2 - Os Lusíadas, De Luís de Camões
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«Os Lusíadas», de Luís de Camões
Estrutura
A estrutura d’Os Lusíadas é semelhante ao modelo clássico das epopeias. Assim sendo, o poema está dividido em quatro partes:
Proposição - parte introdutória em que o poeta enuncia o seu propósito de cantar os feitos dos portugueses, tornando-os imortais.
Invocação - nestas estrofes, constata-se um pedido de inspiração às musas para que os seus versos consigam traduzir a grandeza do assunto que se propôs cantar.
Dedicatória - parte facultativa na estrutura das epopeias antigas. N’Os Lusíadas é dedicada a D. Sebastião.
Narração - constitui o corpo da obra. Começa na estrofe 19 do Canto I e integra o plano central (a viagem de Vasco da Gama), o plano encaixado (História de Portugal) e o plano paralelo (mitológico). No entanto, no fim de alguns Cantos, existem excursos pessoais (meditações, intervenções críticas, lamentações) que constituem um outro plano, o das reflexões do poeta.
A fim de cumprir os objetivos enunciados na proposição, Luís de Camões organiza a narrativa dos acontecimentos de modo a que o valor da nossa memória coletiva encontre, no poema, o lugar de relevo que lhe é devido. Porém, a analepse que integra o relato da História de Portugal visa não só imortalizar todas as figuras relevantes do passado mas também enaltecer uma herança que explica e justifica a grandeza do feito que ocupa o plano fulcral da obra - a descoberta do caminho marítimo para a Índia. É com esse propósito que, no Canto III, a armada lusitana, depois de passar por tempestades e perigos de toda a espécie, chega, finalmente, a bom porto: Melinde. Aqui, o rei «Com mostras de espanto e admiração» pede a Vasco da Gama que lhe fale do seu país e da sua história. É neste contexto que surgem referências:
– à localização de Portugal (C. III, est. 17-21) – a Ulisses (C. III, est. 57-58) – a D. Dinis (C. III, est. 96-98) – a Nuno Álvares Pereira (C. IV, est. 14-21) – ao Velho do Restelo (C. IV, est. 89-104) – ao Adamastor (C. V, est. 37-60)
Narração
2
Plano Mitológico Plano da Viagem
História de Portugal
Vasco da Gama começa por referir-se à «nobre Espanha», reconhecendo que esta é a cabeça da Europa. Contém em si diferentes nações, «Todas de tal nobreza e tal valor / Que qualquer delas cuida que é milhor». Portugal é uma delas e distinguiu-se «Nas armas contra o torpe Mauritano», mas mais do que nação é a «pátria amada» do navegador, à qual deseja voltar quando a viagem terminar.
Depois é a vez de Ulisses que edificou Lisboa. Esta cidade foi mais tarde conquistada aos mouros por D. Afonso Henriques com a ajuda de outros povos que tinham a «tensão santa» de libertar a cidade do «povo sarraceno».
No relato elogioso que vai fazendo da História de Portugal, Vasco da Gama cita o rei D. Dinis afirmando que «[c]o este o Reino próspero florece / [...] Em constituições, leis e costumes». Além disso, continuou, fundou a primeira Universidade em Coimbra e construiu e reparou vilas, fortalezas e «castelos mui seguros».
Surgem também referências a Nuno Álvares Pereira e ao seu amor à pátria. Facto que o levou a insurgir-se contra os próprios irmãos por terem renegado esse valor mais alto. Interroga-se ainda sobre como poderão ser eles descendentes do «grande Henriques», de D. Dinis e de D. João I, figuras que lhes deveriam servir de exemplo. Assim, numa atitude heróica e leal «arranca meia espada» e afirma «[v]encerei não só estes adversários, / Mas quantos a meu Rei forem contrários!». Movidos por estas palavras, e apesar do medo, «o temor frio», os portugueses «[b]randindo e volteando arremessões; / Vão correndo e gritando [...] / – «Viva o famoso Rei que nos liberta!».
O episódio do Velho do Restelo pode ser dividido em duas partes distintas: a reação dos familiares à partida dos marinheiros e a reação do Velho do Restelo. É nesse sentido que podemos classificar como lírico o assunto das estrofes 89-93, porque aí são expressos sentimentos de medo, saudade e até mesmo de desespero. Na realidade, é a expressão do amor daqueles familiares que ficam em terra, sem saberem se voltarão a ver os seus entes queridos.
Aspeto Lírico
EU (Vasco da Gama)
Mães
Mulheres
Esposas
Homens
Natureza Montes
Nós
«Determinei de assi nos embarcarmos, / Sem o despedimento costumado,»
«Ó filho, a quem eu tinha / Só pera refrigério e doce emparo»
«Ó doce e amado esposo, /
Sem quem não quis Amor
que viver possa,»
«Os montes de mais perto
respondiam, / Quási movidos
de alta piedade;»
«Por nos não magoarmos, ou mudarmos / Do propósito firme começado.»
«Os homens com suspiros que arrancavam.»
«Nós outros, sem a vista alevantarmos, / Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,»
É então que se ouve a voz do Velho do Restelo, a insurgir-se contra a partida dos marinheiros. Este homem, «um velho de aspeito venerando», experiente pela idade e pelo saber, num longo monólogo, interroga-se sobre as motivações e chama a atenção para as consequências de tamanha loucura.
Numa atitude profética, o velho amaldiçoa, ainda, o primeiro homem que pôs no mar o primeiro barco e recorre a exemplos da mitologia para avisar do castigo a que a ousadia, a ambição e o atrevimento desmedidos podem conduzir.
No episódio anterior, Vasco da Gama iniciou a narrativa da viagem. Agora irá revelar ao Rei de Melinde a dimensão dos perigos e a coragem demonstrada em enfrentá-los e, subsequentemente, em ultrapassá-los. O Gigante Adamastor mais não é do que a gigantesca personificação dos perigos, das tormentas por que passou a armada de Vasco da Gama. Mas também nos fala do medo que elas provocavam nos marinheiros. Exorbitadas as dificuldades, acabamos por ter a superlativação do herói que o poeta se propôs cantar, uma vez que, apesar de frágil (em termos humanos e materiais), não só soube dominar o medo como fazer frente aos obstáculos que iam surgindo.
Motivações Consequências
Alternativa
«[...] Já que à bruta crueza e feridade Puseste nome, esforço e valentia, [...]» «Não tens junto contigo o ismaelita, [...] Não segue ele do Arábio a lei maldita, Se tu pola de Cristo só pelejas? Não tem cidades mil, terra infinita, Se terras e riquezas mais desejas? [...]»
(est. 99-100)
«[...] Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana!»
«[...] Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?»
(est. 96-97)
«[...] Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!»
«Dura inquietação d’alma e da vida Fonte de desemparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios! [...]»
(est. 95-96)
Alguns Episódios
O Adamastor
Estes foram alguns dos episódios que Vasco da Gama incluiu no seu discurso que está prestes a terminar: “Da boca do facundo Capitão / Pendendo estavam todos, embebidos, / Quando deu fim à longa narração” (Canto V, est. 90).
Seguiram-se as festas de despedida aos nautas, e a viagem continuou de Melinde até à Índia onde chegaram finalmente. Após a realização do tão almejado sonho, os portugueses regressam a Portugal. É então que Vénus lhes prepara uma recompensa.
Adamastor
(Canto V)
Personificação gigantesca
dos perigos que os nautas
corriam ao tentar desvendar
o desconhecido.
Situações geradoras de
medo.
Capacidade de enfrentar o
medo que advém da
dimensão dos obstáculos /
perigos.
Vitória do homem sobre as
forças da natureza. E, por
extensão, reconhecimento
da capacidade de superação
humana. Os perigos desvaneceram-se.
O medo foi ultrapassado.
O mito foi desfeito.
«[...] uma figura / Se nos mostra no ar, robusta e válida, / De disforme e grandíssima estatura; / O rosto carregado, a barba esquálida / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má [...] / A boca negra, os dentes amarelos.»
(est. 39)
Elogia os portugueses pela sua ousadia: «Ó gente ousada mais que quantas / No mundo cometeram grandes cousas,» (est. 41-42). Vaticina os desastres que serão consequência de tanta ousadia: «Sabe que quantas naus esta viagem / Que tu fazes, fizerem, de atrevidas, [...] / Eu farei de improviso tal castigo / Que seja mor o dano que o perigo!» (est. 43-48)
«Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,»
(est. 40)
«Arrepiam-se as carnes e o cabelo, A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!»
(est. 40)
«[...] Quem és tu? [...]» (est. 49)
O Adamastor «com voz pesada e amara» conta a sua história de amor.
«Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro Bramido muito longe o mar soou.»
(est. 60)
A Ilha dos Amores
Podemos dividir o assunto em três partes (Canto IX):
1. A Descrição da Ilha
“De longe a Ilha viram, fresca e bela,” (est.52)
“Três fermosos outeiros se mostravam,” (est.54)
“Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.” (est.54)
“Por entre pedras alvas se deriva / A sonora linfa fugitiva.” (est.54)
“Mil árvores [...] / Com pomos odoríferos e belos; / A laranjeira tem no fruito lindo / A
cor que tinha Dafne nos cabelos.” (est.56)
“A cidreira cos pesos amarelos; / Os fermosos limões ali cheirando,” (est.56)
“As cereijas, purpúreas na pintura,” (est.58)
“[...] a jocunda / Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;” (est.59)
Na descrição da ilha, a repetição do adjetivo “fermoso” sublinha a harmonia de um
conjunto que é constituído por uma diversidade de elementos que a Natureza
generosamente oferece. A cor, o cheiro e os sons ilustram este quadro a que não é
alheia uma nota de sensualidade que antecipa o encontro entre os nautas e as ninfas.
2. O Encontro dos Nautas com as Ninfas
Os marinheiros sentem-se atraídos pela beleza da ilha e rapidamente são envolvidos pelo ambiente de sensualidade que Vénus lhes prepara. Esta é a Ilha dos Amores.
Nesta frescura As belas deusas
Os nautas desembarcavam
Estavam aconselhadas pela
«mestra experta» (est. 65).
«Que andassem pelos campos
espalhadas; / Que, vista dos
barões a presa incerta, / Se
fizessem primeiro desejadas.»
(est. 65)
Andavam «como incautas»
(est. 64).
«Algumas, doces
cítaras tocavam;»
(est. 64)
«Algumas, harpas e
sonoras frautas;»
(est. 64)
«Algumas, que na forma
descoberta / Do belo corpo
estavam confiadas, / Posta a
artificiosa fermosura, / Nuas
se deixam lavar na água
pura.» (est. 65)
«Outras, cos arcos de
ouro, se fingiam / Seguir
os animais que não
seguiam.» (est. 64)
3. A Imortalização do Herói
Mas todo este ambiente, já referido, constitui a recompensa pelo esforço, coragem e tenacidade reveladas por este “bicho da terra tão pequeno” que um dia ousou enfrentar o mar, as suas lendas, os seus mitos, num “lenho leve” (Canto I, est. 27).
Por isso, “as fermosas ninfas [...] / As mãos alvas lhe davam como esposas; [...] / Se prometem eterna companhia, / Em vida e morte, de honra e alegria” (Canto IX, est. 84).
Logo, a Ilha dos Amores mais não é que a expressão poética encontrada por Camões para imortalizar a grandeza épica dos Descobrimentos e dos seus intérpretes:
89
91
«Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas, Tétis e a Ilha angélica pintada, Outra cousa não é que as deleitosas Honras que a vida fazem sublimada. Aquelas preminências gloriosas, Os triunfos, a fonte coroada De palma e louro, a glória e a maravilha, Estes são os deleites desta Ilha. [...]
Não eram senão prémios que reparte, Por feitos imortais e soberanos, O mundo cos varões que esforço e arte Divinos os fizeram, sendo humanos, Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Eneas e Quirino e os dous Tebanos, Ceres, Palas e Juno com Diana, Todos foram de fraca carne humana.»
“Apolo e as Musas”, Poussin (século XVII)
As Reflexões do Poeta
Canto V (est. 94-100)
No Canto V, após o Episódio do Gigante Adamastor, Camões comenta o entusiasmo de
Vasco da Gama, que se esforça por mostrar ao Rei de Melinde que “as navegações que
o mundo canta / [n]ão merecem tamanha glória e fama / [c]omo a sua”. Porém, o
poeta constata que os portugueses não têm aqueles dons “cuja falta os faz duros e
robustos” ao passo que Octávio, por exemplo, compunha versos muito eloquentes.
Este e outos heróis da Antiguidade sabiam combater, mas ao mesmo tempo
apreciavam as artes: “Vai César sojugando toda França / [...] Mas, numa mão a pena e
noutra a lança, / Igualava de Cícero a eloquência.” (est. 96).
Para finalizar, Camões adverte Vasco da Gama, afirmando que este deveria agradecer
às Musas, principalmente a Calíope (musa da poesia épica) porque sendo ele e a
família tão pouco cultos não mereceriam a atenção nem sequer das Ninfas do Tejo.
Mesmo assim, faz um apelo para que haja sempre quem continue a praticar grandes
feitos, porque as Tágides, por patriotismo, continuarão a louvá-los.
Canto VII (est. 78-87)
Após a armada lusitana ter chegado ao Oriente e ter sido bem recebida pelo Catual, o
poeta, no fim do Canto, invoca novamente as Ninfas do Tejo e do Mondego pedindo-
lhes que o continuem a ajudar a percorrer um caminho “tão árduo, longo e vário”.
Neste pequeno apontamento autobiográfico, diz-nos que há muito que vem cantando
Portugal e os Portugueses, mas que a fortuna o tem obrigado a experimentar ora os
perigos da guerra ora os do mar. Está pobre, tem percorrido terras estranhas,
escapando à morte por pouco e, além destas “tamanhas misérias”, aqueles a quem
louvava, em vez do descanso merecido e das “capelas de louro que [o] honrassem”
ainda lhe tinham criado situações mais difíceis. E esta falta de atenção, esta ingratidão
a “quem os faz, cantando, gloriosos” não será, decerto, um bom exemplo para futuros
escritores empenhados em “porem as cousas em memória / [q]ue merecem ter eterna
glória”. E faz um juramento: não utilizará o favor das ninfas no louvor do egoísmo, da
ambição, do abuso do poder, da hipocrisia, da exploração dos humildes, mas sim
“[a]queles sós direi que aventuraram / [p]or seu Deus, por seu Rei, a amada vida”. O
tom amargo desta reflexão contrasta com o entusiasmo das primeiras estrofes do
poema. Pegando nas palavras de Maria Vitalina Leal de Matos, diríamos que “Os
Lusíadas afirmam a fé de Camões no Homem e a satisfação desta fé [...]; representam
ainda a crença no valor do mérito e do esforço e a fé na ação do Homem. Mas, não há
dúvida também de que o poema não rasura o que nele há de ceticismo e
desconfiança”.
Canto IX (est. 90-95)
Camões acabara de imortalizar os navegadores portugueses na Ilha dos Amores “[p]elo
trabalho imenso que se chama / [c]aminho da virtude, alto e fragoso, / [m]as, no fim,
doce, alegre e deleitoso”. Para ele, este deve ser o caminho a seguir por todos os que
pretendam “no mundo ser tamanhos”. Por isso lança um forte apelo: “Despertai já do
sono do ócio ignavo, / Que o ânimo, de livre, faz escravo.”. E faz uma recomendação
no sentido de se exercer um controlo sobre a cobiça, a ambição e a tirania, porque
“essas honras [...] / [v]erdadeiro valor não dão à gente”. Mas para que se crie uma
sociedade mais justa, o poeta advoga que se façam leis “[q]ue aos grandes não deem o
dos pequenos,” e incentiva ao combate contra os “imigos Sarracenos”. Nesta reflexão,
Camões valoriza a justiça, a coragem, o amor à Pátria e a lealdade ao Rei.