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51 2 Estrangeiros 2.1 1822 Em setembro de 1822, o filho do Rei de Portugal declarou a independência do Brasil, na cidade de São Paulo, à beira de um riacho tributário do rio Tamanduateí. Esse rio deságua no Tietê, cuja nascente, embora próxima do litoral, flui em direção ao interior, cuja foz no rio Paraná se localiza no atual estado do Mato Grosso do Sul. Essas águas, portanto, foram um dos caminhos de colonização do Brasil, sendo a vila de São Paulo, muitas vezes, o ponto de partida deste movimento. Mas o acon- tecimento reverberou em todo o território e gerou uma nova movimentação em outra região de intensa colonização do Brasil: o litoral. Se nas províncias do “Norte” houve resistência à independência de Portugal, seria pelo mar que as tropas da Corte chegariam até ali. Uma força naval foi criada já no fim de 1822, e o ataque aos navios portugueses na Bahia e em outras províncias iniciou-se a partir de março de 1823. Não havia ainda “brasileiros” que defendessem a pátria. Além disso, as profissões marítimas não eram uma especialidade dos habitantes no território. Foi necessário contentar-se com os marinheiros portugueses que estavam disponíveis e contratar, na Inglaterra, marítimos que tripulassem a frota. Mesmo assim, uma minoria de “nacionais” e escravos, muitos deles libertos para esse fim, também tripularam os navios da Armada nos verdes anos do Império. O comandante dessa força naval foi o inglês Lord Thomas Cochrane, que aca- bava de atuar no processo de independência do Chile. Cochrane veio ao Brasil com parte da tripulação – composta de ingleses e norte-americanos – que o acompanhou naquela empreitada. Ao visitar as tripulações dos navios disponíveis no porto do Rio, considerou-as “de mui questionável qualidade – compondo-se da pior classe de portugueses, com quem a porção brasileira da gente mostrava evidente repug- nância a misturar-se”. 1 O fato de os marujos da Armada ganharem de 8 a 10 mil réis, 1 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 41.

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2.1 1822

Em setembro de 1822, o filho do Rei de Portugal declarou a independência do Brasil,

na cidade de São Paulo, à beira de um riacho tributário do rio Tamanduateí. Esse

rio deságua no Tietê, cuja nascente, embora próxima do litoral, flui em direção ao

interior, cuja foz no rio Paraná se localiza no atual estado do Mato Grosso do Sul.

Essas águas, portanto, foram um dos caminhos de colonização do Brasil, sendo a

vila de São Paulo, muitas vezes, o ponto de partida deste movimento. Mas o acon-

tecimento reverberou em todo o território e gerou uma nova movimentação em

outra região de intensa colonização do Brasil: o litoral. Se nas províncias do “Norte”

houve resistência à independência de Portugal, seria pelo mar que as tropas da Corte

chegariam até ali. Uma força naval foi criada já no fim de 1822, e o ataque aos navios

portugueses na Bahia e em outras províncias iniciou-se a partir de março de 1823.

Não havia ainda “brasileiros” que defendessem a pátria. Além disso, as profissões

marítimas não eram uma especialidade dos habitantes no território. Foi necessário

contentar-se com os marinheiros portugueses que estavam disponíveis e contratar,

na Inglaterra, marítimos que tripulassem a frota. Mesmo assim, uma minoria de

“nacionais” e escravos, muitos deles libertos para esse fim, também tripularam os

navios da Armada nos verdes anos do Império.

O comandante dessa força naval foi o inglês Lord Thomas Cochrane, que aca-

bava de atuar no processo de independência do Chile. Cochrane veio ao Brasil com

parte da tripulação – composta de ingleses e norte-americanos – que o acompanhou

naquela empreitada. Ao visitar as tripulações dos navios disponíveis no porto do

Rio, considerou-as “de mui questionável qualidade – compondo-se da pior classe

de portugueses, com quem a porção brasileira da gente mostrava evidente repug-

nância a misturar-se”.1 O fato de os marujos da Armada ganharem de 8 a 10 mil réis,

1 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 41.

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aproximadamente metade da remuneração dos demais navios, resultava “que os

muros de pau brasileiros tinham de ser guarnecidos pelo refugo da classe mercante”.2

Ao almirante “pareceu anomalia empregarem-se portugueses em número tal

para guerrearem seus compatriotas”.3 Uma guerra civil portuguesa foi a definição

da independência de Sérgio Buarque de Holanda, a qual resultou, nas palavras de

Ilmar R. de Mattos, em “uma fratura irreversível, da qual emergiriam os ‘cidadãos

brasileiros’”.4 Mais tarde, Cochrane entenderia que a expressão “atacar a força par-

lamentar portuguesa”, várias vezes repetidas pelo Imperador, significava que “o

Governo Brasileiro não fazia guerra ao Rei de Portugal ou à nação portuguesa, mas

às Cortes somente”.5

Cochrane, a caminho da capital baiana, escreveu para as autoridades da Cor-

te, implorando pela contratação de marujos ingleses, processo que já havia sido

iniciado em 1822, coordenado por José Bonifácio, ministro do Interior e dos Ne-

gócios Estrangeiros, em intensa correspondência com Felisberto Caldeira Brant,

uma espécie de cônsul em Londres. Brant, sabendo que seria inevitável a atuação

de marujos portugueses, escreveu a Bonifácio: “nunca teria completa confiança em

marinheiros portugueses, mas uma vez misturados com ingleses ou americanos

tudo iria perfeitamente”.6

Entre março e maio de 1823, chegaram mais de quinhentos marinheiros engaja-

dos em Liverpool e Londres. Segundo Brian Vale, houve facilidade nesse processo,

pois a Marinha britânica encontrava-se completamente desestruturada depois das

guerras napoleônicas: sua frota de 713 embarcações reduzia-se a 134. Quase 90%

dos oficiais estavam desempregados, e os soldos caíram à metade ou a pratica-

mente nada.7 O desemprego marítimo na Inglaterra ainda perduraria pelo menos

até a década de 1830, quando novas levas de homens contratados em Liverpool e

Londres aportaram no Brasil.

2 Ibidem.

3 Ibidem.

4 mattos, Ilmar R. de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade

política, Almanack Brasiliense, n.1, mai 2005, p. 17.

5 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, p. 42.

6 Carta de Caldeira Brant para José Bonifácio, apud vale, Brian. A criação da Marinha Imperial, in:

História Naval Brasileira, v. 3, t.I, p. 76.

7 vale, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence, 1822-5, p. 29-30.

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Apesar da chegada dos britânicos, a maioria da tripulação de alguns navios da

força naval das guerras da Independência compunha-se de portugueses, como o Li-

beral, o Maria da Glória e o Real Carolina.8 Mesmo a nau capitânia Pedro I, tripulada

com o que Cochrane chamou de “melhores marinheiros”, carregava pelo menos 25%

de marujos portugueses e 60% de britânicos e norte-americanos.9

Posição das frotas portuguesa (à esquerda) e brasileira (à direita) na Batalha de 4 de maio de 1823, próximo a Salvador

Ilustração extraída de: VALE, Brian. Independence or death! British sailors and brazilian independence 1822-5, p. 46.

Cochrane também incentivou a velha prática do recrutamento violento. O fami-

gerado impressement britânico. A Royal Navy, por meio de press-gangs (“tropas de

recrutamento”), tripulara sua frota com dezenas de milhares de homens ao longo do

século xviii e início do século xix.10 Na Inglaterra, após serem capturados, os recrutas

permaneciam detidos em navios estacionados até serem distribuídos. Da palavra

press-gang, derivou-se a palavra presiganga, nomenclatura brasileira para o navio

8 cochrane, Lord. Narrativa de serviços no libertar-se do Brasil, p. 57.

9 an, Série Marinha, xvii M 3294, Livro primeiro de marinheiros da nau Pedro I.

10 Sobre o assunto ver: rogers, Nicholas. The press gang: Naval impressment and its opponents in

Georgian Britain.

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usado como prisão de criminosos militares, civis e também lugar de detenção para

recrutados.11 Muitas vezes, como veremos, o recrutamento e a prisão se confundiam.

Em 1824, oficiais da fragata United States em passagem pelo Brasil resgataram

um marinheiro norte-americano forçado a servir. Segundo o fuzileiro e memorialista

Nathaniel Ames, tripulante da fragata, ele seria “um entre muitos”, pois o Almirante

Cochrane estava “recrutando cada homem que ele conseguisse colocar as mãos”.12

Tal situação, entre outras que presenciou no Pacífico, o convenceu de que “todos

esses governos sul-americanos merecem uma surra (sound trashing) a cada ano,

para entenderem a diferença entre meum and tuum e outros assuntos concernentes

à lei civil e às leis das nações”.13 No seu discurso patriótico, Ames não considerou

que esse procedimento não era exclusivo de governos sul-americanos, mas que se

tratava de mais uma prática herdada por eles do mundo atlântico, principalmente

da Inglaterra. O marinheiro Charles Nordhoff, de origem prussiana e naturalizado

norte-americano, simplesmente não desceu do navio no Rio de Janeiro, quando

ali esteve na década de 1840, com medo das press-gangs brasileiras que forçavam

muitos estrangeiros a servirem. Um colega seu havia passado por essa experiência

e não desejava o mesmo destino a ninguém.14

2.2 Os estrangeiros em números

Durante duas grandes guerras o Império do Brasil contou com uma considerável

presença estrangeira principalmente anglófona e portuguesa além de diversas ou-

tras nações. A fragata Imperatriz, parte da frota que participou da Guerra Cisplatina

que resultou na independência do Uruguai, contava com 18% de anglófonos em sua

tripulação entre 1825 e 1826. Os portugueses perfaziam 57%, podendo chegar a mais

de 70 %, devido ao alto número de nomes lusófonos sem naturalidade identificada.

Na Cabanagem, o Império do Brasil combateu as forças inimigas com portugueses,

11 Sobre a presiganga ver fonseca, Paloma S. “A presiganga e as punições da Marinha (1808-1831)”, in:

castro et al., Nova história militar brasileira; greenhalg, Juvenal. Presigangas & calabouços: prisões

da Marinha no século xix.

12 ames, Nathaniel. A mariner’s sketches, p. 192. Tradução minha.

13 Ibidem.

14 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 254. Tradução minha.

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britânicos, norte-americanos e germânicos. Um quarto da tripulação da fragata Im-

peratriz entre 1833 e 1835 era composta de portugueses. Quase um terço compunha-

-se de britânicos e norte-americanos. Na década de 1840, a tripulação portuguesa

da fragata Constituição representava 29%, e a de anglófonos, 16%. Finalmente, na

corveta Imperial Marinheiro (1852-54), a fração portuguesa caiu, mas continuou

significativa: 13% da tripulação, enquanto a anglófona representava 11%.15

tabela 3

Tripulação estrangeira da Armada por nacionalidade, 1833-1854

imperatriz1825-26

imperatriz1833-35

constituição1852-54

imperial marinheiro

1844-46total

Portugueses 145 275 223 77 720 (46%)

Britânicos e norte-americanos

46 150 94 47 337 (22%)

Outros europeus 4 150 28 21 203(13%)

Africanos/Escravos 14 24 13 5 56 (4%)

Hispano-americ. e caribenhos

1 8 17 7 33 (3%)

Goa/Manilha 2 1 1 4

Lusófonos Não identificados* 131 3 21 27 182 (12%)

Total 341 612 397 185 1535

* Homens com nomes lusófonos sem naturalidade identificada. Eles podem ser portugueses, brasileiros ou africanos de Angola, Cabo Verde e Moçambique. É muito provável que a maioria seja portuguesa.

Fontes: an, Série Marinha, Livros de socorros da fragata Imperatriz xvii M 2513, xvii M 2500 e xvii M 2501; Livros de socorros da fragata Constituição (1844-46): xvii M 490; xvii M 1334; xvii M 1342; xvii M 1374; xvii M 1399; Livros de socorros da corveta Imperial Marinheiro: xviii M 2303; xviii M 2311; xviii M 2312; xviii M 2323; xviii M 2324; xviii M 2325.

Nos Estados Unidos pós-independência, também havia uma presença considerável

de homens da antiga metrópole. Em 1808, cerca de 50% da tripulação da Estação

Naval de Nova York era composta de norte-americanos e a outra metade de estran-

geiros. Dentre os estrangeiros, 75% eram britânicos e os demais europeus, além de

uma pequena minoria de caribenhos.16 Tudo indica, portanto, que as ex-colônias das

Américas não prescindiram dos marinheiros das ex-metrópoles, já que por séculos

foram eles quem se especializaram em fazer a ligação entre os dois continentes. O

15 Estes números podem ser verificados na Tabela 1 da Introdução.

16 mckee, Christopher. Foreign Seamen in the United States Navy: A census of 1808, p. 386-389.

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mar era uma especialidade muito mais da Europa do que das Américas e da África.

Ao longo do século xix, no entanto, os Estados Unidos cada vez mais, aumentariam

a sua participação naval nos oceanos.

Nas tripulações estudadas eram presentes minorias de africanos, suecos, dina-

marqueses, espanhóis, franceses, holandeses, canadenses, austríacos, belgas, suecos,

prussianos, gregos, argentinos, uruguaios e até gente de Goa e Manilha.

Na fragata Imperatriz, havia cerca de 100 marujos de origem germânica, engaja-

dos entre os anos de 1832 e 1834. Não tive notícia ainda de nenhum recrutamento no

território que hoje ocupa a Alemanha, exclusivamente para a Marinha. Organizou-

-se, sim, um esquema de recrutamento de soldados e colonos em território alemão,

inclusive de presidiários. Uma parte, no entanto, ingressou na Marinha. Entre 1824

e 1828, o major Georg Anton von Schäfer, amigo de D. Pedro I e Dona Leopoldina, foi

nomeado agent d’affaires politiques e encarregado de recrutar colonos e soldados em

território germânico. Três oficiais que narraram a sua experiência no Exército brasi-

leiro o acusaram de “leviano”, “enganador”, “aliciador” e mentiroso. Schlichthorst,

o chamou “vendedor de carne humana” e Carl Seidler o descreveu como um homem

“que vendia o sangue dos seus conterrâneos (...) e que tão bem soube explorar para

os seus fins egoísticos a fúria aventureira da mocidade alemã”.17 Todos relatam mo-

mentos terríveis dos oficiais e soldados no Exército: castigos que matavam, suicí-

dios, alcoolismo, violência18. Afirmam ainda que, dentre os colonos e soldados, havia

presidiários de Mecklemburgo. Schilichthorst, por um lado considerava que “essa

imigração em vários sentidos purifica a Alemanha, e que se não pode condenar um

Estado que se livra de seus presidiários”, por outro, lamentava a triste sina em seu

novo país dos colonos e recrutas enganados que “foram úteis à sua pátria” .19 Ora,

essa rede de engajamento e recrutamento, como em toda a parte, colheu bandidos

e pobres. É mais um capítulo da história da criminalização da pobreza, cujo casti-

go, como o dos criminosos, era militarização, o trabalho ou a deportação. Nesse

contexto, em 1826, o agente da colonização alemã na Corte, o chanceler Pedro de

Miranda Malheiros, ofereceu ao ministro da Marinha dezena de alemães oriundos

dos batalhões de estrangeiros que se diziam marinheiros de profissão.20

17 seidler, Carl. Dez anos no Brasil, p. 21.

18 Idem, p. 278.

19 schilichthorst, Carlos. O Rio de Janeiro como é (1824-1826), p. 15.

20 an, Série Marinha, xm 84, Correspondência com presidente do Rio de Janeiro, Ofício de Pedro de

Miranda Malheiros para o Visconde de Paranaguá, 20 de novembro de 1826.

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Parte das dezenas de germânicos que ingressaram na fragata Imperatriz, pro-

vavelmente, veio no bojo dessa inicial imigração alemã. Nessa fragata havia alguns

grumetes e segundos marinheiros, entre 34 e 44 anos, graduação e idade incomuns

para marujos engajados. Eram eles: Federico Hering, Chrisefer Stater, Augusto Jo-

aquim, João Harry Galshaff e “Good Fortune”, cujo nome verdadeiro era Gottfried

Danne, segundo sua assinatura.21

É a partir da década de 1850 que a tripulação estrangeira da Armada declina dras-

ticamente, junto da crescente nacionalização conquistada pelas remessas de recru-

tas e marujos aprendizes de várias províncias, fruto do fortalecimento do Império

e seu decorrente maior controle sobre a população.

21 an, Série Marinha, xvii M 2500 e 2501, Livros de socorros da fragata Imperatriz.

João Palhares. Um marinheiro português. (Algarve, remador do bergantim Real) c.1850.

Gauci. Um marinheiro inglês (Common sailor), 1828. Engelmann, Graf, Coindet, & Co [printers & publishers]. National Maritime Museum, Londres, Inglaterra.

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2.3 Os portugueses

Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte

São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,

(…)

Chamam por mim as águas,

Chamam por mim os mares,

Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,

as épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.22

fernando pessoa

Há sempre um Vasco da Gama num marujo português.

O marujo português, fado de

linhares barbosa e arthur ribeiro

Em 1915, “sozinho no cais deserto”, Fernando Pessoa fundiu tempos marítimos para

compor o seu poema “Ode marítima”, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos.

Pessoa fez parte de uma vasta tradição portuguesa de literatura sobre o mar.

Segundo o ensaísta Eduardo Lourenço, “a saudade é modulação da relação dos

portugueses como seres de memória com o tempo [...] a saudade parece modulada

pelo ritmo universal do mar. [...] Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente.

Essa música de fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da alma”.23 No poema,

Fernando Pessoa, por meio do seu heterônimo Álvaro de Campos, escreve que os

marinheiros do passado são visíveis enquanto os contemporâneos são invisíveis; as

épocas marítimas do passado chamam, tornando-se simultâneas ao presente. Esse

talvez seja o tempo português mítico a que Lourenço refere-se que, de fato, é tão

intenso a ponto de permear o tempo cronológico deste estudo.

O marinheiro, esse personagem arquetípico, cantado e vivido por Camões,

projetou uma enorme sombra sobre os marujos dos séculos seguintes, que segui-

ram os passos dos seus antepassados e circularam continuamente pelo Atlântico e

por outros oceanos. Do século xvii em diante, os marinheiros portugueses foram

lentamente invisibilizados pelo heroísmo dos marítimos dos tempos das grandes

22 pessoa, Fernando. Ode marítima, in: Poesia Completa, p. 253.

23 lourenço, Eduardo. Tempo Português, in: Mitologia da Saudade, p. 12 e passim.

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navegações. Mas eles permanecerem no mar e na tradição da literatura marítima

erudita e popular portuguesa. A partir do século xix, o fado pode ser inserido na

continuidade dessa tradição.

No período estudado os portugueses representam em média 46% da tripulação.

E, mesmo depois da década de 1850, marcavam presença. Eles constituíam o grupo

majoritário no tráfico de escravos e provavelmente na Marinha mercante. Na Ar-

mada e nos navios negreiros a maior parte dos marujos portugueses era natural de

Lisboa ou do Porto, e a maioria esmagadora era de homens brancos.

Nesta seção recorri a uma análise panorâmica da representação literária do ma-

rinheiro português desde o século xvi até o xx, para assim entender os aspectos dos

homens de carne e osso que encontrei na documentação do Ministério da Marinha.

Explico: além de sua presença frequente nos Livros de socorros dos navios da Arma-

da, escreveram continuamente requerimentos aos cônsules e a outras autoridades

para livrarem-se do recrutamento forçado. Na maioria dos casos, só foi possível

saber os seus nomes, de quais cidades vieram, a idade, a cor e, às vezes, a profissão.

A documentação não permitiu conhecer nem as suas vidas pregressas, nem as suas

experiências na Armada ou em outros navios, já que, diferente dos anglófonos, eles

não publicaram memórias. Enquanto procurei estudos na historiografia portuguesa

sobre marinheiros do século xix, só encontrava sobre aqueles dos século anteriores.

Mas o tempo todo deparei-me com poemas populares, ou não, sobre marinheiros e

com canções marítimas que tratavam desses sujeitos em todos os séculos.

Um outro testemunho dos portugueses no mar, principalmente em baleeiros,

é a literatura marítima anglófona. O narrador de Moby Dick, em uma elucubração

sobre os mistérios das correntes marinhas, menciona “a experiência real conhecida

pelo homem vivente, os prodígios relatados nos tempos antigos sobre o monte da

Estrela no interior de Portugal (perto de cujo topo se dizia haver um lago, no qual

os destroços dos navios naufragados flutuavam na superfície)”.24 Quem primeiro

relatou essa crença foi o frei Bernardo de Brito, em sua Geographia antiga de Lusyta-

nia, de 1597. Segundo ele, “havia duas lagoas de monstruosa grandeza, uma das quais

é tão funda que se lhe não pode sondar o lastro, e afirmam os moradores da terra

que algumas vezes se vêm nelas tábuas de navios, e outras coisas semelhantes”.25

Essas duas lagoas existem e uma delas chama-se Comprida. Acreditava-se que os

24 melville, Herman. Moby dick ou a baleia, p. 205.

25 brito, Bernardo. Geographia antiga de Lusytania, f. 3.

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destroços dos navios chegavam à sua superfície por meio de uma passagem sub-

terrânea para o chamado, então, Mar Oceano. O mar era tão presente no cotidiano

português que as suas águas penetraram no continente, arrastando os destroços

de velhos navios para o alto da mais alta montanha, cravada no interior do país. E

de lá a história reverberou seculo seculorum.

Um marujo da novela White Jacket, de Herman Melville, exclamou da gávea do

navio: “Os Lusíadas são o épico do marujo de guerra do mundo. Que glória seria

ter Gama como almirante!”.26 Para Melville, Gama e Camões não eram apenas um

orgulho português, mas também de todos os marinheiros. Apesar de ser um grande

leitor de Camões, ele não deu destaque aos marujos portugueses contemporâneos

nos seus livros, mas estes tripularam, como muitas outras nações, tanto as suas

embarcações fictícias quanto os navios de madeira em que esse autor navegou.

Na década de 1840, Melville foi marujo do baleeiro Acushnet, experiência fun-

damental para a escrita de Moby Dick. No baleeiro, entre uma tripulação de 26 ho-

mens, havia três portugueses da Ilha de Fayal: Joseph Luis, apelidado Jo Portuguese,

residente em Portugal, Martin Brown, Charles W. Galvan, residentes nos Estados

Unidos, e um cabo-verdiano: John Adams. Os três açorianos desertaram, dois no

Peru e um nas Ilhas Marquesas no Pacífico.27 Em Ommo e White Jacket há dois per-

sonagens marujos portugueses, ambos chamados Antone.28 Nesse último livro, a

banda do navio era composta de portugueses embarcados em Cabo Verde.29

No baleeiro em que viajou o marujo e depois jornalista Charles Nordhoff, um

sexto da tripulação era de gente dos Açores, principalmente da ilha de Faial. Segundo

o memorialista, os donos dos navios apreciavam o seu trabalho, enquanto os com-

panheiros os desprezavam pelo simples fato de serem diferentes, considerando-

-os “escorregadios e fofoqueiros”. Nordhoff, ao contrário, os admirava e lhes tinha

amizade. Acreditava que não eram perdulários, característica comum dos marujos:

o seu maior sonho era poupar dinheiro, voltar para a sua ilha natal e viver em paz

com as suas famílias.30

26 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war, p. 634.

27 heflin, Wilson. Herman Melville’s whalling years, p. 27-8.

28 Ver verbetes dos personagens em: gale, Robert A. A Herman Melville Encyclopedia.

29 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war. capítulo xii.

30 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 60.

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2.3.1 Portugal – Brasil: Cultura, religião e pobreza

A religiosidade marítima portuguesa deixou marcas na costa do Brasil. São várias

Nossas senhoras relacionadas à vida marítima. Nossa Senhora dos Navegantes tem

altares e paróquias em várias cidades. O seu dia é feriado em Porto Alegre, pois é a

padroeira da cidade. Enquanto no dia dois de fevereiro várias cidades comemoram

essa Nossa Senhora, outras, especialmente Salvador comemoram Iemanjá, orixá

do mar no Candomblé. Em Santos, no Estado de São Paulo, a comemoração é dupla,

oficialmente desde 2002. A Marinha do Brasil destaca cerca de dez marinheiros para

carregar o andor de Iemanjá durante a procissão.

No Rio de Janeiro há vestígios dos cultos dos marinheiros às Nossa Senhora da

Boa Viagem e Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança. Em 1846, Thomas Ewbank

entrou na igrejinha da ilha de Boa Viagem e descreveu vários ex-votos marítimos.

Nas palavras do norte-americano, os marinheiros portugueses e brasileiros se en-

tregam à sua providência, “fazendo-lhe apelos e votos nas horas do perigo, exata-

mente como os antigos navegantes lidavam com Netuno e Oceano”.31 No seu relato

desenhou a caixa de esmolas que era levada aos navios para angariar contribuições.

Existe até hoje na Rua do Carmo no Rio de Janeiro, um oratório de Nossa Se-

nhora do Cabo da Boa Esperança (sem a imagem), datado do século xviii. Mais uma

vez, segundo Thomas Ewbank, os marinheiros portugueses de passagem pelo Rio

de Janeiro recorriam à Santa para pedir uma boa passagem pelo promontório sul-

-africano, deixando alguma coisa na sua caixa de esmolas, presa a um poste abaixo do

oratório. A lenda da origem dessa Nossa Senhora refere-se a um navio que, prestes a

afundar na região do Cabo da Boa Esperança, foi salvo por sua aparição. No desem-

barque, os homens teriam encontrado uma estátua da imagem idêntica da Nossa

Senhora que os salvou, e dela foram copiadas todas as outras. Ewbank, protestante,

observou ironicamente que essa caixa de esmolas seria muito lucrativa, já que tan-

tos navios em direção às Índias aportavam na ida e na volta ao Rio de Janeiro, e seus

tripulantes pediam ou agradeciam pela proteção. O norte-americano chamou essa

prática de “uma espécie de seguro marítimo promovido pelos frades carmelitas”.32

A Nossa Senhora do Carmo também era padroeira dos marinheiros. Segundo o Re-

verendo Walsh, em 1828, tripulações inteiras pediam esmolas nas proximidades da

31 ewbank, Thomas. Vida no Brasil, p. 195.

32 ewbank. Thomas. Vida no Brasil, p. 141-2.

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igreja e entregá-las ao padre.33 Nossa Senhora também protegeu os portugueses em

Greenwich, na Inglaterra. Ali foram erigidas duas igrejas para Our Lady of the Star of

the Sea (Nossa Senhora da Estrela do Mar ou Stella Maris). Uma no final do século

xviii, e outra, em 1851. Essa última ainda existe. Segundo a diocese local, há registros

oitocentistas de fiéis irlandeses, portugueses, brasileiros e cabo-verdianos.34

Antonio Carlos Diegues demonstrou como uma cultura religiosa de origem por-

tuguesa adaptou-se na cidade litorânea de Iguape, São Paulo, desde o século xvii.

Como tantas outras imagens de santos, a imagem de Cristo da Basílica de Iguape

foi encontrada nas águas. Ela teria sido jogada ao mar por tripulantes de uma nau

portuguesa atacada por holandeses em Pernambuco, e foi descoberta por indígenas

no litoral de São Paulo. Essa história está registrada no livro de tombo de Iguape de

1785-1827, onde também se lê: “no mar, na terra, em todos os perigos são numeráveis

33 walsh, Rev. Robert. Notices from Brazil, p. 45.

34 http://www.portcities.org.uk/london/server/show/conMediaFile.5351/Our-Lady-Star-of-the-Sea-

Church-Crooms-Hill-Greenwich.html. Site do London Maritime Museum. Acesso 31 mai. 2011.

Thomas Ewbank. Caixa de esmolas da Capela de Nossa Senhora de Boa Viagem na baía de Guanabara, 1846. Segundo Ewbank, era usada para coletar contribuições nos navios. In: Vida no Brasil, p. 200.

Thomas Ewbank. Imagem de Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança copiada da lata de esmolas do oratório da santa na Rua do Carmo, Rio de Janeiro, 1846. In: Vida no Brasil, p. 141.

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os favorecidos”, o que atesta “a concorrência de muitos que de todas as partes vêm

aqui cumprir seus votos”.35 Muitos dos romeiros são catarinenses, o que levou a pes-

quisadora Maria Cecília França a relacionar o culto a Bom Jesus com os migrantes e

descendentes de açorianos, já que nas comunidades pesqueiras das ilhas açorianas

haveria diversos cultos a Bom Jesus.36

35 diegues, Antonio Carlos S. “Os Ex-Votos Marítimos da Sala de Milagres da Basílica do Senhor Bom

Jesus de Iguape São Paulo”, in: diegues, Antonio Carlos (Org.), A Imagem das Águas, p. 182.

36 Idem, p. 186.

Dois dos poucos ex-votos marítimos do século xx restantes na sala de milagres da Basílica de Iguape. A pintura é de 1967, mas a tradição é do século xviii.

Um ex-voto do século xviii, dedicado a Bom Jesus de Matosinhos, santuário próximo à cidade do Porto, onde há diversos ex-votos marítimos. Paróquia de Bom Jesus de Matosinhos. In: boulet, F. Ex-voto marins. Paris: Editions Maritimes et d’Outre Mer, 1986.

O Bom Jesus de Iguape, esculpido em madeira, encontrado em 1647. Conta-se que fora jogado ao mar do navio português que o transportava, durante um conflito com holandeses, e depois encontrado por índios do litoral paulista. Fotos da autora.

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Na basílica da cidade sempre houve muitos ex-votos marítimos, como pinturas de

naufrágios iminentes e barcos de madeira. Essa prática centenária hoje em dia é

cada vez mais escassa. Há registros de duas pinturas de naufrágios, do século xviii

e de 1814, roubadas da sala de ex-votos, na década de 1980. Segundo fontes orais,

nas comunidades marítimas de Santa Catarina, barquinhos de madeira eram sol-

tos no mar, na esperança de chegar a Iguape, tradição passada por muito tempo de

pai para filho. Na sala de milagres ainda conservam-se barquinhos mais recentes

de localidades catarinenses, como Navegantes e Tijucas37. Nesta última cidade, em

1861, viviam Domingos e Firmino, dois irmãos gêmeos alistados como aprendizes

marinheiros pelo pai.38

O escritor francês Albert Camus, acompanhado por Oswald de Andrade, visitou

a festa em 1949 e conheceu um romeiro negro que pagava uma promessa depois

de se salvar de um naufrágio. O cumprimento implicava carregar uma pedra de 60

quilos durante a procissão.39 Camus registrou o fato no seu Diário de viagem e depois

adaptou-o na ficção “A pedra que cresce”. No conto, o marujo cozinheiro, nadando

mal e depois de quase afogar-se na noite escura, avistou uma luz e a reconheceu

como a cúpula da igreja do Bom Jesus: “as águas se acalmaram e o meu coração

também. Nadei calmamente, estava feliz e cheguei à costa”.40

A encenação da “Nau Catarineta” em tantas regiões costeiras de Portugal e do

Brasil também demonstra uma cultura marítima de origem portuguesa comum

às duas margens. Trata-se de um poema popular de tradição oral, publicado pela

primeira vez em 1843 por Almeida Garrett no seu Romanceiro português. Ele o teria

ouvido, entre outras “canções”, da sua criada Brígida. No poema “Ode marítima”,

de Fernando Pessoa, um verso lembra uma velha tia que ninava o narrador: “Lá vai

a nau catarineta/ por sobre as águas do mar.”

A Nau Catarineta é a história de um quase naufrágio, no tempo das grandes nave-

gações. Todos os famintos, depois de já terem comido as solas dos sapatos, elegem

o capitão general para ser devorado. Em uma última tentativa de salvação, o capitão

ordena a um gajeiro que suba ao mastro para tentar avistar “terras de Espanha, areias

de Portugal”. O capitão desesperado lhe oferece de um tudo em troca de não ser

37 Idem, p. 190-2.

38 Suas histórias foram contadas no capítulo Nacionais.

39 camus, Albert. Diário de viagem: A visita de Camus ao Brasil, p. 130.

40 camus, Albert. “A pedra que cresce”, in: O exílio e o reino, p. 150.

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devorado, mas o marujo é o diabo, e quer a sua alma. Não aceitando a condição, o

capitão diz que sua alma é de Deus e o seu corpo, do mar. O marujo demônio, então,

explode, e a nau estropiada alcança a terra.

No século xix, na década de 1810, Henry Koster descreveu a Nau Catarineta

como um fandango encenado na festa de Nossa Senhora da Conceição, na Ilha

de Itamaracá em Pernambuco.41 Há versões colhidas por Sílvio Romero, Mário de

Andrade, Alceu Maynard de Araújo, datadas do fim do século xix e do século xx na

Bahia, na Paraíba, em Pernambuco, em Sergipe e em São Paulo. A maior parte das

versões brasileiras compõem trechos dos folguedos chamados “marujadas”. Todas

as versões mantiveram os versos do desejo de avistar “as terras de Espanha, areias

de Portugal”. Versos que, por sua vez, estão contidos na letra de um fado do século

xx chamado “Fado português”.

Mário de Andrade, a partir do relato do capuchinho Dionísio Carli de Piacenza,

passageiro de num navio português no século xvii, concluiu:

Pelo menos desde o século xvii o romance da nau catarineta se convertera em

dança dramática que os marujos das naus portuguesas representavam em certas

ocasiões perigosas de viagens em que carecia tirar as apreensões do espírito. Quem

canta seu mal espanta. Era pois um brinquedo exclusivamente marítimo, repre-

sentado sobre o mar. Mas aportou no Brasil e aqui se resguardou em terra firme,

com os marinheiros que trocavam terra nova por tradição.42

A Chegança de marujo, também chamada de Marujada de Sergipe, publicada em 1883

por Sílvio Romero, é um retalho de pelo menos três canções portuguesas. Além de

conter uma versão da “Nau Catarineta”, reproduz estrofes de duas canções marí-

timas portuguesas, “A despedida do marujo” e “Canção de marujo”, copiladas no

fim do século xix pelos folcloristas Cesar A. das Neves e Gualdino de Campos, em

seu Cancioneiro português. Um verso da primeira canção – “Ora adeus belas meninas,

que a Lisboa hei de volver”.43 – aparece na Chegança de marujo de Romero como “Ora

41 koster, Henry. Travels in Brazil, p. 323-325.

42 andrade, Mário de. A nau catarineta, p. 67.

43 neves, Cesar A das & campos, Gualdino de. Cancioneiro de músicas populares: collecção recolhida e

escrupulosamente trasladada para canto e piano, V. iii, p. 101.

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adeus belas meninas, que de Lisboa cheguei”.44 O marujo português de cada margem

chega de Lisboa, parte para Lisboa, vê as belas meninas de lá, vê as belas meninas

daqui. Afinal, embora sempre portugueses, são marinheiros. Da “Canção de marujo”,

cantada em Portugal, a versão da “Chegança de Marujo” de Sergipe guardou duas

estrofes, uma delas muito semelhante à da canção original:

Antes me quisera ver

Na porta de um botequim,

Do que agora ver o fim

Da minha vida.45

2.3.2 Uma poética da partida

A imagem do marujo sempre de passagem e sempre em perigo, despedindo-se

das amadas em todos os portos, sempre desejoso de rever as areias de Portugal é

recorrente nas representações portuguesas e brasileiras. Mas, afinal, por que os

portugueses partem?

Desde o século xv, o imaginário da riqueza d’além-mar, do pote de ouro no final

do arco-íris, é um dos motivos de o português lançar-se ao mar, “uma espécie de

impulso coletivo”, como observou Paulo Micelli – combinação de razão e cobiça,

onde a lógica maior de toda a empresa da conquista do século xvi era a de ganhar

e perder ao mesmo tempo.46 Trata-se aparentemente de uma lógica do risco, que

atingia desde o marujo ao financiador. Em Os Lusíadas, nas areias do Tejo, as esposas

perguntam: “Por que is aventurar ao mar iroso/ Essa vida que é minha e não é vossa?”

O “velho do Rastelo”, personagem do poema, junto às mães e às esposas responde

que o desejo de fama e de riqueza é o que desmantela os lares.47 Em Mar português,

de Fernando Pessoa, o narrador dialoga com o épico de Camões:

44 “Os marujos”, chegança recolhida em Sergipe, in: romero, Sylvio. Canções populares do Brasil, p.

160.

45 Ibidem.

46 micelli, Paulo. O ponto onde estamos, p. 181.

47 camões, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, p. 160.

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Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosse nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.48

A herança de tantas lágrimas e aventuras é uma pobreza material rica em lirismo.

Diz o ensaísta português Eduardo Lourenço:

Mas, uma vez terminada a aventura, desfeito o império da história, transformado

numa mera carga de sonhos, o precioso comércio do Oriente, restava-nos como

herança um Portugal pequeno, um imenso cais, onde durante séculos relembramos

a nossa aventura, numa mistura inextrincável de autoglorificação e de profundo

sentimento de decadência e saudade.49

O deslocamento dos portugueses é permanente. Nos versos de Fernando Pessoa,

“Minha pátria é onde não estou”. E Sophia de Mello Breyner Andresen, toma o mote

emprestado para no poema “Pirata” dizer que “A minha pátria é onde vento passa”.

Em Opiário, outro poema do heterônimo Álvaro de Campos, escrito em uma

viagem de navio, o passageiro ocupa o “deslugar” português, nos versos:

Pertenço a um gênero de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.50

48 pessoa, Fernando. Mar português. Obra poética, p. 16.

49 lourenço, Eduardo. A nau de Ícaro, p. 58.

50 pessoa, Fernando. Opiário, in: Obra poética, p.238.

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Portugal não abriga os seus filhos – expele-os ao mar. A artista portuguesa Vieira

da Silva, exilada no Brasil na década de 1940, pintou o quadro “História trágico-

-marítima”, inspirado nas gravuras das páginas de rosto da coleção A história trágico-

-marítima. A obra cujo subtítulo é “colecção de relações e notícias de naufrágios, e

successos infelizes, acontecidos aos navegadores portuguezes” foi publicada na dé-

cada de 1730 e, desde então, alimentou permanentemente o imaginário de Portugal

sobre si mesmo. Na leitura de Vieira da Silva, o barco português parece ser tripulado

por toda a população do país e é ainda almejado por aqueles que estão se afogando.

Nesse cenário, a gente portuguesa e água salgada se confundem. Eduardo Lourenço

define a longa história de Portugal como “a de uma deriva e de uma fuga sem fim”51.

Essa imagem se repete no romance Jangada de pedra de José Saramago: a península

ibérica se desprende da Europa e flutua no Atlântico sem rumo. E em “Lusitânia”,

de Sophia Andresen, mais uma vez Portugal, pobreza e o barco se confundem:

Os que avançam de frente para o mar

E nele enterram como uma aguda faca

A proa negra dos seus barcos

Vivem de pouco pão e de luar.52

O fadista e poeta José Régio começa o poema “Portugal de todo mundo” com os

versos de um neto órfão. Seus antepassados se foram; não só os marinheiros e imi-

grantes podem cantar essa saudade, mas também quem ficou:

Meus avós, que o mar levou,

Rasgaram águas sem fim.

Neto sou de quem n-o sou!

Se canto, é que o mar que entrou

Faz ondas dentro de mim...53

51 lourenço, Eduardo. Mitologia da Saudade, p. 12.

52 andresen, Sophia M. B. Antologia, p. 165.

53 régio, José. Fado, p. 11.

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O mar português não era apenas uma miragem, mas um espaço na medida do pos-

sível, densamente povoado pelos peregrinos portugueses, por muitos séculos, os

quais “por necessidade ou cupidez, raro por aventura”, partiram “por vezes sem

esperança de regresso”.54

54 lourenço, Eduardo. Mitologia da saudade, p. 11.

Vieira da Silva. História trágico-marítima, 1944. Óleo sobre tela. Coleção cam/Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Detalhe da folha de rosto de Naufragio que passou – Jorge de Albuquerque Coelho de Bento Teixeira Pinto, incluso na História Trágico-Marítima, Lisboa, na Off. da Congregação do Oratório; o tomo ii, 1735.

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As origens do fado têm sido investigadas sob o espectro da lusofonia atlântica. Para

Kimberly daCosta Holton, a historiografia recente entende que o “fado era uma

música e uma dança que se desenvolveu tanto em Portugal como no Brasil, devido

à diversidade de moradores e freqüentadores dos portos que participaram da pro-

dução e da fruição resultante da intensa circulação do tráfico atlântico que deixou

marcas socioculturais nos ambientes urbanos”.55 Uma parte dos estudiosos localiza

as origens do fado a partir da década de 1830, nos bairros ribeiros de Lisboa, em

ambientes freqüentados por prostitutas, marinheiros, desocupados e marginais.56

A ideia de uma música se formando em trânsito, no Atlântico, entre África, Portu-

gal e Brasil, é um dos indícios da participação desses marinheiros oitocentistas na

criação do fado e em outras culturas urbanas atlânticas. Mas, mesmo sendo uma

música formada em trânsito, ela floresceu em Portugal, tornando-se uma espécie

de trilha sonora da identidade nacional marítima do país. Houton menciona a letra

do “Fado português”, na qual mais uma vez português e marinheiro querem dizer

a mesma coisa:

O fado nasceu um dia

em que o vento mal bulia

E o céu o mar prolongava,

Na amurada dum veleiro,

No peito dum marinheiro

Que estando triste, cantava.57

A inclusão de portugueses e outros povos lusófonos na historiografia marítima atlân-

tica faz-se necessária, pois sua participação não foi pequena. Nesse sentido, é ne-

cessário não só contar com uma historiografia anglófona atlântica, mas expandir os

estudos luso-afro-brasileiros cujo objeto, segundo o antropólogo português Miguel

Vale de Almeida, é “as interconexões entre povos expostos à expansão do Estado

português e que ainda compartilham esta história”. Ele chama a atenção para o fato

de que as abordagens sejam necessariamente “pós-lusotropicais”, referindo-se ao

55 holton, Kimberly daCosta. “Fado historiography: Old miths and new frontiers”. P: Portuguese Cul-

tural Studies, p. 12. Tradução minha.

56 Holton refere-se a Rui Vieira Nery, Joaquim Pais de Brito e Rubem de Carvalho. Idem, p. 13.

57 A canção é da década de 1930 e sua interpretação mais conhecida é a de Amália Rodrigues. régio,

José. Fado, p. 35.

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discurso hegemônico de Portugal a respeito das suas colônias e ex-colônias, apro-

priado das teorias de Gilberto Freyre e de outras correntes de pensamento.58

Os marujos do século xv já eram vistos como “gente de baixa condição.59 A sua

vida não tinha muito valor. Um autor do século xvii explicou a palavra “marabuto”,

58 almeida, Miguel Vale de. “Not quite white: Portuguese people in the margins of Lusotropicalism,

the luso-afro-brazilian space, and Lusophony”. Disponível em: http://site.miguelvaledealmeida.net/

wp-content/uploads/not-quite-white-english.pdf. Acesso em: maio de 2011. Tradução minha.

59 Idem, p. 121.

E. J. Maia. Marujo. Aquarela sobre papel. 1846. Museu da Cidade, Lisboa. Na Lisboa de 1846, tocando uma guitarra portuguesa, o instrumento do fado. Este homem pode ser cabo-verdiano, brasileiro, angolano, português ou africano. Homem luso-atlântico.

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gíria-sinônimo de marinheiro, num diálogo entre peixes no fundo do mar: “basta

serem do mar para não serem gentes. Os homens do mar como se chamam? Mara-

butos, que vale o mesmo que mar e brutos”.60

Das representações portuguesas setecentistas e oitocentistas que colhi do ma-

rujo português, aparece, via de regra, a do homem miserável indo ao mar para ga-

rantir a sobrevivência ou tornar-se rico e a do bruto, marginal cuja linguagem risível

é bom pano para costurar pequenos folhetos de sucesso, vendidos por tostões no

Brasil e Portugal.

Em 1772, foi publicado um folheto intitulado O marujo saudozo. Rellação curioza

da carta que escreveo de Pernambuco um marujo à sua moça, na qual lhe relata a saudoza

despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi embora, e hum mimo que ele lhe man-

da. Essa narrativa é uma peça fictícia que contém um poema inteiro - ou uma xácara

alfamista, como o chama Teófilo Braga - do poeta setecentista Alexandre Antonio

de Lima (1699-17?). Em seu livro Rasgos métricos, de 1742, Lima introduz o poema

com a despedida da “clóris de cachimbo” (prostituta) ao seu amor marinheiro.61 A

prostituta e o marujo dialogam em versos recheados de gírias, cujo significado é ba-

sicamente a fala da miséria. O autor anônimo, que se apropriou dos versos, décadas

depois, refaz uma apresentação em primeira pessoa: “Ah Francisca dos meus pecados,

que para criar o gimbo na algibeira vim albarruando estes mares embravecidos, só

para ver se em indo para essa terra te posso fazer a minha bazofia.” Na segunda versão,

o marujo chamado de Manoel Dias Gamberreas, refere-se então aos versos que sua

amada recitou quando ele partiu. A “clóris de cachimbo” do primeiro poema passa a

se chamar Francisca Fagundes Brioza Briolanja Berradeira, que, diferentemente das

esposas de Camões, consente a partida do amado, pois espera que ele logre “mil gro-

rias” e que sua riqueza possa comparar-se à do Rei. Ela está passando tal necessidade

que se assemelha a “uma estatula da morte”, um “escareleto vivo”. Ainda em Lisboa,

Manoel responde a Francisca na moeda da pobreza, explicando a razão da viagem:

60 mello, D. Francisco de. Metaphoras ou Feira dos Anexins, p. 251.

61 Essa “xácara alfamista” foi publicada sob o título “Da despedida de um marujo em estyllo e giri de

alfamista” em braga, Theophilo. Antologia portuguesa: Poética histórica portuguesa, p. 294-5.

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Se eu criara o grão, a roda [grão: 480 reis; roda: um tostão]

A cheta, quando é preciso; [cheta: 5 réis]

comprar no estanque o fumelio [estanque: armazém; fumelio: tabaco]

pagar na baiuca o pio [baiuca: taverna; pio: vinho]

Se eu tovera para o vulto [vulto: corpo]

A rede, se o gabio fino, [rede: roupa; gabio: chapéu]

Para a bola, para as gambia [bola: cabeça; gambia: perna}

A meia, e calco polido [calco: sapato]

Se eu tovera cada vez

que quisera, tudo isso

ma oxa que eu de lisbea [Lisbea: Lisboa]

abalara com caximbo [abalar com caximbo, dar no pé]62

62 Os significados destas palavras foram consultados em uma lista de gírias do século xviii, compilada

de outras obras por: coelho, F. Adolpho. Os ciganos em Portugal. Com um estudo sobre o calão, p. 79-84.

Folha de rosto de O marujo saudozo. Lisboa, Na Offic. De Antonio Gomes, 1791. Biblioteca Nacional de Portugal.

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Ir para o mar é um jogo de azar: pode-se ficar rico ou pode-se continuar miserá-

vel, como de fato ele ficou em Pernambuco, quando escreve para sua amada ofe-

recendo apenas versos, fruto da sua “porveza”, já que estava “feito a estatula da

necessidade”.63 Saiu sem “cheta” de Lisboa e continuou sem “ferro” (outra gíria

para dinheiro) em Pernambuco. Mas, como todo o povo português, herdou o liris-

mo da peregrinação. Este misto de gente que parte compunha outro personagem

muito mencionado: o peregrino. Camões, também marinheiro, deixou-nos a sua

interpretação dessa dialética:

Agora peregrino, vago, errante,

Vendo nações, linguagens e costumes,

Céus vários, qualidades diferentes,

Só por seguir com passos diligentes

A ti, Fortuna injusta, que consumes

As idades, levando-lhe diante

a esperança em vista de diamante,

Mas, quando das mãos cai, se conhece

Que é frágil vidro aquilo que aparece.64

No século xvi, Fernão Mendes Pinto, escreveu um relato sobre a sua peregrinação

pelo mundo, onde compara a ventura da vida na pátria e alhures:

(...) não contente de me por na minha Pátria logo no começo da minha mocidade,

em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns

sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde

em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os

trabalhos e perigos.65

63 O marujo saudozo. Rellação curioza da carta que escreveo de Pernambuco um marujo à sua moça, na

qual lhe relata a saudoza despedida que fizeram hum ao outro quando elle foi embora, e hum mimo que

ele lhe manda.

64 camões, Luís de. Lírica completa, p. 65.

65 pinto, Fernão Mendes. Peregrinação, p. 1.

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Perez-Mallaina atribuiu ao espanhol do século xvi, o emprego de marinheiro, como

atividade temporária. Ele consideraria que além de não pagar a passagem, ainda

obtinha um trocado, para que no momento em que chegasse nas Índias desertasse

e adquirisse as verdadeiras riquezas.66 Assim o peregrino e o marinheiro poderiam

ser as mesmas pessoas. Bem como o imigrante e o marinheiro: no século xix, muitos

portugueses vieram como marinheiros e mudaram de atividade no Brasil, ou paga-

ram a sua passagem de imigrante com um período de trabalho na Marinha.

Os marujos de todos os séculos eram vistos como “gente de baixa condição”,

“bruta” que não tem gimbo na algibeira, nem cheta, nem rede para o vulto e que,

portanto, se lançavam ao mar em busca de uma vida menos miserável com grande

chance de morrerem, aleijarem-se e continuarem pobres, seja alhures ou de volta

em Portugal. Em uma elegia à desgraça de Portugal, o poeta cômico José Daniel Ro-

drigues da Costa descreveu no início do século xix o caçador de fortunas d’além-mar

que volta a Portugal:

Vejo homens em balanças

Navegando no mar só de esperanças:

Figurões que povoam este mundo,

Mas tem os fundos seus todos no fundo

Albaroam co’a gente empavesados,

Enquanto se não mostram naufragados;

depois são qual a uva já passada,

que mostra baga, e pele, e sumo nada.67

2.3.3 Portugal: officina virorum da Armada do Império do Brasil

Em maio de 1826, o senador José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cayru, em uma

discussão sobre imigração e naturalização de alemães, franceses, ingleses, atentou

para o esquecimento dos portugueses, que naqueles anos haviam passado para a

66 perez-mallaína, Pablo E. Los hombres del océano: Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias.

Siglo xvi, p. 35.

67 costa, José D. R. da. Portugal enfermo por vícios, e abusos de ambos os sexos, p. 19.

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categoria estrangeiros: “é muito necessário que se facilite a naturalização dos portu-

gueses, que abundam de marinheiros e até se alistam nas Marinhas de outras nações

(...) Não olvidemos que em Portugal estão os túmulos, e mausoléus dos nossos pro-

genitores; e que nos cumpre olhar para aquele país como o viveiro da nossa recres-

cente população puritana.” Portugal seria, ainda, por muito tempo, nas palavras de

Lisboa, filho de portugueses, a nossa officina virorum.68 O senador demonstrava, mais

uma vez, como o engajamento de marinhagem e a imigração poderiam ser termos

afins. Naquele ano, pelo menos três marujos portugueses morreram na guerra da

Cisplatina no combate de 28 de abril de 1826: Domingos José de Braga. José Thomas,

do Porto, e José Manoel Garcia, do Algarve.69 Se invertêssemos o discurso, se os

marujos portugueses, objeto de sua fala se pronunciassem, eles diriam: “Estamos

morrendo em combate pela causa do Brasil, nós portugueses.”

Os portugueses queixaram-se ininterruptamente do recrutamento forçado em

todos os consulados da costa do Império, para autoridades brasileiras e até mesmo

para o Imperador. Enquanto os nacionais pediam dispensa pelas isenções relacio-

nadas à família, os portugueses o faziam por serem estrangeiros. A Armada do Brasil

no século xix não era uma saída da pobreza, mas uma permanência nela. Os seus

requerimentos estão na documentação consular, ministerial e policial. Achei ale-

atoriamente mais de duzentos, e deve haver muito mais. Quando não haviam sido

engajados à força, reclamavam que o tempo de engajamento previsto em contrato

acabara e que mesmo assim continuavam presos.

Em 1842, no porto de Montevidéu, onde havia diversos vasos de guerra do Im-

pério do Brasil com uma tripulação de mais de mil indivíduos,70 o comandante da

corveta portuguesa D. João I denunciou ao consulado que “a metade da tripulação

são portugueses presos violentamente em terra ou nos navios”. Os oficiais brasi-

leiros estariam rasgando as matrículas, atestados produzidos nos consulados que

comprovavam a origem portuguesa. O oficial português ainda pintou um quadro de

inversão, onde os seus conterrâneos ocupariam um lugar inferior aos dos “homens

de cor”, pois ficavam confinados dentro dos navios enquanto o serviço exterior era

“feito por pretos e homens de cor: o maior despotismo é exercitado contra estes

68 Anais do Senado, vol. 1, p. 111.

69 an, Série Marinha, xvii M 2513, Livro de Socorros da Fragata Imperatriz, 1825-1826.

70 Relatório do ministro da Marinha, 1842, anexo 2, Mapa da Força Naval.

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desgraçados, ainda mais dignos de compaixão que os antigos cativos da barbárie”.71

A denúncia ainda relatava que um português capturado da deserção fora castigado

com quinhentas chibatadas, o que resultou na sua morte. Além disso, o autor teria

presenciado a perseguição de seus conterrâneos “com tiros de bala, quando trata-

vam de escapar-se a sua injusta detenção.” Idelfonso L. Bayard, cônsul de Portugal

na Corte, qualificou esses episódios de “cousas tão horrorosas e tão ofensivas dos

sentimentos nacionais”.72

Mas a presença portuguesa nas duas Marinhas brasileiras era uma realidade,

independente das leis. Em 1847, o ministro plenipotenciário de Portugal na Corte,

José de Vasconcellos e Sousa, a explicou ao ministro dos Estrangeiros em Portugal:

[os portugueses] se matriculam como súditos brasileiros para facilitar sua ad-

missão na Marinha mercante. E desta prática resultam embaraços desagradáveis,

pela sem-cerimônia das autoridades encarregadas de tais recrutamentos, às quais

pouco atendem aos títulos de nacionalidade apresentados por nossos compa-

triotas, que apesar de se darem por brasileiros quando procuram emprego nos

navios de comércio, recorrem a esta legação logo que se vêm obrigados a servir

nos navios do Estado.73

Os portugueses, em alguns setores da Marinha mercante, constituíam muitas vezes

a maioria da tripulação. Os donos de navios mercantes na Bahia, forçados a aten-

der um aviso de 1854 que exigia uma porcentagem alta de nacionais nas tripulações

dos navios, escreveram às autoridades marítimas a impossibilidade de cumprir a

lei. Eles argumentavam que mesmo oferecendo vagas em anúncios nos jornais para

marinheiros nacionais, os candidatos não apareciam e por isso eram obrigados a

contratar estrangeiros, principalmente portugueses.74

Naquele ano, uma correspondência do ministro da Marinha pedindo marinhei-

ros ao cônsul do Brasil na Inglaterra demonstra como o engajamento de homens

no Reino Unido chegava ao fim e o de portugueses continuava a todo vapor. O côn-

sul de Londres respondeu ao ministro que a tarefa era impossível, pois os ingleses

71 Serviço de Documentação da Marinha, livro X, doc 962.

72 Ibidem.

73 Citado em: mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no

Brasil, p. 132.

74 Arquivo Público da Bahia, Mesa do Consulado, 1854.

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ganhavam mais na Marinha local e aconselhou que se recorresse ao cônsul brasileiro

em Portugal. Dito e feito: prontamente este último recrutou 300 marinheiros por-

tugueses e os enviou ao Brasil.75 Esses marujos podem ter vindo não apenas para se

engajar, mas também para imigrar de graça. Segundo Gladys Ribeiro isso era um ar-

tifício, um modo de não pagar a passagem.76 Mas também acontecia do engajamento

na Armada ser uma maneira de ressarcir a passagem ao governo. A partir de março

de 1851, na tripulação da corveta Imperial Marinheiro, havia um grupo de jovens

grumetes açorianos – de 14 a 17 anos – que se engajaram para pagar o Governo pela

passagem rumo ao Brasil. Dos 7$000 réis que ganhavam, 5$000 eram descontados

mensalmente, até completar o montante de 70$000 réis, ou seja, 14 meses.77 Apa-

rentemente, essa foi uma das formas comuns de engajamento dessa tripulação no

referido período. Em 1851, Antonio Perrini, um marinheiro de Porto Alegre, filho de

italianos, encontrava-se em Gênova sem meios de subsistência e recorreu ao Cônsul

do Brasil pedindo ajuda para retornar ao Brasil. O cônsul, conforme instruções do

ministro dos Estrangeiros anuiu, mas ele teria de pagar a passagem engajando-se

no “Serviço Imperial”.78

É difícil diferenciar, dentre os marujos portugueses, aqueles que eram profissio-

nais e os que eram imigrantes. Talvez, grosso modo, os profissionais sejam os que

aparecem como engajados ou recrutados em classes superiores (classe superior,

primeira e segunda classe), e os não marinheiros ou imigrantes sejam os recrutados

como grumetes.

A imigração portuguesa da primeira metade do século xix mantém um fluxo

contínuo durante todo o Império. Se antes da independência eles vinham como

colonos, o novo Império do Brasil, carente de mão-de-obra especializada e desejo-

so de trabalhadores brancos, incorporava esses homens para calçar a cidade, fazer

móveis, tripular os navios etc., seja como residentes ou naturalizados.79 O português

imigrante poderia engajar-se na Marinha como parte da submissão a “qualquer tipo

75 an, Série Marinha, Legação brasileira em Londres, xm 453.

76 ribeiro, Gladys S. A liberdade em construção: Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro

Reinado, p. 231.

77 an, Série Marinha, xvii 2323. Livro de socorros da corveta Imperial Marinheiro.

78 “Auto de engajamento do marinheiro brasileiro Antonio Parrini”. an, Série Marinha, IM 16.

79 No sub-capítulo Política migratória e escravidão, Gladys Ribeiro analisa o movimento migratório

português do século xviii à década de 1830 por meio de memórias e debates parlamentares, de-

monstrando como já era uma política de Estado, tanto no período colonial quanto no primeiro

reinado, antes da grande imigração da segunda metade do século xix. ribeiro, Gladys. A liberdade

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de trabalho”, próprio dos pobres sem rede social, ou conseguir melhores posições,

muitas vezes com o auxílio de parentes e conterrâneos.80

Neste contexto, ser marujo da Armada do Brasil para o português não era a chan-

ce de arriscar-se por uma vida melhor: a perspectiva na costa do Brasil era trabalhar

na Marinha mercante com melhores salários, e parte deles se engajou na Marinha

de guerra, em contratos sempre curtos. Os que foram recrutados à força, ou deser-

taram ou enfrentaram por anos um mar que não trazia promessas de riqueza, e sim

a certeza de manterem-se pobres.

Os recrutados à força recorriam principalmente ao Consulado para serem soltos.

Esse tipo de pedido era tão comum que os cônsules, por vezes, faziam requerimentos

coletivos de soltura de súditos portugueses ao Ministério da Marinha.

As autoridades brasileiras, muitas de origem portuguesa, insistiram na profusão

de vadios portugueses nas grandes cidades, o que justificaria o recrutamento, ainda

que ilegal. Uma portaria de 1832 reconhecia “pela estatística dos presos desta Corte

que a maior parte é de estrangeiros que por vadiação, bebedice, furtos e assassinatos

enchem as cadeias”.81 Como os nacionais, diversos portugueses foram presos pelos

delegados de bairro sob a lacônica justificativa “vadio”, e depois de uma temporada

na cadeia terminavam a viacrucis na Armada.82

Foi o caso de Victorino dos Santos, “encontrado com outros fora de horas va-

gando pelas ruas”, tornando-se por isso suspeito. E também do espanhol Francisco

Vasques, branco, ruivo, de olhos azuis, enviado em 1857 para a capitania do porto,

pois o delegado temia que ele voltasse às ruas e engrossasse “o caldo dos vadios

que infestam a cidade”.83 Em 1840, Francisco André de Souza Andrea, presidente

de Santa Catarina, escreveu para o ministro Rodrigues Torres algo semelhante. Joa-

quim Antonio, Valentim Simões e Domingos de Miranda haviam sido recrutados na

Corte, e quando aportaram em Santa Catarina pediram ajuda ao cônsul de Portugal.

Souza Andrea, de origem portuguesa, não atendeu a solicitação, mas os enviou de

em construção, p. 151-167. Ver também mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância à

imigração portuguesa no Brasil.

80 ribeiro, Gladys S. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro

Reinado, p. 166.

81 Portaria n. 137 de 12.04.1832. Citado em mendes, José S. R. Laços de sangue: privilégios e intolerância

à imigração portuguesa no Brasil, p. 126.

82 Ver os maços de correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros e com o chefe de

polícia: an, Série Marinha, xm86 e xm5.

83 an, Série Marinha, xm 86, correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, 1857.

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volta à Corte, solicitando que o ministro resolvesse o problema; qualificou-os de

“classe de homens que só lembram que podem passar por portugueses quando vêem

a facilidade com que outros são despedidos [da Armada] para ficarem vadios algum

tempo em terra, e ficarem depois de pior condição”.84

Havia também o caso de portugueses que foram capturados enquanto traba-

lhavam. José Silveira, da Ilha Terceira, caiu nas malhas do recrutamento, enquanto

empurrava uma carroça d’água. José exigiu os seus direitos ao cônsul: continuar

carregando água e não servir à Marinha. Antonio Dias Leite e Antônio Soares alega-

ram serem carpinteiros quando foram capturados pela patrulha do recrutamento

em 1837. Diziam-se apenas “residentes” ou “hóspedes” no país, onde exerciam ho-

nestamente a sua profissão.85 Nesse caso, mesmo sendo estrangeiros e exercendo

outros ofícios, a pressão feita pelo próprio Ministério de arranjar homens a todo o

custo, associada aos interesses do incremento de salário de policiais e oficiais de

baixa patente, conservou por muito tempo a prática ilegal de recrutar estrangeiros,

84 an, Série Marinha, xm 135, correspondência com presidente de Santa Catarina, 1840. O presidente

Francisco José de Sousa Andrea era português e viera com dom João em 1808. Militar e político,

debelou a Cabanagem, e esteve presente no episódio da retomada de Laguna.

85 an, Série Marinha, xm 1143, doc 42, Requerimentos.

Detalhe do ofício do cônsul de Portugal para o ministro da Marinha, pedindo desembarque de súditos portugueses da fragata Constituição. Entre seis recrutados, três são marítimos e os demais são trabalhadores urbanos, imigrantes. an, Série Marinha, xm 86, 1845.

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principalmente portugueses. Assim como caçadores de escravos, havia homens

que ganhavam, em média, cinco mil-réis por cabeça recrutada, como veremos no

Capítulo “Nacionais”. Essas práticas ilegais, às vezes, eram desfeitas nos processos

dos requerimentos, mas, em geral, ficavam diluídas na farta correspondência entre

o Consulado, o Ministério, o Quartel e a polícia, restando ao português cumprir o

tempo de trabalho ou desertar.

2.4 Britânicos e norte-americanos

Sing me fare-ye-well, me Liverpool gels,

An’ we’re bound for the Rio Grande!

Oh, New York town is no place for me, (…)

To the Brazils we’re bound an’ we hope ye don’t mind,

We soon will return to the Molls left behind.

Duas versões da shantie (canção de marinheiros)

“Rio Grande”.86

Em 1851, quando o Reverendo James Fletcher aportou no Rio de Janeiro, o som

que ele ouviu foi “o confuso falatório dos pretos na língua do Congo, os gritos

dos donos de barcos portugueses e as pragas (oaths) dos marinheiros ingleses e

norte-americanos”.87

De fato, os portos do Império do Brasil eram frequentados anualmente por mi-

lhares de marujos anglófonos. Não à toa, o porto do Rio era alvo de missões protes-

tantes e estalagens especializadas nesse público.

A presença de britânicos e norte-americanos na Armada brasileira foi consi-

derável desde o primeiro ano da independência, como vimos na introdução deste

capítulo. Os marinheiros profissionais firmavam um contrato de trabalho com sol-

do e tempo especificado. Ocupavam as graduações superiores, pois quase sempre

86 hugill, Stan. Shanties from the seven seas: Shipboard work songs and songs used as work from the great

days of sail, p. 90-91. Hugill reproduz diversas versões desta canção, provavelmente oitocentista e

cantada até hoje.

87 kidder, D. P. e fletcher, J. C. Brazil and the brazilians, p. 25. Tradução minha.

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eram mais experientes do que os nacionais. Quando eram engajados na Inglaterra,

as graduações já eram definidas: able seaman, ordinary seaman, landsman, cujos sa-

lários previstos eram próximos, respectivamente, dos marujos de classe superior,

1º marinheiro e 2º marinheiro. Grumetes não eram engajados. Praticamente não

havia norte-americanos, britânicos ou outros europeus, exceto portugueses, atu-

ando como grumetes nas embarcações estudadas.

Na nau capitânia das guerras da Independência, os anglófonos, sobretudo in-

gleses, representavam 61% da tripulação, entre 1823 e 1824. Já na década de 1820,

há requerimentos no Consulado norte-americano reclamando de recrutamento

forçado. Dos quatro navios cuja tripulação estudei, a presença anglófona começou

alta e foi diminuindo com o tempo, variando de 18% a 11% do total da tripulação e

representando em média 22% do total da tripulação estrangeira.88

Caldeira Brant, o futuro Marquês de Barbacena, aparece intermediando contra-

tos de marinheiros estrangeiros nos anos de 1823, 1836 e 1837, períodos nos quais

atuou como cônsul em Londres. No contrato de 1837, os marinheiros se engajavam

por três anos ganhando duas libras mensais, além de terem garantidas as passagens

de ida e de volta.89 Segundo o ministro da Marinha, em 1835 o engajamento dos es-

trangeiros custou aos cofres públicos cerca de 124$000 por marujo, o que multipli-

cado por 340 é igual a 42:160$000 réis ou £6.700 .90 Em 1836, só um do intermediários

no negócio, a firma Willcox and Anderson,91 cobrou £3.000 pelo engajamento de

500 marujos enviados ao Brasil (de £4 a £10 por pessoa). Em 1826, também parti-

ciparam como agentes no envio de imigrantes e soldados irlandeses para servirem

nos batalhões de estrangeiros do Exército do Império do Brasil.92

88 Estes dados estão na Tabela 1, na Introdução e na Tabela 3 deste capítulo.

89 an, Série Marinha, xm 895, Engajamento de marinheiros ingleses.

90 Relatório da Marinha de 1835. É de se notar que dentre os 420 homens vindos da Inglaterra, numa

viagem de 1834, 82 desertaram a caminho, o que significa que eles queriam apenas o adiantamento

de dois soldos, ou que foram coagidos a assinar e embarcar.

91 Na década de 1820, Willcox e Anderson atuavam como agentes de navegação a vaporna linha en-

tre Londres e Dublin, época em que intermediaram a vinda dos irlandeses para o Brasil. Em 1837

ganharam a exclusividade dos Correios entre Londres e a península ibérica e junto de um terceiro

sócio passaram a chamar-se P & O, uma das maiores companhias de navegação do mundo que existe

até hoje. O melhor resumo que encontrei da história da companhia está no site da Merchant Navy

Association. Disponível em: <http://www.red-duster.co.uk/PANDO.htm.> Acesso em: julho de 2011.

92 pozo, Gilmar P. S. Imigrantes irlandeses no Rio de Janeiro: cotidiano e revolta no primeiro reinado, p. 75.

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Vários desses ingleses engajados em 1834, constam dos Livros de socorros da

fragata Imperatriz. No mesmo ano, também engajou-se em Londres William Eaton,

que escreveu algumas cartas para a família, e depois desapareceu. O endereço do

remetente era “Prince Imperial Frigate, Rio de Janeiro”. Quando o seu pai morreu,

ele foi procurado neste endereço para que participasse da partilha. Eaton não foi

localizado, e um amigo em Londres afirmou que ele havia morrido.93 Se foi assim,

morreu sem saber que o seu pai também havia morrido. Do mesmo modo que o seu

pai morreu sem saber do seu paradeiro, mas os seus irmãos talvez tenham rezado

pela sua alma.

A saudade do marinheiro morto ou desaparecido foi poeticamente descrita por

Herman Melville, em Moby Dick. Numa Igreja Bethel, de New Bedford, estavam sen-

tados homens e mulheres silentes, diante de algumas lápides que não encimavam

cadáveres, a exemplo da que foi colocada pela irmã de “John Talbot, que se perdeu

no mar, com a idade de 18 anos, próxima à ilha da Desolação, no litoral da Patagônia,

em 1º de novembro de 1836”.94 O personagem Ishmael, consternado diante daquela

cena, fez a sua preleção particular:

Oh, vós, cujos mortos jazem enterrados sob a grama verde: que em meio a flores

podeis dizer – aqui, aqui jaz o meu amado: vós não sabeis a desolação que habita

estes nossos peitos. Que vazio amargo esse dos mármores enegrecidos que não

cobrem cinza alguma! Que desespero esse das inscrições irremovíveis! Que vácuo

mortífero, que indesejada infidelidade daquelas linhas que parecem minar toda a

Fé e recusam a ressurreição a seres que no deslugar pereceram sem ter túmulo.95

93 an, Série Marinha, xm 453, Legação do Brasil em Londres. Carta do advogado da família Eaton para

o ministro da Marinha, Londres, 30 de dezembro de 1838.

94 melville, Herman. Moby Dick ou a baleia, p. 58-9.

95 Ibidem.

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2.4.1 A Cabanagem e os marinheiros ingleses William e Thomas

Durante a Cabanagem, vários marujos anglófonos da fragata Imperatriz tiveram

fim trágico. William Butcher, Eduardo Thonson e Eduardo Fitzgerald faleceram,

alguns deles em combate. William Wright, George Leader e Joseph Smith foram

gravemente feridos. O norte-americano negro Calop Owins, o inglês William Battey

e Joseph Smith, para citar apenas três, retornaram para a Corte como inválidos.96

Outros desertaram de vários navios durante o combate, entre eles a trinca de per-

sonagens da história a seguir.

Narrarei, a partir de um processo e da correspondência entre autoridades, a

aventura dos marujos londrinos William Sealy e Thomas Jones97. Em 1834, aos 20 e

poucos anos, vitimados pelo desemprego marítimo, deixaram Londres para servir

a Marinha do Brasil. Da Corte foram enviados para o Pará na fragata Campista.98

No dia 5 de outubro de 1835, 17 marinheiros, a maioria inglesa, além de um ale-

mão e um português, partiram em uma lancha fortemente armada para buscar gado

próximo à foz do Arary, na Ilha de Marajó, onde estava fundeada a escuna da Armada

Rio da Prata. A fragata Campista estava cheia de refugiados belenenses. O próprio

presidente da província governava de lá. A necessidade de víveres era imensa, e os

marujos estavam a meia ração. O comandante temia a fome.

Era já noite, “o vento fresco, a maré crescente”, havia aguardente na lancha, e

os marujos seguiam bêbados, como eles próprios depuseram. O guarda-marinha

responsável pela guarnição da lancha subiu na escuna Rio da Prata, e os marujos que

ali ficaram logo “meteram em cheio pelo rio acima” – “com todo o pano” – segundo

testemunhas, em direção ao porto de Itacoã, ponto dos inimigos.

96 an, Série Marinha xvii M 2501, Livro de socorros da fragata Imperatriz.

97 an, Série Marinha xm 364, “Processo verbal e interrogatórios dos réus Thomas James e Wiliam Sle-

ves, marinheiros ingleses da Fragata Campista”. Força Naval do Pará e xm 251 Conselho de Guerra

Auditoria da Marinha.

98 Não estudei a tripulação da fragata Campista, pois o livro de socorros é bastante incompleto. Diante

dos dados disponíveis deste livro é observável a semelhança no perfil da tripulação da Campista e

da Imperatriz. Durante a campanha houve várias trocas de marujos entre uma e outra.

Assinaturas dos marinheiros ingleses William Sealy e Thomas Jones. an, Série Marinha, xm 251.

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Dias depois, a lancha foi encontrada em poder dos cabanos, de quem foi retoma-

da, sem tripulação e sem armamento: dois bacamartes, 13 armas, 500 cartuchos de

adarme, 40 balas, 30 lanternetas e 40 cartuchos de peças. Soube-se depois que um

dos tripulantes, um português, foi fuzilado pelos cabanos ou pelos próprios maru-

jos. Um marinheiro alemão arrependido da deserção voltou à fragata e, segundo o

presidente da província, contou a seguinte versão:

Estando ébrios com a privação de seus pagamentos que a Nação lhes faltava com

seus soldos há tempo, e que não tendo dinheiro e sempre cheios de trabalho, (...)

que eles usariam da força e roubariam com [os tapuios], arrojando-se sua maldade,

a conceber a proposta aos tapuios de atacarem com eles esta fragata, por se achar

mui atrapalhado com as famílias e pouca guarnição para o que eles com a lancha e

com mais sete batelões de tapuios se ofereciam.99

O comandante John Taylor, apesar de condenar a deserção, acamaradou-se com

os marujos: “as guarnições não podem estar contentes achando-se sem dinheiro

algum para comprarem sapatos e algumas roupas que precisam”. E ainda decla-

rou em postscriptum: “a guarnição da lancha era inglesa e a de melhor conduta que

tínhamos”.100 A crítica ao governo não é ao menos velada: marinheiro engajado

sem pagamento fica insubordinado, como ele já vinha alertando ao ministro da

Marinha em outros ofícios. Nesse caso, houve uma quebra de oposição entre oficiais

e marujos, sendo possível falar em certa solidariedade – não de classe, e sim de

homens marítimos. Eu acrescentaria: ingleses.

*

Em 1837, em diligência no Rio Preto, a mesma escuna Rio da Prata, cujo comandante

presenciou a partida da lancha dois anos antes, encontrou três dos marujos deser-

tores no Porto do Cury ou Curim.101 Um deles, o inglês Henry Peterson, morreu

99 an, Série Marinha xm 364, ofício do presidente do Pará, Manoel Jorge Rodrigues, ao ministro da

Marinha José Pereira Pinto, 6 de outubro de 1835.

100 Série Marinha xm 364, ofício de John Taylor, chefe e Comandante das forças navais, para o ministro

da Marinha José Pereira Pinto. Pará, 6 de outubro de 1835.

101 Não sei se seria o mesmo local do aldeamento Cory, que reunia os Mundukuru a partir de 1848 na

beira do Tapajós, então seis dias de Santarém. Hoje a localidade chama-se Curite.

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meses depois na presinganga Defensora. William Sealy e Thomas Jones ficaram ali

presos por três anos, aguardando a sua sentença. Um conselho militar foi formado

no patacho Januária, em Santarém, onde, em 1838, cinco tripulantes da escuna Rio da

Prata – dois lisboetas, um paraense, um benguelense e um catarinense – depuseram

como testemunhas do evento de 1835.102

Apenas em janeiro de 1840 os réus depuseram na corveta Defensora, surta em

Belém, onde ainda estavam presos. Negaram a deserção, alegaram que a correnteza

e o vento ocasionaram o descontrole da lancha, e que em Itacoã, na Ilha de Marajó,

foram interceptados pelos inimigos, que lhes tomaram munição e mantimentos.

Presos, seguiram para Belém, na época tomada pelos cabanos, depois para Santarém

na canoa Auspiciosa do “cabano Saraiva”. Dali teriam fugido para Curim, no Rio

Preto, onde foram presos.

A primeira sentença do processo saiu em fevereiro de 1840 e foi baseada no

artigo 37, dos de guerra, o qual punia com pena de morte indivíduos que passavam

para o lado inimigo com munição e mantimentos. Alguns membros contestaram a

punição, ponderando a veracidade da versão dos réus, e pediram clemência. Houve

empate na votação do Conselho, e a pena foi reduzida para dez anos de trabalhos

forçados dentro da província.

*

Não é possível saber se os marujos desertaram ou foram capturados pelo inimigo.

Suponho que, entre os diversos grupos que havia dentro de um navio, a ação entre

semelhantes é mais comum do que a ação da tripulação como um todo. No grupo a

maioria era composta de ingleses. O alemão que estava junto desistiu, e o português

foi fuzilado. Não creio que os ingleses tenham aderido à causa dos cabanos. Se por

ventura isso aconteceu, foi resultado da insatisfação dos britânicos com o Império

do Brasil, que não pagava seus soldos, além do estado de guerra em um país estran-

geiro ser um agravante da situação. Vender material bélico para o inimigo pode ter

sido uma solução da falta de dinheiro e uma possibilidade de deserção remunera-

da, o que viabilizaria o retorno à Inglaterra, o ingresso em outro navio ou, na mais

102 Todas as informações a partir de 1837 foram extraídas do “Processo verbal e interrogatórios dos

réus Thomas James e Wiliam Sleves, marinheiros ingleses da fragata Campista”. an, Série Marinha,

xm 251. Agradeço ao meu colega Eduardo Cavalcante, pela transcrição do documento.

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radical das hipóteses, tornar-se quase um caboclo nas matas amazônicas.103 A ação

não tinha volta. Um trio de ingleses continuou mata adentro durante mais ou menos

dois anos. Não sabemos o seu grau de adesão aos cabanos ou mesmo às populações

indígenas ou ribeirinhas.

Há uma história semelhante, contada por três marujos de um navio corsário que

foram presos em Cabo Frio em 1827. John Sullivan, Fergus Mc Viagh e Daniel Mullan

haviam partido como colonos para Buenos Aires. Ali teriam passado dificuldades,

o que justificaria o embarque em um navio corsário, com a “intenção de logo fugir”.

Em uma noite, quando estavam tentando apresar um navio em Cabo Frio, deserta-

ram, junto de dois italianos. Aportaram na costa e caminharam quatro dias até che-

gar à polícia de Cabo Frio. Aí permaneceram seis semanas em liberdade e partiram

em um brigue para o Rio de Janeiro, cujo capitão lhes enviou para a presinganga da

Corte. Solicitaram, então, a soltura ao cônsul britânico, que por sua vez fez o mesmo

pedido ao ministro da Marinha, se fosse “verdadeiro o que eles alegam”. Mais uma

vez, a versão contada é a de defesa de um possível delito. Como os ingleses da fragata

Campista, eles se diziam vítimas de grupos fora da lei. Também não sabemos se os

ingleses foram obrigados a trabalhar como corsários. Mas, assim como ocorreu com

os ingleses da Cabanagem, oito anos depois eles sobreviveram a situações-limite

no Atlântico internacional e acabaram em uma presinganga.104 Como tantos outros

marujos em apuros, recorreram às autoridades do seu país de origem para tentarem

se salvar da enrascada em que se haviam metido, tão longe de casa.

Os casos de William e James durante a Cabanagem, bem como o dos ingleses

com os corsários argentinos são exemplos de experiências radicais que os marinhei-

ros podiam alcançar. Eles viveram uma espécie de alteridade total. Tantos outros

homens as viveram e suas histórias foram certamente incorporadas às tradições

narrativas do mundo atlântico. Aqui cabe lembrar Michel Foucault: “o navio foi a

103 Isto aconteceu com a personagem “índia ruiva” do conto “História do guerreiro e da cativa” de

Jorge Luis Borges. Filha de ingleses de Yorkshire, que imigraram para Argentina e morreram num

ataque indígena, ela foi levada como prisioneira para o deserto, casou com um índio com quem teve

dois filhos e adaptou-se completamente a nova vida. Vestia-se com mantas, andava descalça, seria

capaz de beber sangue fresco de animais, e quando falou inglês misturava com araucano e pampa.

BORGES, Jorge Luís. O Aleph, p.39-42.

104 an, Série Marinha, xm 26, Legações estrangeiras. Ofício do cônsul interino A. I. Hearthely ao ministro

da Marinha, Marquês de Maceió.

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maior reserva de imaginação da modernidade”.105 E os marítimos foram transmis-

sores fundamentais desse imaginário.

2.4.2 Entre a fome na Irlanda e o trabalho forçado no Império do Brasil

O menor irlandês Thomas Downey morreu no Rio de Janeiro em 1852 de febre ama-

rela. Nesse mesmo ano, outros cinco irlandeses menores de idade também foram

enterrados no Brasil: Michael Curkin, Lawrence Collaton (católico natural de Mona-

ghan), Daniel Sullivan (católico e natural de Waterfront), Charles Curwen e Henry

Mc Coy.106 Uma denúncia no jornal The Times sobre os maus-tratos que esses meno-

res irlandeses vinham sofrendo na Marinha do Brasil causou um grande problema

diplomático com o Reino Unido.

Os menores haviam sido engajados em setembro de 1851 pelo capitão-tenente da

Marinha Elisiário Antonio dos Santos, por meio do Consulado do Império do Brasil

em Liverpool. Eram cerca de 70 meninos e adolescentes provenientes de diversas

localidades, como Dublin, Monaghan, Waterford, Athlone, Belfast, Westmeath e

Queenstown.107 Eles eram certamente fruto do êxodo irlandês causado pela grande

fome que grassou de 1846 a 1849, que reduziu consideravelmente a população do

país. Além da morte de aproximadamente um milhão de indivíduos, cerca de dois

milhões deixaram o país até 1854, sobretudo rumo a outros países do Reino Unido

e aos Estados Unidos.

Dentre as dezenas de irlandeses que partiram de Liverpool para o Brasil, vinte

ganharam uma libra e 17 schillings pelo engajamento (mais ou menos 10$000 réis)

e teriam de se sujeitar às regras da Armada por tempo indeterminado, além de não

terem assegurados os gastos com a sua volta ao Reino Unido, cláusula comum nesse

tipo de contrato. Depois de lido o termo – em português –, o menor deveria subscrever

que viajava “de livre e espontânea vontade”, bem como um dos seus pais, um tutor

ou uma testemunha. Dos onze termos que existem, cinco apresentavam assinatura

105 foucault, Michel. “D’autres espaces”. Disponível em: http://foucault.info/ documents/heteroTopia/

foucault. heteroTopia.fr.html. Acesso em: abril de 2011.

106 National Archives, Londres, 13/295, Foreign Offices e an, Série Marinha, IM 550, Engajamento de

marinheiros irlandeses.

107 Ibidem.

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de pais ou de um tutor, e os demais apenas de testemunhas, o que parece indicar

que parte era órfã, e parte provavelmente estava imersa em uma profunda pobreza

de família emigrante, que assistia a mais um capítulo do seu desmembramento.108 O

curioso é que em uma correspondência a parte, o tenente afirmava que o engajamento

108 an, Série Marinha, IM 550, Engajamento de marinheiros irlandeses.

Termo de engajamento do dublinense Patrick Smith, 6 de setembro de 1850. an, Série Marinha, im 550.

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era por doze anos, um tempo maior do que os próprios recrutados nacionais.109 Anos

antes, indígenas do Alto Amazonas haviam sido engajados de modo semelhante, com

a diferença que seus tutores ou parentes ganharam um pouco mais pelo engajamento,

algo em torno de 15$000 réis, e teriam de cumprir um tempo de seis a oito anos de

serviço110. No trabalho marítimo internacional, brancos europeus ou indígenas em

determinadas situações de miséria poderiam receber tratamento semelhante.

Em julho de 1852, um residente inglês da Corte escreveu para o Times britânico a de-

núncia publicada em setembro. Interveio o consulado britânico no Rio de Janeiro,

e 32 meninos foram entregues às autoridades britânicas que os “hospedaram” no

HS Crescent, navio da esquadra britânica que abrigava os africanos dos tumbeiros

apreendidos pela Inglaterra. Haveria ainda mais 18 que estavam embarcados.111 O

autor da denúncia escreveu que os meninos estavam quebrando pedra, colhendo

conchas, eram mal alimentados e tinham os seus salários retidos para que não de-

sertassem. Terminava a sua carta exclamando: “Conterrâneos, (...) mantenham os

seus filhos longe dos brasileiros! Imaginem um inglês sendo tratado como escravo,

e, o que é pior, por um brasileiro!”.112 O ministro da Marinha, em seu relatório anu-

al, mencionou o caso como causador de “alguma impressão”, opondo a denúncia

de tratamento desumano e bárbaro do Times, com as conclusões de um relatório

feito por uma comissão interna da Marinha que “evidenciou as exagerações e in-

coerências da queixa”.113

Na corveta Imperial Marinheiro, encontrei sete desses meninos, engajados como

segundo grumetes por um ano, a partir setembro de 1851, ganhando 4$800 réis por

mês. Eram eles Bradley Smith, Francis Heenan, James Burgau, James Mc Donald,

John Making, William Lamberck e Ricard Philips, todos com idade entre 14 e 16 anos.

Havia, ainda, dois menores de Liverpool que faziam parte do grupo, John Barkley e

William Ambrose.114

109 Ibidem, ofício do Tenente Eliziário Antonio dos Santos ao ministro da Marinha Manoel Vieira Tosta,

10 de setembro de 1851.

110 Ver seção Indígenas no capítulo Nacionais. an, Série Marinha, IM 483, “Engajamento de indígenas”.

111 an, Série Marinha, xm 279, Ofícios do Quartel General. Miguel de Souza de Mello Alvim para o

ministro da Marinha Zacharias Góes de Vasconcelos, novembro de 1852.

112 The Times, Londres, 21 de setembro de 1852. Tradução minha.

113 Relatório do ministro da Marinha, 1852.

114 an, Série Marinha, xviii M 2303, Livro de socorros da corveta Imperial Marinheiro.

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Um ano antes, em 1850, cerca de 325 homens foram engajados em Liverpool e tam-

bém não eram ingleses. 270 eram norte-americanos de diversas localidades, e os

demais de outros países europeus, como França e Grécia, além de alguns turcos.

Diferente dos menores irlandeses, esses homens eram marinheiros profissionais,

sendo 70 deles tatuados. Todos ganharam cinco libras como prêmio e teriam salários

de 16$000 réis mensais, durante três anos. Quem coordenou esse engajamento foi

John Pascoe Grenfell, veterano da Marinha do Brasil, que atuava como cônsul em

Liverpool.115 Na mesma época, ele enviou uma série de colonos irlandeses para o

Rio Grande do Sul, provavelmente nas mesmas embarcações que enviava marujos.116

Grenfell deixaria o posto em Liverpool por um ano para comandar a frota do Brasil

na guerra do Prata de 1851-1852. Desconfio que ele teria engajado os estrangeiros

115 an, Série Marinha, xm 16, “Engajamento de ingleses”.

116 galsky, Nélio. Mercenários ou libertários: As motivações para o engajamento do Almirante Cochrane e

seu grupo nas lutas da independência do Brasils, p. 29.

Denúncia de maus-tratos a menores irlandeses, no Império do Brasil publicada no The Times, Londres, 21 de setembro de 1852.

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em Liverpool para esse fim. Em períodos de conflito, o engajamento na Europa era

mais frequente, como aconteceu por ocasião da Cabanagem. Aparentemente não

só o engajamento na Inglaterra completou as guarnições nessa guerra. Segundo

Edna F. Antunes, por meio das instruções de 13 de setembro de 1851, acompanhada

pelo Aviso de 23 de setembro, marinheiros mercantes deveriam servir por um ano

na Esquadra Imperial, tributo este cobrado pelas Capitanias dos Portos.117

2.4.3 Estados Unidos – Brasil – O Atlântico do Novo Mundo

A presença norte-americana na Marinha do Brasil é explicável pelas conexões cres-

centes entre os Estados Unidos e o Brasil. O comércio recrudescia, os brazilian banks

situados no mar do sul do Império eram um dos destinos dos baleeiros norte-ame-

ricanos, a Marinha de guerra norte-americana organizava expedições científicas118

e instituiu na década de 1820, a Brazilian Station, duradoura estação naval móvel na

costa da América do Sul, onde havia permanentemente de dois a seis navios. A Ilha

dos Ratos (atual Ilha Fiscal), na Baía de Guanabara chegou a abrigar um armazém

de provisões dos norte-americanos.119

117 antunes, Edna F. Marinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial

(1822-1870).

118 Sobre estas expedições ver junqueira, Mary. “Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra

norte-americana, U.S. Navy, em direção à América Latina (1838-1901)”. Varia História, Belo Hori-

zonte, vol. 23, nº 38: p. 334-349, Jul/Dez 2007.

119 nordhoff, Charles. Nine years a sailor, p. 131.

Marinheiros recém-desembarcados de um navio baleeiro em New Bedford, 1860. Muitos baleeiros aportaram no Rio de Janeiro nas décadas anteriores, e alguns de seus marujos foram recrutados ou se engajaram na Armada Imperial. Foi o caso de Jacob Hazen, cuja história é narrada adiante. New Bedford Whaling Museum, New Bedford, Estados Unidos.

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De 1849 a 1852, o Rio de Janeiro serviu de ponto de parada aos navios da “corrida

do ouro”, que levavam passageiros em direção à costa oeste daquele país. Muitas

embarcações pertencentes a norte-americanos, ou construídas nos Estados Unidos,

participaram clandestinamente do tráfico ilegal de escravos.120 Consolidavam-se

novos laços entre o Atlântico Sul e o Atlântico Norte, agora do lado do Novo Mundo.

Uma pequena parte dessas tripulações, quando desembarcava ou desertava, tinha

por destino um navio brasileiro por engajamento ou recrutamento forçado. Esse foi

um dos grandes problemas do consulado norte-americano no Rio de Janeiro.

As reclamações de engajamento ilegal iniciaram-se logo após as guerras da Inde-

pendência, mas foi na guerra da Cisplatina (1825-1828), que abundaram ofícios do

cônsul norte-americano, Condy Raguet, pedindo explicações ao Governo. Segundo

Hill, leitor dos seus ofícios, os marinheiros eram intoxicados ou detidos depois do

tempo de serviço terminado ou confundidos com desertores ingleses.121 Na década

de 1830, outros marinheiros desafortunados, sobreviventes de naufrágios e deser-

tores de navios norte-americanos, reclamaram ao Consulado pelo fato de serem re-

crutados à força ou que eram engajados sob falsas promessas.122 Em 1849, auge da

corrida do ouro, Hill Forest, tripulante britânico de um navio norte-americano que

viajava rumo à Califórnia, foi recrutado à força com mais dois passageiros de um

bote na Baía de Guanabara. No dia seguinte, passou a tripular a corveta Januária,

que partiu para a Bahia, onde conseguiu fazer uma petição ao cônsul. O britânico

foi detido no Rio de Janeiro, e o seu destino acabou sendo a Bahia, onde conseguiu

comunicar-se com o Consulado.123 Teria voltado ao Rio? Se sim, conseguiu embarcar

no seu navio? Chegou à Califórnia ou acabou na tripulação de um navio de outra

bandeira rumo a outro país? Junto dele, foi violentamente recrutado Edouard The-

odore Dumesy, belga, desenhista de máquinas, que passeava pela orla. Ele também

teve de recorrer ao cônsul do seu país na Bahia. Quem os enviou, juntamente com

um português sob a pecha contumaz de “vadios”, foi o subdelegado e médico Dr.

Joaquim Marcos de Almeida Rego, que dois anos depois presidiria o Ceará.124

120 Sobre estes dois temas, ver horn, George. O sul mais distante: Os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico

de escravos africanos.

121 hill, Lawrence F. Diplomatic relations between the United States and Brazil, p. 41.

122 Ibidem, p. 84.

123 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, ofícios entre

diversas autoridades, junho de 1849.

124 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, vários ofícios.

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Os norte-americanos continuariam, na década de 1850, a se engajarem ou sim-

plesmente serem recrutados à força pela Armada brasileira. Em 1850, como vimos

acima, 270 norte-americanos foram recrutados em Liverpool. Em 1854, Daniel

Handerson, James Brown e Johan Jacques, pardos e negros de Nova York e da Fi-

ladélfia, engajaram-se no vapor Thetis e desertaram uma semana depois no Rio de

Janeiro.125 Em 1858, dos 11 estrangeiros engajados no porto de Santa Catarina, sete

eram norte-americanos.126

Assim como alguns marujos mudavam de navio e de bandeira nos portos bra-

sileiros, marujos nacionais ingressaram na Marinha de guerra e mercante norte-

-americana. Um deles foi José Ramos, que desertou da Marinha brasileira para in-

gressar como músico no navio Brandy Wine.127 Ramos não foi o único: em 1852, o

grumete imperial José Pereira das Neves desertou e tornou-se músico da fragata

norte-americana Congress.128 Engajar-se em um navio estrangeiro, poderia causar

problemas para o marinheiro brasileiro. José Pereira do Valle procurou o consulado

em Hamburgo para ajudá-lo a retornar ao Brasil, pois embarcara em Santos em um

navio sueco. O ministro dos Estrangeiros, Limpo de Abreu, escreveu ao ministro

da Marinha, observando ser necessário incluir o compromisso de ressarcimento de

passagens de volta pagas pelos consulados a marinheiros, visto que muitos capitães

os abandonavam em portos estrangeiros.129

125 an, Série Marinha, xvii M 4612, Livro de socorros do vapor Thetis.

126 an, Série Marinha, xm 138, Correspondência com o presidente de Santa Catarina.

127 an, Série Marinha, xm 86, Correspondência com o ministro dos Negócios Estrangeiros.

128 Ibidem.

129 Série Marinha, xm 86, Correspondência com ministro dos Negócios Estrangeiros. Ofício do ministro

dos Negócios Estrangeiros Limpo de Abreu ao ministro da Marinha, 17 de setembro de 1853.

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2.4.4 Missionários protestantes no porto: a bandeira Bethel na Corte

O reverendo James Fletcher, mais conhecido pelo livro que escreveu sobre o Brasil,

foi também missionário da American seamen’s friends society130, entre 1851 e 1854.

Nas suas palavras, durante a vigência da paróquia sem capela estabelecida no Porto

do Rio, sob sua coordenação:

a bandeira Bethel com a sua pomba branca esteve hasteada, e quando estufada pela

brisa, como um sino de igreja, ainda que mudo, chamou os rústicos marítimos de

várias embarcações para no tabernáculo flutuante (...) ouvir, neste clima distante,

As lições da sagrada verdade.131

Entre 1821 e 1854, intermitentemente, houve cultos sob a bandeira Bethel no porto do

Rio de Janeiro. Essa bandeira foi criada na Inglaterra em meados da década de 1810,

e logo depois foi adotada por norte-americanos para ser hasteada em embarcações

onde havia cultos de organizações protestantes multinominais de apoio a marinhei-

ros, principalmente aos domingos. Entre 1821 e 1834, a bandeira foi hasteada em

embarcações norte-americanas e inglesas, e os cultos realizados por um “capitão

bethel” de navio mercante inglês, e posteriormente por dois negociantes britânicos

residentes no Rio de Janeiro.132 A partir de 1835, a American seaman’s friend socie-

ty enviou, com outras instituições cristãs, missionários para atender marinheiros

anglófonos e protestantes no porto do Rio de Janeiro e evangelizar marinheiros de

todas as nacionalidades, além dos não marítimos.

130 O objetivo da American seaman’s friend society, escrito em vários de suas publicações, era “melho-

rar as condições morais e sociais dos marítimos (...); promovendo em todos os portos [do mundo],

abrigos, hospedagem, poupanças, (...) bibliotecas, salas de leitura e escolas - e também a pregação

do Evangelho e outras benções religiosas” (tradução minha) As organizações missionárias em prol

dos marujos começaram na Inglaterra nas últimas décadas do século xviii e proliferaram dali em

diante. Em 1816 um grupo metodista criou uma bandeira para sinalizar em que navio do porto de

Londres estava sendo realizado um culto. A bandeira tinha a palavra Bethel (Casa de Deus no antigo

testamento) um pássaro e uma estrela. Essas instituições atravessaram o oceano e outras foram

criadas nos Estados Unidos como a American seamen’s friend society.As mulheres confecciona-

vam bandeiras para serem levadas para o mundo todo por missionários. kverndal, Roald. Seamen’s

missions: Their origin and early growth.

131 fletcher, Joseph. Brazil and the brazilians, p. 200. Tradução minha.

132 “Report of Rev. O. M. Johnson”. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend

society, New York, v. 10; kverndal, Roald. Seamen’s missions: Their origin and early growth, p. 251.

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O primeiro pastor foi Obadiah M. Johnson. Uma extensa carta de recomendação

o orientou nessa missão. Os cultos deveriam ser ministrados nos navios, pois não

haveria igrejas. O pastor bethel deveria divulga-los entre os norte-americanos e in-

gleses da Marinha mercante e de guerra, além de franceses e alemães protestantes

que falassem inglês. Bíblias e tratados em português poderiam ser distribuídos aos

demais marujos e, com o tempo, uma vez aprendida a língua, poderia falar-lhes tam-

bém. Atenção especial deveria ser dada aos doentes do hospital, já que “os pobres

sujeitos estão longe do carinho e do cuidado das suas mães, irmãs ou esposas: Mostre

a eles que você cuida tanto da sua alma quanto do seu corpo, que você cuida dele

num momento de infortúnio; que ele tem um amigo, mesmo numa terra estrangeira,

e você ganhará a sua confiança para sempre.” E, se lá ele morresse, “que consolação

para os seus entes será saber que houve alguém… que sussurrou os consolos da re-

ligião” e “que alguém lhe providenciou um enterro cristão”.133

Segundo Johnson, ele ministrou cultos aos domingos para uma audiência que

variava de 15 a 80 pessoas em navios norte-americanos e ingleses. Visitou marujos

doentes na Santa Casa e trabalhou para a população não marítima. Na região portu-

ária, esteve em pelo menos seis estalagens para marinheiros pertencentes a ingleses,

norte-americanos ou falantes de inglês, as quais, na sua opinião, não passavam de

groggeries, lugares em que “velhos e jovens marinheiros passavam a tarde de domin-

go falando alto, cantando, bebendo, alguns dormindo sobre as mesas e a maioria

estúpidos demais para aproveitar algo que se pudesse dizer a eles.” O reverendo

entregava folhetos religiosos aos que ele chamou de “mais soberbos” e “os alertava

da necessidade de deixar aquele lugar de pecados e voltar aos seus navios”.134 Walsh

referia-se às também chamadas “publicaos”, corruptela das public houses, estalagens

das grandes cidades para marinheiros em trânsito.135

Anos antes, o reverendo Walsh afirmou ser frequentemente incomodado por

pedintes marujos norte-americanos ou ingleses que se diziam desempregados.

Aparentavam “homens destemperados, responsáveis pela sua própria pobreza”.

Sim, talvez Walsh estivesse referindo-se a marujos que sucumbiram ao excesso de

trabalho, desterritorialização, má alimentação e alcoolismo. Do seu ponto de vista,

133 The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend society, vol. viii, august 1836,

p. 130-1. Tradução minha.

134 Report of Rev. O. M. Johnson. The sailor’s magazine and naval journal. The american seamen’s friend

society, New York, v. 10. Tradução minha.

135 holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século xix, p. 126.

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estavam em pior estado do que os pobres brasileiros, que ao menos encontravam

alimento nas irmandades e não pediam esmola na rua.136 Um marujo anglófono

destemperado implorando por comida no Rio, que não comovia nem sequer um

pastor protestante, talvez fosse o auge do deslugar (displaceless) a que se refere o

narrador de Moby Dick, em New Bedford, no velório sem corpo de um marujo morto

no mar, mencionado acima.

Depois da partida de Johnson, Justin Spaulding e Daniel P. Kidder permaneceram

no Rio de Janeiro de 1837 a 1841. Este último, assim como o reverendo Fletcher, é

mais conhecido pelo livro de memórias sobre suas viagens no Brasil. Segundo Kidder,

a missão, em quatro anos, chegou a distribuir 60 mil páginas de tratados religiosos,

diversas bíblias e celebrou cultos quase todos os domingos, principalmente na Corte,

mas também em outras províncias, onde deixou representantes.137

Segundo Spaulding, os marujos anglófonos eram muitas vezes vítimas de

homens que mantinham estalagens para marujos e “mulheres más” que os em-

bebedavam, envenenavam, roubavam-lhes o dinheiro, as roupas e ainda lhes con-

taminavam com doenças. Imagino que, se ele pertencesse à Sociedade amiga das

prostitutas, culparia os marujos pelo sofrimento das moças. Spaulding relatou a

reclamação dos cônsules a respeito de segunda-feiras tumultuadas nos consulados,

onde chegavam diversas reclamações de confusões envolvendo marujos nos do-

mingos precedentes, o que fez alguns capitães de navio liberarem os seus marujos

apenas nos dias úteis. O norte-americano considerava que o marinheiro não era

diferente dos trabalhadores em terra firme – a distância do evangelho enquanto

navegavam é que lhes estragava as vidas.138

Em 1850, foi a vez do Reverendo Morris Pease, que teve de partir rapidamente,

devido a problemas de febre amarela na família. O seu breve relatório também fala de

atendimento espiritual aos anglófonos hospitalizados. Entre 1851 e 1854, chegou Ja-

mes Fletcher, também atuante entre os doentes, principalmente aqueles internados

na Santa Casa de Misericórdia. Depois da morte de alguns deles, disse ter enviado

cartas a algumas famílias reproduzindo as últimas palavras dos seus entes queridos.

136 walsh, Rev. Robert. Notices from Brazil, p. 473-4.

137 kidder, Daniel P. Sketches Of Residence And Travels In Brazil, p. 351.

138 spaulding , Justin. “Seamen’s cause at Rio de Janeiro”. The sailor’s magazine and naval journal. Vol.

xiv. New York, American Seamen’s friends society, 1842, p. 195-97.

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Um dos grandes objetivos dos missionários era convencer marujos a não pas-

sarem o domingo divertindo-se no porto e, sim, reservar o dia santo para os rituais

cristãos. Pelos relatos de todos os missionários, em terra, eles não atuaram muito

nos locais de diversão e concentraram-se no atendimento aos doentes. Os maru-

jos não deixaram necessariamente de lado a diversão a favor da religião. Isso não

significa que eles não atenderam a esses dois apelos. Deveria ser difícil abrir mão

dos prazeres carnais da terra firme, mas a ideia do culto na sua língua e da leitu-

ra eventual da bíblia também deve ter sido bem-vinda. Essa configuração ajudava

provavelmente os anglófonos a formar um grupo distinto que se fortalecia na sua

identidade protestante, alfabetizada e idiomática, para compensar as dificuldades

da distância e da vida marítima. A vida nas estalagens, onde se falava inglês, e uma

eventual ida ao culto certamente melhoravam a vida do marujo, bem como a rela-

ção sexual e/ou afetiva com mulheres das cidades. Se filhos foram gerados, imagino

que dificilmente eles tenham sido incorporados às famílias paternas. Juntavam-se

à horda de crianças que não conheciam os seus pais, e decerto não aprenderiam a

sua língua e não visitariam os seus países de origem.

Os missionários entendiam que o evangelho tornaria o marujo um homem de

bem. O discurso dos pastores reconhecia o marujo como um homem útil ao rebanho

de Deus. Entre as autoridades brasileiras, raramente encontrei observações edifican-

tes quanto a esses homens. Não havia associações ou missões que os protegessem –

os que eram católicos deveriam contar com os santos protetores dos marítimos para

sobreviver às suas dores, e quando inválidos, com a caridade de algumas irmandades

que porventura lhes dessem um prato de comida.

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2.4.5 Memórias, diários e leituras

A maior incidência de pessoas alfabetizadas entre os protestantes gerou dezenas

de livros de memórias de marinheiros publicados no século xix e um sem-número

de diários, dos quais uma quantidade razoável foi guardada nos arquivos norte-

-americanos e britânicos. Antes mesmo de 1800, as primeiras autobiografias de

afro-americanos foram escritas por marinheiros.139

No Livro de socorros da fragata Imperatriz, mais anglófonos e germanófolos assinam

os respectivos nomes nos diversos recebimentos do que os seus colegas portugue-

ses e brasileiros. Em 1852, o cirurgião da corveta Imperial Marinheiro, Emydio José

Barbosa, relatou que os ingleses, os franceses e outros estrangeiros sempre liam um

livreto no seu tempo de lazer. Segundo Barbosa, dentre uma centena de nacionais

não se contava mais de seis alfabetizados. Ele criticava abertamente a Marinha, pois

boa parte dos imperiais marinheiros frequentara a escola de aprendizes, onde deve-

riam ter sido alfabetizados.140 O marujo John Ross Browne era um dentre os vários

139 bolster, W. Jeffrey. Black Jacks: Afro-american seamen in the age of sail, p. 37.

140 an, xm 723, Relatório do dr. Emygdio José Barbosa, segundo cirurgião do corpo de saúde da Armada Nacio-

nal Imperial, embarcado na corveta Imperial marinheiro para o dr. Joaquim Candido Soares de Meireles,

Folhas de rosto dos livros de memórias dos marinheiros Charles Nordhoff e Jacob Hazen.

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norte-americanos que menosprezavam os portugueses. Como para muitos outros, o

comportamento católico dos lusófonos estava mais próximo do paganismo do que

do cristianismo. Depois de descrevê-los da maneira mais degradante possível, de acu-

sá-los de não respeitar os dias santos e nem saber da existência de um ser supremo,

perguntou a Enos, “o mais inteligente deles”, se já havia lido um livro chamado Bíblia.

Ele respondeu “I don’t sabe to read.” e que não conhecia a bíblia.141 Além do fato de a

bíblia em inglês ser comumente distribuída em navios, ela era facilmente encontrá-

vel no mundo marítimo anglófono. O marujo Edward Clark escreveu que na Costa

da Índia podia-se comprar uma bíblia atada a um livro de canções por um dólar nos

bom-boats (barcos que vendiam todo tipo de mercadoria para marujos no porto).142

Daniel P. Kidder descreveu uma cena insólita na sua visita a Maceió. Caminhando na

praia, foi convidado por um velho português a tomar uma água de coco em sua casa.

Sob a mesa do anfitrião, Kidder viu uma Bíblia em português editada pela British and

Foreign Bible Society. O português afirmou que um marujo na Bahia lhe havia dado.

A bíblia, segundo o norte-americano, era artigo raro nas casas brasileiras, o que fazia,

por exemplo, com que ela fosse permanentemente emprestada para os seus vizinhos.143

Em White Jacket, há um capítulo inteiro dedicado à biblioteca “mantida pelo

Governo” do navio Neversink, inspirado na fragata de guerra United States, onde

Herman Melville viajou como marujo durante um ano. São citados autores como

Locke, Maquiavel, o naturalista Mason, dramaturgos modernos e clássicos, além de

livros de histórias de piratas e outros temas marítimos. White Jacket, a personagem

principal, alter ego de Melville, considerava alguns dos ensaístas um tanto indigestos

para ler a bordo, apesar de devorá-los. Mas ele também tomava emprestado dos seus

colegas, obras como um livreto de canções de negros, do marujo negro Broadbit, e

um volume do poeta oitocentista Thomas More, The loves of angels pertencente ao

“mulato” Rose-water. A personagem comparou o gosto vulgar do primeiro com a

natureza mais elegante do segundo e observou que o que mais se lia nos navios não

eram as belas-letras, mas, sim, volumes facilmente encontráveis nas barraquinhas

do Fulton Market, um mercado portuário de peixe de Nova York.144

cirurgião-chefe do Corpo da Armada. Série Marinha, Corpos de saúde.

141 browne, John Ross. Etchings of a whaling cruise. New York, Harpers & Brothers Publishers, 1846, p.

43-44.

142 clark, George Edward. Seven years of a sailor life, p. 140.

143 kidder, Daniel P. Sketches of residence and travels in Brazil, p. 104.

144 melville, Herman. White-Jacket, or the World in a man-of-war, capítulo 41.

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Imagino que a leitura dos marinheiros de fato deveria estar ligada a material po-

pular, mas havia os que liam jornais e livros sofisticados. Edward Clark, que publicou

o diário Seven Years of a sailors’life, gostava de ler jornais nas estalagens para maru-

jos, que eram normalmente descritas como lugares de bêbados e bandidos. Muitos

marinheiros anglófonos deixaram belas páginas, o que supõe que conheciam boa

literatura. George Blanchard, um marujo baleeiro norte-americano, quando aportou

em Santa Catarina na década de 1840, escreveu no seu diário belas linhas sobre o

encantamento pelas “vinte e quatro supostas virgens vestidas de anjos e salpicadas

de ouro” da procissão da sexta-feira santa. Ele as seguiu até a missa da catedral, onde

“mil velas produziam uma labareda inebriante sob o som do coral”. Finalmente de-

clarou: “Eu não sabia onde eu estava, eu não sabia quem eu era, apenas fiquei ali com

olhos vidrados”.145 Blanchard, na contra-corrente de muitos de seus colegas, ao invés

de menosprezar os rituais católicos, escreveu uma elegia, sob forte impacto místico.

Além de comerem muito mal a bordo, os marinheiros estrangeiros apreciavam

as especialidades dos portos do Império do Brasil e outras partes. Muitas vezes os

produtos chegavam ao navio por meio dos bumboats, chamados no Brasil de bar-

cos de quitanda, onde se vendia comida e mercadorias para tripulantes de navios

ancorados. No início da década de 1830, havia 83 matriculados no Porto do Rio de

Janeiro.146 Charles Nordhoff comprou laranjas, bananas e jonny cacká (goiabada en-

rolada em folha) no porto do Rio de Janeiro no bote de Joe Portuguese, mercador

flutuante, que também vendia peixe frito e ovo cozido. Rufino José Maria, cozinhei-

ro de negreiro, produzia e comerciava goiabada nas costas atlânticas.147 Segundo

Nordhoff, o doce era muito popular entre os marujos, mas ao seu paladar parecia

areia com açúcar derretido. O que mais lhe encantou foi a desconhecida banana. Ele

descreveu a degustação da iguaria como um acontecimento: “bastou a experiência

de deixar uma derreter na boca para garantir que não havia fruta mais deliciosa

dentre as frutas tropicais”.148

145 Citado em creighton, Margareth. Rites and passages: The experience of american whaling, 1830-1870,

p. 148. Tradução minha.

146 bezerra, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: Identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo

da Guanabara (1780-1840)., p. 118 e 179.

147 reis, João J. gomes, Flávio; carvalho, Marcus, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico

negro (c.1822 - c. 1853).

148 nordhoff, Charles. Nine years a saylor, p. 128-9.

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2.4.6 A história do norte-americano Jacob: cinco anos no mar, três semanas na Armada do Império do Brasil 149

Numa madrugada de 1838, no Rio de Janeiro, o norte-americano Jacob foi tomado

de assalto por uma trupe de recrutadores da Marinha de guerra do Brasil. Tentou

argumentar que era estrangeiro, mas de nada adiantou. Passou a noite preso em

um lugar chamado “banco”, e na manhã seguinte foi embarcado na fragata Prín-

cipe Imperial, que breve partiria para “combater os rebeldes da Bahia”. Tratava-

-se provavelmente do desfecho em Salvador, da revolta conhecida como Sabinada.

Nas poucas semanas que ficou ali, afirmou ter sentido falta da tirania do capitão do

baleeiro que o fez desertar meses antes. Descreveu a comida como lavagem para

porco, os homens como “negros e sombrios” e a sua estadia como “três semanas de

cativeiro”. Quando um bote de uma esquadra norte-americana visitou o navio, ele

pediu para um dos tripulantes que entregasse um bilhete ao cônsul norte-americano,

explicando o seu caso. Oito dias depois, foi libertado, depois de três semanas na

Armada do Império do Brasil.

Conhecemos esta história e toda sua vida no mar, graças ao livro de memórias

que publicou. Vejamos o que aconteceu antes e depois dessa sua pequena experiên-

cia no Brasil. Interessa-me demonstrar, incluída alguma fantasia que sua memória

criou, as inúmeras possibilidades de ser marinheiro no Atlântico e também noutros

mares. O sujeito poderia até preferir servir sob alguma bandeira, ou tentar escolher

seu destino. Mas o descontrole sobre o curto, o médio e até o longo prazo era uma

constante na vida dos marujos. Uma característica dessa presença anglófona na

Armada do Império Brasil é que, apesar dela ter sido contínua nas primeiras déca-

das, os marujos não permaneciam por muito tempo, sendo esta uma das muitas

experiências que tinham em variadas costas.

Jacob A. Hazen nasceu em 1815 numa família pobre de Muncy, Pensilvânia. Tor-

nou-se aprendiz de sapateiro aos cinco anos. Aos dezessete, deixou sua terra natal

para ganhar a vida com seu ofício em outras partes. Instalou-se finalmente em Fila-

délfia, onde conseguiu um emprego razoável. Mas, algum tempo depois, aos 22 anos,

tornou-se uma das milhares de vítimas do Pânico de 1837, uma crise financeira que

149 hazen, Jacob. Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-of war. Este

livro conta sua experiência como marinheiro entre 1837 e 1842. O resumo de sua experiência carioca

foi extraído principalmente do capítulo sete e oito. As partes citadas são traduzidas por mim.

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resultou na quebra de diversos bancos e uma grande onda de desemprego em todos

os Estados Unidos. Hazen não precisava ser um grande economista para entender:

“quando o número de trabalhadores desempregados é grande, a chance de conseguir

um emprego é tão incerta quanto ganhar na loteria.”

Depois de sucessivas tentativas de conseguir trabalho, Hazen chegou a conclu-

são que era melhor divertir-se, tarefa que revelou-se impossível. Retratatou-se neste

período como “desencorajado desanimado, sem dinheiro e cada vez mais endivi-

dado (...) me sentia desgraçadamente abatido pela vida; e só pensava que a única

coisa que combinaria com estes sentimentos era assistir alguém ser enforcado.”

Dirigiu-se ao local de enforcamentos públicos, e viu um homem ser executado por

pirataria. Deixou o local “sentido-se um pouco melhor” e, voltou pra casa, triste num

dia agradável de sol e céu azul. A noite, perturbado cheio de torpores causados por

suas últimas experiências, dormiu um sono agitado por “sonhos selvagens”.

Este momento cartático levou-o ao um insight: “the best remedy for hard times

is to go to sea.” Hazen combatia sua miséria escapando do mundo terreno, como

se o marítimo fosse um mundo alternativo. Depois de cinco anos de trabalho duro,

só possuía umas roupas melhorzinhas, além de dívidas com a dona da pensão onde

morava e com o alfaiate. Vendeu parte das roupas, pagou as dívidas e se engajou num

navio baleeiro através de um agente na cidade. Tomou um trem para Nova York, da

onde embarcou para Sag Harbour, um povoado marítimo ao norte do Estado. Ali

passou duas semanas tocando flauta e cantando nas festas e bares da cidade, muito

bem sucedido entre mulheres e amigos. Amigos aos quais chamou sunshine friends,

aqueles presentes nos bons momentos. Na véspera de partida resolveu escrever uma

carta de amor para a lady-love que deixou na Filadélfia, cujo teor balançava entre

“alguma coerência e nosense (...) que continha sentimentos verdadeiros e outros que

eu nunca senti como fidelidade inabalável, constância eterna e todo um vocabulário

de palavras leves e gentis, tão falsas quanto agradáveis.”

A primeira parada do navio foi na Ilha de Fayal, da onde guardou as frases “filio

do Pootos Americanos” ou “Oh, Jack! por amar de Deo um vintem!”. O navio ainda

parou na Ilha de Fauklands, seguiu para a região entre Montevidéu e Patagônia, onde

capturou três baleias e iniciou a volta para os Estados Unidos com a primeira escala

em Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro. Ali, Hazen na companhia de seus amigos

de bordo, Mark que falava português e do português John Antonia conheceu a ilha,

e tocou flauta para o deleite dos locais. Os dois americanos tornaram-se amigos de

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Joaquim, dono de uma fazenda de café e de sua família, a ponto de Mark resolver

desertar e ficar um tempo morando por ali.

O navio aportou no Rio de Janeiro onde venderia parte dos derivados das baleias

capturadas. Durante a estadia carioca, houve violentos castigos em alguns membros

da tripulação. Hazen decidiu-se por desertar.

Estava sozinho, com dez dólares no bolso, numa cidade que não conhecia nin-

guém cujo idioma desconhecia. Percebeu que a sua aventura no mar não o deixara

mais rico que o tempo que trabalhou em terra. Perguntou-se mais uma vez: “o que

farei para viver?”. Dessa vez Hazen não passou necessidades. Logo arrumou um

emprego na loja de sapatos na elegante Rua do Ouvidor pertencente ao inglês Mr.

Bridges onde trabalhou ao lado de escravos africanos e trabalhadores livres. Bridges

levou Hazen para morar em sua casa na Glória, bem como outro funcionário inglês.

Os três juntavam-se a noite para tocar música e beber vinho, momentos que torna-

ram o dia-a-dia carioca de Hazen aparentemente agradável.

Mas esta vida pacata não era suficiente para o norte-americano. Hazen apai-

xonou-se pela cortesã inglesa Mary Mertle. Seu pai viera trabalhar na extração do

ouro em Minas Gerais. Insatisfeito com o trabalho e com o país, ele resolveu voltar

com a esposa e a filha para a Inglaterra. A família Mertle instalou-se na estalagem

de certo Senhor Surfe, misto de hospedagem, prostíbulo e casa de bilhar, enquan-

to esperava o embarque para a Inglaterra. O alemão atraiu-se pela beleza de Mary

e tornou-se seu amante e cafetão. Escondeu-a dos seus pais, os quais deixaram o

país achando que a filha morrera. Mr. Surfe, alemão de nascimento, era falante de

diversas línguas, e segundo Hazen, fora espião de D. Pedro I. Tinha duas esposas,

várias amantes, sendo Mary uma delas. Hazen passaria a frequentar as “elegantes”

salas de bilhar desta estalagem.

Surfe terminou envolvido em um assassinato, foi preso, e a casa continuou fun-

cionando sob o comando da cafetina Scotch Liz. Nesse período, Hazen tornou-se

amante de Mary. Viciado em jogar bilhar ganhando pouco como sapateiro, procurou

trabalho nos navios da “US Exploring Expedition” que no final de 1838 aportara no

Rio de Janeiro. Esta foi a primeira expedição de volta ao mundo da marinha de guerra

norte-americana. Os objetivos eram tanto científicos quanto econômicos. Como

era um mero grumete (landsman), não foi aceito e arranjou um bico num navio

brasileiro de cabotagem que transportava café no litoral da província fluminense.

Quando voltou da primeira viagem, Mary estava muito doente, faminta e abando-

nada por sua cafetina. Ele serviu-lhe um prato de sopa e voltou ao trabalho. Quando

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veio vê-la, quatro dias depois, ela já estava enterrada na vala comum do cemitério

da Santa Casa, junto de escravos, mendigos e outros pobres e desvalidos.

Hanzen descreve longamente o horror desse fim e do cemitério que continha

“pilha sobre pilha de cadáveres” de gente de todas as cores e idades. Atordoado com

o triste fim da amiga amante ficou sentado diante do cemitério até altas horas da

noite, olhando para o norte, “procurando em vão a estrela polar, que naquela hora

devia estar iluminando os vales e montanhas de sua terra natal”. Em meio a esta

imagem, reconstituiu os rostos de seus familiares às quais juntou o da pálida Mary,

criando assim um inventário sentimental de sua vida. Apavorou-se com a ideia da

distância, a possibilidade de uma febre tropical encaminhá-lo para uma “tumba

tão solitária quanto densamente povoada”. Decidiu voltar. Foi neste instante que a

trupe de recrutadores o levou para um navio da Armada do Império.

Logo que obteve o desembarque da fragata Prícipe Imperial, desejoso de voltar

para a sua cidade, alistou-se no Independence, navio da Brazil Station (estação naval

norte-americana que permaneceu por muitos anos na costa do Brasil). Percorreu

toda a costa das Américas do sul e do norte e não conseguiu chegar a sua cidade.

Acabou sendo escalado para tripular uma frota que ia para o Mediterrâneo. Conhe-

ceu Gibraltar, Nápoles e Siracusa e finalmente aportou em Maó, na Ilha de Maiorca

onde conheceu Frank, Francisca ou Francesca Modora. A mãe da moça a ofereceu

em casamento. Ali passou um tempo. Suas intenções com ela não eram matrimoniais,

tampouco enganadoras, era um amor de marinheiro. Foram a um baile de másca-

ras, ele vestido de sultão e ela de cigana. Mesmo fruindo diferentes estilos de vida,

Hazen nunca abandonou o discurso da superioridade da civilização protestante. As

observações sobre a ilha poderiam ser feitas sobre Lisboa, Rio de Janeiro:

Os nativos de Maiorca, como quaisquer outros de países católicos, são apaixonados

por procissões, espetáculos, bailes de máscaras e fandangos. Um terço do tempo,

que em comunidades inteligentes é empregado em estudos de livros, ou alguma

recreação intelectual, aqui é devotado à dança e à festa. Ociosidade e ostentação

são tão inseparáveis quanto ignorância e vício.

Findo seu tempo regular na Marinha, desembarcou em Maiorca. Despediu-se com

lágrimas sinceras de Francisca, partiu para Marselha e de lá para New Orleans, No

seu retorno a casa, a última escala foi a capital norte-americana, onde esteve no

Senado e no Ministério da Marinha para resolver suas pendências militares. De lá

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tomou um trem para Filadélfia. Naquela cidade, procurou por Susan, a namorada que

deixara cinco anos com juras de amor. Esta última, com certo afeto, lhe informou que

depois de todo este tempo já tinha outros compromissos. Hazen agradeceu profun-

damente a sinceridade, mas de algum modo vingou-se dela, através de sua descrição:

“Bonita ela, sem dúvida, foi, traços de beleza ainda se viam aqui e ali nas suas feições,

mas as bochechas fundas e o rosto avivado deviam mais ao rouge e outros pós do que à

matiz rosácea da saúde.” Se ele a perdera, também ela perdeu sua beleza. O tempo que

os separaram era o mesmo que erodiu seu rosto.

O conto “Noite de Almirante” de Machado de Assis é sobre um reencontro seme-

lhante. De volta de uma longa viagem, Deolindo Venta-Grande propagandeou aos seus

companheiros que na sua noite de folga viveria a tão sonhada noite de almirante, depois

de meses sem ver Genoveva, aquela que jurou-lhe amor eterno. Quando finalmente a

encontrou, ela informou-lhe que namorava um caixeiro, argumentando que a jura fora

sincera, “Pode crer que pensei muito e muito em você. (...) Mas o coração mudou... (...)

Veio este moço e eu comecei a gostar dele...”.150 Diferente de Hazen que assumiu em suas

memórias o fora que levou, Deolindo voltou para o navio “com um sorriso satisfeito e

discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite”.151

O fim da trajetória narrada por Hazen é o retorno a sua terra natal, onde apenas

menciona que reveria aqueles que durante oito anos visitaram seus sonhos. Encerra

suas histórias de farras, amores, aventuras e sofrimento com frases edificantes enal-

tecendo além da Marinha americana, a continuação de sua pobreza, o grande conheci-

mento obtido, mas sobretudo sua integridade inabalável: “Vocês me viram sujeito à

crueldade, à privação e às decepções – banido do convívio social – frequentemente

sem amigos – sempre pobre, mas jamais desanimado”.

150 assis, Machado de. “Noite de Almirante”. Obra completa Volume II – Conto e Teatro. p. 449.

151 Idem, p. 451.

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Assinaturas extraídas dos Livros de socorros da fragata Imperatriz. an, Série Marinha, xvii m 2500 e xvii m 2501. Pará, década de 1830.

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