2. Hierofania, Tempo e Rito

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  1 Teologia das Religiões – Texto 2 HIEROFANIA, TEMPO E RITO Prof. Dr. Marcial Maçaneiro, SCJ. Como vimos no Texto 1 as religiões não surgem da mera convenção, ou de um código doutrinal conceitualmente preconcebido. Elas brotam pouco a pouco, das vivências originárias interpretadas pelo homo religiosus como verdadeiras “hierofanias”: manifestações do Sagrado no ambiente vital dos sujeitos e dos povos. I. HIEROFANIA, TEMPO E ESPAÇO 1. MISTÉRIO TREMENDO E FASCINANTE As manifestações do Sagrado – denominadas “hierofanias” – são sentidas e captadas pelo sujeito de um modo vertiginoso: de um lado, atraem e fascinam; de outro, afastam e atemorizam. É o que Rudolf Otto caracterizou como fascinans et tremendum – o Sagrado que, ao mesmo tempo, causa maravilhamento ( fascinans ) e tremor (tremendum) 1 . Por isso dizemos que é um “sentir vertiginoso”; comparável à vertigem que alguém sente quando se encontra em grandes altitudes ou diante de um abismo: de um lado, medo da profundidade; de outro, impulso a jogar-se. As religiões manifestam este duplo movimento em relação ao Sagrado: ora se aproximam, ora se distanciam, à medida que o sentem como fascinans  (maravilhoso e atraente) ou tremendum (abissal e terrificante). Note-se, porém, que o elemento de tremor e mistério terrificante não se restringe ao medo no sentido comum, mas é tremor do pequeno diante do Imenso, do finito diante do Infinito, donde brota uma atitude reverente e respeitosa, dita também “temente” – no sentido virtuoso e cultual de “temor”: respeito, reverência e cautela em face do Sagrado. Entre o fascinans e o tremendum, acrescenta-se ainda o augustum – a percepção do Sagrado como majestade augusta, dotada de uma santidade fontal, sublime e intocável, em contraste com a pecabilidade humana. A luz da augusta divindade resplandece sobre o ser humano e põe às claras os seus pecados, vícios e limites. Não há como fugir nem se esconder desta luz, que revela a justa medida da condição humana. Vendo-se como criatura limitada e cheia de contradições, o ser humano se percebe ínfimo diante da sacralidade augusta: 1  Cf. OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2007.

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    Teologia das Religies Texto 2

    HIEROFANIA, TEMPO E RITO

    Prof. Dr. Marcial Maaneiro, SCJ.

    Como vimos no Texto 1 as religies no surgem da mera conveno, ou de um cdigo doutrinal conceitualmente preconcebido. Elas brotam pouco a pouco, das vivncias originrias interpretadas pelo homo religiosus como verdadeiras hierofanias: manifestaes do Sagrado no ambiente vital dos sujeitos e dos povos.

    I. HIEROFANIA, TEMPO E ESPAO 1. MISTRIO TREMENDO E FASCINANTE

    As manifestaes do Sagrado denominadas hierofanias so sentidas e captadas pelo sujeito de um modo vertiginoso: de um lado, atraem e fascinam; de outro, afastam e atemorizam. o que Rudolf Otto caracterizou como fascinans et tremendum o Sagrado que, ao mesmo tempo, causa maravilhamento (fascinans) e tremor (tremendum)1. Por isso dizemos que um sentir vertiginoso; comparvel vertigem que algum sente quando se encontra em grandes altitudes ou diante de um abismo: de um lado, medo da profundidade; de outro, impulso a jogar-se.

    As religies manifestam este duplo movimento em relao ao Sagrado: ora se aproximam, ora se distanciam, medida que o sentem como fascinans (maravilhoso e atraente) ou tremendum (abissal e terrificante). Note-se, porm, que o elemento de tremor e mistrio terrificante no se restringe ao medo no sentido comum, mas tremor do pequeno diante do Imenso, do finito diante do Infinito, donde brota uma atitude reverente e respeitosa, dita tambm temente no sentido virtuoso e cultual de temor: respeito, reverncia e cautela em face do Sagrado.

    Entre o fascinans e o tremendum, acrescenta-se ainda o augustum a

    percepo do Sagrado como majestade augusta, dotada de uma santidade fontal, sublime e intocvel, em contraste com a pecabilidade humana. A luz da augusta divindade resplandece sobre o ser humano e pe s claras os seus pecados, vcios e limites. No h como fugir nem se esconder desta luz, que revela a justa medida da condio humana. Vendo-se como criatura limitada e cheia de contradies, o ser humano se percebe nfimo diante da sacralidade augusta:

    1 Cf. OTTO, Rudolf. O Sagrado. So Leopoldo: Sinodal; Petrpolis: Vozes, 2007.

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    Ado e Eva escondem sua nudez (Gn 3,9-10); Moiss tira as sandlias e cobre o rosto (x 3,5-6); Arjuna se prostra diante de Krishna e no compreende a revelao (Bhagavad-Gita 11,31); Pedro pede que Jesus se afaste dele, pois se reconhece pecador (Lc 5,8); Muhammad se detm no limiar do stimo cu (Sura 53,7-9) e se posiciona atrs de um vu, para se proteger dos raios da glria divina (Sura 42,51). Sobre tal experincia, Garca Bazn nos diz:

    No mysterium tremendum ressoa a natureza inacessvel do numinoso, confirma-se o sentimento de desconcerto da criatura e se experimenta o espanto mstico. Diante da divina ilimitao, ficam justificados na conscincia o temor de Deus e o sagrado que aterroriza. Em contraposio a este sentimento, o fascinans seduz, atrai e cativa. A bondade, a misericrdia e o amor do divino possuem e embriagam a alma. O homem, alm disso, consciente do mysterium tremendum de seu estado de criatura, percebe-se a si prprio como totalmente carente de valor diante de quem possuidor de toda glria e honra e, por isso, digno de venerao e louvor. Esse carter de soberania e majestade revela uma dimenso extramental sobre a qual se aliceram os aspectos mais subjetivos de aproximao e permanncia distncia. A conscincia de pecado como um atentado majestade do sagrado repousa tambm sobre a natureza do augustum. 2

    interessante notar que as percepes do Sagrado como augustum

    (majestade santssima) e tremendum (abismo terrificante) no determinam no sujeito humano uma atitude de fuga da Divindade. As narrativas falam de distino e at distncia entre o humano e o divino, expressando sentimentos de desconcerto e tremor diante do Santo por excelncia. Mas o sujeito se v pecador e temente, justamente pelo fato de ter sido acolhido pela Presena misteriosa do Santo. Ainda que se detenha, temeroso, no limiar do recinto divino e se oculte atrs dos vus, a Face de Deus que o homem busca, vertiginosamente, equilibrando-se entre o xtase e o tremor, entre a luz e a obscuridade, entre o saber e o no-saber.

    Alm de Arjuna (Bhagavad-Gita 11) e Muhammad (Suras 17, 42 e 53), o

    apstolo Paulo um exemplo bem conhecido desta experincia, inserido na tradio judaico-crist. Tambm ele semelhana de Elias, Enoc e Muhammad diz ter ascendido aos cus superiores, que so a morada augusta do Santo:

    Conheo um homem em Cristo que, h quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro cu se em seu corpo, no sei; se fora do corpo, no sei; Deus o sabe! E sei que esse homem se no corpo ou fora do corpo no sei; Deus o sabe! foi arrebatado at o paraso e ouviu palavras inefveis, que no lcito ao homem repetir (2Cor 12,2-4).

    Noutra passagem, com maturidade e competncia hermenutica, o apstolo conclui:

    2 GARCA BAZN, Francisco. Aspectos incomuns do sagrado. So Paulo: Paulus, 2002, p. 61.

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    Agora vemos em espelho e de maneira confusa; mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento limitado; mas, depois, conhecerei como sou conhecido (1Cor 13,12).

    2. DIMENSO INTERIOR E EXTERIOR DO ESPAO SAGRADO

    Dito isto, demos um passo adiante em nossa abordagem, tratando agora do espao sagrado. O que seria este espao sagrado? Em termos breves, chamamos de espao sagrado o lugar em que ocorreu a hierofania original ou outro, ocupado por ritos que transportam a ela. Retomemos alguns exemplos: o Monte Horeb (ou Sinai) um espao sagrado para o Judasmo, Cristianismo e Islamismo; as margens do Lago de Tiberades so um espao sagrado para os cristos; e os hindus veneram muitas cidades santas (especialmente Varanasi) porque nelas ocorreram manifestaes marcantes da divindade. Poderamos listar muitos outros casos de espaos sagrados: cidades santas (Jerusalm, Meca, Roma, Medina, If, Varanasi) fontes sagradas (fonte de Abrao em Meca, fontes de Gion e Silo em Jerusalm; nascentes para o Candombl); montanhas santas (Olimpo, Horeb, Meru, Fujiama, Tabor, Ararat, Carmelo, Garizim). Temos ainda espaos sagrados identificados com rvores, rochas, desertos, jardins e cavernas subterrneas todos considerados sagrados porque se ligam a algum tipo de hierofania, com memrias e ritos decorrentes dela.

    Estes espaos sagrados tm geralmente duas dimenses: uma exterior (o locus objetivo) e outra interior (o locus subjetivo). A dimenso exterior o espao objetivamente considerado: montanha, fonte, rochedo, caverna, rio, floresta, deserto e todos os loci (lugares) onde ocorreram hierofanias, marcando assim a memria dos sujeitos envolvidos nessa vivncia originria, bem como os que se inseriram posteriormente na mesma tradio religiosa. A dimenso interior a profundidade pessoal do sujeito da experincia, que guarda na memria a hierofania e rel continuamente a inscrio interior que a mesma hierofania lhe deixou. Pois toda hierofania deixa na pessoa uma inscrio: marcas, imagens, sentimentos, promessas, que se in-screvem no sujeito, formando o que chamamos de memria religiosa. Os registros interiores da hierofania se somam, formando essa memria cujo material (imagens, sentimentos, emblemas, promessas) sero lidos e relidos continuamente, dando origem a interpretaes do Sagrado. Daqui brotar, pouco a pouco, uma linguagem prpria do Sagrado, na tentativa de interpretar e comunicar as hierofanias originantes.

    Pela complexidade do fenmeno religioso, no basta localizar o espao sagrado exterior. importante localizar o espao sagrado interior: a subjetividade religiosa das pessoas, onde o Sagrado deixou sua inscrio memorvel. Afinal, por mais que a sara no alto do Sinai fosse algo fascinante, nem a sara nem a montanha fizeram a experincia. Somente Moiss o sujeito pessoal que fez a experincia; somente nele se inscreveu algo daquela manifestao, formando sua memria sagrada. A numinosidade foi to irradiante que ultrapassou os limites do sujeito e deu origem milenar tradio do Judasmo mosaico, registrada

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    solenemente na Torah (= Pentateuco). Respeitadas as peculiaridades de cada experincia, podemos dizer o mesmo, grosso modo, a respeito de Arjuna, Zoroastro, Buda, Abrao, Ezequiel, Pedro, Muhammad e tantos outros, em quem a hierofania deixou uma inscrio, demarcando seu locus interior invisvel ao observador desatento, mas perscrutvel por quem aprende a decifrar os registros memorveis que o Sagrado inscreve no homo religiosus de todos os tempos e lugares. 2.1 ESPAO SAGRADO EXTERIOR

    Montanha, fonte, jardim, floresta, rochedo, lago, caverna. Muitos lugares so cenrios de hierofania nas diversas religies do mundo. Em todos os casos, o que aconteceu foi que o homo religiosus (sujeito da experincia) demarcou esses loci (lugares) como espao diferenciado. A demarcao do lugar j um proto-rito: um primeiro gesto cultual que expressa a numinosidade com a qual aquele espao se reveste. O lugar hierofnico demarcado para distinguir-se dos demais espaos (profanos) e permitir que o sujeito retorne ali, outras vezes, conectando-se com o Sagrado manifesto.

    Culturas de floresta demarcaram rvores e nascentes. Culturas de deserto

    demarcaram rochas e osis. Culturas de montanha demarcaram picos e itinerrios. Em outros casos, a inacessibilidade dos lugares sagrados levara construo de reprodues sagradas, para facilitar o acesso ritual dos fiis: torres que reproduzem montanhas sagradas; criptas que significam cavernas mticas; estelas que sinalizam hierofanias nmades, no caso de tribos que experimentam a divindade caminhante a seu lado.

    Podemos, ento, resumir como se configura o espao sagrado: 1) ocorre uma hierofania num locus determinado; 2) este locus (lugar exterior) se registra na memria do sujeito (locus interior); 3) o sujeito demarca de algum modo o lugar da hierofania como espao sagrado (reservado divindade e ao encontro com ela), distinguindo-o e possibilitando retornos sucessivos.

    Entre muitas narrativas, o episdio bblico do sonho de Jac nos serve de

    exemplo didtico (cf. Gn 28,10-19). Enquanto Jac dormia, no trajeto entre Beersheb e Haram, aconteceu uma hierofania em sonho, com imagens arquetpicas (escada, caminho, elevao) e a comunicao interior da divindade (palavra de promessa). Quando despertou, Jac interpretou a hierofania e rapidamente demarcou o lugar: tomou a pedra que lhe servira de travesseiro e a ergueu, ungindo-a com leo para assinalar ali o espao sagrado. Este lugar, que antes se chamava Luza, passou a se chamar Betel: Casa de Deus (do hebraico bet = morada + el = divindade). Note-se ainda a profundidade interpretativa do sujeito: alm de o lugar ser Casa de Deus (Betel), considerado tambm Porta do Cu porque d acesso divindade transcendente que ali se comunicou (nome, palavra e promessa) unindo terra e cu (escada).

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    Em todas as religies, com peculiaridade de elementos e linguagens, permanece o mesmo esquema: 1) hierofania, 2) memria do lugar, 3) demarcao do espao sagrado. Quando o lugar original se torna historicamente distante, inacessvel, ou o seu registro to antigo que a memria no consegue mais localizar o endereo exato, ento o homo religiosus retoma os elementos da experincia interior e discerne outros lugares o mais prximos possvel para fix-los como espao sagrado. Nesse caso, as religies seguem indicaes memorveis, textos sacros ou apelam autoridade espiritual mais proeminente embora seja possvel certo consenso por conveno ou a paulatina re-elaborao da tradio parcialmente perdida. Seja como for, a demarcao de um locus alternativo para determinada tradio s legtima porque vinculada com os elementos da experincia originria. Deste modo, a hierofania fundante pode legitimar a demarcao de espaos sagrados alternativos, desde que vinculados a ela e reconhecidos como tal pelo sujeito religioso e/ou sua comunidade cultual. 2.2. ESPAO SAGRADO INTERIOR

    Explicitando o que dissemos acima, entendemos por espao sagrado interior o prprio sujeito da experincia (homo religiosus), quando l e rel aquela inscrio que a hierofania deixou em sua memria. Por isso mesmo, dizemos que a experincia do Sagrado no se registra diretamente num texto literrio, mas na memria interior ou, se quisermos, no texto psicolgico ou arquetpico do sujeito. desta memria que surgiro, depois, as narrativas, mitos e percursos religiosos, podendo ser escritos e fixados posteriormente, dando origem a textos sacros. Neste caso, vai-se da in-scriptura (inscrio-memria) ex-scriptura (escritura-livro).

    Isto denota a importncia da memria para as religies. Da memria

    (mnmosis) interpretada e comunicada aos demais surgiro a narrativa e o rito memoriais (anamnsis). E os sujeitos cuja memria religiosa os vincula diretamente hierofania fundante sero altamente considerados pelo grupo, formando sacerdotes, profetas e msticos. Nas religies do mundo, esses personagens sacerdotes, profetas e msticos so considerados como tal porque neles se concentra uma memria excelente e qualitativamente significativa da hierofania fundante. A tal ponto, que alguns deles se tornam fundadores de religies: sua memria to significativa, que ganham autoridade para reinterpretar a hierofania, desdobrando seus sentidos em novos horizontes no pelo cancelamento da experincia fundante, mas tirando dela desdobramentos inditos e promissores. Assim entendemos Moiss, em relao a Abrao, Isaac e Jac; entendemos Jesus, em relao ao judasmo mosaico anterior; entendemos Buda, em relao ao brahmanismo; entendemos Muhammad, em relao ao culto antigo dos povos rabes; entendemos Bahaullah em relao ao islamismo de ento.

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    3. RELAO ENTRE ESPAO SAGRADO E TEMPO SAGRADO

    Como dissemos, o sujeito religioso no apenas guarda a memria da hierofania (inscrio interior), mas demarca o lugar dela para estabelecer ali um acesso divindade. Assim, o lugar interior da hierofania (memria) ganha um lugar exterior (espao sagrado visvel), onde se cr que possvel acessar ou vivenciar novamente a experincia originria. Surgem, assim, os muitos e variados espaos sagrados nas religies. De modo simplificado, podemos definir espao sagrado como lugares demarcados pelo homo religiosos a partir de uma hierofania fundante. Como explicamos antes: 1) acontece a hierofania, 2) o sujeito guarda a memria dela, 3) depois demarca o lugar, circunscrito como espao sagrado.

    Qual a funo do espao sagrado? Como sinalizamos antes, dar acesso divindade, favorecendo o retorno ao lugar original da hierofania, para que ali se possa ter acesso novamente ao Mistrio antes manifesto. Por isso, Moiss, Elias e outros voltavam ao Horeb, para reencontrar-se com Deus. E hoje, muitos retornam a lugares sagrados, para reviverem as hierofanias fundantes (caso de Varanasi, Allahabad, Meca, Jerusalm, Lalibela e outros destinos seculares de peregrinao).

    Outra funo do espao sagrado dar acesso ao tempo da divindade. A hierofania se insere apenas parcialmente no tempo cronolgico. Ela teve, sim, uma data precisa. Mas o tempo que a hierofania abre o tempo antes do tempo, ou seja, o tempo do Mistrio que ali se manifestou. Assim, experincias hierofnicas aparentemente longas (como se durassem muitas horas na percepo do sujeito), se revelam breves, coisa de poucos segundos, quando o sujeito retorna da vivncia e a constata temporalmente. o caso do sonho de Jac: de longa narrao, durou provavelmente pouqussimos segundos. E, contudo, precisa de muitas linhas para ser transcrito e milhares de outras para ser interpretado, comentado e transmitido em sentido inicitico. Verificamos algo semelhante com a transfigurao de Jesus no Tabor e outras experincias de xtase, cuja memria (densa e geradora de narrativas) se deve a um tempo misterioso, que no se enquadra na cronologia habitual.

    Falando de modo simples: o espao sagrado favorece nossa insero no

    tempo da divindade, chamado igualmente tempo sagrado ou tempo primordial. Em fenomenologia, dizemos in illo tempore (naquele tempo) para significar que com a narrativa proclamada estamos entrando no tempo da divindade: o tempo gerador de tudo, o tempo-antes-do-tempo que rompe ritualmente com a cronologia habitual e d sentido novo, definitivo, ao devir cotidiano3.

    3 O Lecionrio catlico usado nos domingos abre a proclamao do Evangelho com a expresso naquele tempo (in illo tempore) mesmo que tal expresso no esteja na redao bblica. Se a narrativa lendria, comea com era uma vez. Mas quando a narrativa remete ao tempo da hierofania, comea com naquele tempo ou, s vezes, no princpio. Deste modo, podemos dizer que o rito a nica e verdica mquina do tempo que a humanidade j provou; pois nos permite

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    II. RITUALIDADE 1. ENTRAR, MOVER-SE E SAIR DO ESPAO SAGRADO

    Agora podemos falar de rito. Basicamente, os ritos religiosos nascem de modo simples: entrar, mover-se e sair do espao sagrado. Na sua base, toda gama de ritos religiosos serve para: 1) entrar, 2) mover-se, 3) sair do espao sagrado.

    O espao sagrado to peculiar (por dar acesso ao tempo e ao lugar da manifestao divina) que no se pode entrar nele, mover-se nele e dele se retirar de qualquer jeito. Isso profanaria ou romperia a sua sacralidade. Por isso, o homo religiosus rel a hierofania e colhe dela sugestes de como pode entrar, mover-se e sair do espao sagrado preservando continuamente sua peculiar sacralidade. Surgem, ento, os ritos! Depois de garantir ritualmente o ingresso, movimento e sada do espao sagrado, esses ritos bsicos podem se complexificar, desdobrando-se em aes sagradas variadas, que acontecem no espao hierofnico demarcado. Alis, algumas religies tm normas rituais rgidas, para preservar o espao e o tempo sagrado, evitando sua profanao. Daqui surgem os principais ritos religiosos, como veremos. 2. TIPOLOGIA BSICA DOS RITOS Ritos de iniciao Ritos que do acesso aos contedos e vivncias basilares da religio. No cristianismo, tempo Batismo, Uno crismal e Ceia eucarstica. No judasmo, temos o bar-mitzva (literalmente, filho do mandamento, para garotos de doze anos completos). Nos cultos mistricos do Egito e da Grcia, os ritos de iniciao eram divididos em graus, pelos quais se passava de no-iniciado a iniciado. No cristianismo, essa cadeia ritual rumo condio de iniciado (ou nefito) preservada pelo catecumenato. No candombl o processo de iniciao dura vinte e um dias ritualmente detalhados. Em todas as religies, h ritos de iniciao, com ritmo mistaggico. Mistagogia vem do grego mystagogha = iniciao ou interpretao dos mistrios. uma pedagogia com procedimentos, passos, smbolos e palavras, distribudos em ritos graduais, para que o sujeito passe de no-iniciado a iniciado, de ignorante a conhecedor dos contedos salvadores rememorados em cada etapa do mysterion (mistrio) celebrado. Hoje, instituies que se dizem mistricas (herdeiras dos Templos egpcios e greco-

    viajar no tempo, rompendo a cronologia habitual para chegarmos ao tempo primordial das hierofanias fundantes. No isso que acontece com a Ceia eucarstica dos cristos? Esteja em Roma, Manaus ou nos confins da ndia, quando se realiza o rito memorial todos voltam ao cenculo de Jerusalm, no instante primordial em que o Fundador releu a memria antiga e conferiu-lhe sentido novo. O rito memorial insere no nosso hoje (kronos) o Hoje de Deus (kairs).

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    romanos) como algumas Ordens manicas, teosficas e rosa-cruzes, mantm o esquema progressivo de ritos iniciticos, do menor ao mais algo grau institudo. Ritos de passagem Ritos que celebram passagem ou trnsito de uma situao a outra. Assim, tambm os ritos de iniciao podem ser classificados como ritos de passagem (pois celebram o trnsito de no-iniciado a iniciado). Nas religies, os ritos de passagem mais recorrentes so: 1) Nascimento, quando se celebra a passagem do tero (treva) para o ambiente vital exterior (luz), donde a expresso dar luz. 2) Iniciao, quando se celebra o trnsito de no-iniciado a iniciado: quase sempre, os ritos de iniciao acontecem na puberdade (adolescncia), indicando a passagem da fase infantil para a adulta (ritualmente falando, no h o conceito intermedirio de jovem). 3) Casamento, quando se celebra a passagem do estado solteiro ao conjugal, abrindo possibilidades de procriao regular. 4) Posse dos mistrios, quando se celebra a passagem de adepto a sacerdote (xam, babalorix, paj, pontfice, hierofante): neste caso, h ritos de consagrao ou insero na classe dos sacerdotes. H casos em que a funo sacerdotal se transmite hereditariamente, como os levitas do Judasmo antigo (descendentes de Levi) e os imames do Islam xiita (descendentes de Muhammad atravs do matrimnio de Ftima e Ali). 5) Ritos de Expiao, quando se celebra a passagem de perdido a encontrado, de ilcito a lcito, de pecador a remido. Incluem ofertas, oblaes, banhos, mudana de vestes, esmola, lamento, peregrinao e outros sinais exteriores, que indicam a sincera disposio interior. 6) Morte, quando se celebra a passagem desta vida vida futura. Ritos fnebres (dos mais rudimentares aos mais elaborados) esto presentes em todas as culturas, mesmo as consideradas mais primrias e antigas. H ainda outro tipo de ritos de passagem, que ligados o adepto em geral ao ciclo csmico que o envolve: mudanas de estao, enchentes e estiagens, ciclo solar, ciclo lunar, plantio e colheitas. Estes ciclos sero vivenciados com ritos e divindades apropriados, nas diferentes religies. Ritos de peregrinao Ritos que celebram o retorno ao lugar hierofnico fundante. Muitas religies demarcam um lugar e um tempo prprios para os adeptos retornarem ao espao sagrado original. So as peregrinaes a Meca, plancie de Arafat, Jerusalm, Belm, Medina, Lourdes, Karbala, Varanasi e outras. Geralmente estas peregrinaes tm qualidades purificadoras, perdoando e curando, de modo que o adepto se reintegre na comunidade de culto e na relao com a divindade. Ritos memoriais Ritos que celebram o acesso ao tempo e ao espao do Sagrado, sem que o adepto deixe o lugar e o momento em que de fato se encontra. Neste caso, h ritos especficos que operam uma viagem misteriosa no tempo e no espao dando acesso ao tempo e espao da divindade. Assim, cumpre-se uma peregrinao sem necessidade de deslocamento geogrfico e cronolgico. Na verdade, o rito desloca o adepto no tempo e espao sagrado: a teografia rompe com a geografia; o ciclo litrgico rompe com o ciclo cronolgico. O memorial propicia uma viagem ritual: ao atualizar a memria da hierofania

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    fundante, o adepto ritualmente entra no espao (teografia) e no tempo sagrados (tempo cultual). O rito judaico de Pssah (pscoa) e a Ceia eucarstica so ritos memoriais em senso estrito, celebrados como tal pelas respectivas religies judaica e crist. H tambm muitos outros, desde os ritos mistricos gregos, romanos e egpcios, queles de tradio ioruba (candombl). 3. SMBOLOS E MITOS

    At aqui pudemos entender o dinamismo que gera o espao e o tempo sagrado, a partir das hierofanias fundantes e da manuteno de sua memria. Mas, de onde vm os smbolos e os mitos?

    Os smbolos variados que as religies utilizam provm, a princpio, do cenrio hierofnico: o homo religiosus toma elementos do cenrio em que ocorreu a hierofania; muitas vezes so elementos presentes naquele espao, mas que foram re-significados pela vivncia sagrada. Voltemos ao caso do sonho de Jac: a pedra que lhe serviu de travesseiro j estava l, sem nenhum sentido especial; aps a hierofania, foi ungida e erguida como estela (rocha sagrada erguida na terra, apontando para o cu). A partir desses elementos presentes no espao da hierofania (pedra, cho, gua, fenda no rochedo, rvore, monte, fogo, etc.) surgem outros smbolos, na tentativa de preservar e comunicar a memria da experincia feita. Lembremo-nos de que o registro primeiro da hierofania a memria. Depois este registro ser narrado oralmente e, por fim, fixado em textos sacros. , portanto, compreensvel que os smbolos venham antes dos textos; as figuras, antes das letras; os gestos rituais, antes das doutrinas. Pois tudo isso brota de elementos presentes no espao primitivo, sendo re-significados pelo homo religiosus a partir da hierofania. Ento a pedra se torna altar; o chacal representa Anbis; a caverna passagem para o Hades; os gros colhidos homenageiam Ceres; o abismo abriga o Leviat; o cordeiro imolado se faz Redentor.

    E os mitos? Estes so, na verdade, smbolos narrados como diz Dupr: Podemos dizer que os mitos so smbolos verbalmente desdobrados; ou ento, que o mito a exegese do smbolo. Originalmente, todos os smbolos e hoje em dia todos os smbolos religiosos precisam da interpretao verbal do mito4.

    Logo, os mitos da criao; do nascimento de deuses e semideuses; mitos

    de renovao csmica e outros representativos da condio humana tm carter eminentemente simblico. Ou seja, as narrativas mitolgicas tm caractersticas similares quelas do smbolo:

    4 Podramos decir que los mitos son smbolos verbalmente desarrollados, o bien, que el mito es la exgesis del smbolo. Originalmente todos los smbolos y hoy en da todos los smbolos religiosos precisan de la interpretacin verbal del mito (DUPR, Louis. Simbolismo religioso. Barcelona: Herder, 1999, p.163).Tambm GARCA BAZN, Francisco. Aspectos incomuns do sagrado. So Paulo: Paulus: 2002 p. 14-16.

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    Sintticas: oferecem uma viso de conjunto da humanidade e sua relao com o Sagrado, de modo que cada fragmento da narrativa apela sua totalidade para ser bem compreendido.

    Anteriores conceituao lgica: possuidoras de sentido, as narrativas

    mitolgicas desafiam os conceitos definidores, por sua complexidade intrnseca.

    Autnomas quanto cronologia: pois se vinculam ao tempo sagrado

    distinto do calendrio corrente, remetendo ao instante primordial que est no ncleo dos mitos.

    4. ARQUITETURAS DE CULTO

    Vimos acima que o lugar e o tempo da hierofania so percebidos pelo homo religiosus como lugar e tempo da divindade, distintos da geografia e cronologia habituais. Vimos tambm, que desta percepo que se desenvolve a vria gama de ritos, smbolos e mitos. Entretanto, quando estudamos uma determinada religio, no encontramos tais componentes j classificados e didaticamente dispostos nossa investigao. Fenomenologicamente, as religies so um universo complexo, em que os componentes vistos acima se interceptam e se imbricam, formando arranjos intrincados detentores de sentido, mas sempre desafiadores em sua compreenso. S o olhar fenomnico competente e respeitoso por tal objeto de estudo poder colher, no dilogo com as prprias religies, uma razovel compreenso de seus registros e contedos, distinguindo e associando acertadamente os componentes do arranjo religioso5.

    Uma forma de estudar o complexo religioso, discernindo e ordenando seus

    componentes, a classificao das arquiteturas e morfologias cultuais: Cultos celestes Tambm chamados urnicos (do grego urans = cu). O cu tem conotaes masculinas. Recorda infinito, cobertura e imensido. Sob ele est a terra e as esferas subterrneas. Da observao do cu nascem cultos urnicos dedicados ao Sol, Lua, estrelas e cometas. Aos poucos, a conotao masculina se fixar no Sol, deixando Lua e s estrelas a conotao feminina (caso de Vnus, a estrela divinizada ligada a Marte, seu planeta-esposo). Assim, Lua e estrelas sero personificadas como deusas. Por isso Via Lactea significa literalmente estrada de leite: no apenas os pontos claros lembram gotas de leite esparsas no cu, mas a Lua e algumas constelaes ganharo atributos femininos. Alm do mistrio e do fascnio esttico que emanam, o cu e suas luminares tiveram importante papel em duas experincias vitais para a humanidade: o cultivo do solo, marcado pelos ciclos lunar e solar; e a travessia por terra ou por mar que 5 Cf. ELIADE, Mircea. Tratado de histria das religies. Lisboa: Cosmos; Santos: Martins Fontes, 1977.

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    era feita sob as luzes do campus stelae (campo de estrelas), ou seja, o cu. Nautas e peregrinos se guiavam pela rota do Sol e pelas constelaes, seguindo o rumo das estrelas. Mesmo com o desenvolvimento do sextante e do astrolbio, o campus stelae nunca perdeu seu brilho sagrado, reverenciado como expresso da providncia e conduo divinas para toda sorte de viandantes. Notemos o caso dos magos do Oriente (sacerdotes persas ou astrnomos zoroastristas?) que chegaram a Belm seguindo um meteoro, estrela ou cometa, na intrigante narrativa de Mateus 2,1-12. Cultos solares O sol (hlios em grego) denota poder, luz, majestade e vitria. Sob seus raios tudo de move na terra. Estaes e nascimentos se sucedem, presididos por seu calor. Ele forma um par com a Lua, estabelecendo uma relao entre masculino e feminino. Outras vezes, seu par feminino a Terra (Ceres, Gaia, Pachamama). Da comunicao entre Sol e Terra (matrimnio mtico) nascem as estaes do ano. Tambm as colheitas so celebradas como dom do Sol e da Terra. Surgem deuses que personificam o Sol: R, Mitra, Jpiter e Zeus, Buda Vairocana (no budismo tntrico) e at Jesus, o Sol nascente que nos veio visitar (Lc 1,78). O solstcio e equincio merecero ritos especiais, dos druidas de ontem aos zoroastristas de hoje. Cultos lunares Ditos selnicos (do grego selne = lua). A Lua tem conotaes femininas, de esposa, de dama e de virgem. Seu ciclo est associado procriao, s mars e ao cmbio de estaes do ano, especialmente o devir da primavera. As religies mostram forte solidariedade simblica entre Lua-gua-mulher. Esta solidariedade aparece nas mitologias vegetais e de fecundao. De fato, a cincia admite certa influncia da gravidade lunar sobre as mars, plantaes e at mesmo sobre o ciclo menstrual, em casos de rara sensibilidade. Cultos aquticos Muitas fontes so sagradas, pelo simples fato de servirem vida (e sobrevida, no caso de culturas de deserto). Alm das guas de fontes, rios e lagos, veneram-se as guas subterrneas consideradas misteriosas e ocultas, pois sua fluncia no evidente aos olhos, mas se percebe quando brotam da profundeza da terra. A gua que brota das profundezas, chamada de gua viva. Esta flui serena e constante, sem muito rumor, mas com grande potncia: rompe as pedras, provoca fendas e emerge, silenciosa. A gua viva sacralizada em muitos cultos, entre semitas, gauleses, romanos e ibricos. Ainda hoje, a Caaba (templo em forma de cubo, em Meca, reverenciado pelos muulmanos) tem a seu lado uma fonte de gua viva, chamada estao de Abrao. De modo semelhante, muitas grutas com nascentes so veneradas, entre os cristos. J os iorubs personificam as potncias da gua em orixs femininos (Oxum e Iemanj). H tambm ritos de iniciao, purificao e regenerao, associados gua, como a mikva (banho ritual judaico), o baptisms (banho ritual cristo), a imerso no Ganges (banho ritual hindusta), a imerso em lagos e mares (referidos a Oxum e Iemanj) e as ablues nos momentos de orao, entre os muulmanos. Usa-se a gua para beber ou aspergir objetos e pessoas, em vrias religies. Pois se acredita que a gua tenha uma virtude regenerativa: ela desfaz os elementos, para os recompor (com nova forma) a partir

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    de um arqutipo gerador. Isto sugerido pelo tero materno e est presente nas noes crist, grega e karaj de gerao e regenerao a partir da gua (hidrogenia). Pedras sagradas Rochas e pedras se incluem em muitas hierofanias. Jac ergueu e ungiu uma pedra. O mesmo fez Abrao, no curso de seu peregrinar: a cada parada, erguia um altar de pedra como betel (morada da divindade). Muitos templos esto erguidos sobre rochedos milenares, na Amrica, na Europa, na regio mediterrnea e no Oriente. Algumas rochas so reverenciadas, como a pedra negra da Caaba (provavelmente um meteorito). Outras remetem profundidade obscura do Mistrio, localizadas em grutas e cavernas. Neste caso, h o que podemos chamar de criptofanias: hierofanias localizadas em cavernas ou crateras, indicando espaos habitados por divindades oriundas das profundezas. O deus Mitra, por exemplo cultuado antes de Cristo, na ndia chegou antiga Roma e foi associado a cavernas subterrneas. Ele teria nascido de uma rocha, tocada pelo sol, caracterizando-o como divindade jovem, forte e vitoriosa. Para manter em movimento o ciclo do Sol, o deus Mitra sacrificava um touro (prtica da tauromaquia), indicando provavelmente a constelao do mesmo nome. Como o ciclo solar determina as estaes e estas, as colheitas, Mitra era festejado em ceias com po e vinho, resultado dos trigais e vinhedos. Seu culto se localizava em recintos subterrneos chamados hipogeus (do grego hypo = sub, geos = terra)6. Semelhante ao Vulcano greco-romano, os iorubs do Brasil cultuam Ogum, representante da fora do ferro e da forja dos metais. Xang, por sua vez, personifica o magnetismo e o raio poderoso. Cultos da Terra Tambm chamados telricos (do latim telus = terra). Ligados aos segredos e propriedades do solo, esto os cultos da terra. No se trata da terra enquanto barro, mas da terra enquanto elemento germinativo: hmus e fecundidade. O germinar das sementes no solo fascina e sinaliza a potncia misteriosa que a terra esconde. Todas as colheitas so celebradas por causa disso! Ritos de colheita (com oferta das primcias) acontecem em vrias culturas, na Europa, Amrica, regio mediterrnea e Oriente. A terra personificada como Ceres, Gaia, Pachamama. Dela nasce o ser terroso (humus, homo, adam = ser humano). Dela provm os frutos, as sementes, os bulbos, as razes alimentcias, e toda sorte de plantas que nutrem e curam. A terra me, tero, fecundidade. A ela se associam cultos de estaes, semeadura, cultivo e colheitas. Aos poucos, 6 H hipogeus em Roma, entre os quais o belssimo mitreu (Templo de Mitra) sob a igreja de So Clemente, nas proximidades do Coliseu. Ali, pode-se admirar o recinto principal com a ara (altar), na qual se v, em relevo, o deus sacrificando o touro. H tambm ante-salas com fonte e crrego, para iniciao de nefitos e para a ceia mitraica. Outro exemplo de sacralidade subterrnea o costume paleocristo de sepultar os mortos em catacumbas escavadas na pedra tufa (Roma), ou no espao de aquedutos subterrneos em desuso (Siracusa). Os primeiros cristos acreditavam que dali iriam ressuscitar, to logo o Kyrios retornasse em sua glria. Por motivos semelhantes, em catedrais e mosteiros frequenta-se a Cripta como lugar sagrado, sepultando ali os mrtires, bispos e abades.

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    a terra se torna deusa da fecundidade, em casamento sagrado (hierogamos) com o Sol ou o Cu em geral. Vegetao Culto vinculado queles do cu, da terra e das guas (vistos acima). Nas religies encontramos gros, rvores e outras plantas sagradas usadas em refeies rituais e cultos de cura. Na tradio judaico-crist comum a presena da uva, do trigo e da oliva donde derivam elementos sacramentais muito importantes. Verificamos crena similar em outras tradies, que tambm cultuam a vegetao e o ciclo das estaes. O caso de rvores sagradas interessante: geralmente, as rvores sagradas so cultuadas por sua funo teraputica (folhas e razes curadoras), mas tambm por simbolizarem o microcosmo. A rvore da vida (Gnesis) ser associada rvore da cruz que cura a humanidade ferida pelo pecado. Temos, ainda, a rvore mstica da Cabala judaica: invertida, ela tem no cu suas razes, e na terra seus ramos e frutos. Pois est enraizada no Infinito divino (Ein-sof) e derrama seus frutos entre os homens, estabelecendo no mundo terreno o seu reinado (Malkut). Nesse caso, de cima abaixo, a rvore mstica (invertida) mostra dez galhos frondosos correspondentes aos dez Nomes secretos de IHWH (o Nome impronuncivel de Adonai). Na tradio africana ioruba, h um orix especfico para rvores e florestas, Ossaim. Na Antiguidade, a divindade Asher, em Ugarit (Oriente Mdio), era identificada por uma rvore, ao lado da qual se erguiam altares. Agricultura e fertilidade Os cultos de agricultura e fertilidade se vinculam queles da terra e da vegetao. H deusas da fertilidade que so tambm deusas agrcolas: Yakshini (civilizao pr-ariana da ndia), Ceres (Grcia, de onde deriva a palavra cereal para os gros), Siduri (mesopotmica, presente na mitologia de Ghilgamesh), Demter (correspondente grega da deusa Ceres). Alm dos gros sagrados entre gregos e romanos h divindades relacionadas uva e aos vinhedos, como Baco e Dionsio. Na religio ioruba, temos Oxossi e Ossaim, que personificam a vitalidade, nutrio e cura contidas nos vegetais. O centro do mundo Nas tradies religiosas mais seculares encontram-se lugares hierofnicos altamente significativos, de importncia fontal para determinadas crenas. Esses lugares so vistos como materializao das narrativas mitolgicas, sendo identificados com pontos importantes da geografia sagrada. Outras vezes, so significativos porque ali ocorreram experincias fundadoras de sentido para aquela determinada religio. Por tais fatores, alguns desses lugares so considerados centros do mundo (axis mundi), tambm chamados de mphalos (literalmente umbigo do mundo). Assim, o mtico jardim do den considerado centro do mundo pela antiga tradio judaica, que o localiza nas proximidades de Jerusalm. Segundo a crena tradicional, quando o Messias vier, revelar o lugar exato do den, onde Ado estaria sepultado. Por isso, judeo-cristos primitivos passaram adiante a idia de que o axis mundi estaria no Jardim das Oliveiras, mais precisamente no local do Santo Sepulcro, onde o corpo do Messias foi depositado e de onde ressuscitou, assumindo a figura de Jardineiro o novo Ado que regenera o jardim que o velho Ado perdeu. o que lemos no Evangelho de Joo, quando Maria Madalena identifica o Messias

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    ressuscitado com o jardineiro (cf. Jo 20,11-18). Na cosmologia hindusta o umbigo do mundo o monte mtico Meru geralmente identificado com o Himalaia. Os muulmanos, por sua vez, atribuem tal centralidade csmica Caaba, na cidade santa de Meca. Para a Cabala judaica o centro do mundo a rocha do monte Mori, sobre a qual se assenta o Templo de Jerusalm com o antigo depositrio da Arca da Aliana (talvez o local onde hoje se encontra a Cpula do Rochedo). De modo similar, antigos mapas de peregrinao usados por cristos medievais, desenhavam Jerusalm no centro da Terra, na qualidade de axis mundi (eixo do mundo). Antigos cultos celtas e nrdicos assinalam o centro do mundo com dolmens e monumentos solares (possvel explicao para as runas de Stonehenge?). H tambm casos de montanhas (Kilimandjaro). Outras tradies religiosas constroem templos na forma de montanha, reproduzindo o lugar mtico do axis mundi (caso do templo indiano de Barabudur). H tambm o smbolo do daedalus (labirinto), com desenhos circulares ou geomtricos, encontrados na ndia, Irlanda, Gr-Bretanha, Galcia espanhola e cidades francesas. Labirintos sagrados esto gravados no piso das catedrais de Chartres, Reims, Amiens e na baslica de Saint-Quentin (todas estas na Frana). Simbolizam a viagem do homo religiosus ao centro do mundo, compreendido como um trajeto simblico atravs do qual a pessoa purificada do pecado. Vai-se pelos traos escuros e volta-se pelos traos brancos. No centro estaria Deus ou a renovao espiritual do prprio caminhante, tocado pela potncia regeneradora do Divino. Na Idade Mdia, cristos impossibilitados de irem fisicamente ao Santo Sepulcro trilhavam o labirinto em atitude de peregrinao mstica a Jerusalm. A irradiao arquetpica do trajeto to potente, que assistimos ao ressurgimento da espiritualidade do labirinto entre cristos (e no cristos) em vrias cidades da Europa e Amrica do Norte, incrementando aquela antiga prtica com viglias e lucernrios.

    Concluso

    O trajeto da hierofania at a ritualidade bastante complexo, em virtude dos elementos histricos e etnoculturais envolvidos. E isto nos parece ainda mais intrigante, quando percebemos que os processos simblicos e hermenuticos deste trajeto continuam em curso ainda em nossos dias.

    No passado, as hierofanias estabeleceram medies do tempo, levaram observao estelar e marcaram territrio com uma rede de lugares sagrados. Foi uma primeira forma de a humanidade mapear sua condio na Terra, usando parmetros ecolgico-simblicos para gerir sua existncia cronolgica e dramtica. Por mais devaneio que o mito encerre, o homo religiosus se manteve vinculado ao cho (o campus sanctus onde repousam os ancestrais) e ao cu (o campus stellae que o conduz nas travessias).

    Hoje observamos a terra e o cu com instrumentos cientficos e outros

    parmetros de mapeamento. Mas continuamos a memorar os ancestrais (senso da Histria), com o desejo de navegar sempre mais longe (apelo de transcendncia). Isto visvel nas novas edies da mitologia que circulam na

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    fico literria e cinematogrfica, alm dos ensaios cientficos em que Fsica e Espiritualidade se aproximam.

    Diante disto, estudar a herana religiosa ancestral algo mais que visitar um museu cheio de peas arqueolgicas. Apesar da distncia temporal em relao a certos elementos do passado, o fenmeno religioso se desdobra, se complica, se ajusta e persiste na Histria atual, fazendo-nos perceber o homo religiosus que habita as cidades, volta ao campo para descansar e se projeta atravs de diferentes mdias de comunicao, porque deseja transcender os limites cotidianos.

    Investigando velhas narrativas, descobrimos (com estranheza e encanto)

    que este sujeito urbano e moderno continua parecido com Abrao, Arjuna e Zoroastro. Todos gostaramos de encontrar um centro, um axis mundi, para organizar o caos semanal. Todos queremos um tempo de cio que nos permita ver estrelas e ouvir o vento, longe dos compromissos agendados.

    Alm disso, as novas tecnologias de comunicao agilizaram nossa

    insero no mundo, nos conectando rapidamente com outras pessoas e encurtando as distncias. Vivemos num planeta digital. Porm, o que parecia ser, na opinio de alguns, o fim da religio, provocou uma nova busca de sentido com outros lugares, meios e interlocutores mas com antigas questes: Qual nosso endereo no mundo? Qual a finalidade da existncia? Como abordar o problema do mal? A realidade se restringe ao evidente, ou vai alm?

    Os ensaios de resposta nos vm da Filosofia, das Artes, das Cincias e da

    tica, sem cancelar ou suprimir a experincia religiosa (no sentido originrio de religio-relegere). Na procura por nosso endereo transcendente, nomeamos os deuses, erguemos novas estelas e relemos antigos mitos. Somos hermeneutas do Sagrado e interlocutores da revelao divina, acessando diferentes cdigos, hoje disponibilizados na grande rede miditica que nos envolve.

    Alguns se inquietam porque o acesso informao, o aceleramento da noo de tempo e as conquistas cientficas expem a religio, no mais protegida pelas cosmovises mticas nem pelo controle da autoridade sagrada. Se isto causa crises, de um lado, abre possibilidades, de outro. A humanidade tem a chance de reler seus Livros sagrados, confrontar cdigos diferentes e perceber convergncias que apontam para valores universais e duradouros.

    O cuidado com o meio-ambiente, a afirmao da dignidade humana e a

    proposta de uma tica global no solicitam tambm da religio (e do homo religiosus) uma contribuio responsvel? No somos herdeiros de um patrimnio ancestral que soube responder busca humana de sentido, ao longo dos sculos? Acaso o progresso funcional poder satisfazer a busca humana do Bem e da Beleza?

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    tambm nesta direo que entendemos o estudo da religio, sem esquecer os valores intrnsecos da experincia espiritual. No ser necessrio deixar de ser msticos para sermos cientficos, quando entendemos que a prpria religio nos qualifica como colaboradores num projeto de humanidade integral, em parceria com a tica, as Artes e a Ecologia.

    Ateno! Proibida a comercializao deste texto, bem como seu uso impresso indiscriminado, pois parte de

    obra a ser publicada em breve, nos termos da Legislao de Direitos Autorais.

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    Anexo didtico: Narrativas hierofnicas

    a) Transfigurao de Krishna Diz Arjuna: Se, pois, me julgares capaz de te contemplar em teu supremo esplendor, Onipotente, mostra-me a tua face e revela-me o teu excelso Eu csmico. Fala Krishna: Contempla, pois, filho da terra, a mim como o Uno nas formas mltiplas, centenas e milhares de cores e figuras, numerosas como as estrelas do cu. Contempla as entidades celestes, os espritos e anjos, os demnios, foras csmicas que sobrem e descem e se desdobram em fascinantes deslumbramentos. Contempla, como um Todo harmonioso, o Universo inteiro na epopia das suas formas. Tudo isso meu corpo, e eu sou o seu esprito. Seja o que for, tudo est em mim. Mas com os olhos do corpo no podes contemplar o meu divino Ser; pelo que te abrirei o olho do esprito. Contempla, agora, a minha natureza mstica! Comenta Sanjaya: Depois de ter assim falado, o Senhor dos mundos se revelou ao filho da terra em sua prpria Forma Csmica, como soberano que abrange o Universo total. Em aspectos vrios, em mltiplos graus de conscincia, glorioso, pluriforme, revestido de todos os esplendores celestes, pervadido de todas as energias do cosmos. Detentor da natureza divina, guarnecido de todos os ornamentos do cu, envolto em perfumes; um ser maravilhoso, onividente, repleto de luz e de amor. Se mil sis surgissem no horizonte, a luz deles no seria comparvel ao fulgor que o olho espiritual de Arjuna contemplou. O que o filho de Pandu contemplava era o Universo Integral mvel e imvel uno em seu ser e mltiplo em seu existir, suprema harmonia de corpo e esprito. Atravessado de espanto e delcia, Arjuna caiu por terra, baixou a cabea em adorao perante o Deus da revelao csmica e, de mos postas, assim falou: Diz Arjuna: Deus! Em teu corpo csmico vejo todos os deuses e todos os seres em vrios estgios de evoluo; vejo Brahman, o criador, vejo os excelsos sbios e os espritos de fogo. Cheios de braos e de seios sem conta para nutrirem o mundo inteiro; vejo-te tambm munido de muitos olhos. Em ti no distingo princpio, meio ou fim. Vejo-te com coroa, clava e escudo, mas nada diviso nitidamente, porque o oceano dos teus esplendores, que desfecham raios para todos os lados, ofusca-me a viso. Tu s o Uno, a meta suprema do conhecimento e o corao do Universo; o guardio da Lei imperecvel; o eterno fundamento de tudo quanto existe. Sem princpio, sem meio e sem fim, eterno em teu poder e teu agir; o sol e a lua so teus olhos; a tua face como um fogo coruscante. Enches de luz os espaos csmicos e teu amor acalenta o mundo, porquanto os cus e as regies do espao esto cheios da tua glria! Se te mostras em tua forma terrfica, tremem os trs mundos, fogem os deuses e as turbas dos rishis clamam, de mos

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    postas: Faa-se a tua vontade, Poderoso, e estabelea-se a paz!. Todos te glorificam, Santo [em todas as hierarquias e entidades do mundo invisvel]: Adityas, Rudras, Vasus, Sayas, Ashvins, Maruts, Ushampas, a multido dos Gandharvas, dos Yakshas, dos Asuras e dos Siddhas. Em grande nmero te rodeiam e, estupefatos em face da tua forma que abrange o cosmos, os mundos contemplam a tua majestade, com temor e tremor e dentro de mim, me treme o corao. Vejo o teu Ser expandir-se pelo cu acima, radiando em inmeras cores flamejantes. Aterram-me, Vishnu, a tua boca aberta e teus olhos de fogo. Esvaem-se minha coragem e minha paz... Incndios csmicos irrompem da tua garganta (desmaio de pavor!): tem piedade de mim, Senhor dos mundos! Os filhos de Ditarashtra, juntamente aos exrcitos dos reis e dos heris, Bhishma, Drona, Suta e Karma, com o cortejo dos nossos guerreiros: todos eles somem na terrvel garganta, nesse abismo eriado de dentes (ai, quantos vejo dilacerados, suspensos por entre esses dentes pontiagudos!). Quais torrentes em veloz corrida para o mar, assim vejo a flor dos nossos heris precipitarem-se, irresistveis, em tua garganta faminta de fogo. Como as mariposas alucinadas pela luz encontram a morte sbita na chama, assim vo esses mundos, sem cessar, ao encontro da destruio... Deglutindo, com teus lbios de fogo, devoras todos os mortais; tua luz pervade os mundos, Senhor, e teus raios aniquilam todos os povos [sendo tua forma ao mesmo tempo Vishnu-criador e Shiva-devorador]. Quem s tu nessa forma terrfica? Curvo-me diante de ti. De todo o corao suspiro por conhecer-te, mas no compreendo a tua revelao.

    (Bhagavad-Gita Captulo 11,4-31)

    b) Teofania no Nome divino Moiss apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madi. Conduziu as ovelhas para alm do deserto e chegou ao Horeb [outro nome da montanha do Sinai]. O Anjo de IHWH (Adonai) lhe apareceu numa chama de fogo, no meio de uma sara. Moiss olhou, e eis que a sara ardia no fogo, e a sara no se consumia. Ento disse Moiss: Darei uma volta e verei este fenmeno maravilhoso; verei porque a sara no se consome. Viu IHWH (Adonai) que ele deu uma volta para ver. E Deus o chamou do meio da sara. Disse: Moiss, Moiss! Este respondeu: Eis-me aqui. Ele disse: No te aproximes daqui. Tira as sandlias dos ps porque o lugar em que ests uma terra santa. Disse: Eu sou o Deus dos teus pais, o Deus de Abro, o Deus de Isaac e o Deus de Jac. Ento Moiss cobriu o rosto, porque temia olhar para Deus. IHWH (Adonai) disse: Eu vi; eu vi a misria do meu povo que est no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheo as suas angstias. Por isso desci a fim de libert-lo da mo dos egpcios, e para faz-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o grito dos israelitas chegou at mim, e tambm vejo a opresso com que os egpcios os esto oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Fara, para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas. Ento disse Moiss: Quem sou eu para ir a Fara e fazer sair do

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    Egito os israelitas? Deus disse: Eu estarei contigo; e este ser o sinal de que eu te enviei: quando fizeres o povo sair do Egito, vs servireis a Deus nesta montanha. Moiss disse a Deus: Quando eu for aos israelitas e disser: O Deus de vossos pais me enviou at vs, e me perguntarem: Qual o seu Nome? que direi?. Disse Deus a Moiss: Eu sou aquele que . Disse mais: Assim dirs aos israelitas: Eu Sou me enviou at vs. Disse ainda Deus a Moiss: Assim dirs aos israelitas: IHWH, o Deus de vossos pais, o Deus de Abrao, o Deus de Isaac e o Deus de Jac, me enviou at vs. o meu nome para sempre, e assim que me invocaro de gerao em gerao.

    (Torah, Livro de Shemot xodo 3,1-15)

    c) O sonho do Jac Jac deixou Beersheba e partiu para Har. Coincidiu de ele chegar a certo lugar e nele passar a noite, pois o sol havia-se posto. Tomou uma das pedras do lugar, colocou-a sob a cabea e dormiu nesse lugar. Teve um sonho: Eis que uma escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o cu; e anjos de Deus subiam e desciam por ela! Eis que IHWH (Adonai) estava de p diante dele e lhe disse: Eu sou IHWH, o Deus de Abrao, teu pai, e o Deus de Isaac. A terra sobre a qual dormiste, eu a dou a ti e tua descendncia. Tua descendncia se tornar numerosa como a poeira do solo; estender-te-s para o Ocidente e o Oriente, para o norte e o sul, e todos os cls da terra sero abenoados por ti e por tua descendncia. Eu estou contigo e te guardarei em todo lugar aonde fores, e te reconduzirei a esta terra, porque no te abandonarei enquanto no tiver realizado o que te prometi. Jac acordou de seu sonho e disse: Na verdade IHWH est neste lugar e eu no o sabia!. Teve medo e disse: Este lugar terrvel! No nada menos que uma casa de Deus e a porta do cu!. Levantando-se de madrugada, tomou a pedra que lhe servira de travesseiro, ergueu-a como uma estela e derramou leo sobre o seu topo. A este lugar deu o nome de Bet-El [Casa de Deus], mas anteriormente a cidade se chamava Luza. Ento Jac fez este voto: Se Deus estiver comigo e me guardar no caminho por onde eu for, se me der po para comer e roupas para me vestir, se eu voltar so e salvo para a casa de meu pai, ento IHWH ser meu Deus e esta pedra que ergui como uma estela ser uma Casa de Deus, e de tudo o que me deres eu te pagarei fielmente o dzimo.

    (Torah, Livro de Bereshit Gnesis 28,10-22)

    d) Transfigurao de Jesus [...] Tomando consigo a Pedro, Joo e Tiago, ele subiu montanha par orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura. E eis que dois homens conversavam com ele: eram Moiss e Elias que, aparecendo envoltos em glria, falavam de seu xodo que se

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    consumaria em Jerusalm. Pedro e os companheiros estavam pesados de sono. Ao despertarem, viram sua glria e os dois homens que estavam com ele. E quando estes iam se afastando, Pedro disse a Jesus: Mestre, bom estarmos aqui; faamos, pois, trs tendas, uma para ti, outra para Moiss e outra para Elias mas sem saber o que dizia. Ainda falava, quando uma nuvem desceu e os cobriu com sua sombra; e ao entrarem eles na nuvem, os discpulos se atemorizaram. Da nuvem, porm, veio uma voz dizendo: Este o meu Filho, o Eleito; ouvi-o. Ao ressoar essa voz, Jesus ficou sozinho. Os discpulos mantiveram silncio e, naqueles dias, a ningum contaram coisa alguma do que tinham visto.

    (Evangelho Lc 9,28-36)

    e) A viagem noturna de Muhammad Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o seu servo [Muhammad], tirando-o da sagrada mesquita [em Meca] e levando-o mesquita de Al-Aksa [em Jerusalm], cujo recinto bendizemos, para mostrar-lhe alguns dos nossos sinais. Sabei que ele o Oniouvinte, o Onividente. E temos revelado esta Rcita (al-Quran) veraz: em verdade, a revelamos e no te enviamos seno como admoestador alvissareiro. uma Rcita (al-Quran) que dividimos em partes, para que a recites paulatinamente aos humanos, e que revelamos por etapas. Dize-lhes: Quer creiais nela ou no, sabei que aqueles que receberam o conhecimento, antes dela, quando lhes recitada, caem de bruos, em prostrao. E dizem: Glorificado seja o nosso Senhor, porque sua promessa foi cumprida!. Dize-lhes tambm: Quer invoqueis a Deus, quer invoqueis o Clemente, sabei que dele so os mais sublimes atributos! (Sura 17,1.105-110). [...] inconcebvel que Deus fale diretamente ao homem, a no ser por revelaes, ou veladamente, ou por meio de um mensageiro, mediante o qual revela, com o seu beneplcito, o que Lhe apraz; sabei que ele Prudente e Altssimo (Sura 42,51). [...] Isso [a palavra divina do Alcoro] no seno a inspirao que lhe foi revelada, que lhe transmitiu o fortssimo [anjo Gabriel], o sensato, quando estava na parte mais alta do horizonte. Ento, aproximou-se dele estreitamente, at a uma distncia de dois arcos de atirar setas, ou menos ainda. E revelou ao seu servo [Muhammad] o que Deus havia revelado. O corao do mensageiro no mentiu, acerca do que viu! Disputareis, acaso, sobre o que ele viu? Realmente o viu, numa segunda descida [durante a viagem noturna], junto ao limite da rvore de ltus [no limiar do recinto divino], junto qual est o jardim da morada eterna. Quando a rvore de ltus foi envolvida [na inefvel manifestao] ele no desviou o olhar, nem transgrediu. Em verdade, presenciou os maiores sinais do seu Senhor (Sura 53,7-18).

    (Al-Quran Suras 17,1.105-110; 42,51; 53,7-18)

  • 21

    f) A dana de Ossaim Houve um tempo em que os deuses no atendiam mais aos pedidos dos homens. Tudo o que era pedido saa s avessas. Os homens, ento, organizaram festas para os orixs. Cada semana um orix era homenageado. Assim andavam as coisas quando um babala [alto sacerdote] advertiu: Ns teremos uma surpresa vinda do mundo dos orixs. Certa noite, quando estavam homenageando Ossaim [orix da flora e das ervas que curam], a festa foi interrompida pela chegada de um homem estranho, de traje e modos nobres, montado num antlope. Os homens no o reconheceram, mas o receberam muito bem, pois parecia ser algum importante apesar de ter uma perna s. Os sacerdotes mostraram-lhe todo o lugar e constaram-lhe seus problemas em relao aos deuses. A festa comeou muito animada e o estranho homem era o que mais danava. Ele parecia nunca se cansar. Quando ele j havia danado toda a noite e todos j estavam exaustos, a montaria do homem falou: Vamos, j est na hora de voltarmos. Ele foi embora e todos ficaram admirados de ver um antlope falar. Os homens, ento, descobriram que aquele homem que viera danar era Ossaim. Ossaim gosta de passar despercebido. Ossaim tambm gosta de fazer surpresas. Ele viera danar com os homens e quem sabe levaria os seus pedidos aos outros orixs

    (Tradio iorub Mitologia de orix)

    g) Os nascidos de Iemanj Iemanj vivia sozinha no Orum [os altos cus]. Ali ela vivia, dormia e se alimentava. Um dia Olodumar [grande orix da criao] decidiu que Iemanj precisava ter uma famlia, ter com quem comer, conversar, brincar, viver. Ento o estmago de Iemanj cresceu e cresceu e dele nasceram todas as estrelas. Mas as estrelas foram se fixar na distante abbada celeste. Iemanj continuava solitria. Ento da sua barriga crescida nasceram as nuvens. Mas as nuvens perambulavam pelo cu at se precipitarem em chuva sobre a terra. Iemanj [a gua nos altos cus] continuava solitria. De seu estmago nasceram ento os orixs. Nasceram o Raio com Trovo (Xang), a Tempestade (Oy), o Fogo (Ogum), a Flora (Ossaim), o Barro (Obaluai) e as Foras Duais da natureza (Ibejis). Eles fizeram companhia a Iemanj.

    (Tradio iorub Mitologia de orix)