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4 - - - Acerca da verdade e de-negação na clínica psicanalítica 1 Francisco Martins Resumo Este artigo investiga questões acerca da verdade nas suas relações com o conceito de de-negação na teoria psicanalítica. Em um primeiro momento, é estudado o conceito de de-negação. Neste momento é apontada a existência de três tipos de relação de negação: a discordancial, a forclusiva e a da indiferença. São esclarecidas nuances acerca deste desenvolvimento teórico. Em um segundo momento, é apresentado excerto de um caso clínico buscando-se uma articulação com a verdade nas suas relações com o conceito de de-negação. Unitermos Verdade, de-negação, realidade, julgamento de existência, defesa. Introdução "Eu não tinha pensado nisso." Diz o homem comum 2 "Eu sei, mas mesmo assim" Diz o passional jamais poderia ter pensado nisso." Diz o louco O tema do presente trabalho fez-me pensar em uma pequena história envolvendo Picasso e um seu amigo, marchand dos seus quadros. Como é sabido, o pintor tinha uma capacidade intensa de produção pictórica e em outras modalidades de expressão artística. Face à profusão de pinturas existentes, não era de espantar a existência de inúmeras falsifica- ções, muitas das quais o marchand estava a par. Vendo Picasso indiferente a tudo isto, resolveu propor-lhe um desafio, mostrando-lhe uma série de quadros e pedindo-lhe que indicasse quais eram verdadeiros e quais eram os Psychê Ano IV nO 6 - São Paulo 2000

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Acerca da verdade e de-negação na clínica psicanalítica 1

Francisco Martins

Resumo

Este artigo investiga questões acerca da verdade nas suas relações com o conceito de de-negação na teoria psicanalítica. Em um primeiro momento, é estudado o conceito de de-negação. Neste momento é apontada a existência de três tipos de relação de negação: a discordancial, a forclusiva e a da indiferença. São esclarecidas nuances acerca deste desenvolvimento teórico. Em um segundo momento, é apresentado excerto de um caso clínico buscando-se uma articulação com a verdade nas suas relações com o conceito de de-negação.

Unitermos

Verdade, de-negação, realidade, julgamento de existência, defesa.

Introdução

"Eu não tinha pensado nisso." Diz o homem comum 2

"Eu sei, mas mesmo assim" Diz o passional

jamais poderia ter pensado nisso." Diz o louco

Otema do presente trabalho fez-me pensar em uma pequena história envolvendo Picasso e um seu amigo, marchand dos seus quadros. Como é sabido, o pintor tinha uma capacidade intensa de produção

pictórica e em outras modalidades de expressão artística. Face à profusão de pinturas existentes, não era de espantar a existência de inúmeras falsifica­ções, muitas das quais o marchand estava a par. Vendo Picasso indiferente a tudo isto, resolveu propor-lhe um desafio, mostrando-lhe uma série de quadros e pedindo-lhe que indicasse quais eram verdadeiros e quais eram os

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falsos. Picasso então começou a separá-los, colocando de um lado os que pensava ser de sua autoria e os que não seriam. Em seguida, constatou-se que todos os quadros que ele tinha indicado como de sua autoria o eram realmente. Não havia maior dificuldade no reconhecimento. Contudo, na série separada como sendo falsificações o marchand detectou que Picasso havia indicado vários quadros de sua própria autoria como sendo falsos. Indicou então ao pintor que ele estava dizendo ser falsificações quadros de sua própria autoria, posto que ele os havia comprado no ateliê de Picasso e em alguns casos assistido à própria feitura da obra. Picasso então respondeu: "Neste caso, mesmo sendo de minha autoria, eles continuam sendo falsos!".

Pensamos assim que o problema da negação é algo estritamente relacionado com a possibilidade de realizar uma afirmação que julgamos verdadeira e correta. Pensamos que a melhor maneira de introduzirmos o tema seria fazer uma incursão em Freud. Afinal, esta não foi também a perspectiva de Lacan? (LACAN, 1966, p. 259).

Verdade e de-negação

A psicanálise tem com relação ao conceito de (de)negação, uma ambigüidade radical. Ou seja, ela vê-se obrigada a restabelecer com outras disciplinas e a própria filosofia um diálogo que nem sempre foi evidente e, ao mesmo tempo "descobre" que a função de desconhecimento que a (de)negação propicia faz parte do conceito paradigmático da psicanálise - o inconsciente. Se Freud, nas suas manifestações acerca da filosofia, sempre mostrou desconfiança, nos seus exemplos didáticos os filósofos e as histórias dos filósofos são peças preciosas para suas demonstrações. É assim que, utilizando-se da figura de Schopenhauer, durante um estudo clínico acerca da neurose do Homem dos Ratos, Freud faz surgir, em uma nota, a idéia da negação, quando mostra que o obcecado possui dois tipos de saberes e de conhecimentos:

.. ) é preciso admitir que existem, numa neurose obsessiva dois tipos de conhecimentos, e afirmar, com toda justiça, que o paciente 'conhece' seus traumas, tanto quanto NÃO os 'conhece'. Isso porque ele os conhece desde que não os esqueceu, e não os conhece por não estar ciente de sua significação. Com a mesma freqüência, isso também acontece na vida normal. Os garçons que costumavam servir a Schopenhauer no restaurante que este freqüentava, em um determinado sentido o 'conheciam', numa época, de outra forma, ele não era conhecido, nem em Frankfurt nem fora de Frankfurt; mas eles não o 'conheciam' no sentido que, hoje, dizemos 'conhece' Schopenhauer. "(FREUD, 1909, p.199).

Sem entrarmos em considerações acerca da validade deste exemplo de negação, pode-se apreender que esta noção é fundamental para o entendi-

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mento do Inconsciente. Entendimento não somente dentro de um modelo das profundezas, tal como encontramos nas metáforas arqueológicas ou nas comparações do aparelho psíquico com um nas quais o inconsciente está submerso. No exemplo citado, nota-se que o inconsciente está presente, a céu aberto, mas não acessível. Não existe neste caso leitura, conhecimento acerca, sendo o inconsciente relacionado ao desconhecido, a um real só apreensível a posteriori.

Igualmente citando Nietzsche, Freud diz ter o Homem dos Ratos mencionado um trecho de Além do bem e do mal, indicando em tal passagem o tema da negação.

"Eu o fiz', diz minha Lembrança. 'Eunào posso ter feito isto', diz meu Orgulho, permanece inexorável. No final... a Lembrança cede". (FREUD, 1909, p. 187).

A (de}negação é também um mecanismo que liberta o Eu das conse­qüências do recalque propriamente dito, uma vez que o conteúdo recalcado se faz presente no pensamento. Esta outra vertente de análise da questão da (de}negação, enquanto mecanismo de defesa do Eu, é complementar às observações feitas há pouco com relação ao narcisismo, logo após Freud referir-se ao orgulho como vencedor na citação anterior.

Ela nos envia igualmente a questões concretas acerca da significação deste mecanismo, bem como a estudos que podem ser esboça­dos com as noções lingüísticas relativas à negação. Com o auxílio do símbolo não, o sujeito evita o contato emocional com o conteúdo inconsciente. Este não serve de anteparo à angústia advinda quando do pleno reconhecimento do significado emocional daquilo que fora recalcado. Nesse sentido, a (de}negação funciona como uma verdadeira proteção ao Eu. Por outro lado, por fazer referência direta ao conteúdo recalcado (atividade intelectual), o não da (de}negação conserva o mesmo valor de uma afirmação, cuja con­firmação poderá ser procurada no contexto em que se faz presente.

Aliás, essa idéia freudiana de que a negação tem o mesmo valor de um índice que assinala o momento em que uma idéia ou desejo inconsciente recomeça a surgir na mente do sujeito (tanto no tratamento clínico quanto fora dele) é alvo de muitas críticas. Tanto que Freud chegou a respondê-las em seu artigo Construções em análise (FREUD, 1939, p. 296-300). A acusa­ção contra Freud de estar sempre se julgando o "dono da razão", fazendo da interpretação clínica um instrumento de poder, utilizando-a ao seu bel­prazer, necessita de um esclarecimento. Se o paciente concorda com o conteúdo de sua interpretação, tudo bem: a interpretação é correta em função do assentimento do analisando. Caso o analisando não concorde, seria

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resistência, negação. Ora, a esse respeito cabe lembrar, mais uma vez, a importância de se averiguar o contexto em que o não se faz presente e suas conexões com o conteúdo do discurso que o antecede e que o segue, na fala do paciente. Em todos os estudos clínicos de Freud pode-se constatar essa preocupação. Além disso, cabe lembrar também que, além do estatuto da afirmação e da negação, existe ainda outra possibilidade, que seria indiferen­ça. Esta, sim, indicaria um não investimento do conteúdo trazido pela inter­pretação clínica, mostrando a possibilidade da interpretação não ser correta justamente por não existir afirmação nem negação.

Do ponto de vista da realidade psíquica do sujeito, poder-se­ia esboçar o seguinte esquema:

INVESTIMENTO INDIFERENÇA( Unfaghikeit)

Realidade Objetal Dialética de

Afirmação e (de)negação

+ -

Ausência de inscrição Rejeição (foraclusão)

Negação Lingüística Tipo Discordancial (principalmente tempo presente)

Tipo Forclusivo (outros tempos verbais)

Forclusiva (futuro anterior,

como tempo preferencial)

Existe realidade onde existe investimento A negação originária estaria em direta relação com a psicose. A esse tipo chama-se "rejeição". A posição clássica do esquizofrênico, que não investe, segundo a hipótese maior de Freud, o mundo de objetos, justamente aponta para uma posição de indiferença, de insensibilidade com relação ao mundo de objetos. Essa forma de negação é, portanto, muito mais radical que as outras formas já apontadas. Ela cria uma impossibilidade de reconheci­mento da existência imaginária, rasura o julgamento de existência. Por isto colocamos no esquema apresentado esse tipo de negação como localizada no lado direito do quadro. Tratando-se de um momento mítico, impossível de ser detectado o momento específico de ocorrência, ela está relacionada aos tempos originários, aos tempos primitivos, nos quais a forma temporal introduzida pelo futuro anterior é a mais significativa.

Já a (de) negação, mais comum, mostra sempre a necessidade de reconhecimento do objeto. Por isto, ela adquire mais facilmente a forma da

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negação discordancial dos lingüistas. O tempo presente está quase sempre relacionado com a atualização da discordância. Existem outros tipos de tempos envolvidos com o uso de forclusivos na categoria em que ocorre investimento.

Podemos de imediato, para não nos afastarmos da clínica e lembrando a citação que fizemos no frontispício deste trabalho, relacionar os tipos de (de)negação com os modos de estruturação do sujeito, segundo Lacan.

Afirmação (De)Negação Rejeição

Perversão Neurose Psicose

Verleugnung Vernejnung Verwerfung

As três formas estruturalmente diferentes de negação recusa e (de)negação -lembram

exatamente três quadros clínicos estruturalmente diferentes: a psicose, a perversão e a neurose. Com relação ao mecanismo característico da psicose, segundo a leitura de Lacan, a rejeição ou recusa Verwerfung", "Das Aufgehobene") (LACAN, 1966, passjm) carrega consigo o sentido encontrado no direito processual: o de não ter entrado com um processo numa época definida e, em virtude da decorrência de prazo, o sujeito não ter acesso a determinados direitos, posteriormente. No Direito brasileiro ocorre preclusão, degradação de um direito. Em decorrência de o psicótico não ter resolvido a questão da duplicidade em si mesmo (pois repudiara o significante desagradável, ao invés de reconhecê-lo como tal), torna-se inviável efetivar a operação negativante do recalque originário e/ou, poste­riormente, da (de)negação

Quanto ao não de que fala Freud, em A negatÍva (FREUD, 1925, p. 295­100) - o não da (de)negação -, está já na categoria de asserção, ou seja, como julgamento negativo em oposição ao julgamento afirmativo. Daí ser perfei­tamente aceitável o termo proposto por Hyppolite (LACAN, 1966, p. 879), "dénegatÍon", que se refere também a uma segunda negação: a negação da negação. As palavras, em fazem presentes no pensamento aquilo que, concretamente, estaria ausente. Elas são, por si mesmas, expressão do negativo. Nesse sentido, uma palavra negativa - como o não - seria dupla­mente negativante: uma palavra criada justamente para especificar uma oposição à presença de uma idéia. Como já fora descrito pelos lógicos, o não só faz sentido se houvera, antes, uma afirmação. Sendo a palavra uma

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espécie de oposição às coisas, o não, enquanto oposição à idéia expressa por outras palavras, seria uma espécie de oposição da oposição às coisas.

Uma questão ética acerca das exigências de autenticidade absoluta dos pacientes em psicoterapia merece aqui ser apresentada para clarear o esquema anterior. Na verdade, essa exigência é sobretudo dos terapeutas. A mentira do paciente, enquanto um mecanismo de (de)negação é autêntica. Ela é a única forma que ele pode ter encontrado para elaborar seu sofrimento psíquico e ter acesso à sua verdade inconsciente. A (de)negação, neste sentido (tomando a forma do discordanciallingüístico), mostra que o sujeito reconhece uma verdade da dolorosa realidade. A (de)negação é, pois, um índice do forte investimento afetivo existente.

De-negação e verdade em um caso clínico.

Apresentamos a questão da negação por pensarmos ser o saber e a verdade filhos da linguagem simbólica e do acesso do sujeito. As operações de negação são, de um ponto de vista lógico, condição necessária à consti­tuição daquilo que pensamos ser o saber verdadeiro.

Feita esta incursão na metapsicologia freudiana, relacionando com a interpretação de Lacan, pensamos ser importante articular com exemplos clínicos. Afinal, como me parece ter dito Husserl. quando sômos verdadei­ramente interessados somos eternos iniciantes. E a clínica não é a fonte efetiva de toda essas discussões e apresentações?

A verdade na clínica não tem o mesmo status que tem nas ciências positivas. Nestas, o critério é nomotético, isto é, existe uma asserção que, submetida ao teste, pode ser falsificada. Ora, na clínica, antes de um problema de verdade, vemos que o problema da autoria e da autenticidade deve ser qualificada. A verdade é sempre algo a ser alcançado como um ponto fugidio. Este ponto possivelmente é regido pela ética e não por questões de saber. Ou seja, mais importante do que alcançar de imediato a verdade do analisando torna-se fundamental qualificar o seu sofrimento com o fito de podermos efetivamente trabalhar.

Foi por meio de uma indicação de um colega psiquiatra que recebi Yolanda. Contou-me esta uma longa história de internações psiquiátricas. Pelo menos cinco vezes esteve internada em instituições asilares de diversas regiões do país. Estava no momento se recuperando de uma grave tentativa de suicídio por ingestão de comprimidos (benzo-diazepínicos e neurolépticos). Descreveu-me ter feito várias outras tentativas de suicídio nos últimos dez anos, mas eram tentativas frustadas, ingerindo quantidades grandes sem

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levarem ao coma. Nos últimos dez anos não progrediu na carreira de bancária, sentindo-se muito mal por ter de recorrer à caixa de assistência. Pensava inclusive em demitir-se. Escutei essa história plena de violência potencial contra si mesma nos primeiros quarenta minutos do nosso encontro. Interpe­lou-me então: como iria ajudá-Ia? Explicou-me ao mesmo tempo estar tomando MeIleril e um tranqüilizante. Insinuou que o seu caso era de esquizofrenia e que só lhe restava possivelmente retirar-se do trabalho por intermédio da invalidez. Afmal, nos últimos dez anos não ficou mais de três meses trabalhando. Por isto, solicitava que mostrasse de imediato como iria solucíonar o seu caso.

Na primeira consulta em psicanálise, via de regra, temos que adivinhar, pois conhecemos menos do paciente que ele mesmo: estamos pisando em terreno minado, pisando em ovos. Reagi então dizendo-lhe de supetão que não podia ser assim, que precisava da ajuda dela, pois não sabia suas particulari­dades e não sabia nada a seu respeito. De certa forma mostrei que, sem ela, nada poderia ser feito.

Com uma cara de surpresa e de sorriso entre os lábios se retirou da primeira sessão. Pensei em seguida o que a teria feito responder daquela maneira. Cheguei à conclusão de que foi por ter a sensação de estar sendo testado com relação ao meu desejo de curá-la e principalmente com relação ao meu saber. Era urgente reinverter a posição, afinal ela era a detentora da chave dos seus problemas. Antes de dormir, pensei na frase freqüentemente detur­pada de Lacan, posto que reduzida somente à idéia de que o analista deve ser um morto. Ora, a frase que conhecia era que o desejo do analista deve ser morto e não o analista! Pensei então que, independente da teoria, a clínica sempre traz um enorme desconhecido a reboque. Pensei que o fundamental na clínica era o reflexo. Um exercício de reflexologia acerca do meu saber e do meu desejo. Hoje pensaria que acertei espontaneamente pensando na idéia de que o saber faz o sujeito gozar. Ora, não estamos ali para fruir do outro, estamos para realizar um trabalho que exige o saber dos nossos pacientes.

Retornando, Yolanda contou-me que seus problemas se iniciaram logo depois do parto do seu filho, que contava então dez anos de idade. Estava casada e não se perdoava, pois quando saía dava olhadas extremamente sedutoras para os homens e em alguns momentos para toda e qualquer pessoa. Esta impulsão de seduzir pelo olhar era extremamente forte, tendo sido o motivo da utilização de inúmeras medicações sem solução. Condena­va-se então. Avisou-me que em tratamentos anteriores uma psicóloga lhe havia dito para ser mais condescendente consigo mesma.

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Ao longo do tratamento, repetidas vezes escutei o sintoma insuportá­vel: sofria com isto". Isto diz respeito à olhada de cunho sedutor e sexual que a analisanda submetia a uma rigorosa repressão, repercutindo em seu comportamento de retração. No entanto, à medida que a análise avançou, pude perceber que o sofrimento de ordem moral era acompanhado de intenso prazer. Logo que, ao longo do trabalho, foi possível, pontuamos que ela dizia:

"Eu sou fria com isto".

Introduzida nesta nova combinatória, onde os mesmos significantes operam um sentido que não era visado intencionalmente, surge cada vez mais toda uma série de associações relacionadas à sua pequena infância onde foi obrigada, para ser mulher, a esconder sua sexualidade ativa. Com efeito, a analisanda depois desta e de outras intervenções similares, passou a perceber o quanto ela se colocava como passiva, quando desejava com

continuar com sua atividade de sedução. Ocorre uma espécie de movimento de subversão da bela alma, passando a análise a ser designada como processo de das ilusões".

A perda de ilusão dizia respeito principalmente à recusa crítica de experimentar a sua sexualidade como sendo algo mas.culina. Lembrara que, quando pequena, ficava no açougue do assistindo à escolha das carnes pelos fregueses. Percebeu cedo que as meninas eram diferentes dos meni­nos. Um dia levou uma fieira de lingüiça para o vizinho em busca do reconhecimento. Restava-lhe, na atmosfera carola em que vivia, o olhar como fonte de obtenção de atenção. Paulatinamente, idéias que ela apontava como sendo de cunho masculino apareciam evidenciando sua luta contra sua impulsão sexual ativa, relacionada principalmente ao prazer clitoridiano. Disse um dia ser carne de terceira. Solicitada a associar a respeito lembrou do açougue do seu pai e do processo de escolha das peças pelos fregueses. Sua percepção infantil era que as meninas só tinham como modo de ascensão social o casamento.

Concluiu, depois de um ano de análise, que exigia-se sistematicamente ficar passiva, como em sua infância, esperando que o outro resolvesse. Ao mesmo tempo, ficava ressentida de não conseguir exprimir seus desejos de ascensão social. Um momento importante foi quando concluiu que ficava doente também para conseguir a atenção e o amor do seu psiquiatra. Tomar a medicação satisfazia um duplo objetivo sintomático: obtinha o carinho de uma pessoa de "classe superior" e ficava passiva face aos problemas que experimentava. Sabendo ser meu conhecido, relutava acerca do que eu

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desejava com relação aos dois. Um dia disse-lhe: "você não acha que existem formas melhores de seduzir alguém?". Algumas semanas depois Yolanda pediu uma consulta ao doutor para dizer-lhe a verdade: ficava ali por conta da atenção e carinho dele.

Do ponto de vista de Yolanda, ela experimentava todas estas coloca­ções como algo que, de algum modo, já sabia. Como uma meia mentira, pois sempre ficava evidente algo que lhe dava intenso prazer, sustentando a suposta mentira. Permitir que ela mesma desfizesse os enganos e exigências acerca de si mesma constituiu boa parte do trabalho. Reconstituir sua vida afetiva, especialmente cuidar do filho e do seu trabalho, foi a parte mais relevante, posto que implicava em fazer reduzir a violência contra si, ligando a objetos de desejo qualificado.

Ao longo de todas as intervenções realizadas, penso que as interven­ções não têm um valor por si mesmas. É importante não qualificar de forma exagerada as intervenções em detrimento da relação que sustenta o quadro de tratamento. Distingo didaticamente que, em análise, existem atividades relativas ao cuidado e outras relativas às intervenções. O cuidar constitui e mantém o tratamento, enquanto que as intervenções são relativas aos atas terapêuticos efetivados. Valorizo mais cuidar do que intervir, posto que o cuidado é condição para a intervenção. Nas ser notado que sempre neguei a posição (o que também seria uma mentira) de que sabia como curá-la sem sua ajuda, que a verdade estava comigo? Penso que foram as reinversões dialéticas entre o analista e ela que possibilitaram o prosse­guimento e ultrapassagem de estagnações da terapia. Trata-se de um problema comum. Indico que as negações mais veementes foram da minha parte e acredito que foi isto que possibilitou o progresso do trabalho. Dizer um não ao próprio desejo de saber é uma lição deste caso, lembrando Freud no Homem dos ratos, que explicita que o analista não deve ser curioso.

Dizer um não à suposição de que tenha um saber constituído a priori parece-nos a condição essencial para remeter o sujeito à aventura de fazer uma análise. Ou seja, ao longo desta temporada pude também compreender que o saber para o analista é um meio de gozo e também de proteção. Pensei desde então que esta profissão é realmente impossível e insalubre. Lida com um desconhecido em relação ao qual não temos garantias. O saber e as verdades presumidas são sempre problemáticas quando se lida com algo oculto que o sujeito desconhece, tal fizemos entender acerca da (de)negação.

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Conclusão

Mais do que a verdade definitiva procuramos, desde o exemplo de Picasso, explicitar as reinversões acerca da verdade estabelecida que se produzem e são produzidas em relação à constituição da subjetividade. Assim pode haver muitas coisas alienadas em si mesmo que sejam desco­nhecidas pelo sujeito. Podem existir também muitas coisas que sejam pensadas como pura ilusão. Nossa paciente Yolanda testemunha isto na sua análise. Possibilitar o acesso à verdade nas suas inversões dialéticas com o seu contrário é um trabalho específico da análise. Não é esta uma das mais belas definições de inconsciente?

"O inconsciente é esta página da minha história marcada por um branco ou ocupada por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais freqüente ela está escrita mais além. (LACAN, 1966, p.259).

Foi procurando evidenciar a questão da dialética da verdade e do falso por intermédio do conceito de (de)negação que buscamos esclarecer. com relação ao saber, que ele pode ser elemento de gozo do terapeuta, devendo assim ser articulado com o narcisismo do analista. Além disso, mostra que efetivamente a problemática da analisanda é de ordem neurótica e não psicótica, tal como estava sendo tratada do ponto de vista A sensibilidade à afirmação e negação a coloca em um plano diferente da insensibilidade psicótica descrita por Freud.

Notas

1. Pesquisa apoiada pelo CNPq.

2. Fala clássica do analisando que se confronta com um conteúdo insconsciente denegado conforme nos inspira S. Freud; Die Verneinung (1934), G. W., XIV.

3. Fala típica do perverso, conforme nos ensina Octave Mannoni, ClefspourJ'imaginaire ou autre Paris, Sellil, 1969, passim.

4. Fala típica do psicótico, conforme nos inspira Piera Alllagnier, La violence de interprétatiol1 - Du pictogramme á ]' énoncé, Paris, P.U.F., 1981, passim.

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Octave. Clefs pour ou l'autre scene, Paris: SeuiL 1969, passim.

About truth and denial in psychoanalytical

This article investigates subjeets concerning the truth in its relationship with the denial concept. ln a first moment it studies the denial concept. At this time the existence of three types of denial relationship is pointed: lhe discordancial, the forclusif and that one of the indifference. Each one of these topics is studied in details. ln a second moment a c1inical case is studied. It is examined for an articulation with the truth in its relationships with the denial concept.

Key words

Truth, denial, reality, existence judgement, defense.

Francisco Martins

Psicanalista, Psiquiatra, Doutor em Psicologia, Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília. Autor de O nome próprio, Brasília, Edunb, 1992.

SQN 107 Bloco H - apto. 402 - 70743-080 - Brasília/DF tel: (61) 274-8096 e-mail: [email protected]

Recebido em 31/03/99 Versõo revisada recebida 20/06/00

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