar à nação uma

107O constitucionalismo, gestado no ventre das revoluções liberais, opera nesta freqüência de afirmar, para depois negar, a condição emancipadora do poder constituinte. Como destaca Negri: “a ciência jurídica nunca se exercitou tanto naquele jogo de afirmar e negar, de tomar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho lógico – como o fez a propósito do poder constituinte”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 9. Neste sentido, ainda, Francisco de Guimaraens ressalta: “trata-se da postura típica da modernidade da transcendência. Afirmar o poder constituinte de maneira teórica como ilimitado e incondicionado. Negar o próprio poder ao submetê-lo, incondicionalmente, aos mecanismos de representação política. Transcendência e regulação, esta é a tendência intrínseca do constitucionalismo”. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 97. 108NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 444. 109“[...] se o poder constituinte é onipotente, deverá [na perspectiva da ciência jurídica] ser definido e exercido como um poder extraordinário. O tempo que é próprio do poder constituinte, um tempo dotado de uma formidável capacidade de aceleração, tempo do evento e da generalização da singularidade, deverá se fechado, detido e confinado em categorias jurídicas [...]” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 9.

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constituição e, assim, legitimar a produção do ordenamento jurídico do país sob o

comando dos poderes constituídos. Ao atribuir ao poder constituído a atuação

ordinária de conduzir a política, tratando o poder constituinte como mero

incidente a que se refere como evento passado, o constitucionalismo racionaliza o

espaço político, organiza sua estrutura de forma a que as decisões políticas restem

limitadas aos lugares da representação. Confere-se, assim, autonomia ao político,

ao tempo em que o descola do campo social.110 O poder constituinte, uma vez

cumprida sua missão, é transformado em mero instrumento abstrato a legitimar os

atos dos poderes constituídos; como sua finalidade única é lançar as diretrizes

para o novo ordenamento jurídico, o poder constituinte deve retornar apenas como

discurso de atualização da constituição no âmbito daqueles espaços ocupados

pelos agentes estatais responsáveis por produzir, interpretar e aplicar o direito, ou

seja, pelas assembléias ou cortes cujas decisões serão sempre justificadas pelo

apelo à proteção do espírito da constituição, entidade etérea que, apenas aqueles

autorizados a evocá-la detêm o saber de decifrar-lhe a vontade.111 A retórica se faz

fácil e o poder constituinte, ressalvada raras consultas aos cidadãos eleitores,

transmuta-se de atuação concreta e criativa da comunidade para mero princípio

legitimador da reforma constitucional operada pelo alto.112 Negri explicita esta

mecânica, ao tratar da limitação espacial que o constitucionalismo impõe ao poder

constituinte:

O poder constituído se apresenta como mediação centralizada, a partir de um “espaço” tornado “político” porque totalmente absorvido pelo processo de “representação”. O poder constituinte é, assim, diluído no mecanismo representativo e não pode mais se manifestar senão no “espaço político”. Aqui, ele reaparece travestido em atividades das cortes supremas ou em poder de iniciativa de outros órgãos do Estado, mas sempre neutralizado. A divisão de poderes e o controle recíproco dos órgãos de Estado, a generalização e a formalização dos processos administrativos consolidam e fixam esse sistema de neutralização do poder constituinte.113

110Ibidem, p. 433. 111E aqui já se prenuncia o problema que emerge da atuação do Supremo Tribunal Federal frente a questões políticas. Esta, entretanto, é uma questão a ser enfrentada mais adiante. Antes será necessário fixar o conceito de política condizente com o ideal democrático. 112“O poder constituinte deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído – sua expansividade não deve se manifestar a não ser como norma de interpretação, como controle de constitucionalidade, como atividade de revisão constitucional. Uma pálida imitação poderá ser eventualmente confiada a atividades plebiscitárias, regulamentares, etc. De modo intermitente e dentro de limites e procedimentos bem definidos. Tudo isso do ponto de vista objetivo: uma fortíssima parafernália jurídica cobre e desnatura o poder constituinte. ” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 10. 113Ibidem, p. 434.

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Um conceito de poder constituinte como força criativa que se estende

indefinidamente no tempo, que se expressa nos mais improváveis locais, cabendo

aos diversos atores sociais construir e reconstruir suas relações sem uma

atribuição finalística predeterminada, harmoniza-se muito mais com o ideal de

democracia do que este poder constituinte pálido e estéril - limitado no tempo,

espaço e modos de emergência - proposto pelo liberalismo. O modelo liberal,

contudo, especializou-se em identificar os interesses da classe burguesa com os

interesses coletivos, na busca por naturalizar uma ordem que lhe fosse dócil.114

Não se tratou, portanto, da instauração do modelo democrático, igualitário, como

o discurso liberal não se cansa de apregoar. Certamente menos opressor que o

absolutismo - e quanto a isso que não se deixe de reconhecer seus méritos e

avanços - no entanto, produtor de novos mecanismos de regulação concentrados

em poucas mãos.

Bem observada a história dos últimos dois séculos, constata-se que o avanço

na conquista do direito a uma ordem igualitária de direitos não decorreu do

ordeiro e seguro aparato de poder liberal. Em sentido oposto, tais avanços

impuseram-se a despeito dos inúmeros bloqueios que a ordem liberal continua a

opor à democracia. O direito ao sufrágio eleitoral, à igualdade racial e de gênero,

os direito mínimos dos trabalhadores, dentre tantas outras conquistas, não

brotaram pacificamente dos iluminados princípios da modernidade hegemônica.

Foram frutos - e a história da humanidade não se cansa de render homenagens a

Maquiavel - da desunião, do conflito, da luta que contrapôs sujeitos constituintes

contra o liberalismo, como ordem constituída. Ali, no chão das fábricas, na luta

contra o patriarcado, na resistência contra toda a forma de racismo, no embate

campesino pelo acesso à terra, enfim, onde se localize movimentos de ruptura

contra qualquer tipo de opressão, eis aí lugares de emergência do poder

constituinte. Ele não se enfronha nas dobras das togas, não se esconde sob os

114Na pertinente observação de Bonavides, a burguesia revolucionária generalizou “aquilo que, de natureza, na ocasião de seu evento, definia apenas um interesse de classe ou uma ideologia. Assim sucedeu também com a liberdade, a igualdade, a democracia o Estado de Direito, hipostasiados a todo o gênero humano, e aconteceria depois com o poder constituinte da nação, apresentado como único legítimo, mas trazendo nada menos que o ascendente privilegiado e governante da burguesia, uma classe convertida já em classe dominante. Seu poder inculcava a abstrata anuência de toda a coletividade, cuja representação ela de certo modo usurpava.” BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional p. 144.

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carpetes das assembléias. Longe de se recolher à espera de uma conflagração

social de proporções inimagináveis, ele interpela constantemente os poderes

constituídos mantendo viva a crise que marca esta relação. Por mais que o

constitucionalismo se esmere em encobri-la, a tensão entre imanência e

transcendência, poder constituinte e poder constituído demonstra seu vigor e sua

atualidade.

O conceito de poder constituinte elaborado por Negri, em sentido inverso ao

do constitucionalismo, não se compraz com a afirmação meramente formal da

incondicionalidade, não-limitação e originalidade que o caracteriza. E mais: não

apenas descortina a insolúvel crise entre poder constituinte e poder constituído115,

como a coloca como elemento chave para compreensão do processo constituinte.

Reconduzida ao seio do ideal democrático, esta tensão ganha relevância para

compreender as aporias da democracia. O que a modernidade da transcendência

apontou como caos, e tentou impor ordem pelos mecanismos da soberania e da

representação abstrata116, constitui-se no movimento próprio da democracia,

entendida como processo absoluto de construção do real. O poder constituinte

revoluciona, cria novas relações e rompe com arranjos já instituídos, reformando

ou substituindo instituições consolidadas. Nada mais incômodo para a ordem

constituída – e para as forças e os interesses nela já sedimentados – que esta

menção à mutação. O poder constituído resiste, tenta conter e disciplinar o poder

constituinte, impondo-lhe limites. Esses limites, no entanto, conforme aponta

Negri, são ontológicos ao próprio processo constituinte e a ele se integra não

como sinal de impossibilidade de democracia, mas como obstáculo a ser

ultrapassado, constituindo novas relações. Esta dinâmica apresenta a constituição

115A crise entre poder constituinte e constituído revela-se pela contraposição das características que os definem. Conforme descreve Guimaraens, “o primeiro é conceito de alteração do real, enquanto o segundo é signo do estado de coisas.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p.167. 116O termo representação abstrata é utilizada aqui, para marcar distinção entre ao modelo de representação tradicional e o proposto por Harrington, no qual a representação vincula-se necessária e concretamente à igualdade material. Enquanto neste, o social e o político se imbricam, naquele outro se observa uma cisão entre planos. Isto revela, ainda, o caráter instrumental da representação, abrindo perspectivas para idealizar formas que minore a distância entre representantes e representados.

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do real como resultado da práxis coletiva; o governo de todos e por todos; a

democracia como processo absoluto.117

A tensão entre poder constituinte e poder constituído é, assim, internalizada

ao processo constituinte, desenvolve-se no plano da imanência e dele não pode ser

arrancado por nenhum esforço transcendente. Ora, esta dinâmica de emancipação

inverte a lógica da modernidade hegemônica, pautada pela busca por ordem,

disciplina e previsibilidade, e que logrou fazer o poder constituinte refém de uma

ordem jurídica pretensamente natural. Esta nova perspectiva revela que a lei civil,

as instituições, os poderes constituídos podem construídos e reconstruídos de

forma aberta; aberta quanto aos protagonistas do processo constituinte; aberta no

tempo, pois o poder constituinte jamais se curva à institucionalização; aberta

quantos aos espaços em que se manifestam por retirar do Estado (suas assembléias

e cortes de justiça) o status de local da política; e aberta quanto ao conteúdo, vez

que não se encontram pré-estabelecidos modos de organização da sociedade, e

sim interesses comuns construídos coletivamente no âmbito do processo

democrático.

O conceito de poder constituinte atrelado à idéia de incessantes rupturas,

como produto da superação dos obstáculos que o poder constituído lhe impõe,

insere-se na tradição maquiaveliana que apresenta a desunião como condição para

tornar mais forte a república. Nesta linhagem, o conflito é o motor de uma infinita

mutação que devolve aos homens o poder de trilhar seus destinos e a política não

se constitui função de um poder externo, transcendente; ela se imbrica com o

social tornando possível o ideal democrático, apresentado apenas como simulacro

pelo liberalismo. Sob esta perspectiva, o conceito de poder constituinte se associa

117Absoluto aqui em nada se aproxima do totalitário. Ele se refere à relação entre sujeito e mundo, associada à construção de uma segunda natureza que o ser humano quer governar. Como expõe Negri: “este absoluto não é propriamente um absoluto: ele é sobretudo o produto de condições dialéticas abertas e negativas, é o resultado de um processo histórico. É a determinação de subjetividades concretas. O absoluto é redescoberto como prótese do mundo, é uma segunda natureza que os homens querem governar – justamente porque é uma segunda natureza, não um objeto que nos condiciona, mas um sujeito coletivo que construímos todos juntos”. NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 425. Nesta perspectiva, compreende-se o poder constituinte como projeto de criação que transforma a democracia de potencialidade teórica em projeto político, no qual se imbricam o político e o social: “a democracia, qualificada por Maquiavel e Espinosa como “forma absoluta” de governo, torna-se uma possibilidade efetiva: ela transforma a potencialidade teórica em projeto político. O projeto já não consiste em fazer com que o político corresponda ao social, mas em inserir a produção do político na criação do social.” Ibidem, p. 425.

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não apenas ao conceito de política, como ao de revolução, produzindo

deslocamentos também quanto a este último.

A contraposição entre poder constituinte e poder constituído, conforme

visto, é apresentada pelo constitucionalismo como momento excepcional que

culmina na deflagração do processo revolucionário. O tempo da revolução

aparece ali descrito como momento único a legitimar a ruptura com uma estrutura

opressora. Por esta concepção, a revolução é o meio próprio para constituição de

uma nova ordem (“único” no sentido de adequação do meio), como também

representa o período demarcado na história em que emerge o processo

revolucionário (“único” no sentido de temporalidade restrita, como momento que

fatalmente se encerra). Neste processo, o poder constituinte conclui sua

manifestação com a codificação da constituição para não mais voltar a emergir.

Está editado o texto que organiza o social e o político. São conhecidas as

conseqüências que decorrem deste modelo: ele estabelece a constituição como o

limite da emergência do poder constituinte e atribui ao poder constituído a tarefa

de conduzir o projeto político nascido do já extinto processo revolucionário. O

conceito de política resta apartado dos conceitos de revolução e de poder

constituinte. A política, nesta perspectiva, refere-se ao presente e é exercida por

representantes que integram os poderes constituídos. Poder constituinte e

revolução, por sua vez, oscilam entre um passado já sepultado e um futuro

abstrato e incerto.

Negri insurge-se contra este distanciamento e reúne os conceitos de poder

constituinte, política e revolução no momento presente, no qual a atuação

inovadora do sujeito constituinte determina o futuro como emancipação social. É

preciso, nas palavras do pensador italiano, desdramatizar o conceito de revolução,

retirar-lhe o caráter excepcional e devolvê-lo à normalidade como movimento

contínuo de transformação. O conceito clássico de revolução como grande ruptura

que altera por completo e de uma única vez as estruturas de poder não se coaduna

ao conceito democrático de poder constituinte como processo aberto no tempo.

Negri expõe com clareza a interligação entre poder constituinte, política e

revolução, sob esta heterodoxa perspectiva:

É preciso desdramatizar o conceito de revolução de modo a fazer com que se torne, através do poder constituinte, nada mais que o desejo de transformação do tempo,

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contínuo, implacável, ontologicamente eficaz. Uma prática contínua e incontrolável. Sobre esta base, o conceito de política é arrebatado à banalidade e à sua redução obscena ao poder constituído, aos seus espaços e seus tempos. A política é o horizonte da revolução que não termina, mas continua a ser reaberta pelo amor do tempo. Toda motivação humana em direção à política consiste nisto: em viver uma ética da transformação através de um desejo de participação que se revela amor pelo tempo a se constituir.118

Ultrapassada esta questão, resta ainda, lançar luzes sob dois importantes

aspectos da teoria negriana sobre o poder constituinte. O primeiro diz respeito ao

princípio que anima este operar incessante da potência humana. O segundo refere-

se ao sujeito que conduz este processo constituinte. Que poder constituinte e

democracia não possuem uma finalidade específica já restou registrado.119 Não

obstante, se notabilizam por um mesmo princípio, que lhes é intrínseco: a

oposição da igualdade contra o privilégio. A igualdade não se apresenta aqui,

conseqüentemente, como finalidade a ser alcançada, e sim como pressuposto

ontológico. Ela não é meta, é ponto de partida; não é objetivo, e sim condição.

Mas se igualdade já havia sido anunciada pela fórmula liberal da democracia,

convém questionar sobre a originalidade de imputar-lhe o caráter de condição.

Negri responde à provocação:

Condição material: não uma abstrata e hipócrita declaração de um direito formal, mas uma situação concreta. A natureza lógica da igualdade, a racionalidade intrínseca de sua afirmação como pressuposto consistem no fato de que a multidão só pode se apresentar como igualdade, no fato de que a liberdade só pode se desenvolver entre sujeitos iguais.120

A referência à igualdade entre sujeitos traz ao debate o questionamento

sobre os protagonistas do poder constituinte. Mesmo quando, na teoria

constitucionalista, a nação é substituída pelo ideal de povo como titular da

soberania, resta incólume o caráter transcendente que se confere ao poder

constituinte. Com efeito, o conceito de povo como sujeito do poder constituinte

sustenta-se sobre um ideal de unidade como expressão da soberania. Ocorre que,

como ressalta Negri, a população se compõe de diversos indivíduos e classes, em

que impera o pluralismo como característica indelével. Atribuir a um ser uno o

caráter de sujeito constituinte significa reduzir a uma só identidade aquilo que é

múltiplo. O liberalismo, por exemplo, procurou fundamentar sua legitimidade

118NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 459. 119Para além do registro realizado, o caráter não finalístico da democracia será analisado mais detidamente quando da análise do pensamento político de Rancière. 120NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 455.

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através de um sistema representativo que atuaria como um filtro dos interesses

nacionais – depois substituído pelos interesses do povo -, baseando-se em uma

idéia reducionista e artificial da sociedade121, por desconsiderar sua composição

multifacetada, não redutível a uma identidade.122 O problema da unidade do

sujeito do poder constituinte encontra-se estreitamente vinculado à soberania,

pois, como expõe Negri:

[...] uma das verdades recorrentes da filosofia política é que só aquilo que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou o indivíduo; sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ser governados. Em outras palavras, todo o poder soberano forma necessariamente um corpo político dotado de uma cabeça que comanda, de membros que obedecem e de órgãos que funcionam conjuntamente para dar sustentação ao governante.123

Para além do reducionismo artificial da realidade uma questão maior se

põe: se este sujeito identitário não consegue manter preservada a diversidade, não

se mostra adequado como protagonista da democracia. Esta evidência se extrai da

constatação de que a associação entre igualdade e pluralidade é condição para o

desenvolvimento de uma teoria política democrática.

O quanto acima exposto revela a impropriedade de se associar igualdade à

uniformidade, reduzindo o sujeito do poder constituinte a um elemento uno como

o fizera a modernidade hegemônica com os conceitos de povo e nação. O poder

constituinte opera com uma racionalidade diversa e se expressa por um processo

em que se imbricam diversas singularidades.124 Estas, por sua vez, têm na

igualdade a condição de interagir como singulares sem a necessidade de terem

suas diferenças reduzidas a um signo uniforme.125 A diversidade, portanto, é a

racionalidade própria pela qual opera o poder constituinte, do que decorre que o

paradoxo na conciliação entre igualdade e diversidade é apenas aparente. A

121FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 2007, p. 61. 122GUIMARÃES, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 112. 123HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão, p. 140. 124Singularidades se referem a “um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139. Segundo Negri, uma racionalidade que ultrapasse a moderna deve ser configurada “como lógica das singularidades em processo, em fusão, em contínua superação”. E continua: “A uniformidade – pecado original da utopia, ainda que ela seja grandiosa e gloriosa – mostra aqui novamente o seu enraizamento no moderno e, com ele, o seu definitivo deficit como elemento das próprias condições do devir. O poder constituinte, ao contrário, sempre rompe a uniformidade, e sua criatividade busca a diversidade como racionalidade da sua própria consistência ontológica.” Idem, p. 456. 125HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139.

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igualdade refere-se ao plano das hierarquias – melhor dizendo, das não-

hierarquias –, e neste sentido, dizer igualdade não significa reduzir indivíduos a

uma massa uniforme, regida pelo pensamento único, e sim explicitar que não pode

existir desigualdade hierárquica na participação da criação da lei comum. Esta

condição exclui o soberano da cena política. A diversidade, a seu tempo, se refere

ao plano da constituição das singularidades, aos modos múltiplos e abertos de

constituição de mentes e corpos e os imponderáveis agenciamentos daí

decorrentes. Longe de se excluírem, portanto, igualdade e diversidade conformam

o ambiente propício para o exercício da democracia.

Não bastasse seu caráter identitário-reducionista, o conceito de povo integra

a noção de Estado e apresenta-se como seu elemento constitutivo, dele

dependendo para assim ser reconhecido. A identificação do povo tem sua origem,

portanto, na vontade de uma esfera de poder constituída – o Estado – o que

ratifica sua inadequação para exercer o papel de sujeito de poder constituinte.

Conforme assinala Francisco de Guimaraens:

Quem institui a noção de povo é o Estado, que confere unidade á multiplicidade de singularidades existentes. O povo é produto do poder constituído e se trata de expressão do direito constituído. Povo é aquilo que o direito diz ser, pois cidadão, a singularidade abstrata que compõe o povo, é o que o Estado afirma ser.126

O histórico das lutas pela ampliação de sufrágio bem demonstra esta

dependência. Com efeito, apenas no decorrer do século passado as mulheres

foram incorporadas como cidadãs, a alargar a noção de povo político e comprovar

que seus limites variam de acordo com a previsão estatal. Ora, a luta pelo direito

ao voto feminino revela-se exercício do poder constituinte, muito antes de serem

consideradas integrantes do povo político. Outro exemplo bastante próximo e caro

aos defensores da democracia: mesmo quando se vislumbra a possibilidade do

povo atuar diretamente por meio de plebiscito e referendo, sem a necessidade da

mediação dos representantes, esta atuação é completamente disciplinada pelas

regras estabelecidas pelo Estado; a ele compete regulamentar os referidos.

Francisco de Guimaraens sintetiza o problema de alçar o povo à condição de

sujeito constituinte:

A idéia de povo em nada afronta as noções estabelecidas pela modernidade da transcendência. Unidade e homogeneidade previamente determinadas, separação

126GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p.163.

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de titularidade e do exercício do poder, submissão das singularidades à organização externa, todos estes registros transcendentes se fazem perceber nessa noção que, desta maneira, é absolutamente inadequada para se pensar o poder constituinte.127

Se o conceito de povo128 não explica satisfatoriamente a questão do sujeito

do poder constituinte, impõe-se pesquisar um outro conceito que dê conta deste

desafio. Nesta tarefa, o conceito de multidão apresenta-se como proposta que mais

se aproxima do caráter igualitário e multifacetado que informa a democracia. Na

perspectiva de Negri, apenas a multidão pode conduzir concretamente o processo

constituinte, em sua pretensão de transformação e libertação. Ao contrapor o

conceito de multidão ao de povo, Negri explicita as características do sujeito

multitudinário:

O povo é uno. A população, naturalmente, é composta de numerosos indivíduos e classe diferentes, mas o povo sintetiza ou reduz essas diferenças sociais a uma identidade. A multidão, em contraste, não é unificada, mantendo-se plural e múltipla. Por isto, segunda a tradição dominante da filosofia política, é que o povo pode governar como poder soberano, e a multidão, não. A multidão é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente. As partes componentes do povo são indiferentes em sua unidade, tornam-se uma identidade negando ou apartando suas

127Ibidem, p.164. Tal associação “povo-Estado” remonta às lições de Hobbes: “Uma multidão é transformada em pessoa quando representada por um só homem ou pessoa de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. É a unidade do representante, e não do representado, que faz com que a pessoa seja uma [...] Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos [...] Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os outros são súditos.” HOBBES, Thomas. Leviatã, pp. 125 e 131. No mesmo sentido exposto por Guimaraens, Negri relaciona o conceito de povo à produção do Estado: “os indivíduos, no momento em que alienaram poder, tornam-se um povo, isto é, tornam-se o conjunto de portadores de direitos reconhecidos pelo soberano. Eis então que o conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado.” NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 143. 128Friedrich Müller em sua obra Quem é o povo? esforça-se por definir modos diversos de se compreender o vocábulo “povo” de forma que seja remetido à democracia. O autor alemão capta bem os problemas que podem derivar do uso da noção de “povo” como sujeito do poder constituinte; pontua Müller: “a população heterogênea é ‘uni’ficada em benefício dos privilegiados e dos ocupantes do estabilishment, é ungida como “povo” e fingida – por meio do monopólio da linguagem e da definição nas mãos do(s) grupo(s) dominante(s) – como constituinte e mantenedora da constituição. Isso impede, conforme se deseja, de dar um nome às cisões sociais reais, de vivê-las [austrangen] e conseqüentemente trabalhá-las. A simples fórmula do “poder constituinte do povo” já espelha ilusoriamente o uno”. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia, Trad. Peter Naumann, São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 72-73. Neste caso, explicita Müller, corre-se o risco de se ter o povo como mero ícone, acrescentando que, sempre que reinar o regime de exclusão na sociedade, não se faz possível atribuir ao vocábulo “povo” uma real conotação democrática. Convém questionar quando se deixou de viver em regime de exclusão, em maior ou menor grau, de sorte que, o que fora apontado como risco por Müller, ganha cores de inexorabilidade.

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diferenças. As singularidades plurais da multidão contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do povo.129

Formada, assim, por um conjunto de singularidades plurais, a multidão se

apresenta como sujeito social capaz de agir pelos seus próprios meios mediante a

cooperação entre singularidades que revelam interesses comuns e, com base neles,

conduzem seus atos. Mais uma vez, afirma-se o viés anti-soberanista que marca a

obra de Negri.130 O sujeito do poder constituinte não precisa mais ser identificado

com o soberano uno e mediador do exercício do poder.131 A multidão produz o

real sem a necessidade de se fazer mediada, pela própria impossibilidade de que

algum corpo represente relações de cooperação que se encontram sempre em

mutação. Harmoniza-se, assim, o ideal democrático com o poder constituinte pela

possibilidade de se constituir novas instituições, novas relações e vontades

comuns pela atuação de todos e por todos, uma vez que a multidão mantém-se

múltipla e internamente diferente. Negri assim expõe a impossibilidade da

multidão ser reduzida a um pensamento único:

Comecemos dizendo que a multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum”, isto é, “um comum”, sempre que ele seja entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. [...] A multidão é um conjunto de singularidades, de fato, lá onde por “conjunto” se considera uma comunidade de diferenças e lá onde as singularidades são concebidas como produção da diferença.132

129HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 139. 130Ressalte-se que Bercovici, neste aspecto particular, elabora crítica à teoria de Negri, ao afirmar que “sem soberania, o conceito de poder constituinte de Negri perde a base material de sustentação e se torna algo etéreo, metafísico. O poder constituinte atua de forma permanente. Ele se refere ao povo concreto, com autoridade e força para estabelecer a constituição, manter sua pretensão normativa e revogá-la.” BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição, pp.34-35. Na concepção de Negri as coisas se passam de forma diversa: conforme visto, a transcendência, implícita na idéia de soberania possibilita que se opere a legitimação do poder sem base material, reduzindo o poder constituinte a algo etéreo e metafísico; a teoria negriana procura sua sustentação no plano da imanência, atenta, portanto, a uma base material que não permite a redução do poder constituinte a uma figura soberana identitária e artificial. Ressalte-se, no entanto, que Negri e Bercovici comungam da crítica ao constitucionalismo e seus efeitos, e defendem um conceito aberto de poder constituinte que devolva à comunidade a determinação de seu presente e de seu futuro. Ambos autores comprometem-se profundamente com a defesa pela atuação permanente e concreta do poder constituinte. As divergências se tornam claras na forma como entendem a relação entre soberania e poder constituinte e, conseqüentemente, como equacionam o problema de se identificar o seu sujeito: povo concreto para Bercovici; multidão de singularidades para Negri. 131Daí a assertiva de Negri no sentido de que “a definição conceitual inicial de multidão representa um claro desafio para toda a tradição da soberania”, uma vez que o conceito de multidão “desafia a verdade consagrada da soberania” consistente na atribuição de legitimidade para o exercício do poder a um sujeito necessariamente uno. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 140. 132NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império, p.148.

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Vê-se, assim, como a igualdade não se obtém pela pasteurização das

singularidades; falar de igualdade não implica referir-se à homogeneidade, e sim a

ausência de hierarquização de poder de forma a permitir que diversas

singularidades possam se expressar livremente.133 A multidão se expressa

justamente na forma de agenciamentos entre singularidades que se associam em

rede134, em que a multiplicidade de interesses comuns implica em diversas

possibilidades de agrupamentos de singularidades em classes, tendo por critério

de distinção, variáveis que não podem ser exaustivamente numeradas. A multidão

é, portanto, um conceito de classes; um conceito aberto e expansivo que não

comporta lista predeterminada de seus componentes. Este ponto requer uma

especial atenção. Dizer que a multidão é um conceito aberto e vinculado à idéia de

classes não implica afirmar que todo o modo de agrupamento humano pode se

inserir no conceito de multidão. Isto porque, esclarece Negri, a classe associada à

idéia de multidão é aquela definida politicamente, e não empiricamente135; é dizer,

aquela que se constitui pela luta de classe - “uma coletividade que luta em

comum” – que atua no presente como resistência à opressão e se projeta para o

futuro como proposta política.136

Analisadas as dimensões temporal e espacial do poder constituinte, suas

formas de expressão e o sujeito implicado em suas ocorrências, um novo conceito

de poder constituinte emerge das considerações de Negri. Conceito que se

distancia daquele ofertado pelo constitucionalismo e que admite como contínua a

crise com o poder constituído; relação que é tensa, mas que, justamente pelo seu

caráter conflitivo, possibilita ultrapassar obstáculos e construir um real mais 133Importante ressaltar que Negri declara que a multidão não é um mero conceito socioeconômico, mas também um conceito de raça, gênero e diferenças de sexualidade, além de inúmeros outros que possam surgir. NEGRI, Antonio. Multidão, p. 141. 134Francisco de Guimaraens destaca que a abertura e a constante mutação que caracteriza a multidão a confere natureza rizomática, em que não pode ser identificado centro ou periferia de onde emana o poder; natureza rizomática, esta, que pode ser identificada, como exemplo, pelo modo de funcionamento da internet. GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri, p. 164. 135O problema reside no fato de “tratar a classe como se fosse um mero conceito empírico, deixando de levar em consideração em que medida própria classe é definida politicamente.” Como mero conceito empírico, prossegue o pensador, “existe, naturalmente, uma quantidade infinita de maneiras possíveis de agrupar os seres humanos em classes – a cor do cabelo, o tipo sanguíneo e assim por diante – mas as classes que importam são as definidas pelos lineamentos da luta coletiva.” HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 144. É nesta concepção que o autor defende, a título de exemplo, que a raça é um conceito político, por não ser determinada pela etnia nem pela cor da pele, e sim, politicamente pela luta coletiva, manifestando-se através da resistência coletiva à opressão racial. Ibidem, p. 144. 136HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão, p. 144

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condizente com os interesses comuns. Uma teoria da democracia que não resolve

este tenso convívio valendo-se de um irreal continuísmo entre poder constituinte e

poder constituído, conforme o faz o constitucionalismo ao narrar a doce e

harmoniosa passagem do poder constituinte originário para o poder constituinte

derivado (poder constituído). A linhagem maquiaveliana evidencia-se pela

denúncia ao caráter meramente retórico da formulação de modelos que, apartados

da materialidade histórica, tornam-se imprestáveis métodos para compreensão do

real.137 O efeito mais deletério destes modelos transcendentais reside na ocultação

do conflito, na negativa da possibilidade de criação de novas ordens, impondo um

pensamento único de que não há nada mais a ser feito, não há caminhos diversos a

trilhar. Negri enxerga por trás da fantasia constitucionalista e se depara com a

inconciliável relação entre poder constituinte e poder constituído. Ao internalizar

a crise como constituinte do processo democrático, o autor remonta mais uma a

Maquiavel e ao seu elogio à desunião. O conceito de poder constituinte completa-

se em sua dimensão democrática pela construção de uma teoria em que a mutação

no tempo é regida pela atuação da virtù e conduzida pela multidão:

[...] se o povo se faz Príncipe quando pega em armas, a definição histórica do poder constituinte – ou seja, a sua prática e a sua tendência – se realiza num processo que atravessa a desunião social e alimenta a sua potência através da luta; assim, o poder constituinte é paixão da multidão, uma paixão que organiza a força estimulando-lhe a expressão social, que se move lá onde o curso histórico tende a extinguir o poder na decadência, ou a banalizá-lo na inércia da anakyklosis. O poder constituinte é a capacidade de retornar ao real, de organizar a uma estrutura dinâmica [...] que, através de compromissos, ordenações e equilíbrios de força diversos, recupera sempre a racionalidade dos princípios, ou seja, a adequação material do político em relação ao social e ao seu movimento indefinido.

Eis um conceito de poder constituinte que, consentâneo com o ideal

democrático, oferece instrumentos para analisar atuação do Supremo Tribunal

137 Resta evidente que a constituição da multidão afasta-se da transcendência contratualista, por não depender de um pacto em que se transfira ou ceda direitos para um soberano. A criação de instituições não decorre da transcendência do soberano em relação aos sujeitos que compõem uma comunidade. O poder público, entendido como potência de uma coletividade, se funda pela imanência, vez que ordenado ontologicamente pelas relações de composição entre as singularidades que constituem a multidão, relações estas que podem se reorganizar de outras formas ao longo do tempo. Remonta-se ao ideal do Estado em Maquiavel, conforme ressaltou Mario de la Cueva: “o Estado para Maquiavel não é um ente real ou abstrato; é a comunidade humana que possui um poder interno supremo exercido pelo povo em uma democracia. Assim, a soberania para Maquiavel não é um atributo do estado, e sim uma característica do poder de uma comunidade política, que adquire um ethos próprio.” CUEVA, Mario de la. Estudo preliminar em: HELLER, Hermann. La soberania: contribución a la teoría del derecho estatal y del derecho internacional. Tradução Mario de la Cueva; México D.F.: Universidade Nacional Autónoma de México, 1995; p.17.

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Federal na qualidade de instituição constituída para lidar com aspectos

constitucionais em que se entrelaçam direito e política. Negri identifica a relação

entre poder constituinte e política, apontando para o falso vínculo entre a gênese

política e poder constituído.138 A política decorre do poder constituinte e deve ser

compreendida como “potência ontológica de uma multidão de singularidades

cooperantes.”139 O que o autor procura demonstrar é a inexistência de uma força

soberana que determine de cima para baixo o devir político. A política continua a

ser reaberta no tempo pela cooperação produtiva das múltiplas singularidades, em

um processo de criação e recriação do real. Estas primeiras impressões sobre o

conceito de política suscitam dúvidas sobre a propriedade de se atribuir ao

Supremo Tribunal Federal, na qualidade de poder constituído, o papel de fonte

produtora de política.140 É preciso, à evidência, aprofundar a análise sobre o

conceito de política para melhor esclarecer a sua relação com o poder constituinte

e com as instituições dele decorrentes. A teoria de Jacques Rancière nos conduzirá

neste desafio de reconduzir a política à gramática da democracia.

2.4 A política na perspectiva de Jacques Rancière

Ao início do presente trabalho restou anunciado a insuficiência do conceito

tradicional de política para compreender o modo cooperativo de construção do

comum, implícito na idéia de democracia. A política é habitualmente associada

aos mecanismos de atuação dos poderes estatais, que visam à formação de

consensos atribuídos à sociedade, por meio da deliberação e decisão dos agentes

que ocupam postos representativos na organização harmônica e independente dos

três poderes. A inadequação deste conceito refere-se, principalmente, aos modos e

lugares associados a esta concepção sobre a política. Jacques Rancière denuncia,

em sua obra O desentendimento, a naturalidade com que se tornou habitual elogiar

138Neste sentido, Negri destaca que “não há definição de política senão a partir do conceito de poder constituinte. Longe, pois, de ser uma aparição extraordinária ou uma essência clandestina encerrada nas malhas do poder constituído, o poder constituinte é a matriz totalizadora da política.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte, p. 457. 139Ibidem, p. 457. 140 Ressalte-se que, dizer que determinado poder constituído não é fonte produtora de política, não significa afirmar que ele não receba influxos de questões políticas, sendo obrigado a lidar com estas. Na verdade, a todo o momento os poderes constituídos são confrontados pela política, como expressão, mais uma vez, da conflitiva relação entre poder constituinte e poder constituído.

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a purificação da política, restringindo-a a lugares pretensamente adequados à

deliberação e decisão sobre o bem comum, ressaltando que, nestes mesmos

lugares, impera o conformismo sobre as possibilidades de mudanças. Os lugares

onde opera essa política seriam:

[...] as assembléias onde se discute e se legisla, as esferas do Estado onde se tomam as decisões, as jurisdições supremas que averiguam a conformidade das deliberações e das decisões às leis fundadoras da comunidade. A desgraça é que, nesses próprios lugares, se propaga a opinião desencantada de que há muito pouco a deliberar e de que as decisões se impõem por si mesmas, sendo o trabalho próprio da política apenas o de adaptação pontual às exigências do mercado mundial e de uma distribuição equitativa dos lucros e dos custos dessa adaptação.141

Nada disso soa como novidade. De fato, Rancière traduz, em outros termos,

os efeitos da perpetuação de uma ordem constituída, a que Negri se reporta ao

apontar os riscos de se aceitar o poder constituído como condutor da política. A

idéia de que há pouco o que se possa ser mudado decorre da lógica própria que

conduz a atuação do poder constituído: preservar-se institucionalizado,

pretendendo-se legitimado como representante maior da vontade constituinte.

Essa lógica, no entanto, não é nefasta por si; ela é intrínseca à crise que informa o

processo constituinte e demonstra que, de algum modo, o arranjo institucional é

impregnado pelo poder constituinte, mas acaba enclausurado pelo poder

constituído, em um movimento termidoriano. Olvidar a mecânica desta tensão,

tentando a todo custo relegar o poder constituinte ao ostracismo, é que nos lança

na letargia contra a qual Rancière se insurge. A política deve ter por efeito

dinamizar esta relação ao tornar evidentes os mecanismos de aprisionamento do

poder constituinte, abrindo caminhos para mutações que rompam com o

constituído.

Diante destas evidências, Rancière propõe uma nova formulação sobre o

conceito de política, afastada do conceito tradicional segundo o qual:

[...] designam com a palavra política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição.142

141RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 2003; p.10. 142 RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: A crise da razão. Organizador: Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 367-382, p. 372.

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A renúncia a esta concepção deriva da constatação de que ela não expressa o

que distingue a política numa democracia: a ruptura de toda lógica de dominação

que se pretende legítima.143 Assim, imprescindível responder a duas questões.

Primeiro, o que se deve entender por política? Segundo, o que, então, significa o

tradicional conceito de política, se política, de fato, não o é?

A política, para Rancière, é, antes de tudo, uma questão estética, pois se

vincula às diversas formas de atribuir valor ao que se vê, ao que se diz e se ouve, à

situação dos que falam e os lugares que ocupam, às formas de distribuição dos

corpos no tempo e no espaço e as funções que eles devem exercer, disto derivando

diferentes recortes do mundo sensível. Recortes que se opõe e marcam a

existência de mundos diversos convivendo em um mesmo mundo144 e que

distinguem de modo diverso quem possui “competência para ver e qualidade para

dizer”, quem possui título para distinguir o justo do injusto. 145

Esta participação no comum, marcado pela diferença e pela definição prévia

de quem está autorizado ou impedido a agir de uma determinada maneira, parece

anunciar-se já em Espinosa:

Talvez esse texto seja acolhido com riso por aqueles que restringem à plebe os vícios inerentes a todos os mortais [...] A natureza, digo eu, é a mesma para todos e comum a todos. Mas nós deixamo-nos enganar pelo poder e o requinte. Daí esta conseqüência: agindo dois homens da mesma maneira, dizemos que o que era permitido impunemente a um, não o era a outro; os atos não são diferentes, mas os agentes são. A soberba é natural no homem. Uma nomeação por um ano basta para orgulhar os homens, que acontecerá com os que perseguem honras perpétuas? Mas a sua arrogância reveste-se de fausto, luxo, prodigalidade, de um certo conjunto de vícios, de uma espécie de sábio despropósito e de uma elegante imoralidade, tal como de outros vícios que, considerados separadamente, surgem em todo seu aspecto odioso e sua ignomínia, parecendo às pessoas ignorantes e de parco juízo ter um certo brilho.146

143Ibidem, p. 372. 144“A política, antes de ser o modo pelo qual indivíduos e grupos combinam seus interesses e sentimentos, é um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível.” Ibidem, p. 368. 145 Na acepção do autor, política é uma questão de estética, pois é um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005, pp. 16-17. 146 ESPINOSA, Bruch de. Tratado político. Trad. Manuel de Castro. São Paulo: Abril Cultural, 1983, capítulo VII, § 27, p. 337. Como pontua Marilena Chauí: “o parágrafo 27, distinguindo entre atos iguais e agentes desiguais, indica que a Natureza, a mesma em todos e comum a todos, é, agora, tomada sob novo ângulo, não mais na perspectiva daquilo que os homens experimentam em

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A política como constituição estética implica, assim, em reconhecer que a

comunidade se forma pela partilha do sensível.147 O que significa e quais os feitos

desta partilha? Rancière ressalta que se deve estar atento para o fato de que ao

dizer partilha, o faz em duas significações: partilha como participação de um

conjunto comum e, ao mesmo tempo, como divisão de partes e distribuição de

quinhões. Assim, sendo, a partilha do sensível é a configuração da relação entre o

comum partilhado e a divisão de partes e lugares exclusivos.148 Nas palavras do

filósofo:

[...] denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis, que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa planilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como o comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte da partilha.149

Disto poder-se-ia extrair a constatação da possibilidade de realizar uma

perfeita contagem das partes e de seus quinhões, permitindo que se estabelecesse

um sistema harmônico, não conflituoso, em que o ideal de justiça distributiva

pudesse equilibrar as partes que integram esse cálculo do todo. Ocorre que, esta

contagem das partes da comunidade é sempre uma falsa contagem ou um erro na

contagem.150 Imperioso aprofundar a análise desta assertiva, pois dela deriva a

gênese da política na concepção de Rancière.

A política, para os clássicos, surge justamente da tentativa de repartir as

parcelas do comum levando em conta a proporção entre as parcelas da

comunidade e os títulos que as confere legitimidade a integrar a polis. Ao valor

que cada parcela traz para a comunidade, corresponde o direito de deter parte do

poder comum.151 Aristóteles define como três os títulos de comunidade: a riqueza,

a virtude ou excelência e a liberdade. A riqueza revela-se como título próprio dos

oligarcas; a virtude refere-se às pessoas de bem e mais sábias, os aristocratas; e a

comum, mas daquilo que sendo todos eles conatus e direito natural, neles se passa sob os efeitos da desigualdade instalada pela divisão social, nascida ela própria de algo comum a todos [...]”. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa, p. 277-278. 147Como afirma Rancière: “pelo termo de constituição estética deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 7. 148RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível,, p.7. 149Ibidem, p. 15. 150RANCIÈRE. Jacques. O desentendimento, p. 22. 151 Ibidem, p. 21.

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liberdade é o título pertencente ao povo. Isoladamente, a cada título corresponde

um regime próprio – oligarquia, aristocracia e democracia – que, apenas

integrados conjunta e harmonicamente, evitam conflitos e sedição, trazendo

estabilidade a polis.152 Esta estrutura busca conferir capacidades políticas às partes

que formam a comunidade e, pretensamente, equilibrar o cálculo que conta estas

partes.

Este modelo político não parece tão distanciado no tempo. A relação entre

os antigos e os modernos aparenta, neste ponto, conter graus de semelhanças que

torna pertinente a opção de Rancière por iniciar seus estudos políticos pela

Antiguidade. Com efeito, o modelo polibiano – inspirado em Aristóteles –

influenciou decisivamente, dentre tantas, a teoria de Montesquieu sobre a divisão

dos poderes como meio de equilibrar as forças das partes que integram a

comunidade. O ideal de moderação dos poderes descende de uma linhagem que

enxerga a política como meio efetuar pequenas correções para evitar que o

equilíbrio da equação que rege a harmonia entre as partes da comunidade seja

rompido. Daí Rancière poder afirmar:

[...] o que os “clássicos” nos ensinam é antes de mais nada o seguinte: a política não se ocupa dos vínculos entre os indivíduos, nem das relações entre os indivíduos e a comunidade, ele é da alçada de uma contagem das “partes” da comunidade.153

Este pretenso equilíbrio, no entanto, esconde a existência de um erro na

contagem dessas partes, um equívoco na contagem dos títulos próprios com que

cada parte contribui para o bem comum. A liberdade atribuída ao demos em

verdade não se configura como um título próprio, somente seu. Trata-se de um

título também compartilhado entre as demais partes da comunidade. A gente do

povo, diz Rancière, é de fato simplesmente livre como os outros.154 Desta

ausência de título distintivo, vez que não possui riqueza, nem virtude, decorrem

dois efeitos: primeiro, o demos só pode ser considerado parte como resto do

cálculo que bem distingue oligarquia e aristocracia, como conjunto de pessoas que

se ligam pela negativa; aqueles que não possuem nada de distintivo e que

necessitam arrostar qualquer forma de dominação que lhe arrebate a única coisa

que os faz igual à comunidade: a liberdade. Em segundo plano, por não ter parcela

152 Ibidem, p.22. 153RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 21-22. 154Ibidem, p. 23.

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própria, por ser nada e possuir apenas a liberdade, o demos apropria-se desta

característica comum como se própria fosse. A apropriação do que é comum por

aquela parte que não tem parcela desequilibra a pretensão do cálculo harmonioso

– e fantasioso – que procura esconder a ausência de parcela do demos na

contagem das partes. Em verdade, revela-se a ocorrência de uma dupla contagem

de títulos para os oligarcas e aristocratas, vez que, além dos que lhes são próprios,

também lhes pertence a liberdade. Eis o motivo pelo qual Rancière afirma que não

é a liberdade o que o demos traz para a comunidade como título próprio, e sim o

litígio. O título que o povo traz é uma “propriedade litigiosa, já que não lhe

pertence propriamente.”155 É, portanto, através deste litígio, que o demos – como

parcela que não possui parcela peculiar - procura se identificar com o todo da

comunidade, titular-se como igual contra a dominação daqueles cuja virtude ou

riqueza têm por conseqüência relegá-lo a uma parcela da comunidade que não

toma parte nas coisas comuns.

O litígio perturba a ordem estabelecida e, neste momento, funda a política

pela divisão do mundo comum em recortes de mundos sensíveis diversos: o

daqueles que detêm títulos próprios e enxergam a dominação como estabilidade e

equilíbrio das partes que compõem a comunidade, em contraposição ao mundo

sensível daquela parcela dos sem-parcela que, fundada na igualdade que lhe

empresta o título da liberdade, compreende aquele modelo estático como

mecanismo que a impede de tomar parte nas decisões sobre o que é comum. Esta

cisão é enunciada por Rancière:

É em nome do dano que lhe é causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem não tem parcela – os pobres na Antiguidade, o terceiro estado ou o proletário moderno – não pode mesmo ter outra parcela a não ser nada ou tudo. Mas é também mediante a existência dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que é tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade política, ou seja, enquanto dividida por um litígio fundamental, por um litígio que afeta a contagem de sua partes antes mesmo de afetar seus “direitos”. O povo não é uma classe dentre outras classes. É a classe do dano que causa à comunidade e a institui como “comunidade” política.156

A política aparece nesse contexto como a possibilidade de questionar a

partilha do sensível já dada, como meio de propor reconfigurações dos sensíveis

155RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p.24. 156Ibidem, p. 24.

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comuns rompendo uma ordem lógica de dominação, pretensamente natural.157 A

comunidade política, por sua vez, só pode ser concebida através do litígio

concreto entre aqueles que têm parcela – títulos – e a parcela dos sem-parcela.

Seria inexato, no entanto, entender a política como decorrência de uma

preexistente luta entre classes. A luta de classes, ressalta Rancière, não está sob a

política, ela é a política158; ela não antecede a política, lhe é contemporânea. E

aqui Rancière aproxima-se de Negri quando o pensador italiano alerta que não se

deve tratar classe como mero conceito empírico, e sim como conceito político.

Nesta concepção, a classe não decorre de uma divisão natural, não há classes por

si mesmas, e sim a divisão do mundo sensível em mundos diversos que expressam

diferentes modos de compreender o real. Neste sentido, expõe Rancière:

[...] foram os antigos muitos mais do que os modernos, que reconheceram no princípio da política a luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram exatamente – com o risco de querer apagá-la – sua realidade propriamente política. A luta dos ricos e dos pobres não é a realidade social com que a política deva contar. Ela se confunde com sua instituição. Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política – ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos – que faz os pobres existirem enquanto entidade. [...] A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e reparações. Fora desta instituição, não há política. Há apenas ordem de dominação ou desordem da revolta.159

A democracia – o governo do demos - faz revelar a política como atividade

de um comum que é necessariamente informado pelo litígio. Cabe, neste

momento, um alerta de suma importância: democracia, lembra Rancière, aparece

inicialmente como um insulto, como referência aos pobres, menos como categoria

econômica, e mais como categoria simbólica, “um lugar específico no mundo

157 “Existe política quando a contingência igualitária interrompe como ‘liberdade’ do povo a ordem natural das dominações.” Ibidem, p. 32. 158 Como exprime Rancière, o demos “não é apenas a parte que se identifica ao todo. É a parte que se identifica ao todo exatamente em nome da injustiça que lhe é feita pela ‘outra’ parte: por aqueles que são alguma coisa, que têm propriedades, títulos para governar. Essa estrutura conflitual não deve ser pensada de forma redutora, como o dado da luta social que se imporia como subestrutura da política. A luta de classes não está ‘sob’ a política, não é a realidade da divisão e da luta que desmentiria a falsa pureza da política. A luta de classes, o cômputo polêmico enquanto um todo dos que são nada, é a própria política.” RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, p. 371. 159RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 26-27.

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daquilo que se vê e se considera.”160 O pobres são os reles, os que não possuem

nenhum título distintivo que os legitime para governar; não lhes toca título de

nobreza pelo bem nascer, nem os títulos da riqueza ou sapiência. A democracia

representa, portanto, uma ruptura de qualquer forma de dominação por prever que

não há necessidade de título para governar.161 A política, por sua vez, é marcada

pelo paradoxo de se fundar na ausência de fundamento natural de dominação.162 A

política obedece à “pura contingência de toda a ordem social”163, sem necessitar

recorrer à qualquer fundamento divino ou natural que distribua as atribuições de

mando e obediência, revelando o caráter imanente da sua teoria.

O retorno aos clássicos é revelador. Conforme destaca Rancière, Platão

considera pertinente distribuir os papéis de governante e governado pelo critério

da ciência e da ignorância. Platão sustenta, a expor sua perspectiva francamente

antidemocrática, que os artesãos não podem tomar parte das decisões comuns,

pois a dedicação ao trabalho exaure todo o seu tempo; eles não dispõem de tempo

para se dedicar a nada mais que não seja o trabalho.164 O modo como é

compreendida sua ocupação o impede de receber seu quinhão sobre a deliberação

da coisa comum. Pertinente a intervenção de Rancière:

[...] a partilha do sensível faz ver quem pode tornar parte no comum em função daquilo que se faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum.165

Nesta partilha do sensível, a parte distribuída ao artesão é, portanto, uma

não parcela. Ao mesmo tempo em que integra a partilha, pois nela lhe é atribuído

um lugar – o daquele que trabalha - o artesão participa na contagem das partes da

comunidade como uma parcela que não toma parte nas discussões das coisas

comuns. Platão define claramente um regime, em que, das decisões sobre o bem

160Idem. O dissenso, p. 370. 161“Esse nome banal para nós [democracia] significa portanto originalmente uma ruptura inédita, a instituição de um mundo às avessas para todos os que pretendem fazer valer um título para governar. Significa que governam especificamente os que não têm nenhum título para governar.” Ibidem, p. 370. 162Ibidem, p. 370. 163Idem, O desentendimento, p. 30. 164 “Os artesãos, diz Platão, não podem participar das coisas comuns porque eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não espera.” RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível, p. 16. 165Ibidem, p. 16.

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comum, não participam todos que compõem a polis. Ao fazê-lo, torna evidente a

existência de uma parte da comunidade que não possui qualquer título distintivo

que a legitime para tomar parte no governo e, assim, revela cruamente a existência

da parcela dos sem-parcela, demonstrando o erro no cálculo das partes do todo.166

Aristóteles, em sentido oposto, procurou conferir ao ser humano um signo

que o definisse como animal naturalmente político. A posse do logos, na

concepção aristotélica, por si, confere ao homem a natureza política. Os animais

possuem voz e podem exprimir dor ou prazer através de barulhos, mas, apenas o

ser humano, possui, para além da voz, a palavra que o permite manifestar o justo e

o injusto, o bem e o mal.167 A polis é a comunidade desses valores e o cidadão a

integra, na medida em que é contado como parcela que toma parte na construção

deste comum, no fato de governar e ser governado. A contagem das partes, no

modelo aristotélico, sempre coincidirá harmoniosamente com o todo. Qualquer

um que possua a palavra é contado como ser político, membro da comunidade.

Não há necessidade de conflito, nem erro na contagem que suscite o litígio. Mas,

como pontua Rancière, o que parece plenamente resolvido no campo teórico

apresenta-se de outra forma na concretude mundana:

Tudo parece bastante claro: quando se está diante de um animal que discursa, sabe-se que é um animal humano, portanto político. Mas, na prática, uma outra coisa é muito menos clara: como se reconhece exatamente como um discurso aquele ruído que o animal diante de nós faz com sua boca? Esse reconhecimento não é, justamente, natural. Ele próprio supõe uma subversão da ordem normal das coisas. Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas ruído no que ele diz.168

A forma como cada parcela toma parte na polis é, portanto, antecedido por

uma outra forma de partilha do sensível: aquela que determina os que tomam

parte da polis.169 É dizer: se é certo que o cidadão é aquele que possui a palavra e

166 Como expõe Rancière: “o ódio resoluto de antidemocrata Platão enxerga com mais justeza os fundamentos da política e da democracia do que os mornos amores desses apologistas cansados que nos garantem que convém amar ‘racionalmente’, quer dizer, ‘moderadamente’, a democracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro de cálculo da democracia, que em última instancia é apenas o erro de cálculo fundador da política. Idem, O desentendimento, p. 25. 167 Rancière, valendo-se de Aristóteles, ressalta a distinção entre a palavra, que manifesta, e a voz, que apenas indica. E detalha: “o que a palavra manifesta, o que ela torna evidente para uma comunidade de sujeitos que a ouvem é o útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o injusto. RANCIÈRE, Jaques. O desentendimento, p. 17. 168 Idem. O dissenso, p. 373. 169 Idem. A partilha do sensível, p. 16. “Antes do logos que discute sobre o útil e o nocivo, há o logos que ordena e confere o direito de ordenar. Mas esse logos primeiro já está mordido por uma

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não apenas voz, existe uma partilha do sensível que atribui apenas a uma parte da

comunidade o fato de ter seu discurso ouvido como palavra e não como ruído, que

distribui simbolicamente os corpos entre aqueles visíveis e invisíveis. A política

não decorre, assim, da mera posse do logos como anuncia Aristóteles; ela existe

por conta da forma cindida pela qual se apartam aqueles que emitem a palavra, e,

por isso, estão aptos a diferenciar o justo do injusto, daqueles outros, cuja voz não

pronuncia um discurso articulado e racional:

Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta.170

Esta divisão do mundo sensível é retrata por Rancière ao descrever a

interpretação que Pierre-Simon Ballanche confere à sedição dos plebeus romanos

que se retiraram da cidade e se refugiaram no monte Aventino. O conflito, do qual

se originaram os tribunos da plebe, contrapôs plebeus aos patrícios em Roma. A

tratativa entre as partes revela, em primeiro plano, a ordem do sensível que

organizava a dominação dos patrícios sobre a plebe. À exortação do patrício

Menênio Agripa a que os plebeus retornassem às suas atividades naturais, estes

responderam com a proposta de um tratado. O escândalo desta proposta revela-se

na ruptura da ordem desigualitária vigente; na pretensão de igualdade da plebe

como possuidora do logos a ponto de poder debater com – e como - os patrícios,

de firmar contrato e participar da formação de uma lei comum. Tudo isso soa

absurdo para os patrícios: aqueles que não têm nome, que não são contados como

emissores do que é justo ou injusto para a cidade, não podem ser reconhecidos

como participantes igualitários de uma discussão.171 A reação de Ápio Cláudio,

descrita por Ballanche – e transcrita por Rancière - desnuda a ordem do sensível

que organiza a dominação dos patrícios:

Possuem a palavra como nós, ousaram eles dizer a Menênio! Foi um Deus que fechou a boca de Menênio, quem ofuscou seu olhar, quem fez zumbir seus

contradição primeira. Há uma ordem na sociedade porque uns mandam e outros obedecem.” Idem. O desentendimento, p. 31. 170RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 36. 171 “A posição dos patrícios intransigentes é simples: não há porque discutir com os plebeus, pela simples razão de que estes não falam. E não falam porque são seres sem nome, privados de logos, quer dizer de inscrição simbólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual, que não transmite nada, a não ser a própria vida, reduzida a sua faculdade reprodutiva.” Ibidem, p. 37.

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ouvidos? Será que foi tomado de uma vertigem sagrada? [...] ele não soube responder-lhes que tinham uma palavra transitória, uma palavra que é um som fugidio, espécie de mugido, sinal da necessidade e não da manifestação da inteligência. São privados da palavra eterna que estava no passado, que estará no futuro.172

Ao se anunciarem como iguais detentores do logos os plebeus rompem com

uma ordem de dominação supostamente natural, lançam por terra o fundamento

que legitimava a divisão desigualitária do sensível e estabelecem uma nova ordem

em que passam a ser contados.173 Passam, assim, de invisíveis, de massa uniforme

que emite sons guturais, a seres que tinham nomes, emitiam a palavra e tomavam

parte na discussão do comum.174 O desenlace do conflito, relata Rancière, impôs

aos patrícios a conclusão de que “se os plebeus se tornaram seres da palavra, não

mais há a fazer, a não ser falar com eles.”175 Do desfecho deste conflito nascem os

tribunos da plebe, institucionalizando a participação da plebe no governo romano.

O que se expressa claramente aqui, e articula as falas de Maquiavel, Negri e

Rancière, é que a política, originária do confronto entre dois mundos sensíveis,

permite a atuação do poder constituinte como mecanismo de ruptura de ordens

que estruturam a dominação tendo por fundamento um título que determina a

distribuição desigual e hierarquizada dos sujeitos, dos lugares e funções. O

apólogo do Aventino expressa, em certa medida, a tensão entre poder constituinte

e poder constituído a que Negri se refere; o conflito entre imanência – vez que a

política obedece à pura contingência de toda a ordem social – e transcendência –

em que se recorre a um fundamento natural de dominação que distribui as

atribuições de mando e obediência.

Rancière defende - e se vale do apólogo do Aventino para demonstrá-lo -

que a política refere-se a um conflito anterior àquele que contrapõe interesses de

172Ibidem, p.37. 173 A posse do logos, destaca Rancière, permite que os plebeus se valham da palavra para erigir um destino comum, e ao fazer o que contraria a ordem posta, expõe o autor, “instituem uma nova ordem, uma outra divisão do sensível, constituindo-se [...] como seres falantes repartindo as mesmas propriedades daqueles que as negam a eles.” Ibidem, p. 38. 174 Como explicita Rancière, afirmando a posse logos os plebeus passam a executar uma série de atos de palavras semelhantes à dos patrícios. Assim é que executam uma série de atos de palavras que mimetizam os dos patrícios e comportam-se, por meio da transgressão, como “seres falantes, dotados de uma palavra, que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência”. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 38. 175 “O Senado romano, no relato de Ballanche, é animado por um Conselho secreto de velhos sábios. Estes sabem que, quando acaba um ciclo, quer isso nos agrade, quer não, ele está acabado. E concluem que, já que os plebeus se tornaram seres de palavra, nada mais há a fazer, a não ser falar com eles.” Ibidem, p. 39.

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debatedores que, através do debate regido por regras isonômicas, seriam capazes

de atingir um consenso universalizante. A política é, antes de tudo isso, o conflito

para se determinar se existe um palco comum e quais são as pessoas que podem

ser contadas como protagonistas nesse conflito. Conforme expressa Rancière:

A política é primeiramente o conflito da existência de uma cena comum, em torno da existência e a qualidade daqueles que estão ali presentes. É preciso estabelecer antes de mais nada que a cena existe para o uso de um interlocutor que não a vê e que não tem razões para vê-la já que não existe. [...] Não há política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não se estão, o mundo em que há algo ‘entre’ eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada.176

É justamente à reunião desses dois mundos sensíveis em um mesmo mundo

que instaura uma cena de conflito a que Rancière denomina dissenso. O

desentendimento, nesta concepção, não se traduz no fato de que ambos os lados

expressem vocábulos diferentes. O que marca a diferença são as formas

inconciliáveis como cada um entende o que foi enunciado. Quando contados e

não-contados expressam o termo “igualdade”, por exemplo, querem expressar

realidades diversas de como apreendem este signo a partir de seus peculiares

modos de enxergar o mundo: “o dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das

maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo do

mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria.”177 É neste

sentido que Vera da Silva Telles, em artigo que trata sobre direitos sociais, expõe:

[...] se a reivindicação de direitos está longe de ser a tradução de um suposto mundo das necessidades, tampouco pode ser reduzida simplesmente ao jogo dos interesses, pois os direitos estruturam uma linguagem pela qual esses sujeitos elaboram politicamente suas diferenças e ampliam o "mundo comum" da política ao inscrever na cena pública suas formas de existência, com tudo o que elas carregam em termos de cultura e valores, esperanças e aspirações, como questões que interpelam o julgamento ético e a deliberação política. [...] Se é certo que a reivindicação por direitos faz referência aos princípios universais da igualdade e da justiça, esses princípios não existem como referências de consenso e convergência de opiniões. Ao contrário disso é o que define o terreno do conflito no qual as

176RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 39-40. 177Idem. O dissenso, p.368.

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disputas e antagonismos, divergências e dissensos, ganham visibilidade e inteligibilidade na cena pública.178

O dissenso, portanto, promove a instauração da cena política por revelar

uma pressuposição de igualdade, onde a desigualdade é vista – e vivida - como

natural. Ele provoca arrombamentos na ordem constituída, pois se expressa na

emergência de personagens que pretendem encerrar com a distinção entre

protagonistas e figurantes, subverter a distribuição de papéis que distingue quem

possui fala daqueles que devem permanecer calados. A questão, portanto, não se

resume ao eventual reconhecimento fático de uma desigualdade. Esta mera

constatação pode conviver bem com a inalterabilidade do estado de coisas, a se

constituir, também, um mecanismo de naturalização. Com efeito, mesmo o

sentimento piedoso e o mero desejo de que as coisas se passem de forma diversa

acabam por confirmar a distribuição dos lugares e funções na sociedade. Eles se

revelam como bons anestésicos, e nesta qualidade prestam-se à transcendência da

dor real. A política - e o dissenso que a anima -, em sentido inverso, reconduz a

questão à concretude mundana, pois revela a desigualdade no momento em que

atua para desestabilizar a ordem que a institui, em nome de uma pressuposição de

igualdade ativada pelos sujeitos destituídos do logos:

[...] igualdade que não existe na realidade dos fatos, mas que se apresenta como uma exigência de equivalência na sua capacidade de interlocução pública, de julgamento e deliberação em torno de questões que afetam suas vidas e essa exigência tem o efeito de desestabilizar e subverter as hierarquias simbólicas que os fixam na subalternidade própria daqueles que são privados da palavra ou cuja palavra é descredenciada como pertinente à vida pública do país. O que instaura a polêmica e o dissenso sobre as regras da vida em sociedade não é portanto o reconhecimento da espoliação dos trabalhadores, a miséria dos sem-terra, o desamparo das populações nos bairros pobres das grandes cidades, ou ainda as humilhações dos negros vítimas de discriminações seculares, a inferiorização das mulheres, o genocídio dos índios e também a violência sobre aqueles que trazem as marcas da inferioridade na sua condição de classe, de cor ou idade. Em todas essas negatividades o discurso humanitário pode seguir tranqüilo, é seu terreno por excelência, aqui as identidades de cada uma na geometria simbólica dos lugares são apenas confirmadas. O que provoca escândalo e desestabiliza consensos

178TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Disponível em <http://www2.ibam.org.br/municipiodh/biblioteca%2FArtigos/Direitos_sociais.pdf>. Acesso em 22 out. 2009, p. 5-6. A autora traz um exemplo brasileiro a elucidar a teoria exposta: “Quando os trabalhadores sem-terra fazem as ocupações de terra, instauram um conflito que é mais do que o confronto de interesses, pois abrem a polêmica - e o dissenso - sobre os modos como se entende ou pode se entender o princípio da propriedade privada e seus critérios de legitimidade, sobre o modo como se entende ou pode se entender a dimensão ética envolvida na questão social e sua pertinência na deliberação sobre políticas que afetam suas vidas, sobre o modo como se entende ou pode se entender a questão da reforma agrária, suas relações com uma longa história de iniqüidades e o que significa ou pode significar para o futuro deste país. Ibidem, pp. 6.

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estabelecidos é quando esses personagens comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu reconhecimento sujeitos falantes [...] que se pronunciam sobre questões que lhes dizem respeito, que exigem a partilha na deliberação de políticas que afetam suas vidas e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado, ou então fixado na ordem do não-pertinente para a deliberação política.179

Daí Rancière afirmar que a política se move por uma racionalidade própria:

a racionalidade do desentendimento, e que ela se baseia em um único princípio: o

da igualdade. Em sentido oposto à noção de guerra fratricida, este dissenso

permite o que Rancière denomina de “situações de conflito ordenadas” em que se

fazem notar situações de discussão e argumentação.180 A igualdade, por sua vez,

ressalva o pensador francês – como o faz Negri -, não deve ser entendida como o

objetivo a ser alcançado pela política. A igualdade constitui-se uma pressuposição

que dinamiza a política: é o seu princípio e não seu fim. Não há nada

essencialmente político e mesmo a lógica igualitária que a ampara nunca é

preconstituída. O poder constituinte não opera com um plano traçado, uma pauta

definida e fechada a ser cumprida. Ele decorre dos agenciamentos das

singularidades múltiplas, desses sujeitos da política a que Rancière classifica

como potências de enunciação e manifestação do litígio181, como sujeitos em atos

que não existem como entidades estáveis182, capazes de estabelecer improváveis

relações e agenciamentos para romper com a lógica constituída. A esta lógica

Rancière denomina de policial, estreitamente vinculada à segunda questão posta

no início deste item: o que significa o processo tradicionalmente identificado

como política?

A política, na concepção de Rancière, refere-se àqueles atos que perturbam

a ordem estabelecida e vivida como natural a permitir, através de uma cena em

que se estabelece o conflito entre recortes do mundo sensível, a atualização do 179 TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais, p. 5. 180 RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, p. 374. Mas, esta discussão ou argumentação, ressalta Rancière, é de ordem bem diversa do modelo habermasiano da razão comunicativa. Nesta já estão previamente constituídos os sujeitos de fala e as regras gerais a que o caso sob debate deve obedecer. Como expressa Rancière, por este modelo, “dois locutores se vêem confrontados e são levados, pela própria lógica da confrontação, a ultrapassar seu ponto de vista limitado.” E continua, apontando a diferença entre o dialogismo possível pela política daquele proposto por Habermas: “Esse modelo é certamente satisfatório para o espírito, mas creio que nenhuma situação de interlocução política forte lhe corresponda [...] o próprio do dissenso político, como vimos, é que sempre pelo menos um dos elementos da cena não está constituído: seu lugar, seu objeto, os sujeitos aptos a falar dele etc.” RANCIÈRE, Jacques. O dissenso, pp. 376-377. 181Ibidem, p. 377. 182Ibidem, p. 378. A definição do sujeito político para Rancière não exclui o caráter rizomático que informa a multidão como sujeito constituinte na teoria de Negri.

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princípio da igualdade; a política se manifesta, portanto, pelo dissenso que causa

um dano, uma ruptura na configuração do sensível, uma mutação naquilo que é

“visível, dizível, contável.183 Por sua vez, àquele conjunto de processos através

dos quais se organizam os poderes, que distribuem os lugares e funções e os

modos de legitimação desta distribuição, normalmente identificados com a

política, Rancière propõe chamar de polícia. Este ponto demanda redobrada

atenção pelo significado negativo que este termo costuma carregar. Rancière é

categórico ao afirmar que deve ser dado um sentido neutro e não pejorativo ao

termo polícia. A idéia de ordem policial aqui não deve ser entendida como

necessariamente repressora, ainda que a repressão possa integrá-la, nem mesmo

identificada à noção de aparelho de Estado, em que se opõe o estado Leviatã à

sociedade em risco iminente de ter cerceada sua liberdade.184 A ordem policial se

apresenta como ordem vigente, que depende não apenas da atuação do Estado

como deriva de uma suposta naturalidade das relações sociais; uma lei que

organiza, não raro, implicitamente, a distribuição dos corpos, funções e parcelas

que cabe a cada sujeito ou grupo na comunidade. Nas palavras de Rancière:

A polícia é, assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído [...] A polícia não é tanto uma “disciplinarização” dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.185

À polícia, portanto, não deve ser atribuído necessário caráter depreciativo. A

polícia pode se apresentar de forma positiva e ser responsável pela boa

distribuição de bens e direitos necessários e úteis à comunidade, o que se apreende

facilmente por um processo elementar de comparação entre diversas ordens

policiais, a comprovar que elas não se apresentam sempre da mesma maneira. 186

Se o fato de a polícia poder ser “doce e amável” não altera sua natureza contrária

183 Ibidem, p. 372. “A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho.” Idem. O desentendimento, p.42. 184RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, pp. 41-42. 185Ibidem, p. 42. 186“Há a polícia menos boa e a melhor – não sendo a melhor, aliás, a que segue a ordem supostamente natural das sociedades ou a ciência dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lógica igualitária vieram na maioria das vezes afastar sua lógica ‘natural’.”Ibidem, p. 43.

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à da política187, resta evidenciado que em grande medida, aquela ordem é

influenciada pela atuação política. Isto porque, se as ordens policiais podem se

distinguir em gradação de qualidade, o critério que as define como melhores ou

piores é justamente o fato de, naquelas, a lógica igualitária ter logrado êxito em

romper com a ordem de dominação vivida como natural, mediante sucessivas

mutações que promoveram a atualização do princípio da igualdade.

Disso depreende-se que a política não prescinde da lógica policial para

existir. Explica-se: se a política decorre do confronto entre dois mundos sensíveis

- um constituído como ordem vigente e outro impulsionado pela pressuposição de

igualdade a perturbar aquele primeiro - a sua gênese decorre necessariamente do

encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária. É constitutivo da política

este embate e, não por acaso, se apresenta de forma semelhante ao processo

constituinte, regido que é, pelo confronto entre poder constituinte e poder

constituído. Política e poder constituinte encontram-se imbricados, conforme

discorrido no item anterior. Ali restou ressaltado a impossibilidade de se dissociar

ambos os conceitos. De forma análoga à que Negri se refere ao poder constituinte,

Rancière ressalta a inexistência de um sujeito, objeto, lugar, ou finalidade

predeterminados à política. Ela aparece como forma, como acontecimento que

possibilita averiguar a igualdade no âmbito de determinada ordem policial188,

disputando conceitos, colocando sob suspeita uma estrutura que sempre se fez

transparecer naturalizada:

Um mesmo conceito – a opinião ou o direito, por exemplo – pode designar uma estrutura do agir político ou uma estrutura de ordem policial [...] Mas é preciso acrescentar que essas palavras também podem designar, e designam na maioria das vezes, o próprio entrelaçamento das lógicas [policial e igualitária]. A política age sobre a polícia. Ela age em lugares e com palavras que lhes são comuns, se for preciso reconfigurando esses lugares e mudando o estatuto dessas palavras. O que habitualmente é colocado como o lugar do político, ou seja, o conjunto das instituições do Estado, justamente não é um lugar

187“A polícia pode ser doce e amável. Continua sendo, mesmo assim, o contrário da política.” Ibidem, p. 43. 188“A política não tem objetos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único princípio, a igualdade, não lhe é próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o caráter político de uma ação não é seu objeto ou o lugar onde é exercida, mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade política que existe apenas pela divisão. A política encontra em toda a parte a polícia.” RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 45.

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homogêneo. Sua configuração é determinada por um estado das relações entre a lógica política e a lógica policial.189

A relação conflitante entre a lógica igualitária e a lógica policial não parece

distante da tensão entre poder constituinte e poder constituído, exposta por Negri.

Ambas apontam no sentido para o qual os ensinamentos maquiavelianos

indicavam. O ideal do povo em armas vinculando a liberdade à igualdade

concreta; o conflito como mola propulsora das mutações que trazem boa ordem à

cidade; a potência dos sujeitos constituintes como poder em ato, como práxis que

expressa a virtú coletiva na construção do real, em seu poder constituinte. Esta

linha que perpassa o pensamento de Maquiavel, Rancière e Negri, nos é

extremamente cara para a compreensão das instituições na democracia.

Em primeiro lugar, já se evidenciou que o poder constituinte e a política não

emergem da estrutura estatal, dos emaranhados das deliberações legislativas e das

decisões judiciais das altas cortes. E mais: que a lógica transformadora pela qual

operam a política e o poder constituinte colide com a tendência de manutenção de

um estado de coisas posto pelo qual atua o poder constituído, operando com a

lógica policial. Isso, no entanto, não implica em fazer de Negri e Rancière teóricos

aversos à existência das instituições. Em sentido contrário, elas integram, em

ambas as teorias, a própria mecânica dos processos político e constituinte. Ambos,

no entanto, se insurgem contra a perpetuação de uma ordem de dominação tida

por natural, portanto, imutável, que procura capturar a política e o poder

constituinte na estrutura de suas instituições, relegando ao degredo os sujeitos

políticos e constituintes. Não há o desprezo pelas instituições e sim, a recusa ao

mau uso que delas se faz, à possibilidade de se endeusá-las como sacrossantas

entidades que se devem proteger da mutação operada pelos sujeitos constituinte

ou que restem, elas próprias, simulacro destes sujeitos, atribuindo-se legitimidade

para controlar e tanger a mutação a seu talante.

Em Negri, há um expresso elogio a Maquiavel justamente pelo fato de o

florentino ter demonstrado a importância dos homens se darem instituições que

melhor preservem a liberdade e a igualdade do povo em armas, instituições que

189Ibidem, p. 45.

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não retirem do povo as armas que lhe conferem a guarda daqueles princípios190.

Negri não se insurge, deste modo, contra as instituições e sim, contra a

naturalização de uma ordem constituída que, não apenas impede a criação e

renovação das instituições, como a torna condutora da política em lugar do poder

constituinte. Em Rancière, a importância se faz mais explícita. Primeiro, pela

referência à possibilidade da existência de boas ordens policiais. Segundo, por

prever que o conflito ente as lógicas igualitária e policial promove uma

reconfiguração do sensível da ordem policial. Tais litígios não passam ao largo

das instituições, não as desconsideram como local de embate; na qualidade de

manifestações da democracia191, produzem inscrições de igualdade nas

instituições e atuam sobre as inscrições ali já existentes. Como expõe Rancière:

Não são, portanto, de forma alguma indiferentes à existência de assembléias eleitas, de garantias institucionais das liberdades de exercício da palavra e de sua manifestação, de dispositivos de controle do Estado. Elas encontram neles as condições de seu exercício e em troca os modificam. Mas não se identificam com eles.” 192

Ambos pensadores, tampouco, associam a importância do conflito à

indefinida guerra de todos contra todos. Apenas uma má compreensão sobre o que

significam a permanência da revolução, para Negri, e o dissenso que repousa

sobre uma contagem que nunca é exata, na concepção de Rancière, permitem tal

interpretação enviesada. Em verdade, ambos estão a afirmar que processos de

atualização do princípio da igualdade, perturbadores da ordem estabelecida, e,

portanto, revolucionários, não cessam de ocorrer independentemente da vontade

do poder constituído.

Afirmada a importância das instituições, resta evidente que o presente

estudo não se presta como um libelo contra o Supremo Tribunal Federal. Importa

em identificar os mecanismos que bloqueiam a emergência do poder constituinte

no âmbito desta instituição. Os arranjos institucionais convivem com esta

190“Não nos interessa a arqueologia do poder constituinte; interessa-nos uma hermenêutica que, além das palavras e através dela, saiba interpretar a vida, as alternativas, a crise e a recomposição, a construção e a criação de uma faculdade do gênero humano: a de construir instituições políticas.” Negri, Antonio. O poder constituinte, pp. 55-56. 191Segundo Rancière, as formas da democracia são manifestações da subjetivação não-identitária de atores políticos coletivos que removem as identificações em termos de partes do Estado ou da sociedade. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento, p. 103. Rancière aproxima-se, neste ponto, da perspectiva de Negri que refuta a associação entre sujeito do poder constituinte e identidade. 192Ibidem, pp. 103-104.

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oposição: são impregnados pelo poder constituinte que os origina, ao passo que,

não raro, são utilizados como instrumento de captura do próprio poder

constituinte. Impõe-se, portanto, descortinar o modo como o conflito é vivenciado

e operado nas instituições que devem lidar com demandas políticas que

desequilibram uma ordem supostamente harmoniosa. O conflito - este provocador

de paz e boas leis - pode encontrar uma instituição aberta à sua atuação, disposta a

ser modificada pelo embate entre lógicas policial e igualitária, mas, em sentido

oposto, também pode – e não é raro que ocorra – se deparar com instituições que

já desejam conduzir, por si, o processo constituinte, que se entendam como

decifradoras da “vontade constituinte”. Neste ambiente institucional em que não

há concórdia, onde reina apenas uma forma nada democrática de regulação, o

conflito é lido como ameaça e a virtude maior passa a ser evitá-lo, retirando dos

seus possíveis e improváveis atores a condição de singulares que se agenciam em

torno do bem comum.

Os discursos que procuram ocultar a política, que buscam enterrar o poder

constituinte num passado glorioso, mas longínquo, derivam deste horror ao

conflito, deste horror ao que ele nos faz ver pelas frestas da ordem consolidada:

que ela não é natural, que a distribuição das funções de governar e ser governado

não se extrai de poder transcendente algum, que ela é contingencial, é pura

imanência. É no rastro deste temor que se ingressa no segundo capítulo,

procurando melhor entender os aspectos de um arranjo institucional construído

para evitar e esconder o conflito, ocultar a política e reduzir à condição de mero

barulho, a palavra de seus verdadeiros atores.

O ideal de poder moderador apresenta-se, nesta perspectiva, como

engrenagem mestra do aparato institucional que busca reger os destinos de uma

democracia sem povo. Seu estudo é fundamental pela influência que exerceu nos

processos de restauração francesa e contra-revolução norte-americana, bem como,

pela marcante presença na cultura política brasileira.

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