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2 Os tipos argumentam, ou a tipografia e o seu potencial expressivo Embora os acontecimentos do início do século XX e toda uma tradição que não se acanha em se dizer categoricamente modernista reivindiquem para si a invenção do que chamamos de design, hoje sabe-se preguiçosa ou mal intencionada a manutenção desse tipo de pensamento — como bem sugeriu Rafael Cardoso em O design brasileiro antes do design (2005:11). Quando consideramos que o design precede aquilo que muitos apontam não só como sua origem, mas como seu modelo ideal, esse mesmo modelo revela-se frágil e comprometido; e, para aqueles dispostos a enxergá-los, os elos fracos da corrente tornam-se evidentes. O pensamento que regia o que chamamos de design modernista originalmente impunha-se como inquestionável. Buscava uma quebra com a tradição, uma cisão com o “antigo”, uma eterna busca pelo novo — o que caracteriza tal pensar pretensamente atemporal como essencialmente efêmero (GRUSZYNSKI, 2007:30). Talvez por isso, mais tarde, o design modernista venha a revelar-se contraditório ao ver-se aprisionado naquelas regras que, em seu entender original, organizavam o caos. O papel reacionário que pertencera a esse design é, então, questionado pelo design contemporâneo que, talvez por insistência acadêmica, convencionou-se chamar pós-moderno. Assim, como veremos mais adiante, nessa guerrilha 1 ideológica, o pensamento que rege o design modernista assume o papel de antagonista do design pós-moderno, contemporâneo, libertador. Hoje já não é difícil identificar, analisar e expor as grandes falácias modernistas. Os únicos que restaram para propagar o seu pensamento são, como afirma o inflamado designer e crítico de design Jeffrey Keedy 2 , os “modernistas zumbis” — fieis seguidores de um raciocínio que, isolado, sem contexto, parece 1 Termo usado por Otl Aicher em seu texto Typographical Warfare, original de 1988. 2 Em seu texto Zombie modernism, originalmente publicado na Emigre em 1995.

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2 Os tipos argumentam, ou a tipografia e o seu potenc ial expressivo

Embora os acontecimentos do início do século XX e toda uma tradição que

não se acanha em se dizer categoricamente modernista reivindiquem para si a

invenção do que chamamos de design, hoje sabe-se preguiçosa ou mal

intencionada a manutenção desse tipo de pensamento — como bem sugeriu Rafael

Cardoso em O design brasileiro antes do design (2005:11).

Quando consideramos que o design precede aquilo que muitos apontam não

só como sua origem, mas como seu modelo ideal, esse mesmo modelo revela-se

frágil e comprometido; e, para aqueles dispostos a enxergá-los, os elos fracos da

corrente tornam-se evidentes. O pensamento que regia o que chamamos de design

modernista originalmente impunha-se como inquestionável. Buscava uma quebra

com a tradição, uma cisão com o “antigo”, uma eterna busca pelo novo — o que

caracteriza tal pensar pretensamente atemporal como essencialmente efêmero

(GRUSZYNSKI, 2007:30). Talvez por isso, mais tarde, o design modernista venha a

revelar-se contraditório ao ver-se aprisionado naquelas regras que, em seu

entender original, organizavam o caos. O papel reacionário que pertencera a esse

design é, então, questionado pelo design contemporâneo que, talvez por

insistência acadêmica, convencionou-se chamar pós-moderno. Assim, como

veremos mais adiante, nessa guerrilha1 ideológica, o pensamento que rege o

design modernista assume o papel de antagonista do design pós-moderno,

contemporâneo, libertador.

Hoje já não é difícil identificar, analisar e expor as grandes falácias

modernistas. Os únicos que restaram para propagar o seu pensamento são, como

afirma o inflamado designer e crítico de design Jeffrey Keedy2, os “modernistas

zumbis” — fieis seguidores de um raciocínio que, isolado, sem contexto, parece

1 Termo usado por Otl Aicher em seu texto Typographical Warfare, original de 1988. 2 Em seu texto Zombie modernism, originalmente publicado na Emigre em 1995.

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fazer sentido, mas que há muito já se encontra num estado de sobrevida artificial

(KEEDY, 2001).

Apelidos à parte, ao observarmos o design modernista em seu estado

original, seria injusto não admitirmos que muito daquilo que foi pregado fazia

sentido em sua época. Há sim razões suficientes para se prestigiar escritos capitais

para a época como aqueles de Jan Tschichold, por exemplo.

Sem dúvida a tal “nova tipografia”3 de Tschichold influenciou e continua a

influenciar — direta ou indiretamente — toda e qualquer produção tipográfica

desde 19254. Não se trata, portanto, de uma questão de ignorar todo um corpo

teórico construído numa determinada época, mas apenas de tratá-lo com o respeito

crítico que merece.

Em especial, a tipografia sempre foi um dos principais fronts das batalhas

travadas no universo do design gráfico, seja do modernismo original oposto à

tradição clássica, seja no pós-modernismo contemporâneo oposto à tal tradição do

novo e aos modernistas zumbis.

O presente capítulo aborda exatamente a visão modernista sobre a tipografia

e o questionamento contemporâneo. De início, no entanto, explicitaremos a forma

como este trabalho entende o design, de modo que desde já fiquem claros para o

leitor os prováveis caminhos do texto.

O presente texto caminha em espécies de funis temáticos: do design à

tipografia; do humor ao chiste; etc. Esse caminhar, no entanto, não é

obrigatoriamente linear no sentido óbvio — o do afunilamento. Desse modo, estar

uma vez mergulhado na tipografia, por exemplo, não necessariamente implica

num não-retorno a um campo mais amplo e arejado conforme forem se

apresentando certas necessidades estruturais do raciocínio que rege o texto.

2.1 Design como linguagem, design como retórica

Averiguar, estudar, criticar, delimitar ou expandir campos do conhecimento

é uma tarefa essencialmente epistemológica. Também o é a busca por um

3 À qual, daqui pra frente, me referirei sem o uso das aspas.

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entendimento a respeito de como se constitui um determinado saber dentro de um

campo específico. É, pois, nessa direção que nos debruçamos agora.

Sendo assim, trazendo à discussão Ellen Lupton e Abbott Miller (1999),

Gustavo Bomfim (1997), Gustavo Bomfim e Denise Portinari (2005) e João de

Souza Leite (1997) levantaremos questões que circundam a relação do design com

aquilo que muitos autores convencionaram chamar de linguagem visual. Dessas

questões, remetemo-nos à possibilidade de se entender esse mesmo design como

linguagem — não uma linguagem própria, mas escamoteada de linguagens que há

muito são estudadas.

Em seguida, a partir principalmente de Richard Buchanan (1989), traremos

questões em torno da possibilidade de se falar em uma retórica própria dessa

linguagem do design. E aqui devemos deixar claro, mais por prudência acadêmica

do que pela real possibilidade de nos defrontarmos com dúvidas em torno dessa

questão, que entendemos por design não só o design gráfico — que, para

Buchanan, evidentemente já lida com técnicas próprias da retórica (1989:91) —

como também o design responsável pela configuração de objetos tridimensionais.

Ainda para abordarmos tal retórica do design, traremos também colocações

de Gui Bonsiepe (2001) e, novamente, João de Souza Leite (1997) e Gustavo

Bomfim (1997).

2.1.1 Linguagem visual ou design como linguagem?

Em Design writing research, Ellen Lupton e Abbott Miller colocam em

questão a freqüente concepção do design a partir de princípios que por muitos

anos, e ainda hoje, em muitos casos, são tidos como centrais na pedagogia desse

campo do saber. Princípios estes, intrinsecamente hostis “a uma aproximação

histórica ao design.”5 (LUPTON; MILLER, 1999:62). Referimo-nos a princípios

baseados na arte abstrata construtivista e na psicologia da Gestalt.

4 Com a publicação de Typographische mitteilungen de Jan Tschichold. 5 Todas as traduções do Inglês presentes nesse texto foram realizadas pelo próprio autor.

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Para os autores, o recorrente discurso de uma teoria da Gestalt aplicada ao

design é base de todo um corpo teórico estabelecido pelos modernistas onde

podemos observar que há um evidente “foco na percepção em detrimento da

interpretação.” (1999:62). Ignorando, em grande parte, o sujeito por trás do objeto

e a própria capacidade interpretativa do receptor do objeto, surge aquilo que

poderia dizer-se uma linguagem visual autônoma, positiva e fechada em si

mesma. É, pois, precisamente isso o que evoca livros famosos e lidos entre os

estudantes de design, como Sintaxe da linguagem visual (1973) de Donis A.

Dondis.

Lupton & Miller observam que

“Uma teoria do design que isola a percepção visual da interpretação lingüística encoraja a indiferença da significação cultural. Embora o estudo da composição abstrata seja impassível de objeção em si, os aspectos lingüísticos e sociais do design são trivializados ou ignorados quando a abstração é colocada como foco primário ao se pensar o design.” (LUPTON; MILLER, 1999:62).

Talvez possamos entender esse isolamento da percepção visual e essa busca

por uma significação positiva de elementos puramente abstratos (como o

quadrado, que, nesses discursos significaria estabilidade; ou o seu avesso: o

triângulo de cabeça para baixo, significando instabilidade) como um reflexo de

uma época quando as correntes constituintes do que hoje se entende por design

passavam a ansiar uma legitimação dessa atividade através de uma abordagem

cientificista.

Rafael Cardoso, em “Putting the magic back into design”, observa que

“Como parte dos seus esforços históricos de distanciar-se da tradicional arts and crafts, os designers freqüentemente perderam o foco desse aspecto mágico do que eles fazem, optando por ver o design como um tipo de engenharia guiada não por algo impreciso como criatividade e sagacidade, mas sim por rigorosas metodologias e protocolos de uma tendência cientifica e tecnológica.” (CARDOSO, 2004:12).

Nesse mesmo sentido, Gustavo Bomfim, em “Fundamentos de uma teoria

transdisciplinar do design” (1997), apresenta que

“Através do uso de ferramentas científicas o design praticamente abandonou a tradição, a maestria do artesão e o senso comum, características típicas da configuração no período pré-industrial, e passou a aplicar outros conhecimentos que permitem antecipar no plano teórico e representativo concepções formais para problemas de projeto.” (BOMFIM, 1997:28).

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Uma racionalização das formas abstratas já fazia parte do corpo teórico da

Bauhaus, que contava com Wassily Kandinsky e suas publicações como Ponto e

linha sobre plano (1925) e com o curso fundamental conduzido por Moholy-Nagy

(a partir de 1923). Tais teorias, que envolviam uma busca por uma significação

positiva das formas e cores, tinham como objetivo “substituir o sentimento

artístico predominante no processo criativo.” (BOMFIM; PORTINARI, 2005)6. Em

seguida, com a Hochschule für Gestaltung (ou Escola de Ulm), deu-se o passo

definitivo em direção à concepção de um design domado por princípios ditos

científicos.

Bomfim ainda traz que essa formação de um corpo teórico posterior à práxis

do campo em questão é comum em diversas áreas (como a arquitetura e a

medicina), mas, no caso do design, uma característica menos comum é que “os

conhecimentos demandados pela práxis pertencem a diferentes ramificações das

ciências clássicas, que se constituíram antes do surgimento do design” (1997:28).

Tal característica precisamente é o que faz do design um campo essencialmente

inter ou transdisciplinar. Disso, João de Souza Leite, em “O discurso do design

gráfico como polifonia”, observa que

“Além de ser uma atividade que exige o exercício de uma visão inter ou transdisciplinar, em sua dinâmica interior o design se caracteriza por um constante jogo entre objetividade e subjetividade, entre razão e intuição, entre o atendimento a questões dispostas pela exterioridade e uma necessidade de expressão.” (SOUZA LEITE, 1997)

Lupton & Miller, a respeito das teorizações que tratam as formas abstratas

como detentoras de uma linguagem própria e auto-suficiente, lembram que

“O termo linguagem visual é uma metáfora comum nos manuais do design moderno: um ‘vocabulário’ de elementos do design (pontos, linhas, formas, texturas, cores) é organizado por uma ‘gramática’ de contrastes (instabilidade/balanço, assimetria/simetria, suave/rígido, pesado/leve).” (LUPTON; MILLER , 1999:64)

Bomfim, por sua vez, estabelece que tais “gramáticas” da configuração de

objetos não se limitam a um único nível objetivo de apreensão destes. Portanto,

6 Citação referente a um artigo ainda inédito.

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assim como apontou Souza Leite, estas “gramáticas determinam níveis de

complexidade crescentes na relação objetivo/subjetiva.” (BOMFIM, 1997:38).

Os níveis de complexidade aos quais Bomfim se refere especificamente são:

nível objetivo (que diz respeito a elementos comumente tratados pela Gestalt,

como cor, textura, tamanho, etc.); nível bio-fisiológico (que se estabelece através

de relações sinestésicas que estabelecem a realidade entre o sujeito e o objeto);

nível psicológico (onde leva-se em conta a subjetividade daquele que lida com o

objeto e “onde ocorrem relações cognitivas, afetivas ou emocionais,

principalmente as de natureza estética”); nível sociológico (referentes a quando

“as características dos objetos transcendem suas realidades imediatas e adquirem

natureza simbólica”); e ainda trata da possibilidade de muitos outros níveis, como

aqueles de natureza cultural, ideológica e filosófica (1997:38-39).

Sendo assim, parece não fazer sentido falarmos de uma linguagem visual

onde o vermelho e o amarelo provoquem necessariamente a sensação de fome

(noção reducionista e bastante comum entre estudantes de design, marketing e

comunicação) quando levamos em conta fatores de nível psicológico, por

exemplo. Nesse nível psicológico, destarte, “uma cor poderá ser agradável ou não

ao gosto, se for associada a uma experiência prazerosa ou a um fato agradável;

enfim, a figura terá um significado único para cada sujeito.” (BOMFIM, 1997:39).

De forma mais sucinta, mas, ainda assim, nesse mesmo sentido, Lupton &

Miller defendem “Uma teoria do design orientada em direção à interpretação

cultural ao invés de uma percepção universal” (1999:63). Portanto,

“Na prática do dia-a-dia, (...) a percepção é filtrada pela cultura. O conceito de um objeto é tanto visual (espacial, sensual, pictórico) quanto lingüístico (convencional, determinado por um acordo social). O conceito de uma coisa é construído a partir visões convencionais e atributos aprendidos pela educação, arte e mídia de massa.” (LUPTON; MILLER, 1999:63).

A partir desses discursos, ao restringirmos o projeto ao uso de formas

abstratas, atingimos apenas um dos infindáveis níveis de complexidade de uma

relação que, em suma, se dá entre o sujeito e o objeto. Ao reduzirmo-nos a essas

concepções presentes numa pedagogia própria de um momento onde o design

buscava legitimar-se como campo através de uma muleta cientificista, deixamos

de lado a vasta gama de fatores subjetivos (sociais, culturais, psicológicos, etc.)

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que nos levam a compreender (ou não), aceitar (ou não) e assimilar (ou não) um

determinado enunciado projetado pelos processos do design.

Como lembram Lupton & Miller, é muito comum em cursos básicos de

design encontrar uma pedagogia que favoreça uma redução formal de imagens

carregadas de significados (de diversas ordens) em abstrações desprovidas de

qualquer significação prévia (1999:63).

Por outro lado, Lupton & Miller alertam para o fato de que a tamanha

complexidade dessa relação — que Bomfim chamou de objetivo/subjetiva e

Souza Leite entendeu como um jogo entre objetividade e subjetividade — não

deve nos inibir de buscar por uma teorização do design, já que não fazê-lo nos

levaria a um contra-senso:

“Muitos educadores e designers evitam princípios explícitos em prol de um ‘senso comum’ intuitivo e pragmático. Mas essa abordagem anti-teórica ainda é teórica. Qualquer posição é condicionada por estruturas intelectuais, mesmo que apenas vagamente definidas. Recusando-se a analisar o próprio preconceito, esse pragma-tismo reforça o viés principal da teoria modernista: o de suprimir a análise cônscia do lugar do design na história e na cultura.” (LUPTON; MILLER, 1999:65).

Assim, como designers, “Ao usarmos de teoria para conectar ao invés de

desconectar expressões visuais e verbais, podemos intensificar e dirigir o

significado cultural do nosso trabalho” (LUPTON; MILLER, 1999:65).

É, portanto, a partir desse entendimento do design como peça componente

de um complexo processo de significação que se constrói dentro de um ou mais

contextos (sejam sociais, culturais, psicológicos, emocionais) — algo

surpreendentemente ainda ignorado por alguns educadores e estudantes — que

podemos falar numa retórica do design; o que nos remete ao próximo tópico.

2.1.2 Uma retórica do design

Souza Leite, ainda em “O discurso do design gráfico como polifonia”,

define o profissional do design como “um construtor de discurso”, visto que “o

lugar que ocupa é o de intermediador em um processo comunicacional.” (1997).

Na posição daquele que projeta discursos visuais, o designer é o “maestro de uma

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polifonia” se levarmos em conta a “sua competência em trafegar em um sistema

complexo de discursos interagentes, onde a noção de interdiscursividade se faz

absolutamente necessária” (SOUZA LEITE, 1997).

Essa competência do designer em lidar com discursos freqüentemente

plurais tende a resultar em produtos de design carregados de uma argumentação

própria. Assim como o fez Souza Leite, Richard Buchanan, em “Declaration by

design”, entende que a articulação que gera essa argumentação trata de uma das

características constituintes do design como atividade e campo do saber

(1989:93).

Já Gui Bonsiepe, em “Retórica Visual/Verbal”, observa, que a prática dessa

retórica ainda “está muito mais adiantada que a teoria.”. E para constituí-la — tal

teoria — deveríamos recorrer à retórica clássica (BONSIEPE, 2001:207). Bonsiepe

parte dos princípios de que toda e qualquer comunicação só existe se nela existe

uma retórica dando-lhe forma e de que ao designer, enquanto comunicador,

compete a função de construir os argumentos visuais que dão corpo a essa retórica

(2001:209).

Buchanan, por sua vez, entende que só é possível falarmos de uma retórica

do design quando “o raciocínio tecnológico, o aspecto central do design que pode

parecer objetivo e remoto a valores e opiniões humanas, é (...) desenvolvido tendo

em vista um público.” (1989:106).

Pensar numa retórica do design em tais termos permite que

“ao invés de abordarmos a história e a prática corrente do design como um inevitável resultado de necessidade dialética baseado em condições econômicas ou avanço tecnológico, podemos abordar a aparente confusão da nossa cultura de produto como uma plural expressão de idéias diversas e freqüentemente conflitantes e debruçarmo-nos num exame minucioso da variedade e das implicações de tais idéias.” (BUCHANAN, 1989:109).

Quanto à natureza dessa retórica do design, Buchanan coloca que

“Ao contrário das palavras, que podem persuadir as pessoas a julgamentos específicos sobre o passado e o futuro e declarar atitudes, idéias e valores que são reconhecidos no presente, objetos de design7 declaram sua própria existência, e, através dessa existência, as atitudes que são partes integrantes de um tempo presente do objeto.” (BUCHANAN, 1989:107).

7 No original: designed objects.

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Nesse sentido, ao invés da retórica do design ser, em sua totalidade, análoga

à retórica verbal, podemos colocá-la num campo mais próximo àquele onde se

localiza a retórica das belas artes. Buchanan acredita que “objetos de design

declaram um status diferente das belas artes (...) mas a forma retórica é a mesma

em ambos os casos.” (BUCHANAN, 1989:107).

Para Buchanan, a argumentação através do design pode se dar a partir de

três elementos principais cujas fronteiras não são rígidas, mas borradas entre si:

raciocínio tecnológico, caráter e emoção. E esses três elementos podem conter —

cada um ao seu modo — sua própria retórica (BUCHANAN, 1989:96). Buchanan

faz desses três elementos de uma retórica do design uma analogia aos três modos

de persuasão da retórica clássica de Aristóteles, onde o raciocínio tecnológico, o

caráter e a emoção seriam o logos, o ethos e o pathos, respectivamente.

O raciocínio tecnológico, ou aquilo que Buchanan chama de “espinha dorsal

da argumentação do design” (1989:96), trata do modo como o designer lida com a

parte mecânica do produto em questão, ou melhor, com a parte cuja forma

primeira depende mais de aspectos de ordem tecnológica. O designer pode tanto

ostentar tais formas, evidenciando-as, ou pode trabalhar num percurso inverso

cujo objetivo seja mascará-las. Assim, o designer lida com tal raciocínio a partir

de duas abordagens: a primeira trata da aplicação de um conhecimento científico

prévio que serve de base para a elaboração de um determinado projeto

(abordagem familiar ao campo da engenharia); a segunda corresponde a premissas

relativas ao usuário — questões que giram em torno tanto da sua subjetividade

quanto das suas condições físicas de uso do produto de design em questão.

(BUCHANAN, 1989:96-101).

Essas premissas relativas ao usuário — relativas a determinadas

circunstâncias humanas — “é o que faz do raciocínio tecnológico um elemento da

arte da retórica na comunicação com públicos específicos ao invés de uma ciência

que preocupa-se apenas com princípios universalizantes.” (1989:97). É, pois, a

consideração de tais premissas que caracteriza muito do que se produz em termos

daquilo que convencionou-se chamar de design pós-moderno.

O próximo elemento a partir do qual pode se dar a argumentação através do

design é o caráter do objeto de design em questão. Esse caráter, para Buchanan, é

precisamente o reflexo do seu criador impresso no produto (1989:101).

Buchanan observa que o

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“design é uma arte da comunicação em dois níveis: o design esforça-se em persuadir o público não apenas que um determinado design é útil, mas também que as premissas, atitudes e valores do designer a respeito da vida ou do papel da tecnologia também são importantes.” (BUCHANAN, 1989:97).

Disso, observemos que o “problema do caráter em produtos é uma questão

fundamental do design no ambiente pós-moderno” (BUCHANAN, 1989:102). E,

quanto a isso, Buchanan alerta para o fato de que, em muitos casos, designs ditos

de vanguarda ao invés de avançar em termos de padrões culturais, ou de desafiar a

imaginação de forma construtiva, acabam resultando em pouca autoridade

argumentativa, visto que podem “parecer hostis e intimidadores, ou tão sutis que

passam despercebidos.” (1989:102). Nesse sentido, o uso da linguagem típica do

design moderno, por exemplo, é perfeitamente aceitável na pós-modernidade,

desde que este seja um reflexo da voz ativa do designer que lhe faz uso, e não um

resultado servil a um estilo opressor de caráter ditatorial8. Reforçando tal noção,

em “On overcoming modernism”, Lorraine Wild observa que no mundo de hoje a

urgência do designer não é ser um mestre da universalidade, “mas tornar-se um

participante do processo de comunicação, um co-conspirador, um co-autor, talvez

até um autor/designer.” (1997:60).

Por fim, o pathos da retórica do design — terceiro e último elemento desta

— é o que Buchanan chama de emoção. Esse elemento trata do modo como o

designer pode explorar uma argumentação na relação de contato ou contemplação

entre usuário e o produto de design (BUCHANAN, 1989:103). A partir de uma

argumentação nesse sentido, pode-se obter, por exemplo, uma sensação de

desconcerto e curiosidade num primeiro encontro entre usuário e artefato.

Da possibilidade de entendermos a figura do designer essencialmente como

um comunicador, como um maestro que lida com uma polifonia de discursos —

como elegantemente nos definiu Souza Leite — não é difícil entender tal papel

como algo necessariamente relacionado à construção de retóricas a partir dos

princípios e das particularidades de cada projeto.

8 Disso, é interessante trazermos o alerta de Wolfgang Welsh, em Perspectivas Para o Design do Futuro (1993), quando observa que não é prudente reduzir o design pós-moderno a uma mera negação estilística ao modernismo. Assim, “o conhecido ecletismo e o slogan ‘anything goes’ são formas demasiadamente em evidência, mas de modo algum obrigatórias da pós-modernidade.” (WELSCH, 1993).

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Levando em conta tudo o que observamos até então, podemos propor um

entendimento do design não como portador passivo de uma linguagem visual

positiva e autônoma (baseada em abstrações), mas como uma linguagem em si

que obedece a leis interconectáveis àquelas da linguagem verbal. Essa linguagem

do design apresenta-se, por sua vez, de modo inter ou transdisciplinar num

mercado sob a forma de retórica. Para cada projeto de design, camadas de retórica

são construídas a partir de contextos, situações e subjetividades incomensuráveis,

mas sempre em estado de observação pelo olhar atento do designer

contemporâneo.

No entanto, antes de nos debruçarmos nos detalhes desse olhar

contemporâneo do design, é imprescindível que visitemos uma outra etapa do

funil temático desse trabalho. Tudo o que viemos tratando até agora a respeito

desse design portador de múltiplos e complexos discursos pode, sem dificuldade,

ser observado através do ponto de vista do design responsável pelas formas e pela

organização espacial dos tipos: a tipografia.

Sendo a tipografia inquestionavelmente um tradicional campo de aplicação

do design gráfico, passemos a entendê-la dentro do raciocínio que estamos

construindo no presente texto. E, como ponto de partida desse novo caminhar, é

importante que nos aprofundemos naquilo que foi (ou é) o duro e vigilante olhar

modernista sobre a tipografia antes de voltarmos a tratar da visão contemporânea.

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2.2 Tipografia sob o olhar modernista

Durante o período em que prevaleceu aquilo que hoje chamamos de design

modernista9, essa perspectiva do design (e, principalmente, da tipografia) como

portador de expressividade e argumentação própria fora relegada em detrimento

de uma pretensa neutralidade universalizante quanto aos aspectos formais do

design em geral dentro de uma ideologia onde a forma é submissa à função. Ana

Cláudia Gruszynski, em A imagem da palavra (2007), observa que apesar de

podermos falar em várias modernidades estéticas, é possível identificarmos

agrupamentos de temas e tópicos homogêneos recorrentes nos discursos

modernistas (2007:29). Para a autora, a partir de Willemart, podemos distinguir:

“(1) a rejeição da tradição da arte e da literatura, em especial no que se refere aos ideais de beleza transcendente, universal e atemporal; (2) a busca do efêmero imanente baseada na valorização do novo, mutável, que compreende a invenção e a transformação do sentido; (3) a rejeição da modernidade burguesa, sobretudo no que se refere à valorização do progresso e à absorção de vários aspectos da vida pela técnica; (4) a busca de um tempo original, o que evidencia a melancolia pela unidade perdida na desagregação do presente” (GRUSZYNSKI, 2007:29).

Embora hoje, como pudemos observar a partir dos interlocutores

selecionados, exista uma recorrente e contundente crítica ao design que prioriza a

percepção em detrimento da interpretação — tanto no design em toda sua

amplitude, quanto especificamente no universo da tipografia (como veremos num

outro tópico) — muito dos dogmas modernistas ainda assombram esse campo do

saber. Poderíamos até arriscar que a tipografia foi a área de aplicação do design

gráfico que mais se viu numa posição de imobilidade criativa diante dos rígidos

ditames do pensar modernista.

Muito já se escreveu sobre a tipografia modernista, seja sob forma de elogio

seja sob forma de crítica. No entanto, não há dúvidas de que o trabalho mais

influente e conhecido sobre o tema veio não apenas sob forma de elogio, mas de

veemente apologia, de um manual bastante didático e convincente em seus

argumentos. Refiro-me, certamente, à basilar obra de Jan Tschichold, Die neue

Typographie, publicada originalmente em 1928 na Alemanha e, mais tarde, nos

9 Em vista de evitar confusões entre o uso dos termos “moderno”, “modernidade”, “modernismo”, etc., optou-se pelo uso exclusivo da expressão “modernista” para designar o design dotado das características explicitadas nesse tópico.

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Os tipos argumentam, ou a tipografia e o seu potencial expressivo 28

EUA sob o título de The new typography. Como veremos, Tschichold, de certa

forma, é uma cria da Bauhaus que viria a estar sob a luz dos holofotes graças à sua

didática sistematização da tipografia modernista para, mais tarde, ele mesmo

desligar os holofotes e sair de cena, deixando a platéia no campo do desconcerto.

Para L. Sandusky, em “Bauhaus tradition and the new typography” (original

de 1938), a Bauhaus surge negando a dicotomia entre belas artes e artes aplicadas

e busca, com isso, “entrar em acordo” com a máquina. A Bauhaus “oferecia, sem

qualquer paralelo na história, as condições corretas para o nascimento ‘do novo.’

Veio na hora certa, estabeleceu-se no local certo e atraiu os homens certos.”

(SANDUSKY, 2001:129). Para o autor, a tipografia geometrizada característica da

Bauhaus foi fortemente influenciada tanto pelo neoplasticismo holandês quanto

pelo construtivismo russo e húngaro (SANDUSKY, 2001:133). O minimalismo de

cores e formas do movimento liderado por van Doesburg parecia apropriado aos

princípios da tipografia sendo pensada naquela época; e quando van Doesburg

visitou a Bauhaus para promover o De Stijl, em 1921, a influência do

neoplasticismo já se fazia presente na escola há 2 anos (SANDUSKY, 2001:133).

Kees Broos, num artigo originalmente publicado na revista De Stijl (que, entre

1917 e 1931, serviu como vitrine dos ideais do neoplasticismo holandês), entende

que tal revista atuou como incubadora de muitas idéias e, ao mesmo tempo,

antagonista daquilo que estavam chamando de nova tipografia (2001:104).

O aspecto antagonista do neoplasticismo em relação a essa nova tipografia

se apresentava através da liberdade expressiva que esse movimento artístico

permitia aos designs e aplicações tipográficas em geral. Levemos em conta que,

ideologicamente, existem duas maneiras evidentemente distintas de se pensar e

abordar a tipografia; são estas: a) tratá-la como algo subserviente ao conteúdo, ao

texto, ao autor; e, por isso, conformá-la a um nível de invisibilidade; b) tratá-la

como detentora de função e expressividade autônomas ao texto e, a partir disso,

entendê-la como portadora de retórica. Muitos dos artistas envolvidos com o De

Stijl, incluindo o próprio van Doesburg, percebiam a tipografia por essa segunda

ótica, que, em alguns aspectos, opunha-se a parte daquilo que vinha se

construindo na Bauhaus (BROOS, 2001).

Segundo Broos, em 1927, Kurt Schwitters, que havia trabalhado com van

Doesburg em alguns poemas que faziam uso de experimentações tipográficas,

percebeu que muitos dos experimentos tipográficos sendo produzidos pelos

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colaboradores da De Stijl poderiam passar por uma adaptação e adquirir mais

apelo mercadológico (2001:104). Schwitters, então, funda o Ring neuer

Werbegestalter10 com outros quatro dos principais colaboradores da revista. Van

Doesburg, por sua vez, nega o convite do companheiro. Assim, os outros

membros do Ring acabariam sendo Piet Zwart, Hans Leistikow, Walter Dexel e o

jovem Jan Tschichold. As novas idéias do Ring difundiram-se entre várias

exposições e publicações da época. Um ano depois Tschichold já estaria

publicando o seu conhecido manual (BROOS, 2001:104).

Sandusky observa que da mesma forma que parte da Bauhaus entendia a

arquitetura como criadora de “máquinas para viver”, sob tal faceta a tipografia era

vista como uma “máquina para comunicar” (2001:135). Tratava-se de uma visão

construída a partir de princípios neoplasticistas e construtivistas fundidos e

transmutados em “funcionalismo utilitário”:

“No design para publicidade a intenção era projetar uma mensagem persuasiva na psique do leitor com o maior imediatismo de significação e o maior impacto psicológico possível. A munição dessa proposta incluía relações assimétricas das massas, linhas (concebidas como pontos ou massas em movimento), flechas, marcadores coloridos, contrastes verticais e oblíquos.” (SANDUSKY, 2001:135).

Segundo Sandusky, esses arranjos visuais e seus princípios de organização

eram derivados das pinturas abstratas da época (2001:135). Essa inspiração era,

por sua vez, confirmada por Jan Tschichold: “já que a nova tipografia se coloca na

função de criar tais arranjos, é possível que diversos trabalhos de pintores e

escultores abstratos ajam como modelos de inspiração.” (TSCHICHOLD apud

SANDUSKY, 2001:135).

Antes que Tschichold entrasse em cena para difundir sua visão do que seria

a tipografia modernista ideal, a tipografia da Bauhaus teve seus primeiros passos

nas mãos de Walter Gropius, Lászlo Moholy-Nagy e Herbert Bayer. Para

Sandusky, esses três homens possuíam a experiência e a inclinação à inovação

necessárias para conduzir os experimentos tipográficos que levariam ao

desenvolvimento da nova tipografia (2001:137).

Embora fosse o diretor da escola e tivesse interesse genuíno nos

desenvolvimento de tal tipografia, Walter Gropius via-se mais como um arquiteto

10 Ou, em português, “Círculo dos novos artistas da publicidade”.

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— de tal modo que seu papel nesse sentido foi menos evidente que o dos seus

companheiros. Moholy-Nagy e Bayer, por sua vez, não demoraram em fazerem-se

conhecidos em toda a Europa Central (SANDUSKY, 2001).

Em “The new typography”, texto de Moholy-Nagy originalmente publicado

em 1923, já se tinha como idéia central a tipografia enquanto “máquina para

comunicar.” Para o autor, a tipografia, como em toda boa máquina, tinha como

objetivo principal a performance. Nesse sentido, a ênfase das composições

tipográficas “deve estar na sua absoluta clareza” (MOHOLY-NAGY, 2001:108).

Nesse mesmo texto, Moholy-Nagy afirma que a tipografia deve estar alinhada ao

mundo moderno — que encontra-se num estado de transição onde nossa relação

intelectual com o próprio mundo caminha em direção ao que ele chama de

coletividade-exata, ou uma universalização objetiva oposta às antigas

individualidade-amorfa e coletividade-amorfa (2001:108). Posicionamento este

que reflete de forma inequívoca toda a inclinação modernista à busca de

princípios universais e positivos que possam reger atividades como a do design.

Para Moholy-Nagy a tipografia não podia ser submetida a estéticas pré-

concebidas ou encaixada em layouts pré-ordenados (2001:108) — princípio

clássico e repetido entre os difusores da nova tipografia que, em última análise,

revela-se contraditório, já que a proposta dessa nova tipografia lida exatamente

com formulações e grids que, a partir do mesmo raciocínio, tornar-se-iam seus

próprios antagonistas.

Como já vimos, há em parte do modernismo uma tendência a valorizar a

percepção em detrimento da interpretação. Quanto a isso, Moholy-Nagy

preocupava-se com a eficácia dos efeitos óticos produzidos pelas composições

tipográficas:

“Nós queremos criar uma nova linguagem tipográfica cuja elasticidade, variabilidade e frescor de composição sejam exclusivamente ditados pela lei interna de expressão e de efeito ótico.” (MOHOLY-NAGY, 2001:108).

Nesse sentido, a tipografia sob o olhar modernista de Moholy-Nagy é

dotada de capacidade ótica e expressividade distinta, mas, curiosamente, essa

expressividade deve ser totalmente condicionada e limitada pelo conteúdo verbal

que a tipografia dá forma. Assim, “a tipografia não é a expressão do autor a partir

de estéticas pré-determinadas, mas é condicionada pela mensagem a qual dá

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forma.” (BAYER, 2001:110). Herbert Bayer não só compartilhava com Moholy-

Nagy suas idéias gerais quanto à tipografia modernista, como foi um dos

principais autores do tema e formulador de muitas das questões levantadas e

repetidas entre os tipógrafos da época. Em “On typography”, texto de 1967

originalmente escrito sem o uso de qualquer letra maiúscula (em conformidade

com as revisões ortográficas propostas pelo autor), Bayer relembra muitas dessas

questões com salutar nostalgia.

Para Bayer, foi através dos tipógrafos dos anos de 1920 que a

“tipografia foi vista, pela primeira vez, não como uma disciplina isolada e técnica, mas inserida no contexto da expansão das experiências visuais que o símbolo gráfico, a fotografia, o filme e a televisão trouxeram.” (BAYER, 2001:110).

Continuando, Bayer reforça que essa

“revolução tipográfica não foi um evento isolado, mas aconteceu de mãos dadas com uma nova consciência social e política e, conseqüentemente, com a construção de novas fundações culturais.” (BAYER, 2001:111).

Disso, Bayer afirma que ao aceitar a máquina como ferramenta de produção

em massa da sua obra, o artista, o designer, o tipógrafo, tem suas percepções e

conceitos estéticos alterados, adaptados àquilo que Bayer chama de “era da

ciência” (2001:111). Essa assimilação da “estética da máquina” é recorrente na

Bauhaus e mostrar-se-á importante nos textos de Tschichold. Na lógica desse

discurso o design é funcionalizado a serviço da ciência; Bayer, quanto a isso,

chega a propor alterações na escrita e no alfabeto de modo que este passe a

atender aquilo que ele entende por demanda científica da época. O autor afirma

que

“a história do nosso alfabeto e qualquer investigação em torno da sua efetividade ótica expõe uma falta de princípio e estrutura, precisão e eficiência, as quais deveriam ser evidenciadas nessa importante ferramenta.” (BAYER, 2001:111).

Bayer ainda afirma que ao tentar projetar tipografias mais “eficientes”,

redesenhar tipos não basta. O designer precisa focar-se principalmente nos efeitos

óticos das letras e numa revisão da escrita de modo que obtenha-se como

resultado uma “relação mais clara entre o escrito-impresso e a palavra falada, uma

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reorganização dos sons-símbolos alfabéticos, a criação de novos símbolos.”

(BAYER, 2001:111).

Ainda, Bayer acreditava que uma revitalização tipográfica surgiria a partir:

“a. do aumento das demandas ao aparato psicofisiológico das nossas percepções; b. de um novo alfabeto; c. das diferentes formas físicas que os suportes da tipografia tomarão.” (BAYER, 2001:111-112).

Bayer estava seguro de que a partir do início da modernidade fomos todos

tomados por uma espécie de superexposição visual que estaria fatigando e

entorpecendo nossa capacidade de enxergar (2001:112). Assim, suas propostas de

reformulação tipográfica justificavam-se exatamente na necessidade de revitalizar

um gosto pela leitura através de um novo frescor tipográfico (BAYER, 2001:112).

São curiosas ainda as justificativas de tom cientificista expostas pelo autor:

“poucos sabem que o ato de ver é trabalhoso, que demanda mais de um quarto da energia nervosa que o corpo humano produz. ao ler esse artigo você precisa re-focar conforme você passa de palavra a palavra. muita energia é requerida para piscar e girar os globos oculares. ainda mais é necessária pelos pequenos músculos ciliares para alterar a forma do cristalino para focar. o esforço de enxergar contribui bastante com o cansaço físico.” (BAYER, 2001:112).

O caráter cientificista dos argumentos reflete bem o momento em que o

design buscava se estabelecer e se legitimar enquanto atividade moderna; e Bayer

parece bastante determinado ao interpretar tal papel: o autor elabora uma lista de

possíveis melhorias e mudanças a serem implementadas aos costumes tipográficos

da época. Dentre tais sugestões, temos: mais pesquisas científicas que abordem

detalhadamente o funcionamento da visão e da percepção visual; mudanças

estéticas na comunicação visual publicitária através do uso correto de tipografias

funcionalistas; redução na largura das colunas em textos corridos a fim de facilitar

a leitura; repensar a orientação estritamente horizontal e contínua da leitura

ocidental, desde que os resultados provem-se mais funcionais e eficientes quanto a

sua comunicabilidade; uso inteligente do contraste entre cores nos textos,

optando-se por contrastes suaves ao invés de variações bruscas como o preto no

branco; variar as cores dos suportes tipográficos, evitando-se a monotonia e

conservando-se um frescor no ato de ler;11 e, por fim, o desenvolvimento de uma

11 Notemos que embora algumas dessas propostas formais de Herbert Bayer (principalmente aquelas que dizem respeito a uma reformulação espacial) possam soar

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comunicação visual de características universais, de modo que aos poucos possa-

se quebrar as barreiras lingüísticas existentes entre as nações (BAYER, 2001:112-

114). Nessa busca por uma comunicação universal, Bayer evoca abertamente a

ciência como parceira do artista visual. Nesse sentido, a ciência deve tornar-se sua

“companheira e dar-lhe suporte com metodologias precisas para um tratamento

mais objetivo dos problemas visuais.” (BAYER, 2001:112).

Mais tarde, sob forte influência da Bauhaus e dos trabalhos e textos de

Herbert Bayer, Karel Teige e Jan Tschichold dariam continuidade às formulações

da nova tipografia (SANDUSKY, 2001:136-137). Primeiramente, Karel Teige seria

quem viria a resumir as seis premissas básicas que serviriam como o fio condutor

do trabalho de Tschichold:

“(1) Libertação da tradição. (2) Simplicidade geométrica. (3) Contraste de material tipográfico. (4) Exclusão de qualquer ornamento que não seja ‘funcionalmente’ necessário. (5) Preferência por fotografia, composição mecânica e combinações de cores primárias. (6) Reconhecimento e aceitação da “era das máquinas” e do propósito utilitário da tipografia.” (SANDUSKY, 2001:137).

Então, com o seu The new typopraphy de 1928, Tschichold torna-se o

protagonista desse movimento modernista da tipografia. Para Otl Aicher, em

“Typografical warfare” (original de 1988), Tschichold propôs uma tipografia

funcionalista que tinha como pretensão eliminar os traços ideológicos presentes

até ali em prol de uma objetividade adquirida através de processos metodológicos

(2001:157). Disso, Tschichold ainda vem a “liberar a Bauhaus da sua moldura

Expressionista” (AICHER, 2001:157).

Para Tschichold — como foi para Bayer — o mundo moderno disseminava

nas pessoas certa impaciência e indisponibilidade quanto ao ato de ler (2006:64).

Diante dessa situação uma nova tipografia, sob a visão modernista e, por isso,

condizente com as regras dessa modernidade, fazia-se necessária (TSCHICHOLD,

2006:64). Tschichold traz o lema modernista de que a forma deriva da função

afirmando que tanto “a natureza quanto a tecnologia nos ensinam que a ‘forma’

não é independente, mas cresce a partir da função (propósito), a partir dos

materiais usados (orgânicos ou técnicos), e a partir de como é usada.” (2006:65).

surpreendentemente contemporâneas, seu espírito essencialmente modernista reside no fato que tais sugestões se dão no âmbito de uma busca por objetividade e melhor “desempenho” quanto à percepção do observador.

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Assim, tanto os aviões, os carros, os navios (resultantes da tecnologia), quanto

produtos da natureza teriam suas formas regidas por princípios de “economia,

precisão, fricção mínima, etc.” (TSCHICHOLD, 2006:65); princípios estes que

deveriam mostrar-se presentes no processo de design. Desse modo, seguindo os

passos que vinham sendo dados pela arquitetura, a tipografia também deveria

libertar-se “das suas presentes formas superficiais e dos seus chamados designs

‘tradicionais’ já fossilizados há tempos.” (TSCHICHOLD, 2006:65). É irônico que

cerca de seis décadas depois de tal afirmação o próprio Tschichold seja

crucificado e acusado de engessamento tipográfico pelos designers simpáticos à

pós-modernidade.

Em consonância com as premissas de Teige, Tschichold deixa claro em seu

livro que aquilo que está propondo não é um equilíbrio entre beleza e forma, mas

uma revolução tipográfica em dois níveis: primeiramente, a partir da destilação

completa de qualquer tipo de adorno, uma necessária e absoluta “omissão de tudo

o que não é necessário” (TSCHICHOLD, 2006:69):

“Essa clareza radical é necessária hoje devido às múltiplas reivindicações à nossa atenção feitas pela quantidade extraordinária de impressos, que exigem uma maior economia de expressão. O gentil balançar do pêndulo entre o tipo ornamental, a (superficialmente compreendida) ‘beleza’, e os ‘adornos’ por adições externas (ornamentos) jamais poderiam produzir a pureza formal exigida hoje em dia.” (TSCHICHOLD, 2006:66).

Existe em Tschichold todo um discurso em torno da sua crença de que uma

pureza formal seria a melhor forma de se apresentar tipograficamente para o

homem moderno, já que o ornamento denota uma “ingenuidade infantil”

(TSCHICHOLD, 2006:69). Disso, Tschichold acredita que a adoção de formas

“puras” no seu entorno físico projetado reflete a “evolução” de um povo, um

abandono da condição primitiva (2006:69). A partir de Adolf Loos, Tschichold

traz como exemplo a idéia de que os povos ditos primitivos tendem a se

ornamentar mais, que “insistir no uso de decoração é colocar-se no mesmo nível

de um índio”, e que o “índio dentro de nós deve ser superado” (LOOS, 1898 apud

TSCHICHOLD, 2006:69).

Essa cisão com a tradição que Tschichold busca ancora-se, portanto, num

entendimento de que não se deve fazer design a partir de idéias pré-concebidas

(presentes numa outra época), mas através de uma transparência que exprima de

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forma objetiva e direta “o conteúdo daquilo que está impresso” e,

conseqüentemente, “o espírito do homem moderno.” (2006:67). Além disso,

Tschichold não acredita que essa nova tipografia guiada pelo princípio da

economia formal limite o designer em termos de variedade e opções, já que outro

importante princípio da sua equação tipográfica é o da assimetria. Esse seria o

segundo nível da revolução tipográfica proposta por Tschichold. É, portanto, a

partir do uso de estruturas assimetrias na composição das páginas que a nova

tipografia torna-se, para Tschichold, mais variada e adequada à “diversidade da

vida moderna” (2006:68) que a tipografia tradicional (geralmente organizada em

eixos centralizados). Assim, essa nova tipografia, “ao mesmo tempo em que

permite uma maior flexibilidade no design, também encoraja uma ‘padronização’

na construção de unidades, como em edificações.” (TSCHICHOLD, 2006:68).

Em outras palavras, o que a nova tipografia propunha era uma inversão

diametral na relação entre estrutura e forma do princípio que, para Tschichold,

regia a tipografia tradicional. Enquanto as tipografias antigas eram aprisionadas

num eixo centralizado em termos de organização espacial e layout, a nova

tipografia propôs uma descentralização, uma assimetria nessa organização; e os

papéis também se inverteriam em relação ao design dos tipos12: a tipografia

tradicional permitia (e até encorajava) um uso livre de ornamentos e adereços,

enquanto a nova tipografia, como vimos, abomina qualquer tipo de “excesso

formal” nas letras e busca as suas formas puras e claras (TSCHICHOLD, 2006).

Quanto a esse design de tipos, Tschichold acreditava que o uso de serifas

nos caracteres não só maculavam sua desejada pureza formal, quanto remetiam a

um passado que deveria estar sendo ignorado (2006:73). Ao mesmo tempo em

que faz previsões de um futuro onde não existirão tipografias não-modernistas,

Tschichold acredita que a nova tipografia não deve refletir expressões pessoais,

mas a época na qual se insere:

“Qualquer escrita, especialmente tipográfica, é antes de qualquer coisa uma expressão do seu próprio tempo, assim como o homem é o símbolo do seu tempo. O que os tipos textura e rococó expressam não é religiosidade, mas o Gótico, não é alegria, mas o Rococó; e o que os tipos sem serifa expressam não é falta de sentimento, mas o século vinte! Não há qualquer expressão do designer, nem esse

12 Entendamos design de tipos como o campo da tipografia que lida especificamente com o desenho dos caracteres e glifos em geral.

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nunca foi seu objetivo, exceto nos primeiros anos do nosso século.” (TSCHICHOLD, 2006:77).

Portanto, da mesma forma que os ornamentos das tipografias tradicionais

teriam expressado o espírito das épocas em que estas nasceram, a geometrização e

a economia de formas da nova tipografia representariam a clareza e o “foco no

essencial”; ou seja, aquilo que Tschichold acreditava ser a essência do seu tempo

(2006:78).

Para o autor, a nova tipografia também não deve refletir características

regionais, já que este acredita — assim como o fez Moholy-Nagy — que o mundo

caminha para uma inevitável internacionalização (2006:74-75). Desse modo,

expressar sabores nacionais numa tipografia13 seria caminhar contra a proposta

modernista, seria olhar para o passado. E, para Tschichold, às tipografias

tradicionais resta somente servirem de eventuais paródias “dos ‘bons e velhos

tempos’; (...) assim como os pomposos uniformes dos generais e almirantes

Vitorianos degradaram-se a vestidos espalhafatosos.” (2006:74). Como observa

Gruszynski, esse design derivado da Bauhaus funciona através de uma razão

instrumental presente numa determinada linha do modernismo “onde um conjunto

de regras elementares e universais é aplicado independentemente de

particularidades locais e/ou culturais.” (2007:51-52).

Dentre as orientações fornecidas por Tschichold em seu manual, temos

informações quanto ao uso de contrastes nas cores e formas. O autor entende que

o “verdadeiro significado da forma se evidencia através do seu oposto.”

(TSCHICHOLD, 2006:70). Então, — curiosamente contrário ao que propunha

Herbert Bayer — Tschichold valoriza o uso intenso de pretos e brancos chapados

nas peças tipograficas (2006:72). E em relação às cores em geral, Tschichold —

agora em consonância com Bayer — acredita que a escolha destas deve acontecer

a partir das suas funções de ordem “fisiológica”, e não através de seus valores

“literários”14 ou culturais (2006:72-73).

13 Tschichold usa o estilo fraktur como exemplo de tipografia a ser deixada de lado por conter características “enfaticamente nacionalistas” (2006:74-75).

14 Para Tschichold, entender as cores a partir de seus significados culturais (como vermelho significando amor, preto, a morte, etc.) não tem valor algum; as cores precisavam ser utilizadas a partir de suas funções fisiológicas (como a idéia de que o branco brilha, o vermelho “vem à frente”, etc.) (2006:73).

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Os tipos argumentam, ou a tipografia e o seu potencial expressivo 37

Temos aí um pequeno, mas relevante, dado que indicia subjetividade no

discurso modernista dito objetivo. Como podem os autores — Tschichold e

Bayer, ambos bastante reconhecidos e relevantes para o pensar do design

modernista — acreditarem no uso funcional das cores a partir de princípios

científicos da percepção e, ao mesmo tempo, defenderem escolhas de contraste

essencialmente opostas? Enquanto um opta por cores de menos contrastes (com

tons de cinza), objetivando não agredir tanto a vista (BAYER, 2001:113-114), outro

acredita que os grandes contrastes fazem com que o texto “funcione” melhor

(TSCHICHOLD, 2006:72-73). Vale ressaltar que as defesas de ambos se dão através

de detalhes científicos a respeito de como fisiologicamente recebemos as cores.

Portanto, fica claro, no mínimo, que a funcionalidade buscada por esses autores do

design modernista não era tão funcional (ou objetiva) quanto eles pregavam.

Em conformidade com Bayer, mas mais cauteloso em seus argumentos,

Tschichold crê que o uso de um alfabeto único, internacional e sem a presença de

maiúsculas seja bastante vantajoso em muitos sentidos, pois

“resultaria em grandes economias de energia espiritual e intelectual gastas hoje em dia: podemos mencionar aqui o ensino da escrita e da ortografia, uma grande simplificação das máquinas de escrever e técnicas de datilografia” (TSCHICHOLD, 2006:80).

A lista de Tschichold ainda se estende às facilidades no design de tipos e

nos seus processos de impressão. Para Tschichold, teríamos vantagens ainda

quanto ao aspecto visual dos textos escritos apenas em minúsculas, que, para o

autor, seria ausente de falhas. Assim, “vantagens científicas seriam combinadas

com (vantagens) estéticas.” (TSCHICHOLD, 2006:80).

E, mais uma vez trazendo questões propostas por Bayer (e de modo similar

em termos de aprofundamento modesto da questão), Tschichold prevê uma

tipografia que seja, ao máximo, invisível e refletora da linguagem verbal. O autor

então propõe que “Escrevamos como se fala!” para diminuirmos o peso de uma

filologia muito aprofundada presente na lingüística (TSCHICHOLD, 2006:81).

No entanto, a despeito de tudo o que foi apresentado até aqui, todo esse

fervor ideológico de Tschichold pela sua formulação da nova tipografia

inicialmente proposta pela Bauhaus não durou muito. Apesar da crescente

influência da sua obra entre os designers da época, cerca de uma década após a

publicação de Die neue Typographie (1928) o próprio Tschichold viria a rejeitar

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várias das idéias que ele ajudara a disseminar com aquele livro, voltando-se para

um design de características mais tradicionalistas e simétricas (KELLY , 2001:139).

Ruari McLean — designer da Thames & Hudson e assistente de Tschichold

na Penguin Books — fora procurado por Tschichold em 1967 para traduzir para o

inglês uma versão completamente modificada e atualizada do seu mais importante

livro. Segundo McLean, Tschichold certa vez lhe disse:

“O que eu faço hoje já não se alinha com meu freqüentemente citado livro Die neue Typographie, já que eu sou o maior crítico do jovem Tschichold de 1925-8. Um provérbio chinês diz que ‘na pressa, o erro.’ Muitas coisa daquele manual está errada porque minha experiência era muito pequena.” (TSCHICHOLD apud MCLEAN, 2006:x).

Essa nova versão traria inúmeras alterações tanto no seu projeto gráfico

quanto no seu conteúdo — “por exemplo, toda a seção sobre padronização havia

sido removida.” (MCLEAN, 2006:ix). No entanto, Tschichold morreu em 1974 sem

ter conseguido que essa versão em inglês e revisada do livro fosse publicada. No

entanto, editoras interessaram-se por uma tradução do livro original sem

alterações, o que foi feito pelo próprio McLean em 1993 e publicada em 1995

(MCLEAN, 2006:x). De modo geral, esse novo posicionamento de Tschichold

provocou uma sensação de traição e diversas críticas por parte de alguns nomes do

design modernista, como, por exemplo, Max Bill (KELLY , 2001:139). Para

McLean, “Tschichold fora criticado porque ele pregou um evangelho

revolucionário, depois mudou de idéia e voltou para o convento.” (apud KELLY ,

2001:139). Em “The consistency of Jan Tschichold”, Jerry Kelly levanta algumas

questões em torno dessa mudança de perspectiva abertamente declarada por

Tschichold. Kelly afirma que num determinado momento Tschichold enxergou

óbvias similaridades entre suas restrições tipográficas e suas formas

“militarizadas” com os excessos do fascismo de Goebbels (KELLY , 2001:139). O

próprio Tschichold justifica sua mudança com o fato de não querer sentir-se

“culpado por disseminar exatamente a idéia que o levou a abandonar a

Alemanha.” (apud KELLY , 2001:139). Em outras palavras, Tschichold se deu

conta do caráter impositivo e autoritário do discurso que inicialmente pregava.

No entanto, em seu texto, Kelly ainda identifica no “novo” Tschichold

alguns traços característicos daquilo que tornara sua nova tipografia o exemplo

máximo da tipografia modernista. Kelly acredita que o Tschichold pós-Alemanha

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aproximou de forma inteligente o design tradicional simétrico da sua primeira

proposta de design assimétrico (2001), mesmo que esse Tschichold moderado não

seja o Tschichold ao qual a maioria se refere quando o assunto é tipografia.

Em seu parecer, Otl Aicher crê que Tschichold não se vendeu a uma visão

tradicionalista da tipografia, mas que simplesmente foi honesto ao admitir que

aquela tipografia sem serifa e geométrica, a qual uma vez idolatrou, não era

totalmente apropriada para textos corridos (2001:157). Desse ângulo, observemos

que embora Tschichold tivesse como objetivo inicial a elaboração de uma

tipografia funcionalista que eliminasse traços ideológicos do que estava sendo

feito até ali, a proposição de Tschichold — a nova tipografia — em si já carregava

um discurso de alto teor ideológico. Nesse sentido, o trabalho de Tschichold

sempre foi “de análise e experimentação dentro da disciplina de uma ideologia.”

(SANDUSKY, 2001:136-137).

Na formação do design enquanto campo, Aicher entende que já no início do

século XX houve aquilo que ele chama de “declaração de guerra tipográfica”;

enquanto a tipografia tradicional continuou a representar o establishment, uma

nova tipografia avessa ao historicismo e ao classicismo buscava impor-se como

essencial através de discursos emprestados da ciência e das artes modernas

(AICHER, 2001:157). Para Aicher, o descontentamento entre ambas as partes,

como em toda guerra, se dava no plano ideológico (2001:157). E embora não

possamos afirmar que a nova tipografia tenha obtido a incontestável (e utópica)

vitória que almejava, não há como negar os resultados da sua força ideológica.

Sem duvida alguma, Tschichold e seus companheiros influenciaram

consideravelmente toda a produção tipográfica de duas gerações inteiras e,

embora num outro plano, influenciam ainda hoje tanto a prática quanto o ensino

da tipografia — principalmente a partir de reforços como o da escola suíça e da

Escola de Ulm.

O movimento opositor às regras e formulações da tipografia modernista só

viria a tomar corpo teórico e se evidenciar a partir de meados dos anos de 1980,

tendo como base teorias pós-estruturalistas e a desconstrução proposta por

Derrida. Teríamos, com isso, as bases iniciais do caminhar de uma segunda

grande guerra tipográfica.

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2.3 Tipografia no ambiente pós-moderno, o olhar liberta dor

Como lembram Ellen Lupton e Abbott Miller no texto “Deconstruction and

graphic design”, inserido em Design writing research, é a partir da década de

1980 que surge no jornalismo especializado em design o termo “desconstrução”

para designar um estilo característico presente na arquitetura, design gráfico,

design de produto e design de moda (1999:03). De maneira reducionista, pode-se

descrevê-lo como um estilo que favorecia a sobreposição de camadas, formas

fragmentadas e retalhadas, freqüentemente imbuída com imagens de aparência

futurista (LUPTON; MILLER, 1999:03).

Lupton & Miller ressaltam que esse repertório estilístico da desconstrução é

o resultado visual e fragmentado decorrente de princípios oriundos do pensamento

pós-estruturalista (1999:03). Sendo assim, o termo “desconstrução” aqui

empregado é referente àquele cunhado por Jacques Derrida em De la

grammatologie de 1976, onde o autor coloca em questão o Cours de linguistique

génerále de Ferdinand de Saussure, publicado originalmente em 1916.

Em sua obra capital, Saussure entende que o signo em si não possui nenhum

tipo de significado inerente. Os signos são vazios e não têm vida fora da

“estrutura” que os cercam. Essa linha de pensamento, que nos leva

invariavelmente à condição arbitrária da formação da língua, leva Saussure

promover uma irritadiça e ácida crítica à escrita em oposição à fala (LUPTON;

MILLER , 1999:11-12).

Nesse sentido, Saussure reserva suas críticas mais duras à escrita fonética

em especial, acreditando que escritas pictográficas — como a chinesa — possuem

menos “conseqüências perturbadoras”, já que seus usuários possuem consciência

do seu papel supostamente secundário à língua falada, enquanto os usuários da

escrita fonética tendem a confundi-la com a língua falada em si (1916 apud

LUPTON; MILLER, 1999:12).

Sendo assim, Derrida, em sua crítica à visão de mundo dicotômica do

estruturalismo de Saussure, trata em especial da questão da fala em relação à

escrita. Para Derrida, “a tradição filosófica Ocidental tem denegrido a escrita a

uma cópia inferior da palavra falada” partindo do princípio que a “fala evoca uma

consciência interior, enquanto a escrita é a palavra falada morta” — tratar-se-ia

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este de um princípio inserido na chamada lógica logocentrista que rege a obra de

Saussure (LUPTON; MILLER, 1999:04).

Derrida, então, inverte os papeis que Saussure atribui à escrita fonética e à

fala, afirmando que a escrita fonética, por explorar a lacuna entre o significante e

o significado, não é apenas um reflexo secundário da língua, mas um sintoma da

falta de presença dessa mesma língua, da sua falta de completude interior

(LUPTON; MILLER, 1999:12). Desse modo, Derrida entende que o a lógica de

Saussure é contraditória em sua base. Se os signos são mesmo sempre arbitrários e

não-motivados, como sugere Saussure, “e se a linguagem falada e escrita são

‘dois sistemas distintos de signos’, como é então possível que ele diga, em certas

passagens, que a escrita é uma ‘imagem’ ou ‘figuração’ da linguagem?”

(CAUDURO, 1998:84).

Além disso, Saussure parece não levar em conta que mesmo a escrita

fonética detém inúmeros caracteres e artifícios gráficos não-fonéticos que, em

última instância, comunicam dentro de suas próprias regras. É o caso, por

exemplo, das pontuações, da diferença contextual entre maiúsculas e minúsculas e

do espaçamento projetado entre letras, palavras, frases, parágrafos e colunas.

Nesse sentido, Derrida observa que as fronteiras entre escrita fonética e

pictográfica não são tão rígidas quanto Saussure tentava demonstrar (LUPTON;

MILLER , 1999:13).

É evidente que além de conter em si esses elementos não-fonéticos

suplementares às letras, o texto relaciona-se com o próprio suporte onde está

inserido. E não parece soar como um disparate entender que essa relação texto-

suporte pouco (ou nada) relaciona-se morfologicamente à fala.

Disso, não precisa muito para supor que não demoraria até que essas

discussões em torno da escrita viessem a contaminar também o campo da

tipografia. Em seu texto intitulado “Desconstrução e tipografia digital”, o

professor Flávio Cauduro aborda o tema e entende que a “intenção de Saussure é

clara: ele está ansioso para reduzir toda a escrita à mera função de anotadora da

linguagem falada, para torná-la uma simples notação.” (1998:82).

Evocando Jonathan Culler de “On deconstruction” de 1982, Cauduro lembra

que toda a lógica logocentrista “sempre privilegiou o sentido pretendido pelo

autor da mensagem ou texto, considerando o leitor passivo de idéias comunicadas,

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assim renegando a produção ativa de outras significações” (1998:86). E,

estendendo-se na descrição do pensar logocentrista, Cauduro ainda lembra que:

“A escrita (...) tem sido olhada com desconfiança pelos filósofos, desde os tempos de Platão porque, em sua concepção, ela media as palavras faladas de um locutor ausente; ela introduz ambigüidades assim como padrões visuais artísticos, retóricos, que ‘distorcem’ o pensamento.” (CAUDURO, 1998:86).

Cauduro sugere que a tipografia, até os anos finais do século XIX ,

desempenhava uma função essencialmente instrumental, “dedicada à difusão

genérica de informações, gravadas de uma forma perene sobre suportes planos em

grande escala.” (1998:77). Para o autor, foi com o aperfeiçoamento da litografia e

o surgimento de movimentos como o art nouveau que “essa concepção secular

passou a ser contestada” (1998:77). Assim, consideravelmente livre de

determinadas amarras de ordem técnica, a tipografia da época adquire formas

mais expressivas. Cauduro observa acidamente que, no entanto,

“a vitalidade e a inventividade desses pioneiros, assim como dos futuristas, dadaístas e surrealistas que lhes seguiram, foram sendo gradualmente domesticadas, racionalizadas e reprimidas pelos funcionalistas da Bauhaus, que preferiram cultivar a elegância calculada e a economia extrema de formas, que deveriam ser claras, ordenadas, racionais, geométricas e repetitivas, como utilizadas pelo movimento De Stijl, pelos suprematistas, e pelos construtivistas e evitando ao máximo a ornamentação e a disposição espontânea, intuitiva ou ao acaso dos elementos gráficos utilizados (que também eram reduzidos a um número muito pequeno).” (CAUDURO, 1998:77).

Cauduro ainda acusa a escola suíça, que sucedeu a Bauhaus, de reprimir

ainda mais “quaisquer subjetivismos, regionalismos ou ‘estilismos kitsch’ que

ameaçassem contaminar as formas tipográficas ascéticas (dos) minimalistas

alemães” (1998:78). E, embora “um dia tivessem sido inéditas e não-redundantes,

essas soluções padronizadas e repetitivas eram camisas-de-força para designers

talentosos e inovadores.” (CAUDURO, 1998:78-79). Por essa ótica, o design teve

nos princípios constituintes da nova tipografia o seu maior representante do

pensamento essencialmente logocentrista; que, por sua vez, viria a ser contestado

a partir dos autores do design pós-moderno.

O fato é que todo o conceito de desconstrução exerce grande importância na

formação crítica do design pós-moderno e, principalmente, da sua tipografia —

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diante da oposição fala/escrita de Saussure desconstruída por Derrida. Quanto à

noção de desconstrução, Gruszynski afirma que:

“Ao trabalhar outra perspectiva de comunicação, esta filosofia apontou o quanto a construção do sentido é dependente do contexto cultural e social, da subjetividade do receptor/leitor. As formas gráficas passam a ser entendidas como significantes ambíguos que adquirem diferentes sentidos na medida em que se inserem em contextos distintos. O pastiche e a citação, recursos amplamente usados pelo design gráfico contemporâneo, colocam em xeque também a noção de originalidade.” (GRUSZYNSKI, 2007:85).

Tal noção nos remete a Wolfgang Welsch, que — buscando definições

daquilo que seria um design pós-moderno e evocando o posicionamento de

Derrida a respeito da desconstrução (e, conseqüentemente, da revalorização da

materialidade do signo) — afirmou que a pós-modernidade lida mais com “design

de contexto e de estrutura ao invés de design de objetos.” (1993).

No entanto, propor-se a classificar ou pontuar características da produção do

design inserido no ambiente pós-moderno não só está longe do escopo do presente

trabalho, como pode revelar-se uma armadilha. Afinal, a própria pós-modernidade

parece escorregadia quando o assunto é rotular ou formatar de alguma maneira.

Delicadamente, portanto, tratemos do reflexo da pós-modernidade no design para,

em seguida, voltarmos o foco à tipografia.

2.3.1 Fragmentos de um design pós-moderno

Até o advento do desktop publishing, em meados da década de 1980, a

camisa-de-força ideológica de certa forma ainda caminhavam de mãos dadas com

a camisa-de-força de ordem técnica (principalmente em termos de acesso a

determinadas tecnologias, como no caso da litografia). Assim, o surgimento da

computação gráfica, o desenvolvimento da linguagem PostScript e,

principalmente, a facilidade de acesso a essas tecnologias a partir da

popularização dos personal computers e, mais tarde, da internet, se enquadram

entre as condições necessárias para um novo boom de experimentalismo e

inventividade no campo da tipografia.

Nesse sentido, mas tratando em específico da tipografia, Cauduro ressalta:

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“O PostScript liberta assim a criação tipográfica da tirania milenar da forma do tipo de metal e do aprisionamento imposto aos elementos tipográficos pela grade bi-dimensional da escrita produzida fotomecânicamente” (CAUDURO, 1998:97).

Assim, a atividade que até a era digital era predominantemente desenvolvida

por pessoas com algum grau de instrução técnica ou de ensino prévio formatado

nos moldes daquilo que era idealizado como “bom design”, passa, então, a ser

inundada por uma infinidade de curiosos. Esses aventureiros digitais, mesmo sem

qualquer instrução anterior, agora não só tinham acesso às ferramentas

necessárias, como faziam uso destas sem muita preocupação com o resultado, já

que no mundo digital todo erro é perdoado na combinação das teclas ctrl e z. Essa

liberdade do ctrl+z traduz-se como um dos fatores que permitiu a abertura de

portas em termos de experimentação no campo prático do design — o que, por sua

vez, se solidifica como uma das características daquilo que hoje se entende por

design gráfico pós-moderno.

Em “Perspectivas para o design do futuro” (1993), Welsch debruça-se em

ensaiar quais seriam as características desse design inserido no ambiente da pós-

modernidade. De início, o autor observa que o termo “pós-moderno” surge como

um adjetivo restrito ao universo da crítica literária que inicialmente designaria

“uma combinação de cultura de elite e de massa” (1993). Então, trazendo o texto

de Leslie Fiedler, “Cross the border — close the gap”, Welsch entende como

característica das obras pós-moderna uma espécie de fechamento do abismo entre

o crítico e o público, entre o público e o artista, “entre o profissionalismo e o

amadorismo nos domínios das artes.” (1993). Welsch ainda afirma que “um

decidido pluralismo forma o núcleo das tendências pós-modernas.” (1993).

Na arquitetura, por sua vez, o pós-modernismo se embebe de uma

estratificação social e semântica; busca-se, assim, uma emancipação do caráter

afirmativo e uniformizador do modernismo (WELSCH, 1993). “Foi a

descontinuidade das culturas de gosto que produziu tanto a base teórica como

também a codificação dupla do pós-modernismo” (JENCKS, 1980 apud WELSCH,

1993).

Para Welsch,

“Um pós-modernismo como esse inclui modernismo, mas também o ultrapassa decisivamente. (...) O racionalismo e o funcionalismo modernos são

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complementados e sobrepujados por momentos de ficção, narrativa, metáfora e visão. Não mais ‘form follows function’, mas ‘form produces visions’, é assim que poderia rezar o novo lema pós-moderno da configuração.” (WELSCH, 1993).

Gruszynski, nesse sentido, entende que o próprio termo “pós-modernidade”

trás consigo uma noção de historicidade cujo traço fundamental é precisamente o

da negação “sem objetivar uma síntese final.” (2007:55). E, exatamente por lhe

faltar um “princípio dominante que subsuma as manifestações heterogêneas, ela

pode trazer — e traz — dentro de si, elementos da modernidade.” (GRUSZYNSKI,

2007:55).

É a partir dessa ótica que o chamado design pós-moderno está longe de

poder ser reduzido a uma reação estilística aos princípios do design modernista. A

reação (se é que podemos usar tal termo) seria de uma ordem mais elevada.

Lyotard — lembra Welsch — entende que mais do que uma época, o pós-

modernismo é um “estado de ânimo ou, antes, de espírito” (1986:97 apud

WELSCH, 1993). Welsch, então, ressalta que a volta do ornamento é, de certo,

possível no quadro do pluralismo pós-moderno, mas não forma “de jeito nenhum

o cerne definitório do pós-modernismo.” (1993).

Disso, Welsch ainda observa que a “genuína frente de ataque do pós-

modernismo tem como alvo a dinâmica uniformizadora do modernismo.” (1993).

Nesse sentido, Gruszynski lembra que discussões como essa — a cerca da faceta

pós-modernista do design — geralmente findam numa rejeição absoluta dos

preceitos estabelecidos pelo design modernista (2007:71); e, assim, alerta sobre os

perigos de se produzir uma discussão caricata quando se suprime a noção de que,

embora pregasse a universalidade, o modernismo também teve suas variantes e

particularidades (2007:63).

Apesar da pluralidade característica do ambiente pós-moderno ser tanto

inter quanto intracultural e já fazer parte da nossa experiência quotidiana, em sua

análise Welsch acredita que ainda somos ameaçados por “gigantescos processos

de uniformização”, principalmente de ordem tecnológica (1993). E a alternativa

para a civilização mundial tecnologicamente unificada reside não só na

“acentuação de identidades locais respectivamente nacionais, mas (...) também na

produção de novas identidades, híbridas, correndo de viés às identidades

existentes” (WELSCH, 1993). Para Welsch, o design pós-moderno deve

comprometer-se com essa diversidade. E ainda: é “necessário não só lamentar as

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dificuldades dessa diversidade, mas aproveitar suas chances.” (WELSCH, 1993). A

partir disso, e anacronicamente, Welsch parece evocar um princípio que muitos

diriam essencialmente modernista — a originalidade. Welsch afirma que “não se

deveria utilizar a liberdade pós-moderna para fins de reprodução do que havia no

passado, mas para a produção do que ainda não existiu.” (1993). Quanto a isso,

Welsch entende que a produção do novo pode vir através da utilização de signos

tradicionais, mas estes devem estar embebidos de novas configurações híbridas

(1993). Por sua vez, Gruszynski — trazendo Jobling e Crowley15 ao tema —

ressalta que identificar algo evidentemente novo “no design pós-moderno é uma

tarefa árdua.” (2007:72). Como fizera Cauduro, Gruszynski se remete às

vanguardas do início do século XX, identificando semelhanças entre seus

elementos visuais e o emergente design pós-moderno da década de 1980

(2007:73).

Assim revela-se a importância do contexto histórico-cultural na significação

dos produtos de design. Gruszynski lembra que no início do século XX o “avanço

gráfico estava inserido na lógica literária, na revolta contra a crise européia da

Primeira Guerra Mundial, na negação da cultura ocidental, na destruição dos

objetos da cultura de elite.” (2007:73). Na produção da década de 1980, por sua

vez, não só havia reflexos dos movimentos de vanguarda do início do século,

como repetições (ao seu modo) do repertório estilístico do design funcionalista; e,

nesse contexto, põe-se “em destaque o arbítrio do designer, que dá um novo

sentido à composição.” (2007:74). Gruszynski ainda observa que:

“A semelhança entre dois significantes visuais não implica necessariamente que haja um mesmo significado. A repetição pós-moderna não representa, então, um retorno à modernidade ou a um sentido original, mas apenas o deslocamento do significado que indica a impossibilidade de definir um sentido absoluto.” (GRUSZYNSKI, 2007:73).

Enquanto Frederic Jameson chama esse tipo de repetição aparentemente

arbitrária característica da pós-modernidade de pastiche, Linda Hutcheon prefere

trabalhar com o termo paródia, que pode ser definido como “imitação com

diferença e desvio.” (GRUSZYNSKI, 2007:74-75).

15 Em Graphic design: reproduction & representation since 1800 de 1996.

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“Ao contrário de Jameson, Hutcheon não considera a paródia como uma forma negativa, porque a retomada de padrões, modelos, obras, objetos antigos permite um desvio produtivo, capaz de gerar uma nova forma expressiva.” (GRUSZYNSKI, 2007:75).

Falar em novas formas expressivas a partir do deslocamento de significados

remete-nos à Welsch e sua proposição por novas configurações híbridas a partir

de signos tradicionais. Paradoxalmente, o design pós-moderno produz o novo a

partir da negação da possibilidade de se falar deste: “Na pós-modernidade, imitar

a tradição através do pastiche e da citação passa a ser uma forma de negar a

possibilidade de se criar um objeto gráfico novo e original.” (GRUSZYNSKI,

2007:171). E ainda:

“Na ausência de manifestos, de uma bandeira a ser defendida, o pós-moderno lida com a pluralidade em que um mesmo designer pode estar aberto a utilizar (por citação ou por imitação paródica) elementos característicos do futurismo italiano de Marinetti e elementos próprios do surrealismo engajado de Breton.” (GRUSZYNSKI, 2007:178).

Devemos ainda destacar a participação do observador dentro desse ambiente

que encoraja o pluralismo. A fim de poder dar conta do pastiche, da paródia, do

humor empilhados em tais configurações híbridas, o observador precisa estar apto

a compreender o diálogo entre os significados previamente manipulados pelo

designer em seu projeto (GRUSZYNSKI, 2007:76).

E a partir dessa camada de pastiche/paródia retornamos ao designer-

maestro de Souza Leite. Nesse ambiente pós-moderno, tal profissional pode tanto

projetar tendo em vista um observador específico — e, desse modo, gerar sua

própria série de regras relativas ao uso da linguagem do design — quanto pode

subverter conscientemente seu projeto a fim, por exemplo, de ampliar o repertório

do observador (GRUSZYNSKI, 2007:130). Para Gruszynski, o design pós-moderno é

aquele ciente de que tanto a tentativa de se produzir uma comunicação gráfica que

gere uma expectativa comum quanto a sabotagem cônscia desta podem “gerar

uma pluralidade de leituras em função das disposições individuais de leitores que

vêm de situações culturais e sociais diferenciadas” (2007:131). Este é o avesso da

concepção funcionalista que priorizou uma monovalência da leitura (GRUSZYNSKI,

2007:132).

Outra característica do design pós-moderno seriam as questões em torno da

(im)possibilidade de se destilar deste um repertório estilístico. Gruszynski entende

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que para tratar desse tema, primeiro é necessário situar dois eixos de análise.

Numa instância que contempla a prática em sua coletividade, num sentido amplo,

a autora afirma haver “vários estilos convivendo e, no estágio atual, não parece

haver a preponderância de um (estilo) específico.” (2007:109-110). Enquanto isso,

“Em um segundo eixo, considerando o estilo como individuação, observamos que os layouts contemporâneos têm assumido um caráter autoral bastante forte em oposição ao anonimato fomentado pela corrente funcionalista. O debate iniciado em torno da legibilidade coloca em relevo a atuação do designer não mais como um mediador transparente, mas como um co-autor da mensagem.” (GRUSZYNSKI, 2007:110).

Nesse sentido, de lógica diametralmente oposta às concepções modernistas,

o design pós-moderno buscaria “revelar o caráter arbitrário das escolhas, os traços

marginais que revelam o trabalho que envolveu a produção.” (GRUSZYNSKI,

2007:110). Disso, lembremos que entender o designer como co-autor da

mensagem é retomar aquilo que Buchanan chamara de caráter da retórica do

design (1989:102); e é precisamente essa característica que nos permite olhar a

tipografia através do ângulo que aqui propomos.

2.3.2 Expressividade tipográfica

Visto que o principal objeto de estudo do presente trabalho é o uso bem

humorado da tipografia, podemos afirmar sem receio: para que um determinado

uso tipográfico funcione como suporte do humor, faz-se necessário transcender

tanto a idéia logocentrista de que a escrita deva atuar como uma tradutora

imparcial e invisível da fala quanto o pilar modernista de que a tipografia deva

necessariamente renunciar ao passado e às pré-concepções formais. A tipografia

em questão, portanto, precisa ser dotada do poder de comunicar e exprimir

livremente significados híbridos independentes (ou não) daqueles já impregnados

pelo seu conteúdo de ordem verbal. É a tipografia inserida na concepção de um

design tratado como linguagem e portador de retórica, como já vimos. É a

tipografia que não apenas conta piadas, mas que ri junto com leitor. É a tipografia

do ambiente pós-moderno.

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Os tipos argumentam, ou a tipografia e o seu potencial expressivo 49

Como observara Welsch, o design pós-moderno, em “contraposição à

acentuação racionalista e funcionalista do modernismo, trata com maior vigor de

valores ficcionais, emocionais, sensuais e icônicos.” (1993). Nesse mesmo

sentido, Buchanan classificara a emoção como um dos elementos da retórica do

design (1989:103). Parece-nos, portanto, perfeitamente sensato supor o humor

inserido entre tais valores.

Para Lupton & Miller, “o estudo da tipografia e da escrita embasado pela

desconstrução examinaria estruturas que dramatizam a intrusão da forma visual no

conteúdo verbal, a invasão de ‘idéias’ através de notações gráficas, lacunas e

diferenças.” (1999:17). E em “A post-mortem on deconstruction?” (original de

1994), Lupton reforça essa idéia afirmando que podemos falar em desconstrução

na tipografia quando esta “expõe e transforma regras estabelecidas da escrita,

interrompendo o sagrado ‘interior’ do conteúdo com o profano ‘externo’ da

forma.” (2001:46). Lupton ainda ressalta que a tipografia enquanto linguagem

encontra-se numa posição singular se comparada ao design em geral e,

especialmente, ao design da configuração de objetos. A tipografia, na sua

condição de escrita, seria exatamente a fronteira entre a linguagem, os objetos e as

imagens (LUPTON, 2001:47).

É interessante notarmos que a partir dessa ótica, ao levarmos adiante essa

analogia — esse caráter de fronteira —, revela-se a idéia de que na verdade a

tipografia nunca esteve em perigo de verdade. O posicionamento formalizante do

design modernista de ideais logocentristas sempre defendeu um silêncio

tipográfico impossível. Mesmo amordaçada, mesmo nua sem suas serifas, mesmo

em fila indiana diante de paredões de grids, a tipografia sempre foi linguagem,

sempre teve a capacidade de não só falar, como de argumentar.

É, pois, assumindo o papel de uma fronteira viva (não-estática, não apenas

limítrofe) que chegamos à tipografia que nos serve para o estudo em questão. É

nesse caráter intrusivo — e violatório — de idéias interdependentes entre o

conteúdo morfológico e o verbal que reside a alma dessa tipografia que, por conta

própria, tem o poder de argumentar. É, pois, precisamente essa a tipografia que

aqui chamamos de tipografia expressiva.

Defendendo o poder expressivo da tipografia e em frontal ataque ao

logocentrismo, Cauduro encontra motivos econômicos entre as razões de ser da

tipografia gerida por um pensar logocentrista. Para o autor,

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“é óbvio que quanto mais restrita e elitista for a classe de autores e produtores culturais, tanto menores serão os custos para os publicadores de uma obra, em termos de royalties, honorários e salários” (CAUDURO, 1998:94).

Desse modo, Cauduro evoca a idéia do tipógrafo como co-autor da obra, não

se deixando passar por aquilo que ele entende por uma histórica e sistemática

“desclassificação cultural da prática do design tipográfico.” (1998:94).

Cauduro ironiza o fato de que a despeito de toda a força por trás do pensar

logocentrista no campo da tipografia, as colunas de sustentação deste pensar

parecem não se importar em contrariar seus posicionamentos tradicionais quando

o que está em jogo é da ordem da obtenção de lucro. Quanto a isso, Cauduro

afirma que

“Isso acontece quando se considera o design do ponto de vista de uma prática criativa associada ao marketing, possibilitadora de maiores lucros — quando se vê o design como um investimento que agrega valor ao que se constrói ou produz, e não como sendo simplesmente mais um dos custos da produção. Em outras palavras, quando se trata de despertar ainda mais o desejo do consumidor, e não simplesmente de seguir uma tradição editorial.” (CAUDURO, 1998:94).

Tal acusação parece proceder quando levamos em conta que

“a publicidade sempre foi, dentre as práticas da comunicação escrita, aquela que mais promoveu a tipografia espetacular, chamativa, emocional, estimulando inovações já desde as primeiras décadas do século passado, quando começaram a aparecer cartazes impressos de grandes dimensões e letras ‘garrafais’” (TWYMAN , 1970 apud CAUDURO, 1998:96).

Diante dessa certa liberdade tipográfica da qual as peças gráficas

publicitárias sempre gozaram, Gruszynski não ignora o fato que fazer-se entender

é parte nuclear daquilo que consiste a praxis do designer. A autora vê o êxito no

processo de comunicação como o dever central do profissional que lida com

projetos tipográficos, daí a importância de se abordar a leitura no ambiente pós-

moderno, onde se relativiza conceitos como legibilidade (2007:123).

Para Gruszynski, diante da possibilidade de se falar de uma retórica

tipográfica, ou uma tipografia expressiva, a leitura pode ser entendida como um

jogo onde o leitor desenvolve suas hipóteses a respeito dos índices que considera

importante; e ao dar continuidade a sua leitura, o leitor é “levado a tratar a

informação visual com mais atenção ou mesmo voltar atrás para reformular sua

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hipótese inicial na construção do sentido.” (2007:129). Nesse contexto, a função

do designer é encarregar-se da “organização destes índices levando em conta tanto

o detalhe da letra como a articulação dos vários elementos na página ou na

edição.” (GRUSZYNSKI, 2007:129). Gruszynski considera, então, que a

“(1) a leitura não processa apenas informação visual, mas também informação não visual; (2) o leitor não tem necessidade de recolher toda a informação visual, já que tem capacidade de prever e antecipar, seja com base na eliminação de alternativas seja na formulação e verificação de hipóteses; (3) a leitura é um processo ativo e subjetivo.” (GRUSZYNSKI, 2007:141-142).

À luz dessas considerações — da possibilidade de se entender a leitura

como um ato não-passivo —, a expressividade tipográfica se legitima dentro da

prática do design, mesmo diante do papel de comunicador, onde fazer-se entender

está entre as funções que dão forma à profissão; afinal, a construção do sentido

“está em constante movimento e se sustenta em hipóteses sugeridas tanto pelo

texto quanto pelo contexto.” (GRUSZYNSKI, 2007:127). Assim,

“O designer não é apenas um profissional neutro a ordenar a forma de levar ao público amplo o texto de um autor. Pode haver, por exemplo, uma relação irônica em que o texto produzido pelo autor seja corroído ou desconstruído sutilmente pelo tipo de apresentação feita pelo designer.” (GRUSZYNSKI, 2007:175).

Retomamos, assim, a noção de tipografia enquanto linguagem e

expressividade, como possível suporte para o humor (e suas variantes). No

entanto, antes de fecharmos esse capítulo e darmos início ao próximo — que trata

exatamente quase exclusivamente do humor —, tragamos à tona uma pequena

grande nota:

Em 2006, na mais recente re-edição do livro The new typography de

Tschichold, o tradutor Ruari McLean tem a bondade de fornecer ao leitor algumas

das correções escritas à punho pelo próprio Tschichold como material anexo à

obra original. Essas correções e anotações — originais de 1967 — fariam parte da

versão reformulada, repensada (e nunca lançada) do manual. Entre esses

apontamentos manuscritos, há uma auto-crítica em especial assaz interessante

para o estudo aqui sendo desenrolado.

Num determinado momento, Tschichold risca a frase original: “Qualquer

tipografia que se origina de uma idéia pré-concebida de forma, seja lá qual for,

está errada.”; e, em forma de anotação, critica a si mesmo: “De forma geral, essa é

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uma visão bastante limitada. É algo que contradiria a liberdade das piadas

tipográficas que de tempos em tempos nos dão prazer.” (TSCHICHOLD, 2006:xi).

Levando em conta o objeto central de estudo do presente trabalho, não é difícil

concordar com esse Tschichold de 1967; E diante dessa sua pequena (e grande)

confissão a respeito das limitações da sua obra original, fica-nos, então, a

pergunta: que piadas são essas às quais ele se refere?

Um passo de cada vez. Ao próximo capítulo, então.

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