2. Guerra Fiscal e Políticas de Desenvolvimento

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  • Economia e Sociedade, Campinas, (13): 1-40, dez. 1999.

    Guerra fiscal e polticas de desenvolvimento estadual no Brasil Sergio Prado

    Introduo

    A utilizao de isenes e subsdios de vrios tipos, mas principalmente de carter tributrio, prtica comum e quase permanente dos governos estaduais brasileiros desde pelo menos os anos 60. Depois de um perodo de acirramento entre final dos anos 60 e incio dos anos 70, quando se tornou notcia pela primeira vez a chamada guerra fiscal, o fenmeno perdeu evidncia at o final dos anos 80. No comeo dos anos 90, ele retorna de forma inicialmente tmida para depois explodir, a partir de 1993/94, numa grande polmica nacional.

    Seguramente nunca ter havido um momento, desde os anos 50, em que no houvesse pelo menos uma dezena de estados (e mais recentemente, tambm grandes municpios) com programas de desenvolvimento regional/local em operao, utilizando predominantemente incentivos tributrios. A guerra fiscal pode ser vista, portanto, como um estado peculiar de acirramento do carter competitivo destas polticas. Por isso, e por outras razes talvez mais relevantes que sero alinhadas frente, o enfoque aqui adotado analisar a guerra fiscal no contexto das polticas regionais de desenvolvimento.

    Tal enfoque se desdobra no destaque de pelo menos trs importantes dimenses analticas do fenmeno. A primeira, mais evidente e talvez principal, a da disputa no contexto federativo. O argumento desenvolvido no item 1 que a Guerra Fiscal, tal como hoje praticada, tem como condio bsica de viabilidade a conjugao de um determinado arranjo legal da tributao do IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) e a progressiva fragilizao da capacidade de regulao (tomada num sentido amplo) das relaes federativas por parte do governo central. Os desenvolvimentos ocorridos neste mbito foram de molde a criar as condies para que um fato novo e relevante, a forte retomada do investimento privado interno e externo nos anos 90, operasse como deflagrador da ampliao e aprofundamento da guerra fiscal.

    A segunda dimenso seria dada pela guerra fiscal como uma forma peculiar de polticas de desenvolvimento industrial regional, e envolve, portanto, um outro plano de interao, aquele entre governos e o processo privado de alocao espacial do investimento. neste mbito que devemos discutir as caractersticas e os limites da guerra fiscal como instrumento de poltica regional, o que ser feito no item 2. L, o argumento bsico desenvolvido que, nas condies hoje vigentes ao nvel do arranjo federativo, a guerra fiscal como mecanismo de orientao da alocao dos grandes blocos de investimento um

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    processo perverso, controlado integralmente pelas empresas privadas e que conduz maximizao do custo fiscal associado implementao de cada projeto.

    A terceira dimenso dada pelas conseqncias fiscais dos subsdios utilizados na guerra fiscal, o que para a importante questo dos possveis impactos negativos dos incentivos sobre as finanas estaduais. No item 3, propomos uma tipologia dos instrumentos utilizados na guerra fiscal, analisamos suas caractersticas e sustentamos a tese de que, embora a guerra fiscal implique necessariamente um impacto negativo para o pas como um todo, no absolutamente evidente que os estados que a praticam percam individualmente, no mdio e longo prazo, caso os projetos subsidiados sejam bem-sucedidos. Na realidade, dependendo da evoluo dos projetos envolvidos, o governo estadual pode se encontrar numa posio relativa melhor do que se eles no tivessem existido, ainda que o custo fiscal para o pas como um todo seja alto.

    1. A disputa federativa e o controle do governo central

    As poucas tentativas de conceituao da guerra fiscal tendem a enfatizar, por um lado, o seu carter conflituoso e desordenado: a atitude dos governantes exprimiria um comportamento no-cooperativo, cujos resultados prticos convergem em favor de alianas locais, ou seja, visam atender ao bem-estar dos cidados da territorialidade envolvida. Varsano (1996: 2) conceitua a guerra fiscal como uma situao de conflito na federao em que o ente federado que ganha quando, de fato, existe um ganho impe, em geral, uma perda a algum ou alguns dos demais, posto que ela raramente um jogo de soma positiva.

    A nfase no carter conflitivo no mbito da federao no , contudo, suficiente para uma adequada caracterizao do fenmeno. Ela significa conceituar Guerra Fiscal a partir exclusivamente do comportamento dos GSN, o que pode restringir o conceito viso at certo ponto ingnua de comportamento cooperativo versus no-cooperativo, normalmente veiculada pela mdia. A questo central que lutar por interesses prprios de forma no-cooperativa inerente a agentes federativos: a federao , neste sentido, intrinsecamente conflituosa, composta por agentes em grande (e bem grande) medida competitivos entre si, o que exige a presena um ente regulador das relaes federativas o governo central em conjugao com o Congresso. Estes devem ser, no mnimo, os patrocinadores de todo um corpo jurdico que busque minimizar, pelo menos, os prejuzos que iniciativas individuais de GSN gerem para o conjunto da sociedade.

    Prope-se aqui que o foco da anlise seja deslocado do comportamento dos GSN e suas implicaes para um nvel mais amplo onde o fenmeno seja analisado como um caso de disfuno do processo poltico-institucional de regulao dos conflitos entre interesses polticos e econmicos regionais. Vista

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    desta tica, a guerra fiscal um caso de uma classe geral de fenmenos que emergem quando iniciativas polticas de GSN adquirem conotaes negativas e geram efeitos econmicos perversos em decorrncia do carter insuficiente ou conjunturalmente inoperante do quadro poltico-institucional que regula as relaes federativas, o qual se revela incapaz de garantir um equilbrio mnimo entre os diversos interesses regionais/locais de forma a evitar efeitos econmicos e sociais perversos.

    Por outro lado, no caso especfico que nos interessa aqui, das polticas de desenvolvimento, a dimenso e gravidade dos conflitos esto diretamente ligadas ao alcance e poder dos instrumentos de que dispe os GSN. No caso brasileiro, como mostraremos a seguir, a forma como evoluiu a estrutura tributria criada na reforma de 1967 acabou propiciando aos governos estaduais um poderoso instrumento autnomo de ativismo desenvolvimentista. Se somamos a isto a progressiva fragilizao da capacidade de controle do governo central, temos os ingredientes necessrios para a exploso da guerra fiscal.

    O sistema de tributao do IVA e a ao do CONFAZ

    O mais bvio componente dos controles sobre a dinmica federativa dado pelos dispositivos constitucionais e legais existentes no mbito do sistema tributrio e oramentrio da Federao. Embora este conjunto seja muito mais amplo, iremos nos concentrar em dois dos seus aspectos: a estrutura vigente para a tributao do valor adicionado e os dispositivos especficos que regulam a competncia estadual sobre o ICMS.

    O principal fator para a viabilidade e sustentao da guerra fiscal entre os Estados brasileiros encontra-se na sistemtica de tributao estabelecida no comrcio interestadual. O modelo brasileiro, virtualmente inalterado nas suas bases desde os anos 60, tem duas caractersticas que so essenciais para o problema aqui analisado. Primeiro, a competncia sobre o principal imposto sobre valor adicionado o ICMS dos governos estaduais, ao contrrio do que pode ser considerado um padro mundial: manter o controle deste tipo de imposto no mbito do governo federal ou, no mnimo, por competncia partilhada, que garante ao poder central algum nvel de influncia reguladora. At 1988 existiam ainda alguns limites ao exerccio da competncia estadual. Havia um teto e exigncia de uniformidade para as alquotas, sob controle do Senado Federal. A reforma constitucional de 1988 ampliou a autonomia dos Estados para fixar, por leis prprias, as alquotas do ICMS incidentes sobre as operaes internas. A nova Constituio tambm retirou o poder, anteriormente existente, de a Unio conceder isenes e abatimentos do imposto estadual, revelia dos estados. Finalmente, a ampliao da base do imposto - com a extino dos ditos impostos

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    nicos e a extenso aos servios levou a que os Estados se tornassem peas-chave na formulao da poltica tributria nacional, uma vez que o ICMS passou a ser o mais amplo dos tributos incidentes sobre a produo e o consumo domstico brasileiro.

    Segundo, a reforma tributria de 1967 optou pela adoo do princpio da origem na formatao do IVA brasileiro. No o caso de detalhar aqui as motivaes desta opo.1 O ponto relevante que ela fez do ICM, desde sua origem, um tpico imposto sobre a produo, aspecto este completado pela no-iseno para os bens de capital. Para o que nos interessa, o resultado principal que cada estado tem sua arrecadao definida pela parcela da produo realizada no seu territrio, e, portanto, independente do efetivo pagamento do imposto pelos seus habitantes.2 A conexo direta entre o princpio adotado e a guerra fiscal decorre de que ele a condio essencial que permite ao governo local negociar com cada empresa as condies e eventualmente a prpria obrigatoriedade do recolhimento do imposto. Mesmo na situao extrema em que toda a produo seja exportada para outras unidades da federao h muitos casos prximos disto o governo que sedia a produo tem a possibilidade real de, como destinatrio legal da arrecadao, eventualmente conceder incentivos, diferimentos e isenes do imposto. Sendo assim, devido ao estmulo macroeconmico gerado, torna-se interessante para um estado qualquer atrair empreendimentos de outras regies, abrindo mo de sua arrecadao, atravs da devoluo do imposto, mesmo que o mercador consumidor da empresa esteja situado em outras localidades.3

    (1) Sobre as vantagens do uso do princpio da origem e as dificuldades envolvidas nas outras opes, ver Varsano (1979, 1980a, 1980b e Longo (1979, 1980a, 1980b, 1981).

    (2) Na medida em que um estado tenha supervit nas trocas comerciais internas, ele se apropria de uma parcela de receita maior do que aquela gerada internamente pelos seus contribuintes. Neste caso, os habitantes de outros estados esto financiando o Tesouro do estado comercialmente superavitrio. Valeria o inverso se o princpio adotado fosse o do destino, caso em que o imposto, do ponto de vista de cada unidade federativa, se aproximaria de um tpico imposto sobre o consumo. No caso brasileiro, o elevado desequilbrio na participao dos estados na gerao de valor adicionado faria com que o princpio puro de origem levasse a forte concentrao da arrecadao na regio mais desenvolvida. Optou-se, portanto, para a tributao do comrcio interestadual, atravs do ento ICM, um misto de princpio de origem e destino, fundamentado na diferenciao de alquotas entre as operaes internas e interestaduais (esta ltima apesar de ser inferior primeira, positiva). Isto afeta a diviso de receita entre os estados produtores e os estados consumidores, permitindo que os estados deficitrios no comrcio se apropriem de uma parcela maior da receita. Conforme salienta Longo (1980a) A Comisso de Reforma Tributria esperava que o sistema de alquotas diferenciadas assegurasse uma participao adequada na receita total dos Estados aos importadores lquidos no comrcio interestadual (que, geralmente, correspondem aos Estados menos desenvolvidos do Pas).

    (3) importante notar, neste caso, que a maior aproximao ao princpio do destino, decorrente de se adotarem alquotas reduzidas mas positivas no comrcio interestadual, tem dimenses distintas dependendo das regies que so consideras. O modelo foi construdo para, com base no princpio de origem, favorecer os estados menos desenvolvidos das regies Norte e Nordeste. Assim, a alquota para trocas entre aquelas regies e o Sul/Sudeste, bem mais baixa, garante esta apropriao. No que se refere, contudo, a trocas internas s regies Sul e Sudeste, adotam-se alquotas mais altas, o que resulta numa efetiva maior apropriao da receita pelo estado produtor. A concentrao elevada dos mercados nestas regies acaba levando, portanto, a uma forte dominncia de um sistema de alocao interestadual de receitas pela origem.

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    Em sntese, estava j originalmente inscrita na modelagem adotada para o IVA a possibilidade da utilizao da competncia estadual sobre o imposto como instrumento de polticas de desenvolvimento regional. Isto nos leva ao segundo aspecto a destacar aqui, que se refere aos dispositivos criados exatamente para inibir ou coibir esta possibilidade.

    Nas trs ltimas dcadas, ocorreram, em perodos diversos, determinados surtos de iniciativas do tipo guerra fiscal, fazendo uso do ICMS. Em todas elas, a possibilidade de interveno do governo federal esteve limitada pela atribuio de competncia do imposto. Qualquer restrio no plano normativo teria que passar necessariamente pelo Congresso. J no Regime Militar, a Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, no seu art. 23, estabelece que a concesso de incentivos do imposto estadual deve ser subordinada celebrao de convnios entre os estados. No perodo 1966/69 proliferaram no pas diversos convnios regionais,4 os quais tinham a finalidade de estabelecer sistemas harmonizados de incentivos fiscais entre os estados membros, e tiveram o efeito de forar a reao de outros estados com medidas semelhantes. A partir de 1970 o Governo Federal passa a coordenar reunies de todos os secretrios de fazenda estaduais para tentar evitar os processos competitivos de concesso de subsdios. A legislao restritiva reafirmada, posteriormente, na Lei Complementar n. 24/75, que explicita o princpio de que todo tipo de iseno deve resultar de deciso formalizada em convnios celebrados pelos estados (art. 1o), em reunio com a participao da maioria dos estados (art. 2o 1o) e por deciso unnime dos estados representados (art. 2o 2o), sujeitando-se os ausentes ao disposto no convnio.5 Esta lei cria o CONFAZ Conselho de Poltica Fazendria composto por aqueles secretrios, cuja finalidade principal era regulamentar consensualmente os tratamentos especiais na tributao do ento ICM. Fica claro, portanto, que a legislao ao mesmo tempo em que transfere aos estados todo o poder para arbitrar sobre incentivos do ICM, tendo retirado do governo federal esta prerrogativa, postula tambm um rgido mecanismo para sua aprovao, que exige homogeneidade na abrangncia e unanimidade entre os estados.

    Uma primeira concluso, portanto, postularia que os dispositivos previstos na Lei Complementar n. 24 so amplamente suficientes para coibir a maior parte dos procedimentos que foram, por um largo perodo, adotados na guerra fiscal: todos aqueles que se apiam na concesso direta de facilidades no recolhimento do ICMS. A realidade, contudo, bastante distinta. A LC 24

    (4) Convnios de Salvador (22 nov. 1966), Fortaleza (22 fev. 1967), Rio de Janeiro (27 fev. 1967) e Natal I e II.

    (5) A Constituio de 1988, embora tenha reduzido em muito os poderes do governo central sobre reas e questes prprias dos governos subnacionais por exemplo, retirando a sua competncia para conceder isenes de impostos estaduais, prevista no art. 19, 2 da Constituio de 1969 preserva, claramente, a mesma orientao anterior, no que se refere aos incentivos estaduais. Alm disto, o artigo 152 reza que vedado aos estados, ao Distrito Federal e aos Municpios estabelecer diferena tributria entre bens e servios de qualquer natureza, em razo de sua procedncia ou destino.

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    estipula diretamente a necessidade de regulamentao por lei ordinria, o que nunca foi realizado. Conseqentemente, os preceitos legais existentes sobre o assunto foram sendo gerados de forma fragmentria, por meio de convnios celebrados no mbito do CONFAZ. No existe, at onde se pde verificar, uma consolidao destas normas, durante todo o perodo ps-1975. No h tambm registro, at recentemente, de qualquer questionamento jurdico prtica de concesso de benefcios, apoiado nestas normas. Parece haver bastante espao para interpretaes diversas no que se refere ao que exatamente um benefcio fiscal, assim como sobre que tipo de poltica configura um benefcio claramente vetado pelas normas.

    At meados dos anos 80, ao que tudo indica, o CONFAZ foi capaz de exercer algum controle sobre as polticas autnomas de incentivos dos governos estaduais, muito mais pela presena forte do Ministro da Fazenda sua cabeceira do que pelos mritos da sua prpria atuao institucional.6 A partir da Nova Repblica, este papel foi progressivamente se fragilizando, e os governos estaduais progressivamente ampliando o uso de benefcios sem considerar as restries legais existentes, levando situao de absoluto descrdito do CONFAZ como rgo eventualmente inibidor destas prticas.

    A fragilizao do poder de controle do governo central

    As configuraes tributria e institucional descritas acima j exprimem, por si mesmas, limites a qualquer ao restritiva sobre a autonomia dos governos estaduais na manipulao tributria com vistas industrializao. A isto se somam outros aspectos da evoluo ocorrida neste largo perodo.

    Falamos agora da capacidade que o governo central mais especificamente o Governo Federal detm, em determinadas circunstncias e perodos histricos, pelo controle que assume sobre os recursos fiscais e os processos decisrios alocativos, de regular diretamente a alocao regional do investimento pblico e, direta ou indiretamente, influir poderosamente na alocao do investimento privado. Este poder, fortemente concentrado nas mos do governo federal no incio do Regime Militar, vai sendo perdido pela Unio, ao longo dos anos 80, em funo da crise do regime autoritrio e do esgotamento do padro de financiamento do setor pblico vigente na dcada anterior. Esse padro, que viabilizava o controle e planejamento das principais decises de investimento a partir do governo central (a exemplo do II PND), levava a que interesses conflitantes entre blocos regionais fossem, de certa forma, subordinados a

    (6) Depoimentos colhidos junto a tcnicos que atuaram no CONFAZ nesta poca do conta do papel essencial do governo federal no sentido de disciplinar estados recalcitrantes e preservar minimamente a dinmica de negociao conveniada dos incentivos mais importantes.

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    diretrizes emanadas do poder central, atravs da utilizao dos recursos financeiros e fiscais.7 Um outro aspecto, no menos importante, desta perda efetiva de capacidade regulatria, reside no avano do processo de descentralizao poltico-fiscal, que culminou com a maior autonomia federativa estabelecida pela Constituio de 1988.8

    A virtual estagnao do investimento controlado pelo governo federal, principalmente do setor produtivo estatal, teve efeitos que ainda no foram devidamente mapeados, principalmente na sua distribuio regional. A orientao de corte liberal imprimida poltica do governo federal, por sua vez, tem rejeitado um papel mais ativo via polticas de desenvolvimento em nvel nacional. Isto leva a uma virtual omisso no papel que lhe seria exclusivo, o de coordenao de polticas com este objetivo. Este conjunto de fatores, associado expanso do desemprego no setor industrial, parece vir conduzindo a uma retomada de iniciativa dos sistemas polticos regionais, expressa no atual el0enco de polticas descoordenadas que interferem com a alocao do investimento sem critrios explcitos e organizados no plano nacional, a que chamamos guerra fiscal.

    2. Deciso alocativa e o alcance dos incentivos estaduais

    A segunda dimenso bsica do fenmeno guerra fiscal refere-se a ser ele uma forma peculiar de polticas de desenvolvimento regional. O foco aqui se desloca para a relao entre GSN e o processo privado de deciso alocativa dos investimentos. freqente, no tratamento da questo pela mdia, atribuir-se s iniciativas e programas estaduais um papel determinante na deciso de uma empresa sobre onde sediar sua atividade produtiva. Esta suposio implcita de um elevado poder de interferncia e alavancagem dos incentivos , muitas vezes, levada ao extremo evidente nas justificativas retricas dos governos de sustentar que estes programas criam novos investimentos que, na sua ausncia, no existiriam.

    (7) Os dados referentes ao investimento pblico ilustram alguns aspectos discutidos acima. Observa-se que a taxa de investimento agregada do setor pblico (governos mais empresas da Unio) a preos constantes declinou de 6,9% em 1980 para 3,8% do PIB em 1990. O resultado das empresas estatais confirma esta tendncia ao mostrar que a mdia dos investimentos dos sistemas produtivos estatais passa de US$ 12.411 milhes no perodo 1985/89 para US$ 6.848 milhes no perodo 1990/94, exprimindo uma queda de 44,82% (Tabela 1). Na realidade, existe at um movimento, que j se define no final dos anos 80, de substituio do governo federal pelos GSN como agentes mais dinmicos na alocao do investimento pblico (ver Prado, 1995).

    (8) Na situao que vigora pelo menos at o final dos anos 70, o forte controle imposto pelo governo federal sobre a alocao dos recursos tributrios, inclusive aqueles em princpio sob controle dos estados fundos de participao tornava os GSN dependentes de um desgastante processo de captao das chamadas transferncias negociadas (Afonso, 1994) para viabilizar investimentos. Esta situao era um fator adicional de disciplinamento que, sem dvida, ter contribudo para facilitar ao governo federal inibir quaisquer iniciativas mais agressivas de polticas autnomas do tipo aqui analisadas.

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    evidente, contudo, que tais polticas tm como lgica bsica tentar interferir num processo de deciso locacional privada que , no essencial, subordinado a determinantes de natureza muito mais ampla, relativos ao vetor bsico de custos, s condies de infra-estrutura, distncia dos mercados, disponibilidade de mo-de-obra qualificada, agressividade sindical, etc. Deste ponto de vista, pode-se aventar a hiptese de que a prpria emergncia das iniciativas tipo guerra fiscal est, em alguma medida, associada s tendncias de longo prazo assumidas pelo processo decisrio locacional, como mostraremos frente.

    Na hiptese de total ausncia de iniciativas discricionrias por parte de governos, a avaliao alocativa dos agentes privados, orientada por critrios estratgicos, logsticos e operacionais, resultaria num dado nvel agregado de inverso sob uma dada distribuio regional que, num sentido mais restrito, poderamos assumir como tima.9 Qualquer alterao neste perfil alocativo envolveria, portanto, em princpio, um custo adicional que deveria ser coberto para que se modificasse a deciso alocativa. O argumento bsico deste item sustenta que h fatores mais gerais que determinam um perfil bsico de alocao espacial, o qual estabelece o contexto no qual age a guerra fiscal. Nesta dinmica, o elemento central o custo fiscal necessrio para lograr o afastamento da empresa em relao locao preferencial que ela adotaria na ausncia dos incentivos. Nossa hiptese que, nas condies vigentes no Brasil, o processo leva a que este custo fiscal seja maximizado.

    Duas questes essenciais se colocam nos planos histrico e analtico: (1) Quais as tendncias anteriores e recentes do processo privado de

    alocao, que definem o quadro de referncia para a ao discricionria dos governos, e como estas tendncias podem ter atuado como indutores adicionais da prpria guerra fiscal? Aqui essencial separarmos as tendncias de longo prazo do investimento o problema da concentrao/desconcentrao industrial no pas nas ltimas quatro dcadas da questo mais recente da retomada do investimento, principalmente estrangeiro e em particular concentrado no setor automotivo, em todo o continente latino-americano.

    (2) Qual o alcance das atuais prticas de guerra fiscal para ampliar o volume agregado de investimentos na economia nacional e lograr uma alocao eficiente dos recursos fiscais envolvidos?

    (9) O sentido de timo aqui seria, usualmente, o da alocao de recursos que lograria os melhores resultados econmicos para os recursos dados. Para evitar, por inadequado neste contexto, o debate sobre a adequao do conceito, preferimos utiliz-lo no sentido mais restrito da alocao espacial que, sob a tica particular de cada empresa, maximizaria seus objetivos de rentabilidade, reduo de riscos e trajetrias futuras de expanso.

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    2.1. As tendncias de longo prazo

    A evoluo histrica das tendncias de alocao industrial no pas poderia ser vista, no longo prazo, em trs fases bem definidas e uma possvel nova etapa recente. A primeira, fartamente analisada por Cano (1981), corresponde concentrao da indstria no Estado de So Paulo. Na segunda fase, que poderia ser delimitada no perodo 1970/85, predomina claramente um forte movimento de desconcentrao cujo epicentro a regio metropolitana de So Paulo. A atenuao e quase eliminao desta tendncia caracteriza a terceira fase, entre 1985 e incio dos anos 90, onde se constata a estagnao das participaes relativas das regies na capacidade industrial. Finalmente, tem surgido, ainda em termos de suposies vagas e com muita controvrsia, a percepo de que, no perodo recente, estaria ocorrendo um movimento peculiar de reconcentrao com epicentro em So Paulo. Tomemos para anlise as etapas mais recentes do processo, entre 1970 e incio dos anos 90.

    A fase aberta em 1970 tipicamente de desconcentrao.10 H alguns aspectos importantes para a compreenso do fenmeno guerra fiscal, a serem destacados nesta etapa. Primeiro, o largo perodo de desconcentrao resulta num movimento de alocao espacial que privilegia uma maioria absoluta de estados brasileiros, em detrimento basicamente dos estados de So Paulo e Rio de Janeiro. Ainda assim, rigorosamente, o impacto mais forte se refere s suas regies metropolitanas, o que relevante muito mais no caso do Rio de Janeiro: em So Paulo, o crescimento das grandes cidades do interior no ficou muito longe dos demais centros dinmicos da linha poligonal. Este fator, se no pode assumir forte teor explicativo, sem dvida ajuda a compor um cenrio no indutor de fortes iniciativas de guerra fiscal. Estas seriam iniciativas isoladas previsveis por parte daqueles poucos estados perdedores, o que, num contexto de forte capacidade de regulao do governo federal, seria de difcil legitimao. Em segundo lugar, as interpretaes existentes acentuam o fato bsico de que no se trata de um processo de centrifugao ampla centrado em So Paulo, mas na realidade da existncia de fatores de afastamento significativos aos quais se opem outros fatores restritivos, aglutinadores, cuja conjugao resulta numa concentrao ampliada para uma rea geogrfica maior, um polgono formado por grandes municpios e circunscrito regio mais desenvolvida (Diniz, 1991). Pode-se utilizar a imagem de que, em torno regio metropolitana de So Paulo, se definiriam, do ponto de vista da deciso privada de alocao, curvas ou zonas de equivalncia no sentido de que diversas alocaes alternativas apresentariam uma

    (10) O estado de So Paulo sofreu uma queda total de participao no produto industrial de 56,4% em 1970 para 49,1% em 1990. Por sua vez, a rea metropolitana de So Paulo assistiu diminuio de sua participao no emprego e na produo industrial de 34 e 44%, respectivamente, para 25,2 e 26,3%, entre 1970 e 1990. Em paralelo, a economia fluminense surge como o segundo grande perdedor no perodo, tendo sua participao no valor da transformao industrial reduzida de 15,7%, em 1970, para 9,5%, em 1985.

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    configurao de custo-benefcio quase idnticas no que se refere a acesso a mercados, infra-estrutura, etc. Na proximidade do epicentro, estas curvas indicariam vantagens crescentes alocativas medida que dele se afastam. A partir de um certo ponto, contudo, as deseconomias predominariam, definindo uma forte descontinuidade qual corresponde a noo do polgono. Retornaremos a esta imagem mais frente, para discutir o alcance das iniciativas de guerra fiscal.

    Tomando agora a etapa seguinte, os dados disponveis evidenciam que, entre 1985 e 1990, as alteraes na distribuio regional da atividade industrial so marginais. No que se refere ao ncleo econmico do pas, as posies relativas bsicas so mantidas. Recentemente, diversos especialistas tm sugerido a possvel reverso do processo de desconcentrao. A possibilidade de uma tal inflexo dinmica no quadro locacional ponto incipiente, longe ainda sequer de um aprofundamento maior do debate. O (em grande medida inesperado) sucesso at agora obtido pelo Mercosul assume, crescentemente, papel de destaque como fator que induz gravitao direcionada ao Sul. Por outro lado, o processo recente (anos 90) de abertura da economia traz consigo tambm fatores de sentido contrrio, como a atratividade da localizao de plantas exportadoras no Norte/Nordeste, dado o acesso mais prximo aos mercados, particularmente o NAFTA. De qualquer forma, tal desenvolvimento, se efetivo, dever ter o efeito de reacender os velhos conflitos entre as macrorregies do pas.11 As interpretaes mais recentes para este fenmeno o associam a fatores de natureza fortemente estrutural, decorrentes das grandes mutaes em curso na economia brasileira. Deste ponto de vista, dada a natureza dos determinantes, tratar-se-ia, efetivamente, da possibilidade da reverso do processo, retomando a economia um movimento de reconcentrao em torno regio desenvolvida. Tanto Diniz (1995) quanto Cano (1995), por exemplo, apontam para uma tendncia reconcentrao da chamada indstria de servios na rea mais desenvolvida do pas. Este movimento recente est relacionado com as mudanas tecnolgicas e com a reestruturao produtiva, as quais tendem a alterar os requisitos locais, especialmente daquelas atividades mais intensivas em conhecimento. Alm disso, o Mercosul tambm tem papel decisivo nesse processo.12 Dados recentes, levantados pela Confederao Nacional da Indstria, registram um claro crescimento na participao da regio Sudeste no PIB. Entre 1985, momento

    (11) Um indcio claro disto o recente caso da MP do setor automotivo, ironicamente um caso tpico de guerra fiscal inter-regional operada atravs do governo federal.

    (12) Cano (1995) aponta os seguintes fatores que teriam deprimido o crescimento perifrico nacional e revertido a desconcentrao: i) o desmantelamento do Estado Nacional, e, por conseguinte, das polticas de desenvolvimento regional; ii) a abertura comercial; iii) a maturao dos investimentos do II PND; iv) a queda dos investimentos federais e estaduais, decorrente da crise financeira por eles vivida; v) a diminuio do ritmo de crescimento das exportaes; e vi) a concentrao em So Paulo das empresas de informtica, microeletrnica, telecomunicaes e automao, o que Cano identifica como a forma reconcentrada da atual reestruturao produtiva do pas.

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    aproximado onde se interrompe a desconcentrao, e 1995 a regio cresce de 58,18 para 62,6%. Como mostra a tabela abaixo, So Paulo acelera, no segundo lustro, sua retomada, enquanto o Rio de Janeiro, que isoladamente persistira numa rota estagnante no primeiro perodo, reverte drasticamente esta tendncia.

    Tabela 1 Brasil Participao de regies no PIB

    1985 1990 1995 Brasil 100 100 100 Norte 4,35 3,48 3,24 Nordeste 3,55 13,18 12,58 Centro-Oeste 6,24 5,92 5,86 Sudeste 58,18 60,79 62,60 Minas Gerais 9,67 12,49 13,12 Esprito Santo 1,67 1,71 2,10 Rio de Janeiro 12,78 10,89 13,17 So Paulo 34,07 35,70 37,45 Sul 17,69 17,34 15,72 Rio Grande do Sul 7,93 7,00 6,61 Santa Catarina 3,50 3,32 3,37 Paran 6,25 6,31 5,95 Fonte: CNI Confederao Nacional da Indstria.

    De qualquer forma, ainda que questionvel a idia de reconcentrao, pacfico o ponto referente estagnao do processo de desconcentrao.13 Isto significa, no essencial, que um fator importante de dinamizao das economias regionais perifricas, mesmo as mais avanadas, deixa de atuar. Este , outra vez, um fator de ordem muito geral, mas que no pode ser desprezado na tentativa de delinear os condicionantes que levam ao acirramento da guerra fiscal. medida que se avana no quadro de estagnao e crise, nos anos 80, iro surgir as primeiras manifestaes de iniciativas individuais dos entes federativos no sentido de pelo menos preservar suas posies relativas na distribuio da atividade industrial.

    (13) Seria possvel aventar uma outra ordem de explicaes, derivada dos aspectos mais conjunturais que marcam a segunda metade dos anos 80. Ela concentra a etapa mais dramtica de instabilidade no longo processo de crise recente da economia brasileira. Assiste, tambm, como j assinalado, mais drstica e rpida reduo do investimento pblico em toda a histria recente da economia brasileira. Aps 1986, a economia assume uma trajetria oscilante, onde o horizonte para a formao de expectativas se encurtou drasticamente. O investimento privado, aps alguma recuperao em 1986, assume tambm trajetria nitidamente declinante. Neste quadro, vivel a suposio de que, sem prejuzo dos fatores de ordem estrutural citados, tenha efetivamente se estabelecido ento um largo perodo onde posturas defensivas por parte da maioria dos setores privados tenham privilegiado estratgias de ampliao de capacidade pela otimizao de plantas existentes e/ou modernizao e aumento de produtividade, numa opo provavelmente no otimizante sob certos aspectos, mas minimizando os riscos de imobilizao maior de capital em quadro de elevada incerteza nas expectativas. Isto levaria a que, conjunturalmente, certos fatores indutores de desconcentrao perdessem importncia na deciso privada de alocao.

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    A retomada do investimento privado e as polticas regionais de desenvolvimento

    Nos itens anteriores, caracterizamos as condies de ordem geral que abririam a possibilidade da emergncia de polticas locais autnomas no sentido da criao de programas de desenvolvimento regional. H registros de ocorrncia de processos desta mesma natureza nas dcadas anteriores. Parece possvel afirmar, contudo, que em nenhum momento o fenmeno atingiu a dimenso que tem hoje. No perodo entre 1975 e final dos anos 80, a informao disponvel sugere ntida perda de dinamismo destas iniciativas de polticas de desenvolvimento.14 Continuam existindo programas de desenvolvimento industrial em nvel estadual. No h, contudo, registro de qualquer conflito entre GSN que sugira o uso competitivo de benefcios e incentivos, tal como ocorrera antes e viria a ocorrer no perodo recente.

    Deveria este fato ser interpretado como indicador da capacidade do governo federal e do Congresso para estabelecer limites e restries a prticas conflitivas e desordenadas por parte dos agentes federativos? A considerao mais cuidadosa de alguns aspectos da economia brasileira neste perodo no permite corroborar esta hiptese. Ela caracterizada por forte reduo tendencial do investimento agregado, provocada no apenas pela reduo autnoma de grande parte do investimento privado interno, como pelo efeito negativo derivado da acentuada reduo do investimento estatal (que inflete em 1981/82 e ir atingir seu ponto mnimo em 1993) e, finalmente pela reduo, a nveis baixssimos, do investimento direto externo ao longo dos anos 80, com tendncia decrescente medida que se agrava o quadro macroeconmico na sua segunda metade.

    Neste contexto, em que a economia tende a operar predominantemente atravs de ciclos de produo,15 sem qualquer retomada forte do investimento, possvel que tenha ocorrido uma relativa estagnao do perfil locacional da capacidade produtiva, principalmente industrial. Os dados agregados disponveis sobre as tendncias da desconcentrao regional da indstria brasileira, como vimos acima, sugerem que o forte processo de deslocamento centrfugo da produo industrial, afastando-se da regio metropolitana de So Paulo, virtualmente interrompido em 1985, persistindo a distribuio praticamente estagnada pelo restante da dcada, pelo menos no que se refere distribuio entre estados. Teria ocorrido, no nvel de cada estado e principalmente So Paulo, uma significativa interiorizao da produo industrial.

    Se correta esta hiptese, decorre dela que o aparente desaparecimento das iniciativas mais agressivas de polticas regionais de atrao decorreria muito mais

    (14) Para detalhes sobre a evoluo histrica dos programas de desenvolvimento estaduais e da guerra fiscal, ver a ntegra do trabalho onde este artigo se origina: Prado & Cavalcanti (2000).

    (15) Ou seja, oscilaes de demanda atendidas predominantemente pela variao do nvel de ocupao da capacidade produtiva instalada.

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    desta virtual estagnao do investimento privado e estabilizao temporria da distribuio espacial da produo, do que da efetividade dos controles governamentais. Vale lembrar que, j a partir do incio dos anos 80, ganha fora o movimento de reverso do centralismo autoritrio e crescente ampliao da autonomia financeira e decisria dos GSN, a qual iria ter sua culminncia nas reformas constitucionais de 1988. Mesmo neste contexto, os anos 80 se passaram sem que qualquer conflito em torno a decises de investimento se registrasse.

    Decorre da argumentao acima que o fator decisivo para o ressurgimento do fenmeno tenha sido a retomada do investimento privado na Amrica Latina em geral, desde final dos anos 80, e no Brasil a partir de 1993, e a retomada do investimento interno a partir da estabilizao em 1994. O investimento direto externo no Brasil, durante os anos 80, apresentou comportamento tipicamente restritivo. Aps uma forte reduo dos fluxos de entrada, no final da dcada chegou a apresentar resultado lquido negativo. A partir de 1992, contudo, acumulou um resultado lquido superior a US$ 18 bilhes. Embora grande parte destes recursos esteja associada ao processo de privatizao dos setores de infra-estrutura, configura-se ainda assim um ntido processo de retomada. A face mais evidente e mais ruidosa destes fluxos tem sido a entrada de grandes empresas no setor de consumo durvel e principalmente no setor automotivo. A conjugao dos relativos sucessos na estabilizao das principais economias do continente todas apoiadas em polticas agressivas de abertura comercial e financeira com a criao do MERCOSUL tm induzido a uma recomposio da presena do capital estrangeiro na regio, com entrada de novos agentes e expanso daqueles j aqui localizados.

    No que se refere ao investimento interno, persistem fortes questionamentos em relao possibilidade de um ciclo de expanso da capacidade produtiva a inverso viria se orientando, at agora, muito mais para processos de especializao, reduo de gargalos e modernizao orientada para ganhos de produtividade.16 Ainda assim, fora de dvida que a adequao ao novo contexto gerado pela estabilizao provocou, nos setores mais beneficiados pela dinamizao da demanda interna, um ciclo de expanso que parece ter alterado aquela situao de relativa estabilizao do perfil de locao espacial da produo. O setor de produo de bens de consumo, em geral, tem ampliado suas intenes de aumentar a capacidade produtiva atravs de novas plantas.

    Para o que nos interessa aqui, h um aspecto particularmente relevante neste processo: parece ter ocorrido no perodo 1994/97, pelo menos em alguns setores, uma forte concentrao temporal de investimentos, determinada seja pelo atendimento aos novos nveis de consumo ps-Plano Real, seja pela busca de posicionamento rpido em mercados altamente competitivos e que passaram, num

    (16) Para uma avaliao recente e pouco otimista sobre estas tendncias, veja-se o Editorial de Indicadores IESP (n. 50, mar. 1997), de autoria de Mariano Laplane e Fernando Sarti.

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    curto espao de alguns anos, a ser vistos como mais atrativos, devido a fatores como a estabilizao e o Mercosul. Ocorreria, neste caso, uma rodada de novas inverses resultante da entrada de novos agentes e adequao dos j existentes s novas avaliaes do setor privado.

    Deste ponto de vista, seria racional a postura dos GSN no sentido de, atravs de polticas autnomas agressivas, buscar interferir nos processos locacionais deste fluxo conjuntural de inverso. Ainda que a estabilizao se sustente e a boa imagem do pas entre os ditos mercados emergentes se mantenha, evidente que, em muitos setores, as intenes de inverso j anunciadas devero provocar um salto significativo na capacidade produtiva, notadamente o automobilstico. Uma vez assentadas as novas grandes plantas, parece razovel supor que boa parte da expanso futura venha a ser realizada por expanso destas ou, no mnimo, com forte gravitao locacional em torno a elas, como demonstra o caso da FIAT em Minas Gerais.

    2.2. Limites da guerra fiscal: o impacto dos incentivos sobre o espao econmico local

    Abordemos agora a segunda ordem de questes que se coloca sob tica das relaes entre GSN e deciso privada de investimento.

    Em trabalho recente, o prof. Ricardo Varsano tratou de forma rigorosa e competente a questo central envolvida na guerra fiscal: a convivncia de um forte impacto negativo no plano agregado com inegveis efeitos positivos gerados sobre a economia local.(Varsano, 1996). O autor parte de uma cuidadosa explicitao das condies bsicas que, pela tica da teoria das finanas pblicas, tornariam justificada a concesso de incentivos e demonstra que, do ponto de vista da economia e sociedade locais, a maioria dos incentivos atende a estas condies. Esta , fora de dvida, a questo central em pauta, uma vez que afasta as suposies mais simplistas sobre a perversidade da guerra fiscal, e a coloca como uma alternativa lgica de poltica de desenvolvimento regional num sistema que no , por princpio, intrinsecamente cooperativo.

    A formulao de Varsano sugere um enfoque que pode ser fecundo no desdobramento da questo: tentar identificar as condies bsicas que permitiriam defender polticas do tipo guerra fiscal (leia-se, um modelo apoiado na total autonomia dos GSN para decidir sobre a alocao de seus recursos fiscais na atrao de investimentos, sem qualquer ingerncia do poder central) como um second best para o tratamento da questo do desenvolvimento regional em nvel nacional. Pretende-se argumentar aqui que, ainda que seja possvel supor situaes tericas onde estas polticas apresentem alguns aspectos positivos, as suposies necessrias para isto so hericas. Numa suposio mais realista,

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    polticas tais como aquelas em curso no pas hoje maximizam o custo fiscal de um volume agregado de investimento altamente inelstico a incentivos, sendo, portanto, a pior alternativa possvel para a interveno do setor pblico no processo de inverso privada.

    O caso de defesa da guerra fiscal

    Consideremos genericamente qualquer situao envolvendo um estado especfico (com uma determinada dotao de recursos naturais, locacionais, infra-estrutura, capacidade fiscal e financeira, etc.) e uma deciso empresarial formalizada para instalao de uma planta de perfil e dimenses dadas, em busca da melhor alternativa locacional. Tomemos como certo que a empresa ter realizado previamente uma cuidadosa anlise das alternativas locacionais17 que ter resultado em algo como um mapa do que chamamos acima de reas de equivalncia. Na suposio de que sua alocao preferencial no seja no estado em questo, h necessariamente um custo envolvido em rever a locao preferencial. Aqui emerge um ponto importante. Quanto pior a posio de um estado em geral, dos seus municpios mais atraentes no ranking da empresa, maior o custo global envolvido em benefcios fiscais necessrios para obter o afastamento da empresa perante a alocao tima decorrente da sua avaliao prvia. No limite emergem restries absolutas, expressas no exemplo simples de que no existiriam incentivos de dimenso suficiente para levar uma grande montadora para um pequeno estado da regio Norte. Note-se adicionalmente que, dada a escolha privada preferencial da empresa, os benefcios fiscais tm no apenas que cobrir o custo adicional envolvido no deslocamento, mas tm na realidade que super-los a ponto de oferecer um prmio. Se no o fizerem, a empresa estaria trocando uma situao tima natural por outra equivalente, mas dependente de apoio do setor pblico, o que evidentemente tem riscos adicionais.

    Embora no possa ser tido como to certo, suponhamos tambm que o governo do estado em questo ponha em prtica uma detalhada anlise dos impactos gerados pela inverso em tela, avaliando cuidadosamente os elementos de custo-benefcio envolvidos. De uma forma simplificada, este processo envolve avaliar dois grandes conjuntos de efeitos. De um lado, o custo fiscal lquido dos

    (17) Em princpio, quanto maior a dimenso de sunk costs envolvidos na inverso, maior a ponderao de fatores de ordem estrutural na seleo e mais elevados os montantes de compensao que a empresa exigir para se afastar da escolha preferencial. A ttulo de exemplo, compare-se a instalao de uma planta automobilstica numa regio onde o setor no exista, com todas as exigncias de desenvolvimento e consolidao de toda uma estrutura industrial de apoio (caso da FIAT em Minas) com a instalao de uma empresa tipicamente maquiadora, operando com baixa densidade de capital e apoiada em importao da maior parte do valor adicionado final.

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    incentivos sob uma perspectiva intertemporal. Isto crucial porque tpica de toda poltica de desenvolvimento regional e a guerra fiscal no exceo - a concentrao de impacto fiscal negativo na fase inicial, com possvel e desejvel recuperao parcial futura dos recursos aplicados. De outro lado, necessrio avaliar os benefcios globais gerados pela nova inverso: criao direta e indireta de empregos, efeitos de induo de inverses complementares (autopeas, por exemplo), induo ampliao e diversificao do tercirio, etc.

    De um ponto de vista estritamente tcnico, a avaliao do governo deveria confrontar os benefcios esperados da inverso com o custo bsico necessrio para obter o afastamento. Sob a suposio forte de que a deciso estadual seja orientada por uma avaliao tcnica o mais rigorosa possvel destes fatores, a deciso de conceder os benefcios no montante necessrio para alterar a deciso da empresa seria tomada desde que o resultado da avaliao de custo-benefcio intertemporal fosse positivo. uma parte essencial destas suposies a idia de que o governo estadual tenha alguma possibilidade de avaliar, pelo menos aproximadamente, qual o custo efetivo de afastamento considerado na avaliao da empresa privada.

    possvel, num esforo de defesa do caso para a guerra fiscal, indicar alguns aspectos positivos deste modelo, em contraposio principalmente a uma poltica industrial centralmente planejada e controlada. Ele maximiza o aproveitamento dos recursos de informao e conhecimento da burocracia tcnica local sobre sua prpria economia regional. Ele apresenta, em princpio, uma das vantagens bsicas apregoadas para a descentralizao federativa, que a maior aproximao e subordinao das decises aos interesses da sociedade local. Ele induz ao maior desenvolvimento de mecanismos institucionais locais de apoio e interao entre governo e iniciativa privada, e pode ampliar neste sentido a eficincia da atuao integrada entre governos estaduais e municipais (isto vem ocorrendo, fora de qualquer dvida, em todos os estados que assumiram iniciativas agressivas de guerra fiscal).

    Vale observar tambm que, numa situao em que o governo central de um pas com altas disparidades regionais abandone qualquer preocupao por polticas integradas de desenvolvimento regional, fica politicamente legitimada a pretenso de governos estaduais, principalmente daqueles relativamente mais atrasados economicamente, em operar polticas que assumam este formato. nossa suposio que, se fosse possvel uma avaliao cuidadosa, nos termos acima, de muitos dos projetos atualmente envolvidos na guerra fiscal, seguramente chegar-se-ia concluso de que o resultado lquido obtido para a economia local e para o pas potencialmente muito favorvel.

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    Os limites da guerra fiscal

    O ponto fundamentalmente frgil desta construo que todas as suposies necessrias para garantir a eficincia de tal processo decisrio alocativo de recursos fiscais so hericas e irreais. Isto decorre basicamente de trs fatores.

    (1) Os governos estaduais no conhecem o perfil das preferncias alocativas das empresas. elemento essencial da estratgia privada na guerra fiscal construir a imagem do empate entre locaes alternativas, de forma a remeter para a competio entre incentivos o papel decisrio final. Isto leva a que, na ausncia de uma instncia superior com capacidade poltica para interferir, o setor privado detenha a iniciativa no processo interativo que leva deciso. Isto em geral reduz as possibilidades de que algum estado, por confiar nas suas vantagens competitivas naturais, abra mo de uma participao agressiva no leilo de incentivos.

    (2) irreal a suposio de que a deciso de abandonar a disputa seja tomada na medida em que a avaliao de relao custo-benefcio estritamente econmica resulte desfavorvel. O ponto, como indica o professor Varsano, que entre os benefcios gerados pela inverso incluem-se, freqentemente, fatores de difcil ponderao como o prestgio regional segundo a imagem popular, o qual se expressa no ganho de prestgio poltico para governos que logrem trazer para o estado grandes plantas industriais.18 Disto resulta que o limite para a concesso de incentivos tende a no se pautar pela avaliao de custo-benefcio, ou melhor, se pauta por uma dada avaliao onde os parmetros da funo de bem-estar considerada so muito amplos e genricos, e seguramente incorporam interesses particularistas associados aos grupos polticos no poder. Finalmente, as enormes dificuldades tcnicas envolvidas na identificao prospectiva dos benefcios e o desaparelhamento tcnico das burocracias tambm dificulta esta anlise.

    (3) Finalmente, o carter competitivo e a inexistncia de qualquer instncia superior de arbitragem, conjugados com os dois elementos anteriores, levam necessariamente, no sentido forte de que a postura racional mais eficiente por parte dos agentes, a uma dinmica interativa onde o resultado final a maximizao do benefcio pela sucessiva excluso de estados participantes medida que a aposta supera o que sua avaliao ampliada de custo-benefcio e/ou sua restrio oramentria permite.

    Resulta disto tudo que, mesmo nos casos (provavelmente muito freqentes, embora existam os absurdos) em que o benefcio lquido para a

    (18) Neste caso vale lembrar que esta a mesma histria que se verificou no caso do desenvolvimento de alguns dos grandes blocos do Setor Produtivo Estatal no Brasil. Nos anos 50 e 60, os setores de siderurgia, telecomunicaes e eltrico foram total ou predominantemente implementados a partir de iniciativas estaduais, em geral apoiadas em campanhas polticas que enfatizavam as vocaes industriais de cada estado. (Para uma reconstituio destes aspectos, ver Prado, 1995).

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    economia local seja positivo, alta a probabilidade de que estes investimentos estejam sendo alocados a um custo fiscal mximo, sem que o dispndio adicional corresponda a qualquer ganho adicional para o pas.

    s observaes anteriores deve-se agregar um outro aspecto fundamental. profundamente discutvel a validade do argumento usual na retrica dos operadores da guerra fiscal, de que os incentivos criam investimento que, de outro modo, no ocorreriam. Nossa suposio aqui que, na maioria quase absoluta dos casos relevantes, a deciso de investimento dada previamente, decorre de estratgias empresariais de longo prazo, e tenderia a ser realizada mesmo na ausncia de incentivos. O caso do setor automotivo esclarecedor. O bloco de investimentos recentes decorre da situao dos mercados nos pases desenvolvidos e da necessidade dos grandes produtores mundiais de consolidarem posies tendo em vista o potencial de crescimento dos mercados latino-americanos. Da mesma forma, o investimento interno , nos seus montantes principais, determinado pela ampliao recente dos mercados e pela busca, por parte das empresas, de condies de custo de mo-de-obra mais favorveis. Consideramos muito provvel que, na maioria dos casos, os investimentos seriam realizados mesmo na ausncia total de incentivos. Evidentemente, resultaria um perfil locacional distinto, provavelmente mais concentrado. Toda a parafernlia de incentivos fiscais e seu custo fiscal mximo tende a ter, na realidade, o efeito bsico de alterar o perfil locacional de um volume dado de investimento.

    Uma qualificao necessria aos argumentos acima. A utilizao ampla de incentivos estaduais, de forma aleatria numa dinmica competitiva e em escala crescente, pode, a partir de um certo ponto, ter efetivamente o efeito de ampliar marginalmente volume de inverso, particularmente num contexto de abertura da economia e afluxo expressivo de investimento direto estrangeiro. De fato a guerra fiscal reduziria os custos da inverso no espao nacional. Haveria algum sentido no argumento, freqentemente esgrimido por tcnicos estaduais na defesa de seus programas, de que estes tm afetado decises de inverso externa que, na sua ausncia, poderiam buscar outros pases do Mercosul

    Por outro lado, ainda que para uma parcela dos investimentos esta questo se coloque, trata-se claramente da forma mais perversa e menos eficiente de lograr resultados que, sob um sistema mais ordenado e submetido a critrios mnimos de prioridades e vantagens comparativas regionais, poderiam igualmente ser obtidos.19 Na realidade, este efeito se aproxima daquele que seria obtido caso a poltica de incentivos fosse controlada pelo governo federal, e este decidisse

    (19) de difcil avaliao o resultado lquido global das vantagens e desvantagens que se colocam hoje para o grande capital internacional na escolha entre Brasil e Argentina. Se, pela tica privada, alguns aspectos favorecem o pas vizinho por exemplo, o estgio mais avanado das polticas de liberalizao permanece o fato de que a economia brasileira, pela sua dimenso, define os rumos deste sistema regional. Qualquer que seja o avano das reformas argentinas, se a estabilizao brasileira fracassar, enorme a chance de arrastar junto os pases dependentes de seu mercado e poltica cambial.

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    ampliar os benefcios para captar mais inverses. Este um fator relevante quando consideramos a relativa omisso do governo central no Brasil hoje. Na medida em que a iniciativa estadual aleatria e desregulada ocupa o espao vazio deixado pela omisso federal, resulta o mais perverso dos sistemas.

    Estes aspectos levantam a questo se diferenciar, neste contexto, dois tipos de programas de incentivos. Nos casos, referidos acima, em que a deciso de investimento dada, decorrente de estratgias internas ou internacionais de expanso dos grandes grupos (e que supomos serem amplamente dominantes), bvio que, no essencial, a poltica de incentivos vai afetar essencialmente a alocao da inverso entre pontos alternativos da sua curva de equivalncia. H outros casos, contudo, em que se pode admitir razoavelmente que o programa possa determinar o surgimento de decises de inverso que sem ele no existiriam. Um exemplo pode ser o caso de programas setoriais de incentivos que exploram vantagens comparativas locais e tenham o efeito de alavancar (ainda que no exclusivamente) iniciativas locais de inverso, como o incentivo indstria de turismo no Nordeste.

    A concluso geral que pode ser derivada destes argumentos que o potencial da guerra fiscal para alavancagem de nova inverso depende crucialmente da natureza dos setores econmicos envolvidos e, principalmente, da dimenso relativa das empresas beneficiadas. Quanto mais as polticas estaduais se direcionam para atrair a inverso dos grandes conglomerados nacionais e internacionais, maior a probabilidade de que as polticas tenham seu alcance limitado estritamente localizao espacial de montantes previamente dados de inverso.

    3. Guerra fiscal, finanas estaduais e regime tributrio

    A argumentao do item anterior permite entender a generalizada adeso de grande parte dos estados brasileiros s prticas da guerra fiscal, ainda que, como se evidenciara antes, estes programas tenham, no seu efeito conjunto para a economia nacional, um resultado lquido certamente perverso e negativo. Isto tem levado a um crescente debate sobre a necessidade e as alternativas de interveno dos poderes centrais Congresso e Executivo para neutralizar seu impacto.

    Uma das questes recorrentemente colocadas acerca da guerra fiscal relativa ao seu impacto sobre a situao oramentria dos governos estaduais. As perguntas relevantes so:

    (1) A concesso de incentivos leva a uma deteriorao da situao fiscal do estado que a pratica? Este impacto, se ocorre, imediato ou no mdio/longo

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    prazo? A principal forma de deteriorao no ocorreria certamente na perda de arrecadao do ICMS?

    (2) Se a guerra fiscal envolve um impacto fiscal negativo, no seria ela um fenmeno fadado ao desaparecimento?

    (3) A concesso de incentivos afeta as finanas dos estados que no a praticam?

    Um dos principais instrumentos que tem sido utilizado na guerra fiscal a arrecadao do ICMS. Na medida em que esta fonte de recursos tenha uma posio importante no financiamento dos estados o que acontece precisamente com os estados que analisamos neste estudo so diretas as ilaes sobre as conseqncias perversas da guerra fiscal para o seu equilbrio fiscal. Esta discusso apenas um aspecto restrito da questo mais geral que j foi tratada acima, de que a guerra fiscal leva, em geral, a um efeito lquido agregado negativo, embora, para cada estado individual, possa ter resultados lquidos positivos. Em outras palavras, a guerra fiscal um processo de alterao na alocao de capacidade produtiva, emprego e receita fiscal entre unidades federadas, onde o conjunto do pas perde, mas nada impede que alguns, individualmente, ganhem.

    Esta problemtica exige considerar quais so as bases em que se assenta hoje o potencial de interveno dos instrumentos manejados pelos estados, qual seu alcance e por quanto tempo conservaro vitalidade. Para abordar o tema, apresentamos primeiro uma tipologia de instrumentos de interveno, a partir da qual poderemos discutir as caractersticas dos programas que os utilizam e suas relaes com a fiscalidade dos GSN.

    3.1. Uma tipologia de instrumentos de interveno

    A gerao de incentivos diferenciais que ampliem os fluxos de investimento para uma unidade da federao pode ser lograda pela ao dirigida aos seguintes fatores:

    Aspectos sistmicos (1) Processos de desregulamentao e privatizao que reduzam custos de

    transao, insumos e servios e restries de acesso a mercados. (2) Instituies pblicas dedicadas ao desenvolvimento regional, pesquisa

    aplicada, centros de apoio atividade privada. (3) Inverso em infra-estrutura econmica e social. Benefcios seletivos (1) Vantagens locacionais especficas para uma empresa: melhoramentos

    localizados de infra-estrutura, garantia de suprimento de matrias-primas e insumos, terrenos, instalaes porturias, etc.

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    (2) Reduo ou diferimento da carga tributria por empresa, com ou sem subsidiamento creditcio implcito.

    (3) Concesso de crdito subsidiado. (4) Participao acionria. No que se refere aos incentivos sistmicos, a presena de uma poltica de

    atrao de investimento se expressaria na existncia de um vis nos processos de alocao do gasto pblico em inverso, assim como nas reformas de corte institucional, que os orientasse para a criao de um ambiente favorvel ao investimento privado em reas e setores considerados de maior potencial no estado/regio. Neste sentido, vale notar que existe toda uma importante dimenso das polticas de desenvolvimento regional centrada na captao de recursos federais e internacionais para inverso em infra-estrutura econmica e social que envolvem forte impacto de mdio e longo prazo nas condies de competitividade sistmica das regies. O fato de que alguns estados da federao tm sido mais bem sucedidos no acesso a recursos de entidades multilaterais como o BIRD, por exemplo, tem impactos no desprezveis sobre suas possibilidades de atrao.

    No entanto, estes fatores sistmicos, pelo seu carter mais difuso, tendem a ter impacto mais lento sobre o processo decisrio privado de alocao. Eles integram os elementos definidores das vantagens competitivas dinmicas, e definem, na realidade, juntamente com os demais fatores estruturais, o patamar de possibilidades a partir do qual o uso de instrumentos especficos pode atuar para maximizar o volume de inverses que busca o espao estadual.

    possvel, em princpio, assentar integralmente uma poltica de atrao de investimentos nos fatores de natureza sistmica. No caso brasileiro atual, isto significaria focar a expanso de infra-estrutura orientada para vantagens comparativas locais, melhoria de eficincia de servios ainda pblicos ou sua privatizao, desenvolvimento de formas mais eficientes de integrao entre governos estaduais e municipais na criao de sistemas de informao e de apoio inverso privada. O modelo adotado durante grande parte do perodo recente pelo estado de So Paulo se aproxima em muito deste tipo ideal.20

    O principal aspecto negativo desta opo , evidentemente, a sua inadequao para lograr resultados de curto prazo. Nas situaes como parece ser a atual em que se caracteriza um surto de expanso do investimento com fortes indcios de uma elevada mobilidade espacial, estas polticas menos agressivas podem conduzir a perdas para o estado/regio, com toda certeza no curto prazo, sendo incerta a possibilidade de recuperao no longo prazo, dados os efeitos sinrgicos gerados pela alocao diferencial realizada nas demais regies.

    (20) Para uma anlise detalhada da postura de So Paulo no contexto da guerra fiscal ver Prado & Cavalcanti (2000, cap. 3).

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    Os instrumentos especficos: capacidade fiscal e estrutura tributria

    A utilizao dos fatores especficos de atrao pode ser analiticamente decomposta, de forma bastante til particularmente para a observao de sua evoluo histrica, em duas categorias tpico-ideais.

    Um primeiro formato ideal seria a composio dos instrumentos em programas formais de escopo amplo, com definio clara de condies de acesso a cada benefcio, abertos a um elenco amplo de empresas e sem qualquer dispositivo que permita discriminao entre elas. Este padro corresponde, grosso modo, ao que se verifica no Brasil nos anos 70 e 80. Seu aspecto principal a definio prvia do tipo de benefcio envolvido, assim como a explicitao dos critrios que articulam o nvel de concesses a uma escala de prioridades alocativas setoriais e/ou sub-regionais.

    O segundo formato, ao nvel de tipos ideais, poderia ser chamado de operaes fiscal-financeiras dedicadas a projetos especficos. Este o caso quando o governo local elabora um conjunto de benefcios negociados com o agente privado individual, envolvendo um processo interativo entre as caractersticas da inverso e os benefcios concedidos.21 Os aspectos principais desta opo so a maximizao da flexibilidade e do tempo de resposta, aliada pouca transparncia assumida pelo processo. Note-se que este formato tende a ser adequado nos casos em que se negocia inverses de grandes dimenses, como o caso da expanso recente do setor automotivo.

    Um aspecto bsico da evoluo da guerra fiscal no perodo recente, como veremos abaixo, , fora de dvida, a progressiva transio do modelo tpico tradicional de programas, para uma dominncia crescente de operaes dedicadas. Isto fica claro em alguns casos, onde so criados programas com todo o formato tpico dos tradicionais, mas cuja finalidade bsica atender a projetos especficos de grande porte. Ao mesmo tempo, evidente a tendncia de cercar estes programas de todas as garantias jurdicas que permitam reduzir o risco poltico de posterior interrupo dos benefcios em funo de mudanas de governo. Nos casos de grandes projetos, de difcil reversibilidade sem perdas elevadas, os agentes tendem a exigir dos governos a formulao de detalhados contratos que amarrem os compromissos.

    Do ponto de vista do processo recente, o relevante avaliar as potencialidades existentes no uso dos instrumentos especficos. A potncia destes instrumentos depende, basicamente, dos seguintes fatores:

    (1) Condies oramentrias para realocar receita prpria no sentido dos gastos com benefcios. Isto envolve no apenas a dimenso dos oramentos

    (21) A titulo de ilustrao, tem sido freqente no Brasil que as empresas reformulem a dimenso dos seus investimentos por exemplo, antecipando inverses previstas para prazo mais longo em funo do volume de benefcios concedidos no momento presente.

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    estaduais, mas tambm a situao vigente nas suas contas fiscais. Mesmo estados com elevada participao no gasto e receitas pblicas nacionais podem ter conjunturalmente uma restrita autonomia para operar incentivos, devido a uma situao de forte desequilbrio fiscal e elevado endividamento.

    (2) Existncia de capacidade de controle do GSN sobre rgos e empresas pblicas nos servios de infra-estrutura e insumos bsicos.

    Este fator tem se revelado particularmente importante no caso de portos, rgos de construo rodoviria e empresas estaduais de energia eltrica. evidente que o movimento recente de extenso do processo de privatizao aos GNS implica reduzir ou mesmo anular este tipo de instrumento, forando a explicitao oramentria destes benefcios, que hoje se diluem nos programas de inverso das empresas estatais.

    (3) Disponibilidade direta de fontes de financiamento setor financeiro pblico prprio ou acesso a fontes federais e internacionais de crdito. Vale aqui, para o setor financeiro prprio, a mesma observao feita no item anterior, relativa privatizao estadual.

    (4) Competncia tributria sobre impostos indiretos relevantes. A maior parte destes fatores se reduz, predominantemente, ao poder de

    gasto atual dos GSN, seja via oramento central, seja via autarquias e empresas estaduais. evidente que, embora de forma mediada, a capacidade de alavancagem financeira est tambm associada quele fator principal. Isto levaria concluso de que, quanto maior o poder de gasto estadual, sujeito restrio de relativo ordenamento financeiro, e quanto maior sua disponibilidade e controle sobre geradores de infra-estrutura, maior seu poder de induo ao investimento. A contraface desta proposio que, medida que os GSN atravessem perodos de desequilbrio oramentrio e sejam, ao mesmo tempo, submetidos a restries no acesso a crdito adicional, o seu poder de fogo no uso de incentivos tende a se reduzir. Muitos observadores vem neste aspecto um dos fatores que pode levar a que a guerra fiscal perca flego naturalmente, medida que as renncias de receitas incidam sobre situaes oramentrias que, em geral, tm estado longe de equilibradas no pas, e aumentem o custo alternativo, em termos inclusive polticos, de privilegiar gastos com incentivos.

    Esta concluso seria inatacvel no fosse a natureza peculiar do fenmeno que analisamos, e que decorre da j apontada competncia estadual do ICMS e da configurao adotada para o que conhecido como Ajustamento do Imposto na Fronteira (AIF): o princpio predominantemente de origem. O ponto crucial que, nestas condies, o resultado necessrio do ato de investimento objeto do incentivo uma ampliao imediata e perfeitamente mensurvel da arrecadao tributria do governo que o concede. Assim, a base oramentria pertinente para o perodo relevante do incentivo no previamente dada: ela afetada pelo prprio objeto do incentivo, na medida em que aumenta a produo industrial

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    realizada localmente. Nestas condies, o GSN tem um poderoso instrumento de incentivo pela renncia da receita futura gerada pela planta em questo, o que no afeta o nvel de sua receita corrente. Em segundo lugar, dependendo da dimenso das novas plantas instaladas, e particularmente quando se trata de grandes complexos industriais como as montadoras automobilsticas, devem ocorrer efeitos indutores sobre novos investimentos de fornecedores e prestadores de servios. Desde que o governo no subsidie tambm estes setores, deve ocorrer inclusive uma elevao da arrecadao perante o nvel que existiria sem a realizao do projeto subsidiado.

    Reside a um dos aspectos mais peculiares e perversos do atual processo de guerra fiscal. possvel afirmar que, sob a hiptese de que o projeto em seu conjunto seja bem-sucedido, no deve ocorrer perda de arrecadao (perante a situao ex-ante) durante o perodo no qual a empresa subsidiada e, alm disto, aps este perodo a situao fiscal, do ponto de vista estrito da capacidade de arrecadao, estar provavelmente melhorada.

    Grfico Evoluo da arrecadao do ICMS Estado com projeto de grande porte subsidiado

    0123456789

    10

    O Grfico acima, indicando a evoluo da arrecadao do ICMS de um estado hipottico, serve como referncia esquemtica para avaliar a questo, no caso de um grande projeto de investimento. A curva inferior (a) projeta a arrecadao que seria obtida na hiptese de que o investimento no ocorresse. No caso em que ele ocorre, a partir do momento (tempo 8) em que a empresa inicia sua operao e vendas, a receita potencial passaria para outro patamar, dado pela curva (c). Supondo, como a prtica atual de incentivos, que toda a arrecadao incremental seja diferida por subsdios, a receita efetiva continuaria a ser dada pela curva (a). medida que os efeitos dinamizadores associados ao projeto comeassem a ocorrer (tempo 10), haveria um ganho adicional de receita deles decorrente. Este um ganho derivado do projeto principal, sob a suposio

    c b a

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

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    de que o estado no subsidie tambm estes novos investimentos (exemplos tpicos so os fornecedores de componentes das grandes montadoras).

    Sob o ponto de vista da economia nacional, o custo fiscal definido pela diferena entre a curva potencial e a efetiva. Do ponto de vista da economia estadual, em comparao com sua situao anterior, no que se refere estritamente sua receita tributria, no h uma perda efetiva. Ao contrrio, ela passa a ter sua receita ampliada pelos efeitos da inverso derivada. Em outras palavras, do ponto de vista da sua receita potencial anterior, h um ganho que decorre da receita adicional que o investimento arrasta, dado pela diferena entre as curvas (b) e (a).

    Suponhamos que, a partir do tempo 16, os benefcios de diferimento estejam esgotados, e a empresa retorne ao nvel normal de recolhimento de ICMS. Neste caso, a receita efetiva iguala a receita potencial, num nvel mais alto que a receita possvel sem o investimento.

    Este exemplo demonstra um ponto bsico: da perspectiva do estado concedente, no h, a mdio e longo prazo, perda de receita em comparao situao hipottica de no se realizar o projeto. Durante o perodo de subsidiamento, do ponto de vista do comportamento temporal do conjunto arrecadao-gasto, existe evidentemente uma reduo da elasticidade da receita em relao ao produto local, em decorrncia da renncia fiscal. A isto se soma o conjunto de gastos fiscais diretos exigidos pelo projeto (infra-estrutura, terreno, etc.). Na hiptese de que a demanda por gastos correntes e de investimento do GSN esteja correlacionada, em alguma medida, ao nvel de produto, isto apontaria para um agravamento da situao fiscal no mdio prazo, ou, alternativamente, a degradao dos servios pblicos prestados. No primeiro caso, o perodo de subsidiamento, principalmente nos casos de polticas estaduais mais agressivas, poder implicar um agravamento da situao patrimonial do governo, pela ampliao da dvida pblica. Uma vez que o diferimento do ICMS e as operaes de crdito so subsidiados, a arrecadao e o retorno futuros destes recursos no cobriro necessariamente estes passivos.

    Esta concluso, contudo, deve ser matizada por alguns fatores. Primeiro, para muitos estados relevante, na composio de suas receitas, a parcela de recursos oriunda de base tributria global, via fundos de participao e outras transferncias, o que reduz a sensibilidade da receita perda via incentivos (na realidade, como apontam muitos crticos, alguns estados se apiam nas receitas de transferncias para ampliar sua concesso de incentivos). Segundo, h o importante aspecto dos impactos locais dos projetos bem-sucedidos. De um ponto de vista dinmico, um programa de incentivos bem-sucedido deve gerar um conjunto de impactos diretos e indiretos sobre a renda local, atravs de empresas subsidirias, fornecedores de componentes e equipamentos, prestadores de servios, etc. Tudo isto tem repercusses de difcil avaliao mas seguramente

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    positivas sobre os nveis de arrecadao, uma vez que afeta um amplo conjunto de setores que no contam com reduo de imposto. verdade que alguns estados (Paran, por exemplo) tm estendido o benefcio do diferimento tambm para os fornecedores que se desloquem para o estado a reboque da empresa principal. Esta, contudo, no tem sido a regra. Na maioria dos casos, receita incremental direta (diferida) do projeto subsidiado est associada tambm ampliao imediata de arrecadao.

    A principal implicao destes fatos que a capacidade de concesso de incentivos de cada estado se torna, em boa medida, independente do seu poder de dispndio e mesmo da sua situao fiscal conjuntural. Isto leva seguinte situao limite hipottica, altamente esclarecedora. Em princpio, desconsideradas as demais condies que cercam a deciso privada de alocao, o estado de Rondnia teria, no que se refere manipulao da carga tributria, o mesmo poder que qualquer outro estado para oferecer incentivos a uma empresa.

    3.2. Mecanismos alternativos para a utilizao da competncia tributria

    Como analisado no item 1, a utilizao dos abatimentos de ICMS por iniciativa individual de cada estado , em princpio, vetada pelos dispositivos legais vigentes. essencial notar, contudo, que a nica condio efetivamente necessria para que os estados possam utilizar o instrumento a manuteno do princpio de origem, ou seja, que esteja garantida a apropriao da receita gerada via operao da nova planta pelo estado que sedia o investimento.

    No h qualquer impedimento legal para que um estado conceda, a uma empresa que se instale em seu territrio, benefcios de natureza creditcia ou financeira. Assim, nada obsta que seja concedido, por exemplo, crdito subsidiado para apoio e complementao ao capital de giro da empresa, nos primeiros anos de sua operao. Neste caso, a empresa recolheria efetivamente o ICMS, e as exigncias inscritas na lei do CONFAZ no seriam desrespeitadas. evidente, contudo, que isto abre uma possibilidade ampla para que a reduo do ICMS seja camuflada por uma operao triangular que relacione, por exemplo, a empresa, o Tesouro estadual e um fundo de incentivos ao desenvolvimento estadual.

    O padro bsico desta operao seria o seguinte. Cria-se um fundo de incentivos, alimentado por recursos oramentrios e outras fontes usuais, que conceda financiamento para, por exemplo, capital de giro. O montante do crdito definido de forma a corresponder, grosso modo, ao montante esperado do recolhimento de ICMS da empresa.22 Quando um empreendimento novo, usual

    (22) Isto explica alguns nmeros mgicos encontrados em certos contratos do setor automotivo. Em geral o subsdio concedido num percentual do faturamento que coincide com a atribuio da alquota do ICMS a uma estimativa do valor adicionado da empresa.

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    a devoluo integral do imposto gerado. Quando se trata de ampliao, o crdito devolve o chamado ICMS incremental. Em terceiro lugar, h que garantir a necessria transferncia dos recursos recolhidos via arrecadao para o fundo de incentivos. Assim, o resultado final o mesmo da concesso do incentivo, apenas veiculado de uma forma indireta que contempla o efetivo recolhimento do tributo.

    Este modelo de incentivos teria como caracterstica bsica o abandono do uso explcito da competncia estadual sobre o ICMS, e a transio para o uso de:

    (1) Fundos fiscais de molde tradicional, cujo funding bsico composto por recursos oramentrios e emprstimos. Na realidade, idealmente, o fundo seria alimentado pela arrecadao incremental gerada pelo projeto. Isto leva a um funcionamento seguro e automtico.

    (2) Utilizao (no explcita no oramento dos fundos e no oramento do governo) da capacidade de gasto de autarquias estaduais e empresas estatais, para criao de facilidades e benefcios de infra-estrutura.

    A base geral dos programas poderia ser descrita como composta de dois tipos de fluxos de recursos fiscais aplicados em benefcios. Uma parte, que se pode dizer rotativa, significa na realidade uma operao disfarada de diferimento do ICMS, embutida na concesso de financiamento para o capital de giro. O resultado final que a empresa deixa de existir do ponto de vista da arrecadao de ICMS. O estado deixa de recolher o novo imposto gerado, no incorrendo portanto em nenhuma reduo de receita corrente. Desde que seja garantido o mecanismo de transferncia da receita de ICMS do oramento para o fundo, o mecanismo no exige do estado alavancagem creditcia de recursos. As perdas possveis neste esquema, de um ponto de vista intertemporal, ficam restritas definio de taxas de juros subsidiadas. A outra parte pode ser considerada, pelo menos no curto prazo, gasto a fundo perdido: benefcios diretos e doaes como terrenos, infra-estrutura e outras facilidades. Ainda neste caso, no se pode tomar a totalidade destes gastos como custos do empreendimento para o estado, uma vez que grande parte deles (infra-estrutura de transporte, por exemplo) geram benefcios e externalidades positivas para a comunidade. Quais so os limites intrnsecos a estas duas fontes bsicas de subsidiamento?

    A primeira tem um limite natural no recolhimento de ICMS e, na realidade, desde que no seja caracterizada por um elevado grau de subsidiamento, representa efetivamente um diferimento do imposto, que pode significar um alvio financeiro para a empresa na etapa de implantao mas tambm uma sobrecarga financeira no futuro. Por outro lado, na medida em que o financiamento do capital de giro seja feito sem correo monetria e, muito freqentemente, como mais comum nos processos atuais, sem juros, amplia-se a perda existente no perodo de subsidiamento. A segunda depende diretamente da capacidade de dispndio do governo estadual, da situao financeira de seus agentes descentralizados e da possibilidade de fontes de financiamento

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    alternativas para os demais gastos necessrios do estado, que viabilizem o redirecionamento de recursos oramentrios para o fundo.

    A ttulo de concluses

    Retomemos agora as questes mais gerais com que abrimos este item. Antes de mais nada, vale chamar a ateno para o fato de estarmos aqui discutindo exclusivamente a relao entre guerra fiscal e equilbrio oramentrio. Assim sendo, desconsideramos totalmente o problema de a guerra fiscal trazer ou no benefcios extrafiscais em termos de gerao de empregos, modernizao da estrutura produtiva local, etc. Mesmo que os impactos desta ordem sejam muito positivos, o que est em questo se o processo para obt-los introduz um vis deficitrio nas contas pblicas.

    Efetivamente, no h qualquer evidncia, seja de um ponto de vista histrico mais amplo, seja entre os eventos recentes, de que a guerra fiscal envolva necessariamente uma degradao da situao individual fiscal dos estados que a praticam, embora seja foroso reconhecer que ainda muito cedo para esta avaliao. No parece haver, contudo, por este lado, qualquer tendncia inexorvel perda de dinamismo das polticas de incentivos. Com isso queremos dizer apenas que, na medida em que sejam evitadas polticas extremadas de concesso de benefcios como tem ocorrido em alguns casos recentes envolvendo a indstria automotiva possvel que o resultado lquido a mdio e longo prazo seja positivo para estados individuais. Isto que torna particularmente problemtica uma linha de crtica ao processo que se apie na situao individual dos estados. Seno vejamos.

    Indicamos acima dois aspectos a serem considerados. Primeiro, sempre que o incentivos sejam relevantes para alterar a deciso alocativa, grande parte do custo fiscal neles envolvido referem-se a manipulao de receita incremental que, sem os benefcios, no existiria nos cofres do estado. Note-se tambm que os gastos fiscais relacionados a infra-estrutura e similares, ainda que priorizados em funo de uma empresa especfica, raramente deixam de ter um impacto global positivo para a regio, ainda que, do ponto de vista estrito do benefcio marginal gerado, eles se situassem numa posio inferior da escala de usos alternativos do recurso. Deste ponto de vista, o nus mais forte no curto prazo decorre, nos modelos atualmente praticados, da imobilizao de recursos creditcios pblicos.

    Em segundo lugar, e mais relevante, h o importante aspecto dos efeitos dinamizadores de mdio e longo prazo que a instalao de complexos industriais pode trazer. Se fosse possvel estimar e trazer a valor presente a receita tributria incremental que venha a ser gerada pelas novas plantas instaladas, provavelmente

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    os clculos mais simplistas que tm sido apresentados na mdia assumiriam outro carter.

    De forma geral, aponta-se aqui para o fato de que, dependendo da natureza e dimenso dos incentivos concedidos, e, principalmente, dependendo de que a iniciativa seja bem-sucedida no sentido de viabilizar a constituio de distritos industriais ou de complexos produtivos (setor automotivo, por exemplo), pode-se obter aquela que se constitui na alternativa tima de resultado da poltica: um comportamento tipo curva J23 para o impacto fiscal associado aos programas. Num primeiro momento que pode se estender por alguns anos os custos predominariam. A partir de um certo ponto, seja pelo incio da quitao de dvidas, seja pela emergncia dos efeitos dinamizadores, se alcanaria um equilbrio, possivelmente em um nvel de gasto-receita mais alto do que seria possvel sem a presena dos novos complexos e distritos industriais.

    Deste ponto de vista, as condies essenciais para um resultado fiscal positivo seriam:

    (1) o dimensionamento inicial adequado dos benefcios vis--vis os efeitos dinamizadores esperados sobre a receita.

    (2) a subordinao dos benefcios a uma concepo mais ampla que envolva a criao de condies conducentes gerao de efeitos dinmicos.

    Um outro aspecto assume particular importncia nos casos recentes ocorridos no setor automotivo. Como j assinalamos antes, h uma diferena enorme entre o estado atrair uma montadora e atrair trs montadoras. As possibilidades de internalizao, no espao regional, da totalidade da cadeia produtiva setorial ampliam em muito o valor presente dos ganhos futuros de receita. Neste sentido, o sucesso do governo em atrair para o estado as empresas fornecedoras pode ser decisivo para lograr aquele efeito positivo. (Vale aqui lembrar, um caso histrico que pode ser muito til no sentido de avaliar as experincias mais recentes: a instalao da FIAT em Minas Gerais, nos anos 70. A constituio bem-sucedida de todo o parque de fornecedores fez da montadora um fator extremamente dinmico do ponto de vista da arrecadao. O municpio de Betim est na primeira posio em arrecadao no estado, adiante inclusive da capital). Por outro lado, na situao atual, a existncia do Mercosul amplia o risco de que as montadoras instaladas na regio Sul mantenham um elevado coeficiente de importao dos pases vizinhos, notadamente Argentina, reduzindo em muito este tipo de impacto que, no caso de Minas, ficou represado pelos custos de transporte.

    Tomemos agora a outra questo, referente ao impacto que a guerra fiscal tem sobre os estados que no a praticam. No caso brasileiro recente, esta a

    (23) A noo de curva J utilizada em anlises de comrcio exterior e cmbio para indicar o fato de que uma desvalorizao cambial pode, sob certas condies, ter um impacto imediato desfavorvel na balana comercial, vindo o efeito favorvel a se realizar com uma certa defasagem temporal.

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    situao quase exclusiva do estado de So Paulo, embora seja verdade que, se tomarmos por um corte setorial especfico (txteis, vesturio, carnes) outros estados do Sul e Sudeste tm sido afetados pelas polticas de atrao postas em prtica pelos estados do Nordeste.

    A resposta questo necessariamente positiva, uma vez que o resultado bsico do processo , como fica claro em toda a argumentao acima, a realocao inter-regional da atividade produtiva. Na hiptese de total ausncia dos incentivos, as tendncias da alocao industrial, e conseqentemente da distribuio da arrecadao do ICMS, deveriam se aproximar mais do perfil de distribuio concentrada anteriormente existente, consideradas as tendncias subjacentes deciso privada alocativa no que se refere a eventuais processos de desconcentrao ou reconcentrao, como j discutimos acima. Com os incentivos, e na medida direta em que eles sejam bem-sucedidos no sentido estrito de que as decises alocativas no sejam revertidas em algum momento futuro os estados beneficiados naquela situao passaro a ser efetivamente perdedores de receita e, portanto, sofrero algum impacto sobre sua situao fiscal.

    A questo pode ser ilustrada com o caso de So Paulo. Dada a dimenso de seus mercados, a produo das empresas que deixam o estado para se instalar em estados vizinhos tende a ser, em boa parte, importada por So Paulo. Deixando de lado, neste caso, as perdas de emprego e de outros impactos internos decorrentes da sada da empresa, o estado deixa de arrecadar os 18% de ICMS a que tinha direito quando a empresa tinha sede no estado, e passa a arrecadar apenas 6%, abatido o crdito de 12% cobrado pelo estado de origem na operao interestadual. Sendo o ICMS objeto de incentivo no estado de origem e suponhamos no recolhido, a empresa traz para So Paulo o que se poderia chamar de um crdito esprio, que o estado forado a reconhecer na conta grfica da empresa importadora. O imposto no recolhido, mas So Paulo forado a reconhec-lo como despesa tributria legtima da empresa.24

    Em sntese, o resultado agregado deste processo , primeiro, uma perda global de arrecadao, que afeta o conjunto dos estados pelo prazo que durarem

    (24) Uma observao margem. freqente ouvir-se, por parte dos tcnicos do governo de So Paulo, o argumento de que o estado perde os 12% referentes ao crdito. Isto j levou no passado, e novamente no final de 1999, o governo paulista a tentar glosar os crditos de produo subsidiada em outros estados. compreensvel a origem do argumento, mas ele incorreto. O estado perde 12% de arrecadao quando a empresa muda sua sede para outro estado. Uma vez isto ocorrido, no h mais, na regras atuais, direito de So Paulo sobre este imposto, portanto no h perda de crdito. Ainda que seja de difcil aceitao ser forado a abater crditos falsos, quem est perdendo receita legtima, no caso, o estado de origem. Da mesma forma, se algum estado decide dar incentivos para empresas que sempre foram localizadas em seu territrio, so Paulo no perde receita. Isto decorre da regra vigente para o imposto, a mesma que garante ao estado de So Paulo um ganho de cerca de 20% na arrecadao por ser estado liquidamente exportador. A mudana n