2006. Passos. Tese de Doutorado. Origens Da Interioridade
-
Upload
marcos-dy-castelazzy -
Category
Documents
-
view
50 -
download
0
Transcript of 2006. Passos. Tese de Doutorado. Origens Da Interioridade
-
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
ORIGENS DA INTERIORIDADE AUTOCONHECIMENTO E EXTERNALISMO
Cludia Passos Ferreira
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Sade Coletiva, Curso de Ps-graduao em Sade Coletiva rea de concentrao em Cincias Humanas e Sade do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Jurandir Freire Costa
Rio de Janeiro 2006
-
2
CATALOGAO NA FONTE
F383 Ferreira, Cludia Passos. Origens da interioridade: autoconhecimento e
externalismo / Cludia Passos Ferreira. 2006. 152f. Orientador: Jurandir Freire Costa. Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Self (Psicologia) Teses. 2. Interiorizao Teses.
3. Teoria da autoconscincia Teses. 4. Conscincia Teses. I. Costa, Jurandir Freire. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro . Instituto de Medicina Social. III.Ttulo.
CDU 159.923.2
-
3
ORIGENS DA INTERIORIDADE
AUTOCONHECIMENTO E EXTERNALISMO
Cludia Passos Ferreira
Tese submetida banca examinadora como parte dos requisitos necessrios obteno de grau de Doutor em Sade Coletiva
Aprovada por:
_____________________________________________________________ ORIENTADOR: JURANDIR FREIRE COSTA _____________________________________________________________ BENILTON CARLOS BEZERRA JUNIOR _____________________________________________________________
FRANCISCO JAVIER ORTEGA _____________________________________________________________ OCTVIO DOMONT DE SERPA JUNIOR _____________________________________________________________ ROBERTO HORCIO DE S PEREIRA
Rio de Janeiro - 2006
-
4
Aos meus pais e meus irmos. A Marcelo, without whom not.
-
5
Esta tese fruto de um trabalho de pesquisa desenvolvido junto ao PEPAS/ IMS desde 2001. Agradeo aos colaboradores do PEPAS, em particular a Jurandir Freire Costa, pelo desafio de pensar os problemas subjetivos pertinentes a nosso mundo contemporneo. A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas, uma no Brasil e outra na Frana. Durante a fase brasileira, contei com o apoio da FAPERJ, e durante a fase francesa, contei com o apoio da CAPES. Os apoios dessas agncias, como de seus funcionrios, e da equipe do IMS viabilizaram a pesquisa.
Alm da interlocuo com os membros do PEPAS, trs outros lugares foram de
importncia fundamental para os rumos tericos do trabalho. Os cursos de filosofia do IFCS com Roberto Horcio e Wilson Mendona, cuja clareza argumentativa e o interesse vivo pela filosofia me permitiram o entendimento de questes fundamentais da tese. As diversas atividades do Institut Jean Nicod em Paris, que me permitiram expandir os horizontes de meu pensamento brasileiro. E o Sminaire Sauvage com Philippe Rochat e Pedro Salem no Caf de lcole Militaire, que, pelo exerccio permanente de notre pense triadique, me permitiram criar uma bela memria para minha vida. Esses encontros tericos trouxeram um enriquecimento inimaginvel para as idias aqui apresentadas.
Algumas pessoas contriburam de forma valiosa com comentrios, sugestes e crticas.
Agradeo em especial a Jurandir Freire Costa, por sua orientao precisa, sua ousadia intelectual e seu compromisso tico, fonte permanente de inspirao. Agradeo tambm a Benilton Bezerra, Bernard Andrieu, Fernando Vidal, Francisco Ortega, Marcelo Land, Octavio Serpa, Pedro Salem, Philippe Rochat, Roberto Horcio, que, em momentos diferentes, discutiram pontos relevantes, que contriburam de forma significativa para as questes apresentadas na tese. Marcelo Land leu os manuscritos, ajudando a rever erros e imprecises dos argumentos.
Outras pessoas contriburam com inmeros gestos de carinho e ateno, que tornaram
minha trajetria muito mais agradvel. Aos meus amigos brasileiros, Janne Calhau, Denise, Gabi, Rossano, Nando, Carla, Clia, Bethnia, Nanda, Lulli,. Aos meus amigos franceses, Marcos, Alessandra, Bernard, Pascal, Prola, Darry, Luciana e Hlne, pelos inmeros esforos em tornar familiar a experincia do estrangeiro em mim.
Agradeo tambm equipe do COIJ do Instituto Philippe Pinel, em especial Adriana
Gonzaga e Fernando Ramos, cuja generosidade e confiana no meu trabalho me possibilitou uma dedicao exclusiva a esse projeto.
Agradeo ao meu pai pelas correes da redao final da tese e minha famlia pelo
suporte emocional constante.
-
6
SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................... 9 CAPTULO I. A Perspectiva da Primeira Pessoa
1. O Que Se Sentir Como Ns ....................................................................... 19 2. Tornar-se Uma Perspectiva ........................................................................... 23
2.1 O Carter Subjetivo da Conscincia ....................................................... 23 2.2 A Emergncia da Autoconscincia ......................................................... 28
3. Autoconscincia e Autoconhecimento........................................................... 39 3.1 Autoconhecimento e Introspeco .......................................................... 42 3.2 Autoconscincia e Eu-Mentals .......................................................... 49 3.3 Autoconhecimento e Externalismo ......................................................... 54
CAPTULO II. Externalismo do Mental
1. O Debate Individualismo versus Externalismo ............................................ 63 2. Individualismo .............................................................................................. 66
2.1 Descartes e o Individualismo .............................................................. 66 2.2 Supervenincia e Relevncia Causal .................................................. 71
3. Externalismo .............................................................................................. 81 3.1 Os Modelos de Externalismo .............................................................. 82 3.2 O Externalismo Semntico de Putnam ................................................ 83 3.3 O Externalismo Social de Burge ......................................................... 90
3.4 O Externalismo das Terras Gmeas e o Autoconhecimento ............... 96 3.5 O Externalismo Perceptivo de Davidson ............................................... 100
CAPTULO III. As Fontes Externas do Eu 1. O Lugar Em Que Vivemos ......................................................................... 113 2. A Gnese Dual do Eu ................................................................................. 117
2.1 O Self Agente de Neisser ..................................................................... 119 2.2 O Self Narrativo de Dennett ................................................................. 123
3. Triangulao Eu-Outro-Objeto ................................................................... 128 3.1 O Self Expandido de Winnicott ............................................................ 128
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 139 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................... 142
-
7
RESUMO
O objetivo da tese investigar a constituio da interioridade a partir de uma abordagem externalista. Os processos pelos quais o autoconhecimento constitudo so considerados como estando associados ao desenvolvimento da perspectiva da primeira pessoa. Adotar uma perspectiva de primeira pessoa tornar-se capaz de fazer referncia a si mesmo e conhecer seus prprios estados mentais e corporais. A autoconscincia e o autoconhecimento foram tradicionalmente subsumidos idia de Descartes da autoridade da primeira pessoa. Segundo a tese cartesiana, teramos acesso privilegiado e no-emprico aos nossos estados mentais que se expressaria por meio de um conhecimento. A tese central do externalismo afirma, ao contrrio, que o contedo dos estados mentais constitudo, em parte, pelas relaes com o ambiente. A adoo da tese externalista coloca em dvida a suposio cartesiana de que temos acesso privilegiado aos contedos de nossos pensamentos, restringindo, assim, a autoridade da primeira pessoa. O externalismo perceptivo de Davidson, por exemplo, oferece uma soluo ternria eu-intrprete-mundo para as origens do autoconhecimento. A tese de Davidson apresentada como reconciliando o autoconhecimento e as idias centrais do externalismo. So apresentados dois modelos da gnese externa do eu: 1) os modelos ecolgicos que propem um desenvolvimento do sentido de eu como uma funo das interaes do eu com o ambiente; 2) o modelo psicolgico de Winnicott que prope a emergncia do sentido de eu a partir de uma relao ternria entre o eu, os outros e os objetos transicionais. Defendemos a tese de que o modelo psicolgico de Winnicott o mais adequado para descrever a conceitualizao epistemolgica de Davidson das origens externalistas do autoconhecimento. Palavras-chave: self, interiorizao, autoconscincia, autoconhecimento, externalismo.
-
8
ORIGINS OF INTERIORITY SELF-KNOWLEDGE AND EXTERNALISME
ABSTRACT
The aim of this thesis is to study the constitution of interiority from an externalist perspective. The process by which self-knowledge is formed is considered in relation to the development of the first person perspective. From this first person perspective, one is capable to self-refer, to know one's own mental and physical states. Self-consciousness and self-knowledge are discussed in relation to Descartes' idea of an authority of first person perspective. The Cartesian idea contends that this perspective gives privilege and non-empirical access to one's own mental states. On the contrary, externalism's central thesis contends that the content of the knowledge pertaining to one's own mental states originates from interactions with the environment. Thus, the externalist's thesis puts into question the Cartesian idea of a privileged epistemic access of the first person. The perceptual externalism of Davidson, for example, proposes a triadic solution to the origins of self-knowledge. Davidson's thesis is presented as reconciling self-knowledge and the basic externalist ideas. Two externalist models on the origins of self-knowledge are further discussed: 1) ecological models proposing a development of a sense of self as a function of interactions with the environment; 2) the psychological model of Winnicott proposing that the developing sense of self arises from the triadic relation between self, others, and transitional object(s). We defend the thesis that Winnicott's model is the most apt at describing the epistemological conceptualizing of Davidson regarding the externalist origins of self-knowledge.
ORIGINES DE LINTRIORIT
CONNAISSANCE DU SOI ET EXTERNALISME
RESUM Lobjectif de cette thse est dtudier la constitution de lintriorit dans une dmarche externaliste de la philosophie de lesprit. Les processus de la constitution de la connaissance du soi sont envisags comme tant lis au dveloppement de la perspective de la premire personne. Adopter la perspective de la premire personne, cest tre capable soi-mme de faire rfrence soi, de connatre ses propres tats mentaux et corporels. La conscience et la connaissance du soi taient mises en relation avec lide Cartsienne de lautorit de la premire personne. Selon la thse de Descartes, nous devrions avoir un accs privilgi et non-empirique de nos propres tats mentaux, et cet accs sexprimait par lintermdiaire dune connaissance. La thse centrale de lexternalisme, au contraire, soutient que le contenu des tats mentaux est constitu par des relations avec lenvironnement. Ladoption de la thse externaliste met en doute lide Cartsienne dun accs epistmique privilgi de la premire personne. Lexternalisme perceptive de Davidson, par exemple, propose une solution triadique du problme de lorigine de la connaissance du soi. Cette thse de Davidson est prsent comme une alternative qui rendre compatible la connaissance du soi et les ides externalistes. Deux modles externalistes sur lorigine du soi sont aussi discut : 1) les modles cologistes qui proposent une gense du sens du soi en fonction des interactions avec lenvironnement ; 2) le modle de Winnicott qui propose que la gense du soi naisse de la relation triadique entre le soi, lautrui, et lobjet transitionnel. Nous soutenons la thse que le modle psychologique de Winnicott est le plus appropri pour dcrire la conceptualisation pistmologique de Davidson sur Les origines externalistes dune connaissance de soi.
-
9
INTRODUO
In our languages of self-understanding, the opposition inside-outside plays an important role. We think of our thoughts, ideas, or feelings as being within us, while the objects in the world which these mental states bear on are without. Or else we think of our capacities or potentialities as inner, awaiting the development which will manifest them or realize them in the public world. (Taylor 1997: 111)
Interno, interior e interioridade so palavras adjetivos ou substantivos usadas para
descrever tudo que estaria dentro e se diferenciaria de tudo que estaria do lado de fora.
Heuristicamente, usam-se os adjetivos interno para qualificar o mental e externo para
qualificar tudo que se oporia ao mental. Nessa acepo, interno-externo confunde-se com
dentro-fora da cabea ou do corpo. Ao definir o interior em oposio ao exterior, criam-se
plos opostos que se co-determinam: mente-mundo, indivduo-cultura, organismo-ambiente,
eu-outro. Um dos problemas dessas oposies gira entorno das explicaes sobre as
determinaes entre a mente e o mundo. Essa ciso entre o interior mental e o exterior
ambiental culminou na busca terica por intermedirios entre a mente e o mundo.
Intuitivamente, diramos que a mente existe dentro do indivduo e os estados mentais
ocorrem dentro da cabea. Nesse sentido, as fronteiras da mente seriam determinadas pelas
fronteiras do indivduo. Nas cincias do Ocidente, a mente sempre foi concebida como
delimitada por indivduos e existindo dentro de indivduos, constituindo assim aquilo que em
grande parte os caracteriza e configura suas identidades. Os limites da mente foram
identificados aos limites, seno da extenso do crebro, ao menos da extenso da pele. Tanto a
fronteira temporal da mente quanto a espacial seriam determinadas pelo corpo e pelo tempo de
existncia do indivduo.
Essa concepo interiorizada da mente a metfora privilegiada do indivduo
moderno. O indivduo moderno ocidental, como o retrata Taylor (1997), aquele que rompeu
com a transcendncia e acredita poder encontrar suas coordenadas dentro de si mesmo,
independente das redes sociais de interlocuo que o constituram. A identidade moderna
caracteriza-se pela idia de que somos um self introspectivo separado do mundo externo. Do
ponto de vista epistmico, o self possuiria uma percepo de si como um espao interior que
-
10
guardaria pensamentos, desejos e intenes. A conscincia seria algo independente, localizado
no interior do corpo e, na sua vertente reducionista mais recente, no interior do crebro9.
Essa forma de conceber a mente e o self adota o indivduo como entidade
paradigmtica de anlise do comportamento humano e dos estados psicolgicos. O indivduo
como paradigma tem sido uma tendncia constante nas teorias explicativas geradas pela
psicologia, biologia e cincias sociais. Em Boundaries of the mind, Robert Wilson (2004)
mostra como a psicologia, biologia e cincias sociais, coletivamente batizadas de cincias
frgeis, esto organizadas, grosso modo, em torno de duas tendncias tericas opostas: o
internalismo, que defende uma perspectiva individualista, e o externalismo, que enfatiza o
papel determinante do ambiente externo na explicao do mental. Ambas as tendncias
expressam paradigmas predominantes na explorao da mente.
O individualismo10 em psicologia afirma que os estados psicolgicos deveriam ser
construdos sem referncia a qualquer coisa alm da fronteira do indivduo. As teses
individualistas esto na origem do mentalismo cartesiano e ganharam novo flego no debate
contemporneo com o nativismo, fruto da virada lingstica e das cincias cognitivas (Wilson
2004). Os estudos sobre o funcionamento mental e as estruturas lingsticas inatas originaram
modelos internalistas da mente e uma semntica individualista que enfatizam o papel central
que as propriedades internas do indivduo ocupam na economia causal da mente.
Em reao aos reducionismos e equvocos promovidos pelos modelos explicativos
individualistas, vm ganhando fora as explicaes externalistas. O externalismo da mente
defende a idia de que os contedos de nossos pensamentos so determinados por nossos 9 Ao analisar a antropologia do indivduo contemporneo, autores como Bauman, (1998), Sennett (2002), Costa (2004), Ehrenberg (2000, 2004), Bezerra, (1996), Andrieu (2003, 2004), Ortega (2002) e Vidal (2002) mostram o surgimento de configuraes identitrias que buscam a localizao material da interioridade, seja no crebro ou nas experincias sensoriais. Ao longo do sculo XX, observa-se o deslocamento crescente dos atributos sentimentais para o uso de predicados biolgicos como definidores da pessoalidade. A despsicologizao dos indivduos provocou o enfraquecimento da matriz identitria apoiada na educao sentimental e a biologizao da pessoa moderna (Russo & Possiano 2003) com valorizao de processos identificatrios apoiados na materialidade corprea. A figura antropolgica do sujeito sentimental descrito por atributos psicolgicos deu lugar ao sujeito cerebral descrito por atributos neurobiolgicos (Vidal & Ortega 2004) 10 A tese no privilegia a anlise sociolgica e histrica da interioridade nas sociedades individualistas e no aborda o surgimento da figura antropolgica do indivduo moderno. A anlise sociolgica das sociedades modernas (Dumont 1966, Ehrenberg 2004) mostra que o indivduo, o agente emprico singular, no apenas a matria primeira do grupamento, mas principalmente a fonte de valor supremo dessas sociedades, em contraposio s sociedades hierarquizadas nas quais o valor supremo atribudo a signos coletivos e ao pertencimento coletividade. A noo de individualismo ser utilizada no sentido especfico de tomar a entidade indivduo como paradigma explicativo do que determina os estados mentais da pessoa. A anlise da relao entre o indivduo moderno e os paradigmas individualistas da pesquisa pode ser encontrado em Ehrenberg (2004).
-
11
contextos sociais, interpessoais e institucionais. Contudo, adotar uma tese externalista no
necessariamente sinnimo de abandono da dimenso da interioridade do indivduo. Mesmo
num relato externalista do mundo, a experincia psicolgica introspectiva guarda relevncia
explicativa na compreenso do que a pessoa. Nessa tese, adotaremos uma perspectiva
externalista na investigao dos processos que constituem o que chamamos de interioridade.
Depois das contundentes crticas psicologia introspectiva (Bezerra 1996, Bouveresse
1976, Costa 1994, Ryle 1984), indagar-se sobre as origens da interioridade parece reavivar
metforas mortas desprovidas de relevncia descritiva no contexto atual e cuja ilogicidade j
foi exaustivamente mostrada pela filosofia da linguagem na crtica ao mito da interioridade.
O mito da interioridade (Bouveresse 1976) afirma a existncia de operaes internas
ao sujeito que seriam fundamento da linguagem e do conhecimento sobre a experincia
individual. Isso levou criao de conceitos psicolgicos que descreveriam os estados
internos do sujeito como processos inacessveis de fora, dos quais o sujeito seria o nico a
ter conhecimento e que teriam somente uma relao causal contingente com o exterior. O que
interessa na crtica filosfica do mito da interioridade explicitado por Wittgenstein
(Descombes 2004) menos mostrar o emprego linguageiro das noes de interior, mas,
sobretudo, mostrar o emprego metafrico transferido da noo que consiste em identificar os
atos mentais de algum a partir de sua expresso discursiva. A transferncia metafrica
praticada quando transferimos a descrio mental para a descrio lingstica identificando os
pensamentos pela proposio lingstica que seria necessria formar para comunic-los. A
mitologia surge da criao de uma linguagem do pensamento, um discurso interno que se
localizaria dentro do esprito ou dentro do crebro.
Wittgenstein foi o primeiro a argumentar contra a existncia de uma linguagem
privada. A idia de que existe uma linguagem privada est baseada na idia de que as
operaes bsicas da linguagem seriam operaes mentais cujo resultado consistiria na
expresso verbal (externa) da vontade e das afeces anmicas (interna), ou seja, a idia de que
as palavras estariam referidas a algo interno, como as sensaes. Como mostra Wittgenstein,
no existe uma linguagem que no possa ser intersubjetivamente observvel ou partilhvel,
que s se refira s sensaes exclusivas de seu nico usurio, e cujas expresses refiram-se
apenas aos processos internos desse usurio (Faustino 1995).
-
12
Essa dicotomia interno-externo dominante na filosofia de inspirao cartesiana deu
origem noo solipsista de mente como o espao interior habitado por entidades mentais
privadas que se opem ao mundo exterior. O espao interior um recipiente para os
contedos que representam e espelham a realidade externa. A mente interior desprovida de
caracteres extensos e guarda a noo de imaterialidade da alma e dos processos mentais. A
dicotomia interno-externo est apoiada na impresso natural de que, por trs do nosso
comportamento, haveria uma distino entre o mundo fsico, contendo matria e objetos
tangveis, inclusive corpos humanos, e o mundo privado dos fenmenos mentais. Haveria um
contraste entre o mundo dos objetos materiais e o mundo das idias etreas que constituiriam
propriedades privadas do indivduo.
Como reao a esse dualismo e ao introspectivismo, surgiu o behaviorismo, cuja
expresso mais importante a crtica de Gilbert Ryle (1984) noo de mente interior. A
crtica de Ryle se centra na noo de interioridade como equivalente a eventos privados,
conhecidos de modo imediato pela introspeco. A soluo behaviorista foi recusar a
existncia dos fenmenos mentais reduzindo-os s disposies comportamentais. Nessa
acepo, as proposies psicolgicas de primeira pessoa so exteriorizaes, expresses da
esfera mental. As exteriorizaes no so acerca do comportamento, so iguais ao
comportamento. A exteriorizao de uma sensao, por exemplo, um comportamento
lingstico entendido como continuao de um comportamento pr-lingstico que se tornar
um jogo de linguagem quando compreendida por outra pessoa. O aprendizado da gramtica da
exteriorizao das sensaes o aprendizado de um modo de manifestao de uma prtica
social.
Um dos problemas dessa posio foi criar um problema oposto, como um mito da
exterioridade, no qual o mental reduzido a tudo que externo e exteriorizado.
No obstante, expandir a mente para alm da fronteira do que caracteriza o interior
psquico do indivduo no significa necessariamente o abandono das metforas espaciais na
caracterizao do mental. O dualismo interno-externo, embora duramente criticado por
Wittgenstein e seus seguidores, tem sido revisto e reatualizado e continua presente na
descrio da mente e do comportamento do indivduo.
Um dos lugares em que o vocabulrio interno-externo persiste na explicao do
comportamento intencional. A discriminao entre interno e externo ao organismo parece
-
13
necessria para explicar a ao intencional humana, ou mesmo o comportamento de qualquer
sistema. O comportamento um movimento endgeno produzido internamente, um
movimento que tem sua origem causal dentro do sistema cujas partes esto em movimento.
Nesse sentido, interno no significa simplesmente dentro do corpo, sob a pele, interno inclui a
idia de uma parte prpria ou integral do organismo exibindo o comportamento. No entanto, o
fato de afirmar que um comportamento interno ao organismo no significa dizer que
produzido no interior do mesmo, ou independe de suas interaes exteriores, mas to somente
que est associado aos movimentos endgenos do organismo concebido como um sistema em
interao na direo do mundo. Considerando os contedos mentais do agente como aquilo
que explica a sua ao intencional, pode-se afirmar que o mental est sempre delimitado ao
agente situado. Podemos identificar o mental apenas em pessoas localizadas espacialmente.
No existe o mental fora da existncia espacial corporal. O agente situado existe do lado de
fora, nas exteriorizaes da mente, na histria e na linguagem, em aes e falas. Contudo, o
comportamento como exteriorizao do agente para ser compreendido como um ato
intencional do agente precisa ser considerado como sendo gerado pelo prprio agente, por sua
rede de crenas e desejos.
Outro lugar em que a utilizao dos termos interno e externo parece persistir na idia
de uma experincia introspectiva interna. inegvel a experincia existencial de habitarmos
um corpo com vida interior. inegvel o fato de que podemos ter pensamentos introspectivos
que no comunicamos aos outros. A palavra introspeco vem do latim introspecto, que
significa ao de olhar para dentro, penetrar. Essa ao captura a forma como
tradicionalmente concebemos nossa apreenso dos estados mentais (ver Bezerra 1996). Esses
termos expressam, numa linguagem espacial, uma diviso entre o mundo interno e o mundo
externo. Contudo, a conotao espacial desta linguagem puramente metafrica. Dizer que
um estado ou uma entidade so internos mente no dizer que isso implica uma dada
fronteira espacial. Se a distino entre o que est dentro da mente e o que repousa fora da
mente fosse apenas espacial, a diferena entre a introspeco e a exterocepo seria trivial,
uma mera questo de olhar em diferentes direes.
Parece haver uma aparente contradio entre a exteriorizao do agente e a
experincia introspectiva. Contudo, a incluso da exteriorizao do agente como critrio do
mental no torna obsoleta a noo de interioridade. Ao contrrio, para entendermos a
-
14
exterioridade humana, ou seja, a ao intencional do agente, precisamos redefinir o que a
interioridade. Se a mente no mais caracterizada por aquilo que permanece no seu interior,
se no mais concebida como um recipiente de representaes, fantasias ou idias, o que
caracterizaria a experincia da vivncia interior descrita pelo relato da primeira pessoa ou pela
experincia introspectiva?
Em O Self e A Interioridade (indito), Costa mostra que esta idia corrente espacial
do self interior ou de uma experincia interior pode ser analisada de duas formas. Uma se
refere ao sentido do termo e outra sua funo na vida mental. Em relao ao significado do
termo, afirma Costa, utilizamos os vocbulos de forma teoricamente infundada, mas
psicologicamente justificada. Isso quer dizer que nos equivocamos no sentido dos termos,
mas temos razes psicolgicas que justificam seu emprego. Costa sugere que consideremos
os predicados mentais denominados de interiores como a descrio, feita de outra
perspectiva, de atividades exteriores dos organismos humanos na interao com o meio.
Interior e exterior so duas formas fenomnicas da mesma relao concreta e material do self
com seu mundo (Costa indito). Ele sugere que empreguemos o termo interioridade como
um fenmeno pblico relacional, fundado na corporeidade fsica e sobre o qual podemos
fazer afirmaes empricas testveis. Nessa acepo, o interior aquilo que formado pela
auto-percepo corporal, pelas representaes dos objetos e situaes ambientais e pelas
narrativas em primeira pessoa sobre ns mesmos; e o exterior formado pelos objetos e
eventos cujas existncias ou realidades independem de percepes particulares de sujeitos
particulares (Costa indito).
E qual a funo preenchida pela experincia interior na vida mental? Como afirma
Costa (indito), a interiorizao dos predicados mentais a condio necessria para a
estabilizao do sentido do self, pois o sentimento de continuidade da existncia depende da
internalizao das expresses externas do self sobre o meio e do fluxo de trocas entre o mundo
interno e o externo. O self, continua Costa:
o efeito do esforo constante dos organismos humanos para unificar o dessemelhante, predizer o imprevisvel, reproduzir o que nos satisfez e explorar o que no conhecemos. Esse conjunto de atividades fsico-mentais o que chamamos de criatividade e que depende da vida interior para se exprimir (Costa indito).
-
15
Portanto, para expresso de nossa ao criativa no mundo necessria a experincia de
ser uma existncia contnua. A funo do self e da experincia da interioridade est na
criao de um sentimento de continuidade do ser de onde possa emergir a ao criativa.
Portanto, uma das funes da interioridade estabilizar um sentido de continuidade da
identidade que favorea a integrao entre a exteriorizaco do agente pela ao criativa e a
experincia introspectiva. Uma das caractersticas que identificam uma pessoa essencialmente
como a pessoa que ela depende da internalizao das aes externas do agente que esto na
base do sentimento de ser um self que persiste no tempo. A continuidade da conscincia
reflexiva estabelecida pela memria do passado de nossas aes e a projeo de expectativas
futuras, ou seja, aquilo que caracteriza nossa vida mental, um dos candidatos psicolgicos
para esse estatuto de identificao.
Nessa acepo, a interioridade caracterizada pelo sentimento de continuidade da
experincia subjetiva da pessoa. H uma experincia que ter conscincia de nossos vrios
estados mentais, ou seja, uma fenomenologia de nossa vida mental que tida e experimentada.
Um dos aspectos dessa vida interior o perspectivismo. Ou seja, o fato de experimentarmos o
mundo de uma dada perspectiva. Um ser autoconsciente aquele que no somente sujeito de
suas experincias fenomenais, mas possui a capacidade de conceber a si mesmo como uma
perspectiva de primeira pessoa. A autoconscincia e o autoconhecimento so essenciais para a
constituio da perspectiva da primeira pessoa. Como diz Lynne Baker (1998), um ser
consciente torna-se autoconsciente ao adquirir uma perspectiva da primeira pessoa uma
perspectiva a partir da qual pensa-se sobre si mesmo como um indivduo frente ao mundo,
como um sujeito distinto de tudo o mais. A atividade introspectiva, o autoconhecimento e a
autoconscincia so aspectos centrais de nossa vida mental interior e fazem parte daquilo que
nos define como pessoas. A forma como nos constitumos como pessoa diretamente
determinada pelo modo como nos auto-percebemos, auto-representamos e pelas narrativas que
construmos.
Contudo, no a atividade introspectiva que est no ponto de origem da interioridade.
Como veremos, a experincia de ser um self que persiste no tempo est associada
experincia prvia de habitar um corpo em interao com o ambiente. Nossa interioridade
emerge de um complexo espao de interao com pessoas e um mundo de objetos fsicos e
-
16
culturais compartilhado. As origens de nossa interioridade so, portanto, externas e
relacionais.
O objetivo dessa tese investigar uma forma de conceber o universo psicolgico da
pessoa, seu mundo interior, que preserve o relato introspectivo da experincia humana em
primeira pessoa e que leve em considerao a gnese externalizada dos processos mentais. O
problema que se coloca como compatibilizar a noo introspectiva do eu com as teses
externalistas do mental. Dito de outro modo, como explicar a constituio do eu introspectivo
capaz de ter estados mentais privados e acesso privilegiado a seus contedos mentais, cujos
estados mentais so, ao mesmo tempo, determinados por suas relaes sociais ambientais
exteriores?
A tese est dividida em 3 captulos.
No primeiro captulo, analiso a experincia subjetiva de ser um ser autoconsciente.
Comeo por fazer a distino entre ser um ponto de vista subjetivo e se conceber e se
conceitualizar como um ponto de vista subjetivo. Analiso a perspectiva da primeira pessoa e
os processos que a caracterizam, destacando dois eixos de investigao. Em primeiro lugar,
investigo a emergncia da perspectiva da primeira pessoa a partir da histria do
desenvolvimento ontogentico. Ter uma perspectiva de primeira pessoa ser capaz de ter
conscincia de si e de seus estados mentais e corporais. A capacidade de compreender a
experincia e de se conceber e se representar como uma perspectiva deriva da aquisio do
desenvolvimento da capacidade de conceitualizar. Num segundo momento, analiso os
processos mentais que caracterizam um ser autoconsciente: a autoconscincia e o
autoconhecimento. Pretendo mostrar que a emergncia da capacidade de autoconscincia e de
autoconhecimento esto associadas aquisio de conceitos, em particular, dos conceitos que
permitem fazer referncia ao eu e a seus estados mentais e corporais. Por fim, analiso quais
so os obstculos que uma abordagem externalista do mental pode trazer ao problema do
autoconhecimento. Se o externalismo defende a tese de que os contedos mentais so em parte
determinados pelos contextos interativos do indivduo, ele precisa explicar como o contedo
da experincia fenomenal determinado pelo exterior.
O segundo captulo dedicado investigao das teses externalistas e a sua
compatibilizao com o autoconhecimento. O que interessa, para os propsitos de
investigao do autoconhecimento e da gnese do eu, que a defesa da tese taxonmica
-
17
individualista ou externalista dos contedos mentais acarreta modificaes considerveis na
forma como concebemos o mental e os processos introspectivos. Apresento a concepo
individualista da mente e discuto os problemas oriundos das teses individualistas cartesianas
que deram origem s concepes solipsistas do mental. O individualismo estuda os fenmenos
mentais a partir do que acontece com a pessoa e como ela responde ao seu ambiente fsico sem
referncia ao que acontece no contexto social no qual est situada. O individualismo postula a
autoridade do conhecimento da primeira pessoa, de seus prprios estados mentais, como um
conhecimento a priori, que para obt-lo no precisaramos investigar o ambiente ou conhecer
o mundo externo.
Em seguida, trao a histria conceitual endgena das teses externalistas e de seus
modelos, restringindo-me s implicaes dessas teses no que concerne ao campo da filosofia
da mente, em particular questo do autoconhecimento. Na perspectiva externalista, acredita-
se que o pensamento identificado pela relao entre o indivduo e alguma coisa fora da sua
cabea. Se o pensamento no est completamente na cabea, no pode ser apreendido pela
mente no modo que requerido pela autoridade da primeira pessoa. Isso parece significar, em
alguma medida, uma renncia ao autoconhecimento como um conhecimento a priori de
nossos estados mentais. Apresento os diferentes modelos de externalismo e adoto o
externalismo perceptivo Davidson baseado na origem intersubjetiva da mente. Ao definir
conhecimento como, de incio, intersubjetivo, Davidson inverte a lgica solipsista cartesiana e
empirista que pretende construir uma viso do mundo a partir do indivduo e seu ponto de
vista subjetivo perceptivo. a partir da interao triangular eu, outro e mundo e das trocas
comunicativas que desenvolvemos um conhecimento compartilhado do mundo externo, o
conhecimento do que o outro pensa e o autoconhecimento, ou seja, o conhecimento do que
ocorre dentro de ns mesmos.
No terceiro captulo, apresento os modelos externalistas da gnese do eu que enfatizam
a interao com o ambiente. Esses modelos podem ser divididos em dois blocos: os modelos
ecolgicos e os modelos tridicos. A abordagem ecolgica opera com uma lgica dual de
constituio do eu, na qual o sentido do eu emerge da interao eu-mundo ou organismo-
ambiente. Ou seja, o fator invarivel da identidade a relao organismo-ambiente. A
abordagem tridica opera com uma lgica ternria, na qual o sentido do eu emerge da relao
entre o eu, o intrprete e o mundo. O processo de desenvolvimento do eu em Winnicott
-
18
apresentado como o modelo psicolgico de emergncia do sentido de continuidade do eu que
exemplifica a conceitualizao epistemolgica tridica de Davidson. Para Winnicott, o fator
invarivel da identidade emerge da relao do eu com o outro que interpreta o mundo e
apresenta os objetos. A concepo de espao transicional, conceito pilar da metapsicologia de
Winnicott, espao para o qual convergem o eu, o outro e o objeto transicional, o espao do
qual se origina nossa interioridade.
-
19
CAPTULO I
A PERSPECTIVA DA PRIMEIRA PESSOA
1. O Que Sentir-Se Como Ns Num dos episdios da srie Star Trek, The Next Generation, Data, um dos
personagens desse universo ficcional, julgado por seu estatuto de ser ou no considerado
uma pessoa. Data uma forma de vida artificial, projetada para assemelhar-se a um humano.
Ele possuidor de um crebro composto de positrnios que funciona como um computador
central e exibe uma forma de conscincia reconhecida por humanos. Esta uma tecnologia
ficcional dos crebros dos robs idealizada por Isaac Asimov, um dos pais da science fiction.
Em The Measure of The Man, vemos o Capito Picard defender Data contra a
ameaa de ser desmontado. A questo central o direito que teriam os humanos que
projetaram Data, seus criadores, de intervir sobre sua vida artificial e, conseqentemente, de
destru-lo. A defesa em favor de desmontar Data se baseia no argumento de que ele no uma
pessoa com direitos, mas sim uma mquina de propriedade da Unio da Federao dos
Planetas. Em defesa de Data, Capito Picard alega que ele preenche todos os critrios dos
seres conscientes, como a capacidade de sentir, perceber e agir intencionalmente, e que, como
tal, teria o direito liberdade e autodeterminao concedidos s pessoas. Picard alega que
todos os seres so criados, mas que isso no os torna possesso de seus criadores. Data,
portanto, teria o direito de tomar suas prprias decises sobre sua vida.
Esse estimulante exerccio ficcional traz baila a questo sobre os critrios para
definio do que a pessoalidade. Daniel Dennett inicia o artigo Conditions of personhood
(1981a) com uma definio que interroga nosso senso comum sobre o que ser uma pessoa.
Ele afirma que eu e voc, leitor, certamente somos pessoas, mas no h garantias de que
somos feitos da mesma composio biolgica. Portanto, se o fato de pertencermos espcie
humana, se nossa condio biolgica, no uma condio necessria nem suficiente para
caracterizar a pessoa, quais seriam, ento, os critrios necessrios? Dennett apresenta seis
condies necessrias para a pessoalidade: ser racional; ser um ser a quem se atribui estados
psicolgicos e predicados intencionais; ser objeto das atitudes de pessoa (personal stance), ou
-
20
seja, ser tratado como pessoa; ser capaz de tratar reciprocamente os outros como pessoas; ser
capaz de comunicao; exibir um tipo especial de conscincia, a autoconscincia.
As trs primeiras condies racionalidade, intencionalidade, adoo de atitudes de
pessoa so condies necessrias, mas no suficientes para ser uma pessoa. Os seres que
exibem essas trs primeiras condies so sistemas intencionais11 que se caracterizam por
apresentar comportamentos que podem ser explicados e previstos por meio de atribuies de
crenas e desejos. O quarto critrio, reciprocidade, caracteriza os sistemas intencionais
capazes de adotar uma atitude intencional frente ao mundo e s outras pessoas. So sistemas
intencionais de segunda-ordem capazes de ter crenas e desejos acerca de suas prprias
crenas e desejos, ou seja, so capazes de representar crenas, desejos e intenes de segunda
ordem. Essas caractersticas so exibidas por alguns animais12. A quinta caracterstica, ser
capaz de comunicao verbal, ou seja, ser dotado de linguagem, exclui os animais no
humanos da noo de pessoalidade. A ltima condio, a autoconscincia, a idia de que as
pessoas so distinguveis de outras entidades, pois exibem um tipo especial de conscincia. A
autoconscincia o que nos permite ter conscincia das nossas aes, ou melhor, ter
conscincia de que somos ns os responsveis por nossas aes e que podemos ser indagados
acerca das razes pelas quais as executamos e ser responsabilizados moralmente por nossos
atos.
Dennett conclui o artigo ressaltando a normatividade inerente noo de pessoa.
Mesmo na presena das seis condies, persistir sempre o carter ideal e arbitrrio do
conceito de pessoa que depende da interao entre pessoas (personnal interaction). Qualquer
definio metafsica que estabelea condies ontolgicas acerca da pessoalidade no escapar
dos aspectos normativos que compem a noo moral de pessoa. Em suas palavras:
11 O sistema intencional toda entidade cujo comportamento previsvel e explicvel pela atitude intencional. Como afirma Dennett, "A atitude intencional a estratgia de interpretar o comportamento de uma entidade (pessoa, animal, artefato, seja l o que for) tratando-a como se fosse um agente racional que governa sua "escolha" da "ao" levando em "considerao" suas "crenas" e "desejos".(...) A estratgia bsica da atitude intencional tratar a entidade em questo como um agente, com a finalidade de prever - e, portanto explicar, num certo sentido - suas aes ou movimentos" (1996: 27). O sistema intencional aquele cujo comportamento pode ser previsvel pela imputao ao sistema da posse de certas informaes e pela suposio de que dirigido por certos objetivos. Para maiores detalhes ver Dennett (1981b). 12 Os estudos em Psicologia Evolucionria tm mostrado que certos animais (em particular os primatas) possuem representaes mentais de seu ambiente e dos comportamentos dos outros que os permitem resolver problemas e simular novas situaes. Alguns chimpanzs chegam mesmo a exibir comportamentos que se assemelham capacidade de ler o comportamento dos outros, um esboo do que chamamos teoria da mente. Sobre a Psicologia Evolucionria ver Doug Jones (1999).
-
21
se essas seis condies (estritamente interpretadas) fossem consideradas suficientes, elas no assegurariam que qualquer entidade real seria uma pessoa, pois nada satisfaria essas condies. A noo moral de pessoa e a noo metafsica de pessoa no so conceitos separveis ou distintos, mas apenas dois pontos de repouso diferentes e instveis do mesmo contnuo. (1981a: 285)
Portanto, definimos o sentido de nossos critrios metafsicos a partir de nossas
injunes ticas, como prope Stephen White citado por Dennett (2004).
Contudo, inegvel que a presena dessas seis condies oferece critrios, mesmo que
provisoriamente suficientes, para a compreenso da constituio do agente moral. Com
certeza, a capacidade de autoconscincia ou, ao menos, a possibilidade de adquiri-la, no
caso dos bebs, ou o fato de j t-la tido em algum momento, no caso dos que a perderam
tem sido um dos critrios definidores do que uma pessoa.
Data um ser que satisfaz essas condies. E exatamente por isso que somos
inclinados a conceder-lhe o estatuto de pessoa. Embora possamos restringir seus direitos,
alegando que ele pertence a uma classe diferenciada de pessoa como nas prticas de
excluso social em que limitamos os direitos queles que consideramos como no pertencendo
ao nosso grupo, como no sendo um de ns como diria Rorty13 Data tem caractersticas
que tm sido reconhecidas como definindo a pessoa. Ainda que esses critrios ontolgicos
estejam, em ltima instncia, subordinados aos aspectos morais definidos pela comunidade a
qual pertencemos, isso no torna obsoleto o seu uso como balizadores de nossos discursos e
atitudes frente ao que consideramos uma pessoa. Dentre todos os critrios, a capacidade de
autoconscincia tem sido tratada como um critrio definidor decisivo.
A autoconscincia tem sido considerada um trao distintivo da espcie humana.
Mesmo que as pesquisas com chimpanzs (Gallup 1997, apud Baker 1998) demonstrem que
os mesmos exibem uma capacidade cognitiva rudimentar de auto-reconhecimento (como
aprender a se reconhecer no espelho aps um tempo de exposio ao objeto), a capacidade de
autoconscincia, de fazer referncia a si mesmo e identificar a si mesmo, parece especfica da
nossa espcie. Somos as nicas criaturas capazes de pensar sobre ns como uma existncia
permanente no tempo (persisting self), isto , a ter uma perspectiva da continuidade do eu. A 13 Em Droits de lhomme, rationalit et sentimentalit (1994), Richard Rorty mostra que as atrocidades impostas a outros grupos, como os negros, judeus, loucos e mulheres, ocorrem quando no consideramos estes outros como um de ns. Rorty prope que tentemos alargar tanto quanto possamos o sentido de ns a pessoas que pensvamos como sendo eles, de forma a garantir os direitos humanos e estend-los a todos os bpedes sem pluma, ampliando nossa comunidade moral. (Claudia Passos Ferreira 1998)
-
22
autoconscincia um aspecto essencial na construo de nossa identidade pessoal ao longo de
nossa histria de vida, pois nos permite escapar do aqui e agora de nossa presena ao mundo
e nos projetarmos numa dimenso futura como agentes morais responsveis por nossas aes e
decises. Pode-se afirmar, portanto, que a autoconscincia essencial para ser uma pessoa.
Mas, como definimos um ser autoconsciente?
Todas as formas de autoconscincia pressupem um ponto de vista subjetivo. Em
What is it like to be a bat (1992), Thomas Nagel mostra como um ser consciente se torna
autoconsciente ao adquirir uma perspectiva de primeira pessoa. A perspectiva da primeira
pessoa a experincia subjetiva por meio da qual podemos nos conceber como um ser
individual, distinto de todo o resto do mundo com o qual estamos lidando. Como mostra
Nagel, todo ser consciente, mesmo seres sencientes no humanos, sujeito de suas
experincias no sentido de que as experimenta. Todo fenmeno subjetivo est conectado,
portanto, como um ponto de vista singular.
No entanto, nem todo ser consciente autoconsciente. A autoconscincia um estado
que nos torna consciente de ns mesmos. a conscincia de ter uma experincia subjetiva e
possuir conceitos de si mesmos na perspectiva da primeira pessoa. Somente os animais
humanos so capazes de exibir essa forma conceptual de perspectiva da primeira pessoa e
podem ser ditos completamente autoconscientes, ou, como denomina Lynne Baker (1998),
capazes de exibir uma verso forte da perspectiva da primeira pessoa.
Baker prope uma distino entre a perspectiva forte e a perspectiva fraca da primeira
pessoa que parece til para esclarecer a relao entre a autoconscincia e a identidade da
pessoa. A perspectiva fraca aquela exibida por criaturas capazes de resolver problemas e
cujos comportamentos podem ser explicados em termos intencionais. So seres como os
animais14 e os recm-nascidos aos quais podemos atribuir crenas e desejos, pois parecem se
comportar de uma certa perspectiva. No necessrio que um organismo possua o conceito de
primeira pessoa para que possam lhe atribuir um comportamento motivado por crenas e
desejos. Segundo Baker, os fenmenos fracos da perspectiva da primeira pessoa so exibidos
por seres sencientes, capazes de solucionar problemas por meio de atitudes perspectivais que
explicam seu comportamento intencional. Como todos os estados psicolgicos so
14 H um grande nmero de pesquisas em Psicologia Evolutiva que tenta mostrar a relao entre nossa forma de se desenvolver psicologicamente e a evoluo de outras espcies em particular os macacos, chimpanzs, ces e corvos.
-
23
perspectivais na origem, assim tambm a crena, o desejo e o comportamento pertencem a um
nico organismo.
O que caracterstico da perspectiva forte da primeira pessoa a capacidade de
reconhecer a si mesmo como um ponto de vista subjetivo e de pensar sobre si mesmo como
uma pessoa. Essa capacidade nica dos humanos de se conceber como eu autoconsciente e
capaz de introspeco fundamental para o desenvolvimento do que consideramos uma
pessoa, what-is-it-like-to-be-us.
Nesse captulo, analisarei a perspectiva da primeira pessoa e os processos que a
caracterizam, destacando dois eixos de investigao: (1) como emerge a perspectiva da
primeira pessoa na histria do desenvolvimento ontogentico a partir da aquisio da
capacidade de meta-representar e conceitualizar; (2) anlise dos processos mentais que
caracterizam um ser autoconsciente: autoconscincia e autoconhecimento. Pretendo mostrar
que a emergncia da capacidade de autoconscincia e de autoconhecimento esto associadas
aquisio de conceitos, em particular os conceitos que permitem fazer referncia ao eu e a seus
estados mentais e corporais. Por fim, analisarei quais so os obstculos que uma abordagem
externalista do mental pode trazer ao problema do autoconhecimento, ou seja, como
compatibilizar a idia de que os contedos mentais so parcialmente determinados pelo
ambiente externo com a noo de que temos conhecimento privilegiado de nossos estados
mentais e no nos equivocamos na atribuio de estados ao eu.
2. Tornar-se Uma Perspectiva
2.1 O Carter Subjetivo Conscincia O debate acerca da experincia subjetiva da conscincia tem sido dividido entre: os
eliminativistas que renunciam ao carter qualitativo da experincia, os new mysterians que
tentam preservar o carter de singularidade da experincia subjetiva e negam qualquer reduo
da conscincia a processos neurofisiolgicos, e aqueles que tentam oferecer um relato
naturalista da conscincia. O problema da conscincia, the hard philosophical problem como
chama Chalmers (1995), tem sido abordado a partir do problema da identidade entre o fsico e
o mental. Como mostra Nagel (1992), haveria um gap entre a conscincia fenomenal e as
explicaes fisicalistas, na descrio fisicalista da experincia fenomenolgica. Ele argumenta
que uma teoria que identifica o mental ao fsico reduziria o fenmeno da conscincia a
-
24
processos neuroqumicos que eliminariam a qualidade da experincia subjetiva, o qualia.
Nagel (1992) junto com Searle (2004), Chalmers (1995) e Varela (1991, 1996a, 1999, 2004)
fazem parte do grupo dos new mysterians, que, apesar de acreditarem que a conscincia no
pode existir sem o suporte fsico do crebro, acreditam que a conscincia e o carter subjetivo
da mente possuem uma dimenso privada da perspectiva da primeira pessoa que no podem
ser inteiramente compreendidos ou naturalizados15. Isto , a descrio fisicalista da
conscincia pode chegar a predizer, do ponto de vista da terceira pessoa, as correlaes entre
as experincias subjetivas e as condies objetivas do crebro, mas no pode explic-las.
Dennett, Rorty (1988), Andy Clark (1996), os Churchlands (Andrieu 1998) e Dretske (1997),
fazem parte do grupo que defende a tese materialista de que nenhum fato consciente pode ser
acessvel somente a uma pessoa, a um nico ponto de vista. Dennett (1991, 2001, 2003)
prope que a conscincia seja investigada a partir de mtodos cientficos que esclaream a
15 Em comunicao oral, Francisco Ortega e Octvio Serpa chamaram ateno para o equvoco e a conseqente simplificao de identificar a posio enactiva da conscincia de Francisco Varela com a posio dos new mysterians. A etiqueta new mysterians foi criada por Owen Flanagan (1991), referindo-se aos filsofos que acreditam que o fenmeno da conscincia no poderia ser reduzido ao seu funcionamento cerebral, pois haveria um mistrio na conscincia que a tornaria irredutvel materialidade cerebral, e que, portanto, a metodologia cientfica do discurso da terceira pessoa seria insuficiente para explicar o fenmeno da conscincia. Dentre os que defendem essa posio, esto, por exemplo, Thomas Nagel, Roger Penrose, Colin McGinn, John Searle e Noam Chomsky. No quadro de diviso que propus, a neurofenomenologia de Varela estaria mais prxima da posio defendida pelos new mysterians do que da posio dos eliminativistas e dos funcionalistas. Como toda tentativa de sistematizao, essa diviso alm de simplificar o problema, com certeza, no d conta dos matizes variados de cada ponto de vista filosfico que, muitas vezes, se distinguem em detalhes nem sempre de relevncia terica. Nesse sentido, nem mesmo David Chalmers poderia estar no grupo dos new mysterians, pois h matizes de sua posio que no se adquam ao que defendem os proponentes do Novo Misterianismo. A ttulo de exemplo, em outras sistematizaes, D. Chalmers junto com T. Nagel so considerados como adeptos de um certo pampsiquismo que defenderia uma conscincia universal, e se afastam de John Searle e Colin McGinn que so detratores do pampsiquismo. A soluo, ento, a meu ver, pode ser adotar o esquema proposto pelo prprio Varela em Neurophenomenology: a methodological remedy to the hard problem (1996a). Ele prope uma diviso das abordagens naturalistas da conscincia em quatro eixos: 1) o grupo de direita, que resolve o hard-problem eliminando o fenmeno da conscincia, representado pelos Churchland e F. Crick e Ch. Koch; 2) o grupo de centro direita, que defende a abordagem funcionalista da conscincia, reduzindo a conscincia a estados mentais funcionais ou intencionais, como D. Dennett, R. Jackendorff e G. Edelman; 3) o grupo de centro esquerda, onde se localizam os new mysterians como Nagel e McGinn; 4) e o grupo de esquerda, representados por F. Varela, D. Chalmers, J. Searle, que reconhecem o carter irredutvel da experincia consciente da primeira pessoa mas que se recusam a conceder uma resposta dualista que endossaria o fosso entre a experincia e a estrutura cognitiva. Varela reconhece que sua posio prxima da defendida pelos novos misterianos como Nagel e Searle. Ele afirma concordar com o diagnstico que fazem do problema, ou seja, que a experincia em primeira pessoa da conscincia irredutvel, mas no concorda com a impossibilidade de soluo do gap entre o fenmeno da conscincia e os mecanismos cognitivos que deriva da posio desses autores. Varela prope como soluo a abordagem enactiva ou da cognio situada, na qual o fenmeno da conscincia estudado pela neurofenomenologia, que conjugaria o fenmeno da experincia de primeira pessoa com as estruturas cognitivas descritas pelas cincias cognitivas. Segundo o autor, o fenmeno da conscincia deve ser estudado levando em considerao a experincia do corpo vivo situado no ambiente, e buscando conexes entre a mente biolgica e a mente experencial.
-
25
engenharia da mente e descrevam a conscincia do ponto de vista da terceira pessoa, o que
chama de heterofenomenologia. Para Dennett, a abordagem heterofenomenolgica permitiria
criar uma organizao e catalogao dos dados primrios da conscincia, viabilizando o
desenvolvimento de uma teoria explanatria.
Existem diversas tentativas tericas de naturalizar a conscincia e desmistificar seu
carter misterioso que mostram como os aspectos relevantes da conscincia podem existir
numa concepo puramente fisicalista do mundo (ver U. Kriegel 2005). O projeto de
naturalizao da mente visa explicar os fatos mentais a partir das cincias naturais,
descrevendo estados e processos mentais como aspectos do crebro e do sistema nervoso
central. Dentre os defensores da naturalizao da conscincia, esto os representacionalistas.
Examinarei a abordagem representacionalista de Fred Dretske (1997) que tenta preservar o
carter qualitativo da experincia subjetiva. Dretske prope compatibilizar a idia de que os
aspectos qualitativos da experincia so subjetivos e privados com a idia de que so passveis
de serem determinados objetivamente, ou seja, podem ser capturados por um relato
representacional.
Em sua Teoria Representacional da Conscincia16, o estado de estar consciente um
modo de representar alguma coisa. A conscincia fenomenal nos torna consciente das
propriedades fenomenais dos objetos e dada pelos sentidos perceptivos: ver, ouvir, cheirar,
provar, sentir. Os estados mentais conscientes so estados que nos tornam conscientes de
objetos, propriedades e fatos. So estados que nos tornam conscientes com eles e no estados
dos quais estamos conscientes. O que torna a pessoa consciente de estar tendo a experincia
16 Gostaria de fazer uma distino entre trs usos da noo de representao: a atividade da representao, a idia de representao, e representao mental. A atividade da representao est associada a alguma atividade mental na qual nos engajamos. A idia de representao geralmente usada na Teoria Representacional da Percepo como uma interface semntica interna entre ns mesmos e o que estamos pensando ou percebendo, e est associada idia de colocar um objeto diante da mente. Essa noo de representao interna criticada no Captulo II, na discusso sobre a noo individualista da mente. O terceiro uso encontramos mais recentemente na literatura aps a virada informacional (the information turn) e, de certa forma, deriva da idia precedente da representao como um objeto mental com propriedades semnticas. A noo de representao mental um construto terico das cincias cognitivas segundo o qual os estados e processos cognitivos so constitudos pela ocorrncia, transformao e estocagem (no crebro ou na mente) de estruturas representacionais que captam informaes. Essa noo o ponto de partida da Teoria Representacional ou Computacional da Mente que encontra em Dretske um dos seus mais promissores defensores. O ponto de partida dessa abordagem que os estados mentais (pensamentos, crenas, desejos e percepes) esto relacionados a representaes mentais e a intencionalidade desses estados deve ser explicada em termos das propriedades semnticas da representao mental. (Para uma melhor discusso ver Pitt, David, Mental Representation, Stanford Encyclopedia of Philosophy. Electronic Dictionary)
-
26
um estado interno que representa as propriedades da experincia. Sem o estado
representacional no possvel ter conscincia da propriedade que experimentamos.
A experincia consciente, em termos do what it is like for the subject, pode ser
distinguida em dois aspectos: (1) a conscincia das propriedades fenomenais dos objetos, que
o carter qualitativo da experincia que os fenomenlogos chamam de presena ao mundo;
(2) o aspecto for-me (for-me-ness, como chama Kriegel, 2005), que o carter subjetivo da
experincia, ou seja, o que ter a experincia para o sujeito. O carter subjetivo da
experincia consiste num contedo representacional particular que se desdobra em uma
representao de algum aspecto do ambiente e numa representao interna da representao.
Para um materialista como Dretske, no h fatos mentais que s sejam acessveis a
uma nica pessoa. Toda subjetividade faz parte do mundo objetivo. Segundo Dretske, pode
haver circunstncias de tempo e espao que capacitem uma pessoa a conhecer alguma coisa
que os outros no conhecem, circunstncias de tempo e espao que tornem uma pessoa
autoritativa, mas no h fatos privilegiados a uma pessoa, fatos que s uma pessoa pode
conhecer (1997: 65). Temos informao direta e imediata sobre nossa vida mental, mas no
temos acesso privilegiado a informaes que os outros no possam ter. Todos podem ter
acesso mesma informao. Isso quer dizer que a vida subjetiva de uma criatura, o que se
sentir como essa criatura (what it is like to be), no inacessvel. Contudo, h uma
particularidade na experincia de ser um ponto de vista.
Ao contrrio de certos relatos naturalistas que explicam o mental a partir do
funcionamento da maquinaria cerebral biolgica, Dretske concebe a mente como a funo de
manipulao de representaes, a partir da idia de informao17. Ele defende duas teses: (1)
todos os fatos mentais so fatos representacionais; (2) todos os fatos representacionais so
fatos sobre funes informacionais. A idia central a mente um design projetado pela
histria evolutiva com a funo de trazer a informao sobre o objeto. A mente um sistema
que representa uma dada propriedade e tem a funo de indicar e representar a propriedade. A 17 Em seus trabalhos mais recentes, como mostra Pereira (2006), Dretske reformula sua Teoria Semntica Informacional, e prope uma abordagem representacionista que combina a noo de informao com o elemento teleolgico (Teleosemntica). O importante para o argumento aqui desenvolvido que essa reformulao resulta, como esclarece Pereira (2006), na idia de que a principal distino entre as representaes sensoriais e conceituais feita em termos da distino entre dois tipos bsicos de indicadores de funo, sistmica e adquirida. A representao de que O P sensorial e no-conceptual quando seu indicador de funo derivado do sistema do qual ele um estado, e conceitual quando seu indicador de funo adquirido do tipo do qual ele um estado particular. No primeiro caso, o indicador de funo filogeneticamente determinado pela seleo natural, enquanto no segundo caso ele adquirido ontogeneticamente pelo aprendizado. (Pereira 2006)
-
27
funo pode ser sistmica ou adquirida. As funes sistmicas so funes filogenticas dos
sistemas sensoriais produzidas pelo processo histrico de seleo natural. As funes
adquiridas so funes aprendidas no processo de maturao do indivduo. Os sistemas
perceptivos (incluindo a propriocepo) produzem representaes e tm a funo biolgica de
fornecer informao. A tarefa do aparelho sensorial construir representaes mentais sobre o
mundo. Todos os estados mentais (crenas, pensamentos e experincias) so representaes
naturais. Toda representao representao de um fato, mas nem toda representao
conceitual. A experincia uma forma de representao no-conceptual e inerente ao
sistema. As crenas e pensamentos so representaes conceituais adquiridas ao longo do
desenvolvimento ontogentico.
Tanto as atitudes proposicionais (crenas e desejos) quanto a experincia sensorial (o
qualia) so representaes internas. O carter qualitativo da experincia identificado s
propriedades que os objetos representados possuem, e essas propriedades so, em princpio,
passveis de serem conhecidas por qualquer pessoa. Para Dretske, o carter qualitativo da
experincia perceptiva no deve ser definido funcionalmente, por meio de nossas disposies
comportamentais, mas deve ser definido em termos fsicos. Chamamos de qualia s
propriedades fenomenais dos objetos que so experimentadas subjetivamente. Essas
propriedades so aquelas que esto representadas nas informaes que nossos sentidos tm a
funo natural de fornecer; e podem ser determinadas assim como determinamos outras
funes biolgicas dos rgos corporais.
Os organismos tm funes biolgicas especficas com diferentes performances
discriminativas e capacidades diferenciadas de representar propriedades. As experincias
qualitativas podem ser distintas mesmo que os organismos tenham a mesma capacidade
biolgica. Portanto, a experincia de ser um ponto de vista subjetivo no pode ser reduzida
funo biolgica. O ponto de vista subjetivo determinado tambm pelas partes e aspectos da
experincia do objeto que representamos. Todo e qualquer objeto ocupa diferentes lugares no
mundo, portanto, captamos informaes diferentes do mundo de acordo com as posies que
ocupamos. Contudo, as experincias no diferem subjetivamente simplesmente porque so
experincias de diferentes objetos em diferentes perspectivas. Essa diferena uma
experincia que pode ser partilhada ao trocarmos de lugar com o outro e ocuparmos o mesmo
ponto de vista do outro. As diferenas nos estados subjetivos que interessam e caracterizam a
-
28
singularidade da experincia so as diferenas que resultam no de pontos de vistas diferentes,
mas no modo como os pontos de vistas so vistos. O que faz diferena no what it is like for the
subject no so os objetos acerca dos quais a experincia, mas o modo como esses objetos
so representados de um dado ponto de vista.
Portanto, como afirma Dretske, o que muda o modo como a experincia codificada.
Ao nvel da conscincia fenomenal, temos a experincia de uma variedade de propriedades.
Ao nvel da conscincia conceitual, temos experincia de um tipo de propriedade, pois h uma
categorizao da experincia sensorial que dada pelo aprendizado dos conceitos. Os sistemas
sensoriais inatos so funes herdadas filogeneticamente, e no podem ter o carter
representacional da experincia alterado. No entanto, so adaptveis e recalibrveis. O modo
como a experincia representa o mundo fixado pelas funes biolgicas do sistema. Porm,
a cognio uma funo que se desenvolve ontogeneticamente. E o modo como uma crena
representa o mundo determinado pelo aprendizado individual da capacidade de conceituar.
Podemos ter a mesma experincia e conceitu-la de forma diferenciada. Pelo aprendizado, eu
posso alterar o que eu acredito e penso quando experiencio o mundo, mas no posso alterar a
qualidade do que experiencio. A conscincia da experincia altera aquele que a experimenta,
mas no modifica a experincia. A diferena entre as experincias que temos conscincia e as
que no temos no est na prpria experincia, mas naquele que tem a experincia, ou seja, no
que a pessoa sabe a respeito da experincia que est tendo.
A aquisio da capacidade de conceituar permite a aquisio de conceitos sobre o eu, o
que permitir fazer referncia ao eu e representar a experincia subjetiva. A capacidade de
representar a experincia subjetiva altera significativamente o modo como a pessoa
experimenta seu ponto de vista e permite a emergncia da conscincia de si como uma criatura
com uma perspectiva dentre outras.
2.2 A Emergncia da Autoconscincia A observao do comportamento dos recm-nascidos evidencia aspectos importantes
da experincia de ser um ponto de vista distinto dos outros e de se comportar no mundo a
partir de uma perspectiva. At tornar-se uma pessoa e ser capaz de exibir fenmenos da
perspectiva forte da primeira pessoa, ns humanos passamos por cerca de 4 anos de
desenvolvimento com mudanas qualitativas considerveis que culminam com a emergncia
-
29
da capacidade de autoconscincia. Do nascimento at 4-5 anos de idade, so observados
diferentes nveis do desenvolvimento da representao do eu que indicam alteraes
importantes no modo como as informaes sobre o eu so representadas. Existem cinco passos
que correspondem a diferentes nveis de autopercepo: diferenciao eu-mundo (0-2 meses);
agente situado (2-9 meses); agente perspectivo (9-18 meses); agente representacional (18-36
meses); agente meta-representacional (3-4 anos)18.
As pesquisas sobre o desenvolvimento do beb mostram que, desde o nascimento, ele
capaz de perceber seu prprio corpo como uma entidade diferenciada de outras no ambiente,
ou seja, capaz de fazer a diferenciao eu-mundo (ver Gibson 1979, Neisser 1988, Rochat
2003, Rochat & Striano 2000, Butterworth 1995). A tradio de pensamento gibsoniana busca
enfatizar a experincia precoce de diferenciao, opondo-se idia hegemnica em psicologia
de que o beb nasceria num estado de confuso com seu entorno, e que suas aes seriam
respostas automticas a estmulos do ambiente tese defendida por James e Piaget
(Butterworth 1995). Essa noo foi amplamente articulada por James Gibson (1979), que
preconizava a idia de que, desde o nascimento, o beb se comporta como um centro de ao e
percepo cuja experincia perceptiva acarreta autopercepo e um sentido implcito do
prprio corpo. Como afirma Gibson:
A informao sobre o self acompanha a informao sobre o ambiente, e as duas so inseparveis. A ego-recepo acompanha a exterocepo, como se fosse o outro lado da moeda. A percepo tem dois plos, o subjetivo e o objetivo, e a informao est disponvel para especificar ambos. Percebemos o ambiente e co-percebemos a ns mesmos. (Gibson 1979: 126)
Para Gibson, nascemos biologicamente equipados com as funes proprioceptivas e
exteroceptivas, que so funes do sistema perceptivo que se dirigem ao corpo e ao mundo. A
propriocepo traz informao19 sobre os aspectos mutveis e persistentes do corpo e a
exterocepo dos (com os) aspectos mutveis e persistentes dos objetos e acontecimentos
extracorporais (Costa 2004: 61). Portanto, todo ato perceptivo auto-informativo. A
concepo ecolgica, como esclarece Costa: 18 Esses cinco nveis foram adaptados das classificaes apresentadas por Rochat (2003) e Fonagy (2004), que mostram como a autoconscincia, no caso de Rochat, e o sentido da atividade do agente, no caso de Fonagy, se desenvolvem a partir de cinco passos observados na ontognese. 19 O termo informao usado pelos psiclogos cognitivistas tem um significado diferente da semntica informacional de Dretske. Segundo Neisser (1988), na teoria ecolgica da percepo de Gibson, a informao existe objetivamente e especifica as propriedades dos objetos e eventos em virtude dos princpios fsicos e obtida por aquele que percebe.
-
30
defende a idia de que o comportamento movente e senciente dos animais a maneira que eles tm de descobrir e utilizar os recursos do ambiente, (...) e, medida que o indivduo explora os recursos do ambiente apropriados sua auto-regulao, auto-reproduo e satisfao, desenvolve a autopercepo de si. (Costa 2004: 61)
A abordagem ecolgica do self criou uma srie de experimentos que confirmam a
capacidade perceptiva de se discriminar do ambiente e se comportar como um centro de aes
intencionais. Nessa acepo funcionalista do self (Eleanor Gibson 1995), privilegiam-se as
diferentes informaes que o self capaz de obter por meio da percepo e interao com os
objetos fsicos e culturais.
Ulric Neisser (1988) chama de self ecolgico o self diretamente percebido em relao
ao seu ambiente fsico imediato, capaz de estar consciente (awareness), de estar atento. Ao
perceber o ambiente, ele capaz de se situar espacialmente e de agir como um ponto de vista
subjetivo em relao ao seu entorno, por meio de padres perceptivos que especificam sua
posio e seu movimento. Desde o nascimento, a partir de seus movimentos e aes no
ambiente, o beb capta informaes perceptivas que especificam seu prprio corpo como uma
entidade nica no mundo. A capacidade inata de diferenciao eu-mundo atribuda a
experincias perceptivas que especificam o corpo do beb como oposto a outras entidades
perceptivas do mundo. A experincia de tocar-se a si mesmo, de ouvir seus prprios sons, de
visualizar seus prprios movimentos, so experincias perceptivas bsicas que auto-
especificam o corpo do beb (Rochat 2003).
Existem vrias pesquisas que mostram empiricamente a capacidade inata de se
diferenciar e de se autoperceber20. Philippe Rochat e colaboradores (Rocha & Hepos 1997,
apud Rochat 2003) observaram o comportamento de fuar de recm-nascidos (reconhecer com
o focinho) (rooting reponse). Eles compararam o comportamento de fuar em bebs com 24
horas de vida observando a estimulao ttil tanto originada pelo dedo do experimentador
20 George Butterworth e colaboradores (1995) fizeram uma srie de estudos sobre a propriocepo visual dos bebs para testar a capacidade do beb de discriminar o movimento de seu prprio corpo do movimento dos objetos do ambiente. Esses estudos mostram que muito precocemente, antes mesmo de serem capazes de sentar, os bebs so capazes de ajustar sua estabilidade da postura em relao estabilidade de seu entorno visual. No estudo do quarto movente (moving room), os bebs so presos a carrinhos e colocados num quarto suspenso do cho que se movimenta, de modo que a informao do fluxo ptico capta uma perda de balano mesmo quando o beb permanece numa postura estvel. Observa-se que o beb capaz de distinguir entre o seu movimento (automovimento) e o movimento do ambiente (alomovimento), e perceber a informao proprioceptiva visual como especificando uma mudana na localizao espacial do seu corpo. Esse estudo revela que os bebs so capazes de fazer a distino entre uma alterao de lugar de seu corpo e uma alterao do estado do ambiente.
-
31
quanto a auto-estimulao que a criana espontaneamente fazia com um dos dedos de suas
prprias mos em contato com a bochecha. O resultado mostra que os recm-nascidos fuam
muito mais significativamente quando a estimulao externa do que quando se auto-
estimulam. Esse resultado confirma a hiptese de que os recm-nascidos no nascem num
estado de confuso com o ambiente, mas, pelo contrrio, so capazes de diferenciar entre
estimulaes e toques que so originados de seu prprio corpo (auto-estimulao) e de fontes
externas (alo-estimulao). O beb capaz de discriminar entre eventos perceptivos que so
gerados tanto pelo eu quanto pelo no-eu.
A partir dos dois meses, o beb comea a se comportar, mesmo que de forma
rudimentar, como um agente situado (Rochat 2003) cujos movimentos so aes orientadas
por objetivos especficos que se dirigem a aspectos particulares do ambiente, numa
performance que mostra capacidade de discriminao e preferncia mesmo que rudimentares.
Muito antes de ser capaz de se reconhecer como uma imagem ou rosto, o beb se
percebe como um centro de atividade e se comporta como um agente capaz de controlar suas
aes e interaes. capaz no apenas de obter informaes de seus estados mentais e
corporais, mas de obter informaes do sistema como um todo. Ele desenvolve
progressivamente a atitude de contemplao (contemplative stance) e reciprocidade frente ao
mundo e a si mesmo, situando seu corpo em relao a outras entidades no ambiente (Rochat
1999). A atitude contemplativa (Rochat 2001) indica a autopercepo de si como capaz de
alterar o ambiente e o incio do desenvolvimento da capacidade de controlar e escolher suas
aes sobre o seu corpo e o ambiente. O beb deixa de agir apenas de forma imediata e passa a
explorar seletivamente a conseqncia de suas aes sobre o ambiente. Ao mesmo tempo, com
o acmulo das experincias, aprende um repertrio novo de aes que torna sua interao
muito mais complexa e o permite escolher entre aes variadas em funo do objetivo visado.
Ele aprende a controlar suas aes e a ter expectativas dos comportamentos do meio,
sobretudo dos seres animados (Edward Reed 1995).
As pesquisas sobre imitao neonatal de Andrew Meltzoff e Keith Moore (1995)
mostram que, ao final dos dois meses, com a emergncia do sorriso social, das interaes face-
a-face e das protoconversaes, o beb desenvolve um comportamento imitativo sofisticado e
voluntrio e se torna capaz, no apenas de discriminar suas aes corporais do modelo que
est imitando, como tambm de mapear seu espao corporal em relao ao espao corporal do
-
32
outro, situando-se em relao ao modelo percebido que imitam. O beb imita a dinmica dos
atos que observa. Ele necessita ver o ato em progresso para imit-lo, pois ainda no capaz de
antecipar a seqncia de movimentos do outro. Por meio das interaes face-a-face, se
estabelece entre o beb e o adulto um espelho afetivo (affective mirroiring) (Rochat 2002),
que o fenmeno da ressonncia emocional, no qual o adulto responde reciprocamente ao
beb. Este comea a ser capaz de combinar suas habilidades interativas e perceptivas e entrar
num modo intersubjetivo de interao e de vida relacional.
A atitude contemplativa uma condio necessria na ontognese para que o beb
chegue a desenvolver a perspectiva da primeira pessoa. Observa-se um continuum na
experincia do beb que, entre 2-9 meses, comea, gradativamente e com nveis crescentes de
complexidade, a se comportar como um sistema intencional (Dennett 1981b), com a
emergncia das aes intencionais, no sentido dennettiano do termo, com objetivos funcionais
que no so apenas aqueles inatos, e a criao de novas aes em funo dos objetos
encontrados no ambiente prximo. Portanto, o beb que se recusa a pegar um objeto que est
fora de seu campo de ao ou que utiliza seu p para atingir um mbile suspenso diante de si,
pode ser dito capaz no apenas de se diferenciar do objeto, mas tambm de adotar diferentes
estratgias de ao em relao ao objeto e escolher os movimentos mais adequados. Ele
explora seletivamente os provimentos dos objetos (affordances) (ver Costa 2004) que esto ao
seu alcance. Ao final desse perodo, o beb j pode ser considerado uma agncia autnoma e
coordenada (E. Gibson 1995), com capacidade para modular suas aes a partir das
expectativas do comportamento de seu meio social.
No decurso do desenvolvimento emocional, somente quando o beb desenvolve a
capacidade de se perceber como tendo um ponto de vista que ele capaz de exibir a
perspectiva fraca da primeira pessoa. Aos nove meses, o beb se torna um agente perspectivo
o que Michael Tomasello (1995) chama de becoming perspectival. Com a emergncia da
locomoo, surge a possibilidade de se perceber o mundo de vrias posies. A funo da
locomoo est diretamente relacionada com o desenvolvimento da habilidade de se
autoperceber como uma perspectiva (Reed 1995), possibilitando um movimento que no se
destina a funes especficas, como pegar objetos, mas a explorar o ambiente, e isso permite
ao beb explorar perspectivas alternadas. Surge tambm a capacidade de apontar, por meio das
vocalizaes e dos gestos usados para indicar os objetos. Os jogos imitativos tambm se
-
33
tornam complexos e passa a ser suficiente para criana observar o final do ato realizado pelo
adulto para imit-lo, exibindo a capacidade de antecipar o processo. O beb comea a
consultar a face do outro em busca de informaes sobre os recursos do ambiente e passa
sistematicamente a integrar o olhar do outro em suas exploraes pelo meio circundante.
Antes de ser capaz de poder se conceber como uma perspectiva, tem a experincia de explorar
pontos de vista distintos e promover padres especficos de atividades com outros. Essa nova
funo possibilita que partilhe os provimentos dos objetos (affordances) do ambiente com os
outros, e se engaje em interaes ternrias que incluem o beb, o adulto, o objeto ou outro
adulto (Reed 1995).
Portanto, a partir dos nove meses de vida, o beb exibe esboos do que vai se tornar
futuramente a capacidade de se distanciar de sua prpria perspectiva, de ter crenas e desejos
sobre suas crenas e desejos. Os sistemas intencionais de segunda ordem, tal como concebido
por Dennett, so caractersticos de criaturas que no tm o conceito de eu, mas se
comportam como organismos que tm uma perspectiva de si em relao ao seu entorno.
dessa perspectiva egocntrica que experimentam o mundo. Pode-se dizer que so conscientes
de seus estados mentais e corporais, mas no so conscientes de serem possuidores desses
estados. Portanto, no so autoconscientes, pois no tm o conceito de crenas ou desejos,
nem o conceito de si mesmo como um sujeito de suas crenas e desejos. O beb age de sua
prpria perspectiva sem saber que sua perspectiva difere de outras perspectivas. Autolocaliza-
se frente aos objetos e pessoas a partir de sua posio espao-temporal e age a partir desse
ponto de vista tomando a si mesmo como centro. Seus estados so autolocalizados e referidos
ao seu ponto de vista. No entanto, ainda no objeto de seu pensamento e no capaz de ter
auto-representaes das quais poderia estar consciente ou pensar sobre21, pois ainda no
adquiriu a capacidade reflexiva da autoconscincia.
O beb de 9-12 meses capaz de dar o passo intencional na direo do que vai se
constituir, depois dos 3 anos, a perspectiva forte da primeira pessoa. Ele apresenta a habilidade
rudimentar de atribuir tipos de estados mentais tais como estados de ateno e de emoo a
outros agentes e interpretar o comportamento do agente como racional e dirigido a um
21 Quando abordar a gnese do eu, veremos que estas representaes s vo aparecer com a emergncia do self expandido (extended self).
-
34
objetivo que o permite prever sua ao futura em direo ao objetivo tendo por base uma nova
situao (Tomasello 1995).
Esse processo culmina aos 14-18 meses com o desenvolvimento da capacidade de se
reconhecer no espelho (Rochat 2003). A capacidade de identificar a prpria imagem no
espelho pode ser vista como o primeiro ndice de objetificao do eu. um ndice no apenas
de reconhecimento da imagem corporal, mas de que aquela imagem o identifica, se refere ao
eu. Ou seja, ele no somente diferencia o seu ponto de vista da perspectiva exterior, mas
tambm se torna capaz de perceber essa distino. nesse perodo que surgem condutas de
embarao relacionadas a contextos em que a criana recebe ateno prolongada do adulto
sobre si mesmo (Rochat 2002, 2003). O desenvolvimento cronolgico mostra que o
reconhecimento da imagem no espelho vem antes da utilizao da palavra eu. Existe,
portanto, uma capacidade gestual implcita de se referir a si mesmo, antes mesmo da
capacidade se manifestar lingisticamente, por meio do uso do pronome eu. O
reconhecimento da imagem no espelho como a imagem de si mesmo distinta de outras pode
ser visto como sinal da capacidade de identificar uma representao de si mesmo, e serve
como um marco adaptativo do desenvolvimento do que vai ser chamado depois de
autoconscincia. No obstante, ter um ponto de vista subjetivo e ser capaz de discriminar sua
imagem entre outras no suficiente para exibir a perspectiva forte da primeira pessoa.
No segundo ano de vida, com a aquisio da linguagem, a criana desenvolve a
capacidade de compreender de um modo mental o agir intencional e se autoperceber como um
agente representacional cujas aes so causadas por estados mentais prvios tais como
crenas e desejos. E comea a entender que as aes podem mudar mentalmente assim como
as propriedades fsicas do mundo. Eles compreendem, por exemplo, que um gesto declarativo
de apontar pode alterar o estado de ateno de outro agente (Fonagy 2005).
O desenvolvimento da perspectiva forte da primeira pessoa culmina com a aquisio da
linguagem e a emergncia da perspectiva da teoria da mente. Aos 3-4 anos, a criana
desenvolve a habilidade de compreender e atribuir estados emocionais e complexos estados
intencionais aos outros, como as falsas crenas, de entrar nos jogos de faz-de-conta e de fazer
referncia verbal a si mesmo. Surgem tambm as emoes secundrias como vergonha,
orgulho, desprezo e culpa. A compreenso da agncia em termos da causao mental passa a
incluir a representao epistmica dos estados mentais, emergindo o agente meta-
-
35
representacional cujas aes so compreendidas como estados mentais intencionais (crenas
e desejos) que so construdas como representaes conceituais do mundo (Fonagy 2005). A
posse das representaes e das crenas capacita a criana a poder representar algo como falso
ou verdadeiro. Esse processo culmina aos 5 anos de idade com a capacidade de passar no teste
da crena falsa, que avalia a habilidade de representar o mundo mental do outro e,
conseqentemente, compreender a perspectiva do outro. Isso permite criana a compreender
a referncia a si mesmo (autoconscincia) e a seus estados mentais (autoconhecimento). Ela
adquire a capacidade representacional de relatar as memrias de suas atividades intencionais e
experincias numa organizao coerente de causa e tempo, levando emergncia do self
expandido no tempo, que a compreenso da sua histria autobiogrfica.
A capacidade de pensar em si mesmo como possuidor desses pensamentos traz outras
habilidades para a pessoa. A aquisio da autoconscincia nos torna capazes de pensar nos
outros como possuidores de seus prprios pensamentos e como pontos de vistas subjetivos
diferentes dos nossos. Conseqentemente, tornamo-nos capazes de refletir sobre ns como
possuidores de nossos prprios desejos e ter o que chamamos de desejos ou pensamentos de
segunda-ordem sobre ns mesmos. Esta capacidade, como esclarece Baker, a capacidade de
se conceber como si mesmo, como um eu distinto de todo o resto, e de formular um
conceito sobre essa distino, ou seja, no apenas ter pensamentos exprimveis por meio do
Eu, mas tambm conceber a si mesmo como o possuidor desses pensamentos (Baker 1998).
No debate atual sobre a noo de autoconscincia, uma das questes que se coloca se
a informao que o eu obtm, desde o nascimento, sobre seus prprios estados pode ser
chamada de autoconscincia ou autoconhecimento. Alguns acham que s podemos considerar
o fenmeno da autoconscincia quando lidamos com seres de linguagem, capazes de
conceituar lingisticamente sua experincia. Desde que Wilfrid Sellars (1997) props
distinguirmos entre a conscincia discriminativa (awareness) (ter a experincia de x) e a
conscincia reflexiva (consciousness) (ter o conceito de x, saber que tipo de coisa x),
existe em filosofia a tendncia a separar a experincia subjetiva pr-lingstica da experincia
lingstica reflexiva.
Muitos filsofos, como Dretske, fazem uma clara distino entre pensamento
(julgamento, crena) e sensao (experincia). A experincia de uma sensao (ouvir a Nona
Sinfonia de Beethoven) no requer o