2 humor, crítica e-ou ironia nas tiras de bill watterson- dlbs-bauru-2009

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Trabalho apresentado no II Seminário Lecotec de Comunicação e Ciencia-LECOMCIÊNCIA, na UNESP- Bauru/SP, no período de 09 a 11 novembro de 2009. 1 HUMOR, CRÍTICA E/OU IRONIA NAS TIRAS DE BILL WATTERSON? Diva Lea Batista da SILVA (FEMA-IMESA, Assis/SP) 1 RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo mostrar o humor visto em tiras em quadrinhos, de Bill Watterson, e quais mecanismos linguísticos são utilizados nelas, levando em conta as considerações sobre o tema, dadas por Bergson, Freud, Gil, Possenti, Propp, Travaglia, entre outros. Por meio da leitura e análise de algumas tiras, foram levantados quais indícios presentes nelas podiam caracterizar e interpretar esses textos como humorísticos, irônicos ou críticos. Para isso, foram focalizados diversos aspectos, tanto nos textos verbais como nas imagens, de diferentes tiras, tais como: elementos importantes para a caracterização de uma piada, a importância da brevidade das piadas, os mecanismos semânticos e linguísticos do humor, a bissociação (Bergson) a repetição dos fatos linguísticos, a ironia, o papel da intertextualidade etc. Neste trabalho, uma tira em quadrinhos é considerada um todo coerente, com estruturação lógica (imagem e texto), dotada de propriedades que podem relacioná-la inteiramente com o riso ou não, tomada por nós, em situação interativa, com função comunicativa definida: diversão, crítica, uso moralista etc. Esses textos constituíram também dados pertinentes e interessantes para evidenciar os mecanismos de funcionamento da língua. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos. Humor. Crítica. Ironia. Texto verbal e não- verbal. 1. Considerações iniciais Pretendemos destacar neste estudo interessantes aspectos da comunicação verbo-visual utilizados na apresentação de algumas histórias em quadrinhos (HQs) de Bill Watterson (2006, 2004, 2003), relacionadas com o humor, a crítica e a ironia, baseados em Bergson (1980), Freud (1969), Gil (1991), Possenti (1991), Propp (1992), Travaglia (1991), entre outros. As histórias em quadrinhos, uma vez enfocadas por meio dessas teorias, procuram retratar as aspirações, os pensamentos, os mitos e a estética de Bill Watterson que as produzia, e pretendem confirmar a composição de uma imagem mais representativa da cultura segundo Calvino e Hobbes, filósofos. Considerando as histórias em quadrinhos como um produto de tendências universais, mas com raízes populares, o objetivo principal deste trabalho foi levantar quais indícios presentes nelas podiam caracterizar e interpretar esses textos como humorísticos, irônicos ou críticos. Esclarecemos que as tiras retiradas de sites da internet são de Portugal, por isso certas palavras poderão ser estranhas a algum leitor. 1 Mestrado e Doutorado em Filologia e Linguística Portuguesa pela UNESP, Assis-SP; professora nos cursos de graduação de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, e Administração, do IMESA-FEMA, em Assis/SP. E-mail: [email protected]

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Este trabalho tem como objetivo mostrar o humor visto em tiras em quadrinhos, de Bill Watterson, e quais mecanismos linguísticos são utilizados nelas, levando em conta as considerações sobre o tema, dadas por Bergson, Freud, Gil, Possenti, Propp, Travaglia, entre outros. Por meio da leitura e análise de algumas tiras, foram levantados quais indícios presentes nelas podiam caracterizar e interpretar esses textos como humorísticos, irônicos ou críticos. Para isso, foram focalizados diversos aspectos, tanto nos textos verbais como nas imagens, de diferentes tiras, tais como: elementos importantes para a caracterização de uma piada, a importância da brevidade das piadas, os mecanismos semânticos e linguísticos do humor, a bissociação (Bergson), a repetição dos fatos linguísticos, a ironia, o papel da intertextualidade etc.

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Trabalho apresentado no II Seminário Lecotec de Comunicação e Ciencia-LECOMCIÊNCIA, na UNESP-Bauru/SP, no período de 09 a 11 novembro de 2009.

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HUMOR, CRÍTICA E/OU IRONIA NAS TIRAS DE BILL WATTERSON?

Diva Lea Batista da SILVA (FEMA-IMESA, Assis/SP)1

RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo mostrar o humor visto em tiras em quadrinhos, de Bill Watterson, e quais mecanismos linguísticos são utilizados nelas, levando em conta as considerações sobre o tema, dadas por Bergson, Freud, Gil, Possenti, Propp, Travaglia, entre outros. Por meio da leitura e análise de algumas tiras, foram levantados quais indícios presentes nelas podiam caracterizar e interpretar esses textos como humorísticos, irônicos ou críticos. Para isso, foram focalizados diversos aspectos, tanto nos textos verbais como nas imagens, de diferentes tiras, tais como: elementos importantes para a caracterização de uma piada, a importância da brevidade das piadas, os mecanismos semânticos e linguísticos do humor, a bissociação (Bergson) a repetição dos fatos linguísticos, a ironia, o papel da intertextualidade etc. Neste trabalho, uma tira em quadrinhos é considerada um todo coerente, com estruturação lógica (imagem e texto), dotada de propriedades que podem relacioná-la inteiramente com o riso ou não, tomada por nós, em situação interativa, com função comunicativa definida: diversão, crítica, uso moralista etc. Esses textos constituíram também dados pertinentes e interessantes para evidenciar os mecanismos de funcionamento da língua. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos. Humor. Crítica. Ironia. Texto verbal e não-verbal. 1. Considerações iniciais

Pretendemos destacar neste estudo interessantes aspectos da comunicação verbo-visual

utilizados na apresentação de algumas histórias em quadrinhos (HQs) de Bill Watterson

(2006, 2004, 2003), relacionadas com o humor, a crítica e a ironia, baseados em Bergson

(1980), Freud (1969), Gil (1991), Possenti (1991), Propp (1992), Travaglia (1991), entre

outros.

As histórias em quadrinhos, uma vez enfocadas por meio dessas teorias, procuram

retratar as aspirações, os pensamentos, os mitos e a estética de Bill Watterson que as produzia,

e pretendem confirmar a composição de uma imagem mais representativa da cultura segundo

Calvino e Hobbes, filósofos.

Considerando as histórias em quadrinhos como um produto de tendências universais,

mas com raízes populares, o objetivo principal deste trabalho foi levantar quais indícios

presentes nelas podiam caracterizar e interpretar esses textos como humorísticos, irônicos ou

críticos. Esclarecemos que as tiras retiradas de sites da internet são de Portugal, por isso certas

palavras poderão ser estranhas a algum leitor.

1 Mestrado e Doutorado em Filologia e Linguística Portuguesa pela UNESP, Assis-SP; professora nos cursos de graduação de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, e Administração, do IMESA-FEMA, em Assis/SP. E-mail: [email protected]

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A fim de poder responder à questão colocada no título deste trabalho, trataremos nas

partes a seguir sobre o que entendemos por humor, crítica e ironia.

2. Humor, ironia e crítica em Watterson

Nesta parte, a partir da etimologia das palavras humor, crítica e ironia, e de bases

teóricas, filosóficas, educacionais, foram localizados diversos aspectos, tanto nos textos

verbais, como nos imagéticos de diferentes tiras, tais como elementos importantes para a

caracterização de uma piada, a importância da brevidade das piadas, os mecanismos

semânticos e linguísticos do humor, a bissociação (Bergson), a repetição dos fatos

linguísticos, a ironia, o papel da intertextualidade etc.

No dicionário de Houaiss (2001, p. 1555), o vocábulo humor se origina do latim humor,

oris, “líquido, fluido, serosidade do corpo, linfa”. Temos na acepção 1. HIST. MED. “líquido

secretado pelo corpo e que era tido com um determinante das condições físicas e mentais do

indivíduo”; na acepção 3. “MED. estado afetivo durável que depende da constituição

psicofisiológica do organismo como um todo, constituindo pano de fundo sobre o qual

diferentes conteúdos psíquicos tomam uma tonalidade afetiva, por exemplo, de irritabilidade,

impassibilidade, tristeza, etc., que ultrapassa sua ação imediata; 5. p.ext. comicidade em geral;

graça, jocosidade; 7. p.met. faculdade de perceber ou expressar tal comicidade.“.

Nesse sentido, o humor é algo que deve fluir no indivíduo; suas reações devem ser

naturais e expressas por meio de seu corpo (face, lábios, braços, voz, etc.), por reações

comportamentais e emocionais, bem como nas formas de pensamento, sentimento e espírito.

(Lefcourt e Martin, 1986, in: WOOD JR.; CALDAS, 2005)

O uso cotidiano da palavra humor, em português, refere-se à graça e à disposição de

perceber, apreciar ou expressar o que é cômico ou divertido. De acordo com Eco (1986), o

cômico é a percepção do oposto e o humor é o sentimento associado a esse processo.

Após essas considerações teóricas, temos de levar em conta outras sobre o humor, já

levantadas em Silva (2000, p. 78-89):

a) o humor, segundo Freud (1969), pode ser uma caracterização de realização catártica,

liberando uma série de desejos, anseios, com sensações de boas surpresas e embaraços

conforme a situação;

b) o humor, segundo Travaglia (1990) é uma espécie de denúncia, forma de se conservar

o equilíbrio social e psicológico, meio de se revelar outros modos de ver o mundo e a

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realidade que nos rodeia e, assim, de desarmar falsas estabilidades. Exemplo (WATTERSON,

2006, p. 157):

Disponível em:www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

c) Volkelt, segundo Propp (1992, p.21), apresenta uma comicidade “grosseira” relacionada

com o corpo humano e com as tendências naturais: o suor, a defecação, a eructação, a

flatulência, a sexualidade. É o que se chama de “cômico-baixo”. Propp, porém, destaca a

impossibilidade de subdividir o cômico em fino e grosseiro; ele reúne os dois conceitos numa

só denominação, pois diferentes aspectos de comicidade levam a diferentes tipos de riso.

Apontaremos exemplos de outras tiras, pois não encontramos nas obras realizadas essas

características apresentadas por Propp. Até o momento do término deste trabalho, só achamos

uma tira com essas características (muco nasal), por isso incluímos exemplos de outros

autores de HQs, além de Watterson.

c.1. muco nasal (“ranho”)

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c.2 flatulência:

c.3. eructação:

d) Possenti (1991, p.493) apresenta, segundo Raskin, cinco ingredientes para a caracterização

da piada, feita em termos semânticos:

uma mudança do modo de comunicação “bona-fide”(séria) para o modo não-“bona-

fide” (não séria) de contar piadas; 2) o texto considerado chistoso; 3) dois “scripts”2

(parcialmente) superpostos compatíveis com o texto; 4) uma relação de oposição

entre os dois “scripts”; 5) um gatilho, óbvio ou implícito, que muda de um “script”

para outro.

Eis um exemplo:

Disponível em:www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

2 “script” - seqüência de comportamentos esperados, com uma certa rotina preestabelecida, que estão relacionados, por diferentes motivos, a uma pessoa conforme o lugar social que ela ocupa, por exemplo: noivos, professor, médico, comprador, vendedor.

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Há outros elementos que foram apontados por Gil (1991, p. 159, grifos nossos):

em uma primeira parte, que estamos chamando de antecedente, o emissor apresenta

as personagens, situa-as no espaço e no tempo, dá pistas para o receptor, ativa seus

conhecimentos de mundo e, principalmente, opera a comparação dos termos

oponentes da piada. Na segunda parte, a que denominamos consequente e que não se

encontra explicitamente no texto, acontece a conclusão, ou a intelecção do

argumento.

Para nós, esses sete expedientes são também importantes para a caracterização de uma

história ou tiras em quadrinhos;

e) Freud (1969)e Gil (1991) chamaram a nossa atenção para a importância da brevidade das

piadas, o que também pode ser verificado em muitas HQs. Para Lipps (in FREUD, 1969,

p.26, grifo do autor),

um chiste diz o que tem a dizer, nem sempre em poucas palavras, mas sempre em

palavras poucas demais, isto é, em palavras que são insuficientes do ponto de vista

de estrita lógica ou dos modos usuais de pensamento e de expressão. Pode-se mesmo

dizer tudo o que se tem a dizer nada dizendo.

É o processo que acontece na maioria dos HQs: a imagem, a fisionomia dos

personagens, o cenário, na maioria das vezes, completam ou dizem muito mais que as falas

dos balões.

Disponível em:www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

f) Pino (in TRAVAGLIA, 1990) apresenta os seguintes mecanismos do humor que podem ser

trabalhados nas HQs: a surpresa ligada à criatividade (invenção), ao exagero, ao cinismo, à

sátira, à irreverência, à balbúrdia. Exemplos:

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(WATTERSON, 2006, p. 178)

Disponível em:www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

Disponível em:www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

g) os mecanismos semânticos mais constantes nas piadas são a homonímia e a polissemia3,

características fundamentais também nas HQs analisadas. Em sua maioria, tais processos

funcionam como gatilho lingüístico do humor. A ambigüidade surge nesses dois processos

como um dos principais mecanismos para a produção do humor, resultando na bissociação

3 Adotamos, neste trabalho, a diferenciação que Mattoso Câmara (1988, p.29) faz entre os dois termos. Esse autor considera a distribuição sintática das palavras, dentro de um determinado contexto. A mesma distribuição sintática dos vocábulos constitui polissemia, por exemplo: cabo “acidente geográfico”, cabo “posto das formas armadas” e cabo “peça para segurar um instrumento”. A distribuição diferente indica a homonímia, por exemplo: rio (substantivo) e rio (verbo).

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que consiste em, por meios diversos, ativar dois mundos textuais. Isto é, o texto humorístico

vai trabalhar basicamente, com mais de uma interpretação de leitura de seqüências lingüísticas

quase sempre causando surpresa ao leitor com possibilidades não percebidas. O jogo de

palavras apresentado nas HQs favorece muito o cômico. Bergson (1980, p. 54) denominou

esse mecanismo como “interferência de séries”. Afirma o Autor:

Uma situação será sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries

de fatos absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente

em dois sentidos inteiramente diversos.

g.1. “mau-olhado”4:

(Folha de S. Paulo, 23 maio 1995)

h) como as piadas, consideramos a HQ um texto de interpretabilidade restrita: o entendimento

desse texto depende da habilidade do leitor de se ajustar à visão do mundo do emissor. Este

recupera o sentido do texto instantaneamente se o enredo da HQ for coerente e se ela se

encaixar em seu conhecimento de mundo (“frames”5). Por este motivo, é muito interessante

trabalhar com esse material, partindo do cotidiano do leitor, de assuntos atuais, de assuntos de

seu interesse. Assim, trabalhando com a objetividade de muitas HQs, poderemos despertar o

prazer da leitura em nossos alunos e também desenvolver a capacidade de observação, de

interpretação de textos. Isso dependerá, é claro, do repertório deles, do seu acervo de

conhecimentos literários e lingüísticos e muito mais das oportunidades que o professor deverá

criar em sala de aula para sanar as deficiências culturais que tiverem, despertando o interesse,

o prazer e a participação nas atividades de leitura e escrita a serem desenvolvidas. Exemplo:

4 Até o envio deste trabalho não tínhamos encontrado HQs de Watterson com esse mecanismo linguístico. 5 “frames”- conhecimentos que vamos adquirindo, representações coletivas de situações, nas quais os acontecimentos são constantes, por exemplo, desfiles de moda, natal, batizado, carnaval.

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h.1. Relação de “leis da gravidade” com “não-leitura de texto”

Disponível em: www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

i) a história em quadrinhos, como as piadas:

- é um todo coerente com estruturação lógica (imagem e texto), dotada de propriedades

que podem relacioná-la inteiramente com o riso ou não, tomada por nós, em situação

interativa, com função comunicativa definida: diversão, crítica, uso moralístico, entre outras

(Gil, 1991);

- tem seus próprios artifícios de imposição de leitura, que consistem, principalmente, na

apresentação de várias possibilidades de interpretação, para, logo depois, proibir-nos algumas;

- deve ser um texto essencialmente curto, com uma forma original e específica de

argumentação, que não está constantemente comprometida com a verdade. Ela trabalha com a

surpresa provocada no leitor/ouvinte quando ele verifica que o conseqüente se opõe à lógica

estabelecida pelo antecedente (Gil, 1991);

j) muitas HQs ou tiras em quadrinhos, como as piadas, tematizam claramente uma questão de

estrutura linguística, exigindo que os alunos façam rapidamente sua análise para dar risada.

Mas ao analisá-la, ocorre um processo consciente e reflexivo, o receptor vai trabalhar com as

várias construções possíveis, com os sentidos das palavras;

l) as HQs ou tiras em quadrinhos também usam fatores de natureza sociocultural, além dos

fatores linguísticos. São as chamadas “piadas de situação” (Gil, 1991), cujo alvo são as

instituições sociais como a família, a igreja, a escola e também a política. Elas podem ser um

instrumento de persuasão, de denúncia e de crítica social se se tornarem mecanismos

disparadores de processos de conscientização a respeito de problemas sociais, religiosos,

econômicos, entre outros. Exemplo:

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m) a repetição de fatos lingüísticos (reiteração), um dos recursos de coesão textual, constitui

uma fonte importante de humor também nas HQs. A freqüência dos pronomes pessoais em

tiras em quadrinhos sugere a persistência de determinada idéia, permite o aparecimento da

gradação que, por sua vez, cria o ambiente necessário para que o humor se concretize.

n) pela intertextualidade, há a ativação de dois mundos textuais; por esse processo, ocorre a

mudança de um mundo textual para o outro.

As práticas intertextuais inscrevem o texto novo num campo intelectual já conhecido

do leitor, com quem estabelecem uma espécie de conivência, pela reutilização de

material que remete a um “já escrito” que predetermina o texto e lhe assegura a

previsibilidade - desde a simples reminiscência até a citação. (GUIMARÃES, 1990, p.26)

Citamos algumas frases populares em tiras de HQs, que são usadas pelos autores, de

maneira implícita, pois pressupõem que o leitor compartilhe com eles o significado delas.

Exemplos:

n.1) “Nenhum homem é uma ilha” (Teilhard de Chardin, filósofo)

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Disponível em: www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

o) pelo uso de onomatopéias, Watterson expressa muito bem falas, ações e pensamentos de

Calvin e Haroldo. O efeito plástico de um “crack”, “zuuuuum”, “sniff”, “spelunk” (na tira

abaixo) complementa eficazmente às imagens e a linguagem escrita dos balões e proporciona

aos quadrinhos uma nova dimensão estética e ainda, o que é mais importante, o leitor pode

imaginar ou regular a altura, a frequência do som, conforme sua vontade. É a explosão sonora

das HQs.

Disponível em: www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em 29 set. 2005.

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3. A crítica

Quanto ao termo “crítica”, etimologicamente (HOUAISS, 2001, p. 875), ele vem do

substantivo feminino, do adjetivo latino criticus, a, um, adaptado do grego kritike, crítica, arte

de julgar. Cremos que, na acepção 8, temos a melhor definição para este trabalho; “ação ou

efeito de depreciar, censurar; opinião desfavorável; censura; depreciação; condenação”., o que

pode ser traduzido na tira em quadrinhos abaixo.

É justamente nas tiras em que Calvin demonstra detestar ir à escola, matemática, fazer

tarefas (invento da caixa duplicadora), detestar ler, que Watterson, creio eu, critica o sistema

escolar americano e que pode muito bem ser transferido para o brasileiro.

Exemplos:

Disponível em: www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em: 29 set. 2005.

Disponível em: www.publico.clix.pt/calvin_and_hobbes/index. Acesso em: 29 set. 2005.

Também quanto à crítica, percebemos que, ao mesmo tempo em que podemos ler balões

com palavras ou onomatopéias em uma HQ, temos que analisar o ambiente gráfico em que ela

está inserida bem como a fisionomia de seus personagens.

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Se considerarmos algumas tiras de Watterson como críticas, percebemos uma relação

bem próxima com a Antropologia, pois como afirma Henk Driessen (in BREMMER;

ROODENBURG, 2000, p. 258), esta ciência

“[...] compartilha com o humor a estratégia básica da desfamiliarização: o senso comum é rompido, o inesperado é evocado, os assuntos familiares são colocados em contextos pouco conhecidos ou mesmo chocantes, para tornar o público ou os leitores conscientes de suas próprias premissas, preconceitos e diferenças culturais.”

A ironia também é percebida nas tiras de Watterson, embora o objetivo deste trabalho

não seja apontar a porcentagem de tiras que tenha esse fato linguístico.

Do Dicionário de Houaiss (2001, p. 1651), colhemos que ironia é uma “figura por meio

da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender”, e na acepção 1, “emprego inteligente

de contrastes para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos”. Do grego eironei, significa

sarcasmo, zombaria, contraste, incongruência

A palavra “ironia”, por sua vez, vem do termo latim ironia, o qual deriva do grego

eironei, “ação de interrogar fingindo ignorância; dissimulação” (HOUAISS, 2001, idem), que,

por sua vez, tem origem em eiron, alguém que diz algo que é diferente ou é mais do que a

verdade. De forma alternativa, a palavra ironia pode significar simplesmente “falar, e refere-

se de forma específica à técnica socrática de falar e formular perguntas”.

A ironia associa-se à zombaria, à chacota, ao sarcasmo, ao escárnio etc., usualmente em

nosso dia a dia e exprime um modo de dizer o contrário daquilo que se está pensando ou

sentindo, seja por pudor em relação a si próprio ou com intenção depreciativa em relação a

outrem. A ironia comumente encontrada em nossas relações sociais, pode expressar um certo

grau de hostilidade, na forma de sarcasmo. De acordo com Spencer (1998), é comum seu uso

em piadas que, às vezes, separam aqueles que as compartilham daqueles de quem se ri, e que

nem sempre percebem o efeito irônico.

Berger (1997, p. 157), por exemplo, sugere que a ironia é uma forma de humor. Com

base no crítico literário Northrop Frye, o autor explora o conceito de sátira como “ironia

militante”, ou seja, o uso da ironia com o objetivo de ataque.

Neste estudo, percebemos que o humor é um modo privilegiado para fazer críticas e que

pode ser utilizado como um instrumento para reflexão do sujeito enquanto leitor de HQs,

preparando-os para outros tipos de texto.

3. A significação das palavras na produção de textos

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Com base em nossa tese de doutorado (SILVA, 2000, p. 53-58), vimos que, na produção

de textos, o significado das palavras ocupa um lugar muito importante em nossos estudos,

porque na relação entre pensamento e linguagem, além de ser um ato de pensamento, ele é

também um componente indispensável da palavra.

De acordo com Vygotsky (1987, p.4-7), é no significado da palavra que o pensamento e

a fala se unem em pensamento verbal; é no significado da palavra que encontramos a unidade

das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social (função comunicativa) e o

pensamento generalizante (função representativa).

Para Lipman (1990, p. 122), os significados são descobertos quando as palavras se

relacionam umas com as outras e nas relações da linguagem com o mundo. O Autor destaca a

correlação existente entre as habilidades de raciocínio com a aquisição do significado, pois

quanto mais os alunos

fazem inferências, identificam relações, distinguem, associam, avaliam, definem e

questionam, mais ricas são as totalidades de significado que eles são capazes de

extrair de sua experiência. (...) O cultivo das habilidades de raciocínio é o caminho

mais promissor se o nosso objetivo for o de ajudar as crianças a descobrirem o que

torna sua experiência significante.

Considerando todas essas questões ao analisar as relações entre pensamento e

linguagem, o psicolinguista se interessa, de modo particular, pelos processos por meio dos

quais o sujeito atribui uma significação ao seu enunciado, às associações das palavras, aos

processos gerais da comunicação etc. Assim sendo, ele verifica que escolher o significado de

uma palavra não é só um problema semântico, mas é também psicológico. O cuidado desse

estudioso é concentrado “na natureza das idéias que estão por trás da linguagem, do uso das

palavras e na natureza do mecanismo do cérebro” (DEESE, 1976, p.91), que provoca essas

idéias.

Consideramos, então, que a maneira mais completa de tratar esse assunto seja iniciar

com o estudo linguístico do significado, para trabalharmos com os sentidos de uma palavra,

conforme o contexto estudado (ULLMANN, 1964; BAKHTIN, 1986; ILARI & GERALDI,

1992). Verificamos que, mesmo na Linguística, o termo "significado" é polissêmico, havendo

várias interpretações.

Tendo em vista os objetivos deste trabalho, adotaremos as doutrinas de Guiraud (1975)

e de Pottier (1978) sobre o assunto.

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Para podermos entender e explorar as associações que o aluno possa fazer em atividades

como palavra-puxa-palavra, pingue-pongue, tempestade cerebral, etc., temos de levar em

consideração as quatro relações apresentadas por Pottier, Audubert e Pais (1973, p.110-4),

para determinar o "limite" da palavra no campo semântico. São as relações de oposição,

inclusão, participação e associação:

a) a relação de oposição - que exclui uma palavra, na escolha de outra de um mesmo

nível paradigmático. Exemplo: limão ≠≠≠≠ laranja ≠≠≠≠ maçã.

b) a relação de inclusão - que existe entre um termo mais geral e um termo que o inclui

em um paradigma. Exemplo: fruta ⊂⊂⊂⊂ limão, laranja.

c) a relação de participação - que há entre um signo e um de seus semas, que deverá

conter uma informação inerente, objetiva entre o signo e o sema participante.

Exemplo: acidez ∈∈∈∈ limão.

d) a relação de associação - que existe entre um signo e outro que a ele se relaciona por

vínculos subjetivos (psicológicos ou sociológicos), que se modificam conforme os indivíduos.

Exemplo: limão ∼∼∼∼ calor.

Para Guiraud, a significação é um processo psicológico que associa um objeto, um ser,

um fato, uma idéia a um signo capaz de trazê-los à lembrança: a palavra evoca a imagem do

objeto (uma nuvem escura lembra a imagem da chuva; um semblante franzido, sinal de pessoa

com raiva; a palavra "gato" é o signo do animal). O signo é um estímulo associado a outro

estímulo do qual evoca a imagem mental. A significação é, portanto, um processo psíquico;

tudo se passa no espírito. Já o sentido de uma palavra é a imagem mental resultante desse

processo, vai depender das relações que ela estabelece com outras palavras de um contexto e

essas relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico.

Segundo esse autor, já que um nome pode ter diversos sentidos, estes são chamados

sentidos virtuais e se atualizam, sempre um só deles, em um contexto dado, do qual a palavra

tira o seu sentido.

Para Guiraud (1975, p.35-40), cada palavra tem um sentido de base e um sentido

contextual. Tais sentidos “não se superpõem; há sempre um único sentido em uma situação

dada, o sentido contextual; à palavra em seu contexto corresponde uma única imagem

conceitual”.

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O sentido contextual elimina, na linguagem referencial, a ambigüidade do sentido de

base, a não ser que haja propósito de manter a ambigüidade como ocorre em textos

humorísticos, textos publicitários com trocadilhos ou jogos de palavras.

Guiraud usa os termos "sentido de base" e "sentido contextual", no campo da Semântica,

e respectivamente, "valor expressivo" e "valor sociocontextual", no campo da Estilística. Os

valores expressivos envolvem palavras e expressões que representam desejos, emoções,

intenções, suposições de quem fala. Já os valores sociocontextuais estão ligados ao grupo e ao

contexto social a que pertencem. Ambos os valores são reflexos das vivências afetivas

(individuais e sociais) dos interlocutores com o mundo. No geral, esses valores envolvem as

conotações de uma palavra que, sem lhe alterar o significante, dão-lhe novo sentido ou novo

colorido.

De acordo com o nosso ponto de vista, no processo de significação das palavras, em

uma comunicação lingüística, (também nas HQs), deverão ser levados em conta os seguintes

aspectos:

- o falante (sujeito enunciador);

- o ouvinte ( interlocutor);

- a "coisa" significada para cada indivíduo;

- a finalidade da interação;

- o contexto situacional da enunciação (lugar e momento de produção);

- as condições de produção do discurso, isto é, a circunstância onde interagem os

sujeitos do discurso, os interlocutores, o contexto histórico-social, o lugar de onde falam, a

imagem que fazem de si, do outro e do referente (BRANDÃO, 1994, p.93);

- os valores estilísticos da palavra, que se dividem em dois tipos: valores expressivos e

valores sociocontextuais que, empregados em situação determinada, estão todos ligados ao

grupo e ao contexto social a que pertencem os interlocutores, envolvendo a entonação, os

gestos, as expressões fisionômicas, os movimentos corporais na linguagem falada e a

pontuação na linguagem escrita.

Esses elementos estão sempre a serviço de uma intenção do emissor em sua

comunicação com o "outro", seja de forma oral, seja de forma escrita. Verificamos, assim,

que, além das relações objetivas existentes no processo de significação das palavras, há

relações infinitas que o indivíduo pode ter ao trabalhar com as palavras.

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Acrescentamos que, mesmo que o sentido de uma palavra seja determinado por seu

contexto ou pelas vivências afetivas ou ideológicas do indivíduo, essa palavra não deixa de ter

o seu sentido de base (plano denotativo), conforme diz Guiraud, o que faz com que a

comunicação entre os homens seja possível. O sentido de base representa a estabilidade da

significação da palavra, mas a precisão de um significado se faz sempre em um contexto.

É nele que o sentido de uma palavra é construído, produzido no processo de

interlocução, dependendo das condições de produção do discurso e da produção da

informação, as quais dependem do conhecimento de mundo do emissor e do destinatário

(ouvinte/leitor) e dos conhecimentos comuns (com)partilhados entre eles. (KOCH, 1992,

p.24-7)

Analisando a significação das palavras, procuramos considerar os autores que nos

permitiram visualizar melhor tanto a amplitude do assunto como a adequação à nossa

proposta metodológica do ensino de redação, discutida em nosso doutorado (SILVA, 2000)..

A partir dessas considerações iniciais, chegamos aos autores que embasam a nossa

proposta metodológica:

a) Para Vygotsky (1987), a leitura nunca é mera decodificação mecânica. Nos

momentos em que a codificação dos signos está presente, a leitura vem impregnada de

sentido, que predomina sobre o significado da palavra. As mudanças de sentido não atingem a

estabilidade do significado. Segundo este teórico, as palavras obtêm seu sentido no contexto

do discurso; mudando o contexto, varia o sentido da palavra. Nesse sentido, Ullmann (1964)

acrescenta que mesmo que o contexto influa na significação das palavras, há nelas um núcleo

sólido de significado, relativamente estável, e que só dentro de certos limites pode ser alterado

pelo contexto. Essa característica é a base responsável de toda comunicação.

Enquanto que a idéia de contexto é pouco explorada nos escritos de Vygotsky (1987),

Bakhtin (1986, p. 95) desenvolve melhor essa idéia: a palavra está sempre carregada de um

conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. Por isso, todo discurso é ideológico e

polêmico; o significado real de um enunciado está definido pela interação de vozes ou

perspectivas ideológicas abrangentes.

b) Lipman (1990) comenta que muitas crianças adoram escutar histórias e podem,

muitas vezes, recusar-se a ler essas mesmas histórias. Talvez o motivo esteja nas técnicas

mecânicas que dão ênfase à fonética e à gramática e bloqueiam a criança na hora de ler e/ou

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escrever. Para muitos alunos, a leitura da língua que falam tão natural e prontamente é um

exercício angustiante e a escrita é ainda pior.

Apesar de Lipman descrever o movimento leitura-fala-escrita como uma seqüência

definida, ele não insiste nessa seqüência.

Não há nada de mais em um aluno começar a escrever durante a leitura. O que

queremos salientar é que estes três componentes - leitura, fala e escrita - estão

intimamente interligados e que um curso efetivo de escrita deveria prestar atenção a

essa interligação. (Ibid., p.154)

Para que a leitura e a escrita sejam vistas como conseqüências naturais da conversação6,

devemos estar conscientes da íntima relação que há entre esses três processos. E é a

conversação, segundo esse autor, que servirá de mediadora entre a leitura e a escrita. O aluno

precisa ser encorajado a trabalhar com as palavras para que se desiniba intelectualmente e

vice-versa. Como interlocutor, ele não é um elemento passivo na constituição do significado

que está sendo produzido.

Ao ensinarmos a leitura, devemos destacar os significados extraídos do texto que é lido.

Devemos também preparar a criança para a compreensão da ambigüidade das palavras: uma

palavra conhecida não tem somente um, mas vários significados e eles podem variar num

determinado contexto. Isso vai

prepará-la não somente para os trocadilhos, equívocos, e duplo sentido do discurso

diário, mas também para as alusões ricas da literatura, para as ligações dúbias das

relações humanas e para a transformação da própria natureza. (...) Aprender sobre

ambigüidade (...) também ajuda a descobrir as relações das palavras com as

palavras, coisas com coisas. (LIPMAN, 1990, p.125)

Vemos a linguagem, portanto, como forma de ação social, orientada entre indivíduos,

como lugar de interação social que torna possível aos alunos de uma classe, em nosso caso,

vários atos que exigem determinados comportamentos e/ou reações, que possibilitam ligações

e compromissos que não existiam antes. Por isso, a linguagem oral e a linguagem escrita são

formas de pensamento, são atividades que podem aperfeiçoar as habilidades de pensamento.

Temos em Koch (1992, p.110 - grifo da autora), a linguagem como lugar de interação, de

constituição das identidades, de representação de papéis, de negociação de sentidos.

6 Para Lipman (1990, p.147-54), a conversação é a comunicação interativa entre professor/aluno e aluno/aluno, isto é, o diálogo.

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Muitos alunos, em um ambiente de discussão animada, não têm oportunidade de dizer

nessa conversação o que pensaram, leram e discutiram em grupo, por isso eles devem ser

encorajados a expressar seus pensamentos na forma escrita.

Sabemos que é durante a interação que o aluno mais inexperiente entende o texto. A

busca de significados inicia-se pela leitura silenciosa individual, na qual o aluno-leitor começa

a ter uma visão geral do texto a ser estudado; na leitura oral, podemos provocar o interesse do

ouvinte nessa busca, estimulando o processo de interação leitor/texto/ouvinte, mas é durante a

conversa, a discussão sobre os pontos importantes do texto que o seu sentido vai sendo

construído. Alguns pontos, muitas vezes, ficam obscuros para o aluno e na discussão

dialogada, eles vão sendo esclarecidos e ele pode perceber não só o que está explícito, mas

também descobrir o que se apresenta de modo sutil, propiciando uma interação entre leitor/

autor/ texto/contexto.

4. Considerações finais

Pensamos que pesquisar sobre o humor, o riso, a crítica e a ironia nas tiras de Bill

Watterson seja um modo diferente de compreender a realidade que nos cerca, principalmente

aquelas relacionadas à educação escolar e/ou evasão escolar.

Há um estudo realizado com o objetivo de analisar as causas da evasão escolar na visão

dos próprios jovens e de seus pais, e de avaliar a taxa de atendimento escolar, a partir de

dados da Pesquisa Mensal do Emprego. A pesquisa foi coordenada pelo chefe do Centro de

Pesquisas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Marcelo Neri, com base nos dados da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Esse estudo - que procura saber, por

meio de perguntas diretas como: por que não estão na escola, pela necessidade de trabalhar,

por não ter vaga ou escola perto de casa, por dificuldade de transporte ou por que não querem

a escola que aí está? - revela que o Brasil não conseguirá vencer a batalha pela melhoria da

qualidade do ensino se não convencer primeiro os principais protagonistas: os alunos e pais.

O resultado dessa pesquisa, na avaliação de Neri (in OLIVEIRA, 2009), serviu para

derrubar mitos como o de que os jovens de comunidades pobres deixam a escola entre 15 e 17

anos para trabalhar.7

7 "A pesquisa mostra que, ao contrário do mito, muitos desses jovens estão fora da escola não porque são de comunidades pobres e têm que trabalhar. A pesquisa mostra que é, em regiões ricas, quando a economia está mais aquecida, que eles deixam a escola. O crescimento econômico tira o jovem da escola mais nas regiões ricas

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Sabemos também que muitos alunos não saem da escola para trabalhar, mas sim porque

não têm interesse em assistir às aulas, em ir e permanecer na escola. Se o desafio maior antes

era levar o aluno à escola, agora é fazer com que ele fique na escola e aprenda o que precisa.

Watterson, por meio de suas tiras, utiliza o conteúdo e a forma de expressão artística das

HQs, para lançar seus petardos irônicos ao mundo político e intelectual, como instrumento de

se refletir sobre o papel da escola.

Para Ana Beatriz SILVA (2003, p. 33), Calvin é um personagem fictício que melhor

exemplifica uma criança DDA (Distúrbio do Déficit de Atenção), como “mais agitada, mais

bagunceira e mais impulsiva, bem mais distraída, dispersa e não-perseverante do que outras

crianças, se for daquele tipo mais desatento”.

O Distúrbio do Déficit de Atenção é considerado por Silva (Idem, p. 9) um trio de

respeito: distração, impulsividade e hiperatividade..., e essa estudiosa afirma ainda:

“É importante destacar que o termo original para o DDA — Distúrbio do Déficit de Atenção — não traduz com precisão ou mesmo com justiça o que ocorre com a função da atenção no DDA. Se por um lado o adulto e a criança DDAs têm profunda dificuldade em se concentrar em determinado assunto ou enfrentar situações em condições de obrigatoriedade, por outro lado podem apresentar-se hiperconcentrados em determinados assuntos ou atividades que lhes despertem interesse espontâneo ou paixão impulsiva, como é o caso de crianças com jogos eletrônicos ou adultos com esportes, computadores ou leitura de assuntos específicos. Em tais casos, tanto as crianças como os adultos DDAs terão dificuldade em se desligar ou desviar sua atenção para outras atividades.” (SILVA, 2003, p. 10-11)

Mas será isso verdadeiro ou só é mais um modismo na educação? Todo aluno que é

muito inquieto em sala de aula é agora considerado hiper-ativo. 8Será que são criadas

oportunidades para ele pensar sobre a realidade física, biológica, material etc. que o cerca,

dispondo de instrumentos e equipamentos avançados da tecnologia? Em casa, ele trabalha

com internet, jogos diversos, e na escola? Como o professor faz? É só lousa e giz? Ou o uso

indiscriminado de textos, figuras com projeção de slides, sem objetivos escolares? Essas são

mais perguntas que deixamos dirigidas agora aos teóricos da educação, instigando-os a uma

pesquisa mais profunda e detalhada.

Neste estudo, percebemos que o humor é um modo privilegiado para fazer críticas e que

pode ser utilizado como um instrumento para reflexão, portanto, devido ao seu campo de

pesquisa e às questões propostas, certamente nos estimulará a investigar mais sobre o assunto, do país do que nas mais pobres, que não oferecem oportunidade de trabalho para os pais e seus filhos”. (NERI, in OLIVEIRA, 2009, on line) 8 Na década de 70 e 80, esse tipo de aluno era rotulado de carente ou deficiente. Da psicologia da criança e do adolescente, surgiu um psicologismo geral, pelo menos aqui no estado de São Paulo.

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aprofundando-o, por isso, ele está aberto a outros estudiosos que se dispuserem a uma

pesquisa em parceria.

A primeira possibilidade é ampliar a amostra, incluindo outros temas a serem analisados

nas tiras de Watterson. A segunda possibilidade é ouvir participantes de uma pesquisa, que se

pretende qualitativa, coletando suas opiniões e percepções sobre este suporte de leitura, nas

suas reações ao humor crítico e à ironia. A terceira possibilidade é realizar entrevistas com o

próprio Bill Watterson. Por que não? Isso é o que também pretendemos em um pós-

doutorado.

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