2007 - Famílias e redes sociais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL FAMÍLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRÁTICAS E ESTILOS ALIMENTARES NO MEIO URBANO Rogéria Campos de Almeida Dutra Rio de Janeiro 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL

FAMLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRTICAS E ESTILOS ALIMENTARES NO MEIO URBANO

Rogria Campos de Almeida Dutra

Rio de Janeiro 2007

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FAMLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRTICAS E ESTILOS ALIMENTARES NO MEIO URBANO

Rogria Campos de Almeida Dutra

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.

Orientador: Velho

Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves

Rio de Janeiro Fevereiro de 2007

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Dutra, Rogria Campos de Almeida Famlia e redes sociais: um estudo sobre as prticas e estilos alimentares no meio urbano/ Rogria Campos de Almeida Dutra - Rio de Janeiro: UFRJ/ MN, 2007. xi, 303f.: il.; 31cm. Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho Tese (doutorado) UFRJ/ Programa de Ps-Graduao/ Museu Nacional, 2007. Referncias Bibliogrficas: f. 287-303 1. Alimentao 2. Redes Sociais 3. Famlia 4. Consumo 5. Antropologia Urbana 6. Nveis de cultura. I. Velho, Gilberto Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. III. Ttulo.

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FAMLIA E REDES SOCIAIS: UM ESTUDO SOBRE PRTICAS E ESTILOS ALIMENTARES NO MEIO URBANO

Rogria Campos de Almeida Dutra

Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.

Aprovada por:

_____________________________ Presidente: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho

_____________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MUSEU NACIONAL/UFRJ)

_____________________________ Profa Dra Yonne Leite (PPGAS/MUSEU NACIONAL/UFRJ)

_____________________________ Profa Dra Karina Kuschnir (PUC RJ)

_____________________________ Profa Dra Sandra Regina Soares da Costa (UERJ)

Rio de Janeiro Fevereiro de 2007

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AGRADECIMENTOS

Agradeo a todos, que de uma forma ou de outra, contriburam para a concretizao deste trabalho, s redes de apoio que me sustentaram nesta aventura. Agradeo ao Prof. Gilberto Velho, meu orientador, a oportunidade de

amadurecimento intelectual que resultou de trabalhar sob sua orientao, sua amizade e confiana. Sou grata disponibilidade com que me recebeu dez anos depois da concluso do mestrado, tambm sob sua orientao. No posso deixar de mencionar a importncia do Prof. Luiz Fernando Dias Duarte em minha formao nem a especial profundidade de suas reflexes. Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social na figura de sua coordenao, seus professores, secretaria e biblioteca. A meus colegas agradeo o interesse com que discutiram e acompanharam meu trabalho. Agradeo tambm aos imprescindveis recursos financeiros da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal (CAPES), sob a forma de bolsa de estudos, que possibilitaram materialmente a concluso de crditos do doutorado e do trabalho de campo. Sou grata s famlias e seus amigos que generosamente deixaram-me compartilhar de suas vivncias. Muito mais que informantes, anfitries, que partilharam sua intimidade e seu afeto, sem os quais no seria possvel a realizao deste trabalho. Sou grata a Tomio Kikuchi pelo exemplo de sua vida, por seus ensinamentos, que tm me possibilitado a experincia mais intensa e intencional da existncia.

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Em especial agradeo a minha me, a Cleyde, a Ktia, a Ceclia, todos famlia, que me deram o apoio imprescindvel realizao deste meu projeto. A Sebastio Pit, Ilka, Kossin e Taisin agradeo a pacincia com que aguardaram a presena plena da esposa e me para a continuidade de nossos sonhos partilhados. A todos eles toda minha gratido

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RESUMO

DUTRA, Rogria Campos de Almeida. Famlia e Redes Sociais: um estudo sobre prticas e estilos alimentares no meio urbano. Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. Orientador: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho

Esta tese se insere no campo das reflexes sobre a dimenso cultural da alimentao, do papel da comida como mediador das relaes sociais e das relaes consigo prprio, ou seja, sua posio estratgica na expriencia subjetiva da cultura. Ao estudar padres de comestibilidade e comensalidade na constituio do gosto, analisa a questo do consumo na sociedade contempornea. Tem como objetivo a investigao das prticas e estilos alimentares no meio urbano, apresentando como foco de anlise a experiencia familiar. Ao eleger famlias de classe mdia cariocas, com diferentes formas de insero, seja por habitarem diferentes bairros, seja pelo tempo biogrfico do grupo familiar, procura refletir sobre a organizao social do meio urbano, assim como sobre a questo dos ciclos de desenvolvimento do grupo domstico. O parentesco na vida cotidiana assume uma nova dimenso no contexto da grande metrpole, onde a familia convive com outros grupos de referncia, fazendo-se necessria a investigao de redes sociais de forma a se compreender os repertrios potenciais dos vnculos.

Palavras chave: Alimentao, famlia, redes sociais, consumo.

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ABSTRACT

DUTRA, Rogria Campos de Almeida. Famlia e Redes Sociais: um estudo sobre prticas e estilos alimentares no meio urbano. Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. Adviser: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho

This PhD Dissertation inquiries into the cultural aspects of food. It investigates the importance of food to create and mantain social relations and its role in the subjective experience of culture. It aims to bring out the relevante of food preferences and food choices considering the modern industrial society as a world of goods. It also inquiries into middle class families so as to understand the social organization in a great city, Rio de Janeiro, through the investigation of family groups distributed in different areas of the city that are situated in different stages of the developmental cycle of domestic group.

Key words: Food, family, social networks, consumption

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SUMRIO

INTRODUO ..............................................................................................

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CAPTULO 1: A Alimentao na Histria da Antropologia 1.1. Dos aspectos rituais e sobrenaturais do consumo ....................... 1.2. Das lgicas particulares na produo e no consumo ................... 1.3. Das lgicas simblicas ................................................................ 1.4. Das diferentes perspectivas ........................................................ 17 22 35 42

CAPTULO 2: O Gosto e a Sociedade Contempornea 2.1. Incerteza, frugalidade, celebrao .............................................. 2.2. A civilizao do apetite 2.2.1. Clculo, cortesia e urbanidade ..................................... 2.2.2. O intercmbio colombiano .......................................... 2.2.3. Os novos padres de sensibilidade burguesa .............. 2.3.4. Apetites privados no espao pblico .......................... 2.3.5. A construo da Cozinha Nacional ......................... 2.3.6. O desafio da amplitude ............................................... 63 70 78 85 90 102 56

CAPTULO 3:

O Cultivo da Relacionalidade: a multiplicidade das formas e sentidos da famlia 108 122

3.1. Famlia e parentesco na teoria antropolgica............................ 3.2. A construo social da famlia moderna...................................

CAPTULO 4:

A Experincia Local: prticas relacionais e alimentares em trs diferentes contextos 145 153 173 191

4.1. Delimitando o territrio.............................................................. 4.2. Vivendo e relacionando na Zona Norte: a famlia Soares.......... 4.3. A experincia na Zona Oeste: a famlia Pinzn......................... 4.4. Vivendo e relacionando na Zona Sul: a famlia Prado...............

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CAPTULO

5: Teias Humanas, incorporao

Urbanas:

interdependncia,

autolimitao,

5.1. Das camadas mdias................................................................... 5.2. Os repertrios familiares............................................................ 5.3. Das prticas e estilos alimentares..............................................

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CONSIDERAES FINAIS ....................................................................... REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .........................................................

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INTRODUO

O estudo da alimentao tem local privilegiado na anlise cultural. Atravs da discrio da prtica cotidiana, desenrola-se esta atividade indispensvel sobrevivncia humana. Contudo, a complexidade dos cdigos alimentares no se reduz satisfao das necessidades fisiolgicas. A partir de um sistema particularmente elaborado sobre o comestvel, o no comestvel, ou o alimento txico, temos acesso a um tipo de ordenao social e cosmolgica: definir os alimentos comestveis, a forma de prepar-los, combin-los, as situaes de utilizao, com quem repartir. Os hbitos alimentares nos permitem conhecer uma sociedade; falar de cozinha no se limita a falar de prazeres gustativos, mas fundamentalmente de princpios simblicos. Se a ordem cultural construda em termos da coerncia de um mundo diferenciado e unificado; a ordem alimentar constitui-se em um dos nveis onde se exprime simbolicamente a representao do mundo. Lvi-Strauss (1964) foi um dos autores que mais enfatizaram o espao da cozinha como cenrio privilegiado de reproduo das classificaes culturais de uma sociedade. Alis, a partir de uma perspectiva universalista, focaliza-a como experincia humanizadora: assim como no existe sociedade humana sem lngua falada, no existe sociedade que, de um modo ou outro no processa seu alimento. A culinria, ento, seria esfera privilegiada de acesso cultura, na medida em que revela o uso social dos alimentos. A forma como se apreende e se relaciona com a natureza, a qualidade das classificaes que se utiliza e o modo como so manipuladas definem-se como instncias definidoras da

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singularidade cultural. neste sentido que a cozinha de uma sociedade revela-se como eixo central da integrao entre Natureza e Cultura. O acesso aos alimentos, sua in-corporao, ser sempre mediada pela forma cultural. Cada sociedade opera a escolha que julga culturalmente comestvel. A condio de onvaros representou para os humanos um avano marcante na possibilidade de sobrevivncia. Os circuitos informativos de nutrio se multiplicam, diminuindo, assim, a dependncia direta do meio. Amplia-se, potencialmente o universo comestvel. Contudo, nem tudo que comestvel classificado como tal. No basta que as coisas sejam boas para comer, como se refere Fischler (2001) numa clara aluso a Lvi-Strauss; preciso que sejam boas para pensar. Pensar no sentido da classificao do mundo, da ordenao da realidade, princpio bsico da dimenso cultural, e que envolve tambm as prticas alimentares. Cada cultura tem seu prprio critrio de palatabilidade; nem tudo que comestvel concebido como tal. As regras culinrias operam as associaes plausveis entre certos alimentos, ou os interditam, de forma semelhante s exigncias gramaticais de determinada lngua: as impropriedades alimentares so desprovidas de sentido, podendo provocar rudos na

comunicao, assim como uma frase mal construda. S podemos entend-las dentro da lgica intrnseca da cultura e da sociedade considerada. Em termos nutricionais nada nos impede de comermos a sobremesa, ou beber o cafezinho como princpio do almoo; assim como nada nos impede a prtica da entomofagia, como o fazem certos povos orientais, africanos ou mesmo amerndios brasileiros. As protenas desta fonte alimentar, inclusive, so reconhecidas como de melhor assimilao do que a carne. Contudo, a degustao do inseto no nos apetece. Qual a diferena entre se deliciar com camares ou grilos fritos? Os odores de certos alimentos tanto podem provocar a salivao apetitosa quanto a repulsa, como o caso de certas conservas ou tipos de queijos. As molculas odorantes, percebidas pelas clulas

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olfativas so idnticas, mas a significao da experincia da realidade diversa. Assim tambm, insere-se na dimenso da ordenao do mundo e classificao cultural o lugar da comida, ou seja, em que contextos ela apresenta-se como alimento, ou como sujeira. Cabelo e comida, em nossa cultura, uma combinao particularmente perigosa, nos termos de Douglas (1976). Desta forma, se uma sopa no prato uma imagem plausvel dentro de nossa gramtica cultural, esta mesma sopa, por um respingo que seja, teria outra considerao se encontrada na barba. A variedade das escolhas alimentares provm da variedade de sistemas culturais; e se podemos afirmar algo de universal sobre a experincia cultural exatamente sua diversidade intrnseca. Comer no neutro, mas algo mgico. Para Fischler (op.cit.), a angstia do onvaro manifesta-se tanto pelo desafio da escolha quanto pelo processo de incorporao. Incorporar um alimento envolve assimilar, num plano real e imaginrio, as suas propriedades. O alimento, como vimos anteriormente, no existe sem sua significao; sua ingesto

possibilita o contgio e posteriormente a similitude de suas propriedades. Assim, o alimento consumido tende a transferir certas caractersticas quele que come, como por exemplo, o frescor de uma fruta, o vigor da carne e do sangue, ou mesmo a coragem de um guerreiro num ritual antropofgico. Neste sentido podemos destacar a importncia fundamental da alimentao como trao constitutivo de nossa identidade, na medida em que representa esta incorporao cotidianamente decidida. A comida e a cozinha so elementos fundamentais do sentimento coletivo do pertencimento. Ao se dedicarem questo das minorias sociais, diversos autores (cf. Douglas, 1984; Flanzer, 1994; Gans, 1962; Sered, 1988) tm enfatizado a importncia do hbito alimentar como fato cultural na constituio da identidade tnica. O discurso tnico apresenta, freqentemente, critrios de unidade biolgica e moral onde elementos do cotidiano, como a culinria, se transformam em instrumentos de exerccio de distinvidade.

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Vale ressaltar a dinmica muito particular no estabelecimento destes marcos distintivos, pois eles se fazem fundamentais, ou no, de acordo com o contexto. A sobrevivncia de um sistema alimentar tnico depende de certo grau de segregao da minoria, representando, muitas vezes, a defesa a uma ameaa externa de despersonalizao, dissoluo. Gans ( 1962 ) chama-nos a ateno, no estudo de uma comunidade italiana nos Estados Unidos, que os itens da culinria italiana so observados e valorizados muito mais na situao de um casamento socialmente reprovado, como na unio com um outsider, do que num casamento endogmico. de Peter Fry (1982 ) a observao de que um simples prato pode revelar processos diferenciados de auto-definio cultural. A feijoada, por sua relao ao passado escravocrata, reconhecida, nos Estados Unidos, como soul food, ou seja, smbolo da negritude resgatado pelo movimento de liberao negra. J no Brasil, ao prato conferido um significado simblico diferente poder-se-ia dizer at oposto pois apreendida (e difundida) como smbolo de nacionalidade. Enquanto na primeira situao observa-se a nfase na distino, o caso brasileiro expressa a tendncia incorporao, onde itens culturais elaborados pelos negros (como a feijoada) so assimilados pela sociedade brasileira como um todo. Comer tambm no neutro quando observamos as intersees possveis entre a nutrio e o sagrado. No neutro na medida em que significa privar a natureza de alguma coisa para a sobrevivncia humana. Os rituais de sacrifcio, presentes na cultura grega, assim como as oferendas aos orixs representam este dilogo com o divino. A ritualizao das prticas alimentares se desdobra, freqentemente, por dois caminhos: pelo sacrifcio determina nossa relao com o sobrenatural; pela partilha, simboliza e reafirma os laos de unio entre indivduos e com as instituies religiosas e polticas. Tais aspectos nos demonstram a capacidade da comida em marcar relaes sociais e celebrar grandes ou pequenas ocasies.

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O hbito alimentar tambm se apresenta como testemunho cotidiano de nossa condio (quase) inescapvel de consumidores. Fenmeno tpico da experincia social da modernidade, conhecer a lgica cultural do consumo possibilita-nos o acesso ao imaginrio da sociedade contempornea. Atravs do consumo temos acesso a bens mediadores de relaes sociais, o que se reproduz atravs das trocas alimentares. A vida social no meio urbano, em particular, apresenta-se dinmica, complexa, resistente a formas clssicas e estticas de compreenso. Traz-nos questes novas, como o papel do consumo alimentar na constituio da identidade pessoal, sua atuao na experincia subjetiva do prazer e as possibilidades que oferece ao auto-cultivo, no deixando, contudo de continuar operando como forma social de distino. Este trabalho tem como objetivo a investigao das prticas e estilos alimentares no ambiente urbano, apresentando como foco de anlise a experincia familiar. O estudo da famlia e do parentesco tem sido objeto de reflexo da antropologia desde sua constituio, vindo nos demonstrar, em suas diferentes perspectivas, que a famlia no natural, e sim fruto das configuraes de ordenaes simblicas particulares. Se podemos defini-la, a experincia das relaes de parentesco e da famlia, e de forma genrica, como um acordo que possibilita as pessoas a viverem juntas e cooperarem umas com as outras na vida social cotidiana, certamente que so mltiplas as condies de instaurao e regulao desta convivncia. Nas sociedades tribais, por exemplo, os grupos de parentesco ocupam papel preponderante na localizao das pessoas na sociedade. Caracterizam-se principalmente pela coeso, pela convergncia de interesses e sentimentos, permeados pela relao de autoridade, onde, na maioria das vezes, os direitos dos pais se tornam absolutos e os deveres dos filhos, inescapveis. Contudo, a experincia moderna de famlia, nuclear e metropolitana traz caractersticas particulares, no s na localizao deste grupo no meio social, como nas relaes internas entre seus membros. As camadas mdias, portadoras por excelncia da ideologia individualista, se definem como agentes centrais na construo da sociedade

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capitalista moderna. O imperativo em estar sempre frente, o gosto pelas inovaes, associado ao projeto de autoconstruo e situao de freqente mobilidade contribuem certamente para a moldagem do grupo familiar. O conceito de redes sociais vem a se

apresentar como de grande valor na interpretao da condio instvel e transitria deste indivduo moderno e urbano, que de uma forma ou de outra, pertence a uma famlia. Meu foco de interesse para reflexo das prticas e estilos alimentares so famlias de camadas mdias cariocas com diferentes formas de insero espacial e temporalmente - na cidade do Rio de Janeiro. So famlias residentes em trs regies da cidade, que se situam em fases diferenciadas do ciclo de vida domstico. O objetivo da seleo de grupos familiares em diferentes bairros, reconhecidamente habitados por camadas mdias, tem o sentido de refletir sobre o processo de organizao social do espao urbano; em outros termos, a segmentao simblica da metrpole. As diferenas geracionais entre os grupos visam enriquecer a discusso de sua localizao, tratam do ciclo de desenvolvimento de sua identidade pblica, pois que a cada fase biogrfica familiar, um novo grupo de desafios e possibilidades se apresenta a seus membros. Um sistema social tem uma vida, mantido pela sucesso de geraes, pelo crescimento e desenvolvimento de humanos, incorporados atravs da educao. Este processo de reproduo social tem sido delegado, pelo menos at o presente momento, ao grupo domstico. O processo de substituio faz-se crucial dada a limitao da existncia humana, que por outro lado, precisa ser mantida, atravs da nutrio. As refeies, por diferentes modalidades que possam existir da mais estruturada mais informal representam a justaposio entre a existncia individual e coletiva. O grupo familiar, dentre outros, apresenta a peculiaridade de fazer a mediao entre estas duas dimenses. O estudo da alimentao, no sentido de hbitos e representaes, tem se revelado como campo frtil para a reflexo antropolgica, a meu ver, particularmente profcuo por

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descortinar naturalizaes profundas que podem e devem ser problematizadas. Meu interesse por este tema j vem da experincia do mestrado, quando me dediquei, atravs da questo da Cozinha Mineira, s reflexes sobre a identidade/cozinha regional. Por ora retorno a este tema no sentido de investigar o papel da alimentao como mediador das relaes sociais, marcador de posies, assim como seu carter constitutivo da relao consigo prprio, sua posio estratgica dentro da experincia subjetiva da cultura. Compreender as representaes orientadoras das prticas e estilos alimentares exige-nos o reconhecimento de que padres de comestibilidade, assim como regras de comensalidade so de fato construdos, inclusive ao longo do tempo, pois que o gosto contemporneo tambm tem sua histria. Tema da historia mundial, inseparvel de outras interaes dos seres humanos, uns com os outros e com o resto da natureza, a alimentao pode nos dizer muito sobre nosso tempo. Tal qual o testemunho de Joseph Epstein (cf. Mintz & Du Bois, 2002: 2), h quase vinte anos atrs, sobre uma percepo do crescente (e curioso) interesse pela alimentao em nossa sociedade: Ten years ago I should have said that any fuss about food was great, but I grow older and food has become more important to me Judging from the space given to it in the media, the great number of cookbooks and restaurant guides published annually, the conversations of friends it is very nearly topic number one. Restaurants today are talked about with the kind of excitement that ten years ago was expended on movies. Kitchen technology blenders, grinders, vegetable steamers, microwave ovens, and the rest arouses something akin to the interest once reserved for cars().

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CAPTULO 1

A Alimentao na Histria da Antropologia

1.1. Dos aspectos rituais e sobrenaturais do consumo

Sacrifcios humanos e espritos no chegam a constituir um problema srio na cultura contempornea... (Douglas, 1986). Cultos demonacos do canibalismo, e outros temas afins, ocupam, em nossas representaes, algum lugar na fico cientfica e nos filmes de terror. Contudo, se hoje tais temas so fonte de entretenimento, foram objeto de grande interesse intelectual h pouco mais de 100 anos atrs. Ao que parece a Antropologia, ao amadurecer, tornou-se mais modesta, chegando at mesmo a duvidar se jamais poderia compreender outra cultura. No era esta, entretanto a mentalidade hegemnica do pensamento antropolgico em seus primrdios. Um dos problemas fundamentais para o pensamento do sculo XIX foi o alvorecer do pensamento humano. Aos antroplogos cabia decifrar os costumes dos povos primitivos, explicar a enxurrada de informaes sobre crenas e prticas aparentemente insanas que chegavam ao continente atravs de viajantes, administradores, aventureiros e missionrios. Dar sentido ao insensato e absurdo; esclarecer a crueldade e a irracionalidade de formas de agir e de pensar, foi o grande desafio daquela poca. Imbudos de tal tarefa, os antroplogos tornam-se o centro da ateno popular, tal como hoje fsicos e astrnomos que possam nos trazer alguma notcia sobre a vida em outros planetas. A estratgia que se fez compreensvel e possvel, ento, foi construir a unidade original do pensamento humano, e por conseqncia do pensamento religioso.

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Compreender a soluo evolucionista ao lidar com as prticas exticas requer destacar aquele momento como particularmente frtil enunciao de grandes profecias e explicaes: a ordenao de todas as espcies vivas em quadros evolutivos para tornar a vida esclarecida em toda sua variedade, o entesouramento nos museus do mostrurio fantstico da criatividade humana, a crena de que as grandes crueldades cometidas pelo homem contra o prprio homem eram coisa do passado. Podemos destacar W.R.Smith e James Frazer como

grandes protagonistas deste perodo, ao enfatizarem o processo de evoluo social da razo humana: um processo de atenuao, atravs da simbolizao, da crueldade das imolaes rituais, atravs da evoluo fluente da religio. Desde que o telogo William Robertson Smith estudou, no final do sculo XIX, o sacrifcio e a comida, a antropologia tem se preocupado com a questo alimentar. O sacrifcio era um tema que suscitava grande interesse do pensamento europeu, j reconhecido na literatura sobre a sociedade greco-romana, como A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges ([1864]1971), onde era relatado o costume da oferta de alimentos aos antepassados e a responsabilidade moral de aliment-los. A investigao antropolgica, contudo, neste momento, se desloca da venerao dos ancestrais para o exame das ligaes entre a oferta de alimentos s entidades espirituais e outros aspectos da organizao social. Robertson Smith preocupa-se particularmente com os efeitos, na coeso social, da distribuio do alimento sagrado, onde o comensalismo visto como grande catalisador da solidariedade:

The ethical significance which thus appertains to the sacrificial meal, viewed as a social act, received particular emphasis from certain ancient customs and ideas connected with eating and drinking. According to antique ideas those who eat and drink together are by this very act tied to one another by a bond of friendship and mutual obligation. Hence when we find that in ancient religions all the ordinary functions of worship are summed up in the sacrificial meal, and that the ordinary intercourse between gods and men has no other form, we are to remember that the act of eating and drinking together is the solemn and stated expression of the fact that all those who share

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the meal are brethren, and that all the duties of friendship and brotherhood are implicitly acknowledged in their common act. By admitting man to his table the god admits his friendship; but this favour is extended to no men in his mere private capacity; he is received as one of a community, to eat and drink along with his fellows, and in the same measure as the act of worship cements the bond between him and his god, it cements also the bond between him and his brethren in the common fait.( Smith, W. R. The Religion of the Semites, 1889:247-8, cf. Goody, 1982:12) No outro lado do Atlntico, o desafio do pensamento antropolgico catalogar e explicar o exotismo que se faz to prximo, ou seja, as centenas de etnias nativas do territrio americano. Coronel do exrcito reformado e j trabalhando no Smithsonianan Institut, Garrick Mallery publica, em 1888, no American Anthropologist, o artigo Manners and Meals. Mallery, que ficou conhecido por sua contribuio ao estudo da linguagem dos sinais entre os nativos americanos, expressa o choque cultural do ocidente frente s prticas alimentares amerndias. Em Manners and Meals defende a ritualizao das prticas alimentares como especfica dos civilizados, procurando traar a origem dos utenslios da mesa, como o garfo, a faca e a colher. Se por um lado Mallery foi um defensor do estatuto da linguagem de sinais como instrumento de comunicao intertribal e no como resultado de uma deficincia lgica nativa por outro, este texto em particular revela toda a mentalidade etnocntrica da poca, quando compara a forma de comer entre europeus e os nativos americanos: a seu ver, enquanto os civilizados faziam refeies, os selvagens simplesmente comiam, ou devoravam, agachados e sem noes de higiene. Na Europa novamente, ao buscar a unidade original do pensamento religioso desde o culto primitivo dos arianos, Frazer , influenciado por W.R.Smith, dedica parte de sua obra investigao dos tabus alimentares. Afinal, o desafio de sua poca era exatamente dar sentido s informaes sobre crenas excessivamente exticas que chegavam Europa. Frazer

focalizou as prticas alimentares essencialmente em seu contedo simblico, analisando-as dentro do conjunto de crenas e prticas mgico-religiosas da humanidade. A partir de uma

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perspectiva evolucionista, seu projeto era reconstruir a progresso histrica das imolaes humanas: de festins canibalescos, passando pelos rituais antropofgicos, sacrifcios de animais e chegando aos nossos dias na forma dos cerimoniais simblicos no rito cristo. Do they eat everything edible? Do they eat their enemies or their friends? Estes so exemplos de algumas questes que Frazer pedagogicamente discute em pequeno texto didtico,Questions on the Customs, Beliefs and Languages of Savages, publicado pela Cambridge University Press em 1907. Outro autor que se destaca neste perodo Ernest Crawley (cf. Goody, 1972), que se dedica reflexo das possveis relaes entre sexo e comida em The Mystic Rose (1902), na tentativa de responder s questes entre comensalismo e gnero, ou dos motivos pelos quais maridos e esposas em muitas situaes evitavam comer juntos. No sculo XIX o interesse antropolgico na comida centrou-se largamente nos

aspectos rituais e sobrenaturais do consumo, onde tabus, totemismo e sacrifico se definem como traos que, expulsos do cristianismo, permaneciam presentes em grande nmero de sociedades. Tais autores buscam a explicao racional de elementos sobreviventes luz da evoluo social das instituies. Apesar do isolamento das questes alimentares de seu contexto social, no podemos desqualificar completamente estas contribuies. Afinal, os evolucionistas destacaram certos traos gerais do comportamento humano que intimamente relacionadas s questes posteriormente analisadas pela antropologia. A pesquisa antropolgica, porm, tomou rumos radicalmente diferentes; tanto a observao de campo quanto a imerso do pesquisador numa sociedade especfica estimularam a compreenso de tais prticas como que relacionadas cultura como um todo. Os traos isolados se recontextualizam, colocados dentro de um processo social mais amplo. A partir de ento, a antropologia no mais deixou de se envolver com o comer. A prpria situao de contato, por exemplo, que se torna fundamental para a constituio do esto

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ethos antropolgico ps-Frazer, efetivada muitas vezes atravs do pacto da cordialidade, da troca de gneros alimentcios e do partilhar da refeio. A preocupao com a construo diettica de uma determinada sociedade, assim como suas relaes simblicas, se deu de forma varivel no tempo e no espao, entre os diversos perodos e as diferentes escolas antropolgicas. Em linhas gerais podemos relacionar as diversas abordagens com a prpria busca desta cincia em compreender o paradoxo entre a universalidade biolgica e a particularidade simblica; uma trajetria que no deixa de representar a busca de sua prpria identidade. De forma ampliada, podemos traar algumas caractersticas deste contexto pioneiro de pesquisa de campo e disciplina metodolgica. A maioria dos antroplogos era composta por homens que dedicavam pouca ateno s prticas alimentares: nas palavras de Mintz (1996:3), [they] didnt find such matters especially interesting. Os temas que mais estimulavam a reflexo acadmica, em geral, versavam sobre a guerra, a iniciao, sucesso e parentesco. (Mintz,op.cit.). A cozinha, desta forma, ocupava papel secundrio como objeto de pesquisa; at mesmo por pertencer, nas sociedades tribais, ao campo feminino de atuao, cabendo s mulheres a coleta, o trabalho agrcola e a prpria preparao do alimento. Assim, as prticas alimentares, ao invs de objeto, se tornavam instrumento de estudo de outros aspectos da vida social, tais como as celebraes, os sacrifcios, a relao com os deuses, os tabus alimentares, as prescries religiosas, o canibalismo, o papel do alimento na hierarquia, dentre outros. As referncias aos hbitos alimentares, quando ocorriam, se justificavam pelo exotismo, ou repulsa aos olhos ocidentais. A exceo que se fez a esta tendncia dominante refere-se ao trabalho de Franz Boas na Amrica do Norte. Em longa etnografia da sociedade Kwakiutl, dedicou detalhada ateno aos utenslios culinrios, alm de reunir uma coleo de receitas nativas. Boas ressalta, inclusive, a diferena entre o seu paladar ocidental, que no conseguia diferenciar o

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sabor dos variados pratos base de peixe e leo cru, e a classificao nativa dos sabores, instauradora no s de diferentes sensaes gustativas, como de usos sociais.(cf.Freyre, [1939]1997). Da preocupao inicial com aspectos rituais e sobrenaturais, quando ainda se definia pelo exotismo enquanto objeto, passamos por diferentes fases, estando a questo das prticas alimentares diretamente inseridas nas discusses mais recentes da Antropologia, onde a reviso de paradigmas ocidentais profundos e constitutivos da realidade como a relao indivduo e sociedade, natureza e cultura esto presentes. Este captulo prope-se, nesta primeira parte, reflexo de momentos relevantes da histria da antropologia no que se refere s prticas alimentares.

1.2.Das lgicas particulares na produo e no consumo

Concomitante ao trabalho boasiano, a Europa assiste ao florescimento da pesquisa antropolgica a partir de sua vertente britnica, j envolvida com excurses acadmicas e a descrio sistemtica de costumes exticos, sob a orientao de Rivers. Fundamental para a construo deste campo de reflexo foi o papel desempenhado pela revoluo funcionalista. Novas questes de orientao do campo terico, novas formas de se pesquisar vieram a se impor, em contraposio perspectiva evolucionista e viso difusionista da vida cultural das sociedades. Destacam-se como principais protagonistas dessa revoluo os fundadores da Escola Britnica de Antropologia: Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown. Aps sua estadia nas Ilhas de Trobriand, entre 1915 e 1918, e a publicao de Argonautas do Pacfico Ocidental, em 1922, Malinowski chegou a ser reconhecido por toda uma gerao de adeptos como o criador de uma disciplina inteiramente nova (Kuper,

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1978:7), como ele prprio gostava de se autoproclamar. Contudo, vale ressaltar que tal revoluo teve como cenrio um clima propcio e receptivo a novas idias, em que j se faziam presentes crticas sistemticas abordagem evolucionista e suas reconstrues especulativas do passado da humanidade. Para alm do trabalho de campo como regra metodolgica, esta nova perspectiva preocupava-se, de forma mais modesta e realista que as vises anteriores, em reconhecer e preservar a especificidade de cada sociedade, as lgicas particulares, caractersticas de cada cultura. Seu empenho, buscar a funo dos costumes, hbitos e instituies, partindo-se da idia de que tudo na vida social teria um sentido. Este sentido s poderia ser entendido nos termos do sistema social da inter-relao das partes no qual o costume, o hbito e as instituies so as partes. A nfase de Robertson Smith no papel do comensalismo como promotor e estabilizador das relaes sociais em muito se aproxima de temas centrais perseguidos por estes novos pesquisadores, particularmente influenciados pela sociologia durkheimiana. So autores que se utilizam, da ferramenta conceitual funo para explicar, dentre outros aspectos da vida social, a produo e o consumo alimentar. A funo da organizao deste processo seria, em ltima instncia, a manuteno do sistema social. Ao invs de uma explicao puramente religiosa como em R.Smith , busca-se uma explicao social The Andaman Islanders (1964), de Radcliffe-Brown, uma monografia que apresenta estudos feitos no Golfo de Bengala entre 1906 e 1908. Pertence era de pesquisas de campo pr-Malinowski, ainda influenciadas pelo estilo de Rivers e Selingmen. Apesar de sua insero ter sido limitada (o autor teve grandes dificuldades de adaptao, como por exemplo, dominar a lngua nativa ), e ainda estar fortemente influenciado por certo historicismo, a busca de origens ento em voga (Radcliffe-Brown declara ser seu principal interesse

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depoimentos sobre como era a sociedade antes do contato com o mundo europeu) esta monografia j apresenta o esboo de suas idias de estrutura social. Habitante de um pequeno arquiplago pertencente ndia, esta populao, de caracterstica semi-nmade, era composta por cerca de 1300 habitantes subdivididos em duas ilhas. De acordo com o autor, a sociedade andamanesa se organizava em tribos, baseando-se na composio familiar mnima como unidade domstica (pai, me e filhos) e na clssica diviso social do trabalho: a mulher dedicando-se proviso de vegetais, lenha e gua, e o homem se responsabilizando pela caa. Possuam uma agricultura incipiente, com a propriedade coletiva da terra. Apesar de referir-se a certas prticas alimentares, e mais especificamente ao ritmo sazonal da dieta variaes do alimento bsico entre mel e frutas selvagens, porcos e peixes seu foco de anlise concentra-se na conduta e sua regulao a partir dos costumes e instituies: It is only after his marriage that he [the boy man] becomes relatively independent and free to please himself in his own actions, and even then he is required to provide his parents or his foster parents with food, and to serve in any way they may need. (p.78)

Dedica, neste sentido, particular ateno ao que chamaria de costumes cerimoniais, ou seja, aes coletivas executadas convencionalmente no curso da vida social, cujo propsito seria a expresso, e, portanto a manuteno e transmisso, dos sentimentos pelos quais a conduta do indivduo regida, em conformidade com as necessidades da sociedade. A comida, neste sentido tem como funo social promover a proliferao de sentimentos que contribuem para a socializao dos indivduos como um membro da sociedade. Para Radcliffe-Brown, as regras da vida social andamanesa poderiam ser

traduzidas num sistema de direitos/deveres, a partir da definio dos papis sociais. Assim, as condutas passavam pelo crivo da aprovao ou repreenso: aes (e sentimentos) tais como

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preguia, infidelidade conjugal, desrespeito aos mais velhos, mau humor, ou crueldade, seriam considerados anti-sociais. dentro desta perspectiva que Radcliffe-Brown enfatizar o valor social da comida, o seu significado no mundo andamans, expresso pela ritualizao que envolve as prticas alimentares. H certos alimentos, por exemplo, cujo consumo acompanhado por normas e tabus; de acordo com o autor, geralmente seriam estes os alimentos preferidos, ou os mais inacessveis, raros ou de aquisio arriscada.

The obtaining of food is the principal social activity and it is an activity in which every ablebodied member of the community is required by custom to join () Thus food is, for the Andaman Islanders, the one object above all others that serves to awaken in him day after day the feeling of his relation to his fellows. (p.270-1)

Objeto de histrias e msicas, fonte de euforia a experincia de fartura-

e de

dysphoria - a experincia de escassez-, o alimento algo a ser tratado cuidadosamente, com respeito e precaues rituais: ...the most valued moral qualities in the Andaman Islanders are energy in providing food and generosity in distributing it. (p.271) Vale aqui destacar o aspecto da conduta que envolve as prticas alimentares, conduta esta que se apresenta como instncia analtica particularmente enfatizada no campo antropolgico ingls. A dimenso cerimonial das construes dietticas priorizada; ela revela-se como situao privilegiada de expresso de sentimentos e comportamentos (que so sociais) de forma mais pura, sendo ento este o foco de anlise deste autor. Outra questo a ser considerada refere-se a certo pragmatismo utilitrio na forma de se abordar o valor da comida, que posteriormente se apresentar de forma mais acentuada em Malinowski. Apesar de tambm enfatizar a dimenso da sobrevivncia em relao ao alimento; o valor aqui mais coletivo do que individual (biolgico/psicolgico); valor sociolgico e no no sentido simblico como posteriormente ir desenvolver Lvi-Strauss. Os ritos de iniciao entre os

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andamaneses teriam, a seu ver, o papel de promover sentimentos sociais, onde o nefito passa por um processo de educao moral atravs da abstinncia de certos alimentos, enfatizando sua completa dependncia, enquanto indivduo, da sociedade. Destaca-se como grande contribuio de seu trabalho, que ser exercitado pelos seus discpulos, esta circulao de um nvel macrofuncional, ou societrio, para a anlise microfuncional, no nvel das instituies, ou seja, as proibies alimentares nos rituais tm um sentido mais amplo. Mais tarde Radcliffe-Brown aprimorar sua viso de cultura enquanto sistema adaptativo, no qual cada elemento - sejam costumes, hbitos e instituies tem funes especiais, contribuindo para a sobrevivncia da sociedade. Diferentemente de Malinowski, a funo de um elemento e no caso estamos falando da comida seria o papel que ele representaria em toda a vida social, em conformidade com as necessidades vitais da sociedade; abordagem esta que lhe possibilitar a introduo, de forma mais clara, da noo de sistema social. Baseando-se em tcnicas radicalmente novas de pesquisa, Bronislaw Malinowski descreve a vida social Trobriandesa em duas monografias principais: Os Argonautas do Pacfico Ocidental e Coral Gardens and their Magic. Em seu primeiro livro, publicado em 1922, este autor busca reconstituir, na descrio etnogrfica, a integrao e a coerncia interna da cultura trobriandesa. A partir da anlise do Kula, reconstri a trama de costumes desta sociedade, com forte nfase nas interligaes; nenhum aspecto da cultura, a seu ver, deveria ser estudado isoladamente, pois esta se definiria essencialmente por sua natureza integrada. Todo e qualquer costume, portanto, e entre estes as prticas alimentares, existiria para preencher um determinado propsito. O sentido de prticas e condutas, exticos aos olhos ocidentais, no implicaria nas discusses profundas defendidas por Frazer ou Tylor; ao contrrio, deveriam ser compreendidos a partir da investigao de seu uso. Desta forma, antes que irracional ou imoral, o trobriands apresentado como coerente e compreensvel.

Malinowski enfatiza ser as atividades, o comportamento humano real, o locus do elemento

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verdadeiramente

sinttico,

responsvel

pela

coeso

interna

da

vida

social.

A

instrumentalidade da cultura assegura a racionalidade inerente da funo institucional, na medida em que seu objetivo ltimo a satisfao das necessidades individuais, sejam elas biolgicas ou psicolgicas(cf. Malinowski, 1975) Neste primeiro trabalho Malinowski aborda questes referentes vida familiar, atividades econmicas e magia. As referncias s prticas alimentares so esparsas e pouco detalhadas, como o fato dos habitantes de Bowoytalu (p.61) serem desprezados e

considerados impuros por comerem arraias e porcos do mato, ou a referncia ao ritual mgico Vilamalya (p.133). Tendo como cenrio o celeiro e a acumulao da colheita, este ritual tem por finalidade fazer com que os habitantes diminuam o apetite, fiquem propensos a comer frutas silvestres e recusar o inhame. De acordo como o autor, os nativos se vangloriam quando, sendo o feitio bem feito, metade dos inhames armazenados apodrece e

descartada. A relao entre o selvagem e os bens materiais no seria, desta forma puramente racional, na medida em que acumulam alimentos no como estoque, mas para exibi-los. Ainda segundo Malinowski, o centro de gravidade das festas no se encontraria no ato em si de comer, mas na exibio e no preparo cerimonial dos alimentos.

Tudo isto nos mostra que o ato social de comer e o convvio dele resultante no esto presentes na mente ou nos costumes dos trobriandeses, o que socialmente apreciado a admirao coletiva da qualidade e quantidade dos alimentos e o conhecimento de sua abundncia. (p.135) Em Coral Gardens and their Magic, trabalho j publicado em 1935, este autor se dedica ao processo de aquisio do alimento bsico da sociedade trobriandesa, tratando do cultivo do inhame, as celebraes que envolvem, o exerccio de poder dos chefes e a redistribuio da comida atravs dos laos matrilineares de parentesco, destacando o papel fundamental da magia neste contexto.

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Sob a perspectiva pragmtica, a cultura, define-se para este autor, primordialmente como campo da modalidade, na medida em que molda instintos e necessidades bsicas de forma singular (cf.Malinowski, 1975). As prticas mgicas teriam como objetivo aliviar a angstia da incerteza, da fora das dimenses incontrolveis que afetam a vida tribal, tais como catstrofes naturais, doenas e infortnios. A famlia, assim, se definiria como um meio eficaz de domesticao do instinto sexual. Declara ainda Malinowski, ao prefaciar o livro de sua aluna Audrey Richards (1948) que, apesar de ter dedicado ateno particular questo do impulso sexual numa sociedade selvagem, faltou-lhe a devida considerao sobre a fome enquanto instinto bsico, pois entre os melansios, o motivo mais importante da vida em comunidade, e interesse do indivduo, seria a comida, e no o sexo. Tais consideraes reforam a concepo malinowskiana de que a funo de uma instituio seria a de preencher propsitos ou necessidades vitais, biolgicas e psicolgicas, ao contrrio de Radcliffe-Brown e as necessidades da sociedade. Em termos de prioridade, tanto humana quanto social, a fome teria ascendncia ao sexo, pois enquanto este representa, para Malinowski, uma fora potencialmente destrutiva (desruptive) que deve ser regulada; a fome (e a comida) tanto implica como resulta em sentimentos de cooperao. de Adam Kuper (1978) o irnico comentrio de que as monografias elaboradas por seguidores de Malinowski, mais que monografias funcionalistas, seriam malinowskianas, na medida em que refletiriam diretamente seus interesses pessoais de pesquisa. Certamente, Hunger and Work in a Savage Community (1948) de Audrey Richards se enquadraria neste comentrio, apresentando-se como contraponto ao trabalho de Malinowski sobre a vida sexual dos selvagens (cf Malinowski, 1973 ). Nutrition as a biological process is more fundamental than sex. (p.1). Assim a autora inicia o livro, onde pretende tratar das funes sociais e culturais do processo alimentar. Interessa-a a abordagem da nutrio como fora criativa, expressa na maneira

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como as pessoas comem, sua influncia na vida social, na emergncia gradual dos valores sociais, o esforo cooperativo e a necessidade de troca. O contexto social descrito por Richards, as tribos Bantu na frica Central, define-se pela alternncia cclica, sazonal, entre perodos de fartura e escassez. Frente competio interna para satisfao das necessidades do grupo em ambiente de parcos recursos alimentares, a cena cultural ofereceria um cdigo de condutas, baseado em direitos e deveres, para direcionar este impulso biolgico. Dada a situao de precrio armazenamento e transporte deficiente, a reciprocidade surge como estratgia fundamental de controle da fome. Richards refere-se, inclusive teoria malinowskiana de Princpio da Insegurana Social, fenmeno este comum s sociedades selvagens: as dificuldades de sobrevivncia em tais ambientes estimulariam a extenso das relaes de parentesco a grupos mais distantes do ncleo familiar, numa estratgia de autoajuda. Afinal, ainda de acordo com a autora, as relaes de parentesco definem as regras que governam a produo e a distribuio do alimento. A autoridade paterna - o respeito que lhe delegado, assim como o medo e a obedincia est intimamente ligada possesso e controle do suprimento da comida. Para Richards, a fome seria a motivao principal das relaes humanas, podendo-se estabelecer o sistema nutritivo de uma sociedade como anlogo a seu sistema reprodutivo. A base de sobrevivncia dos Bantu resultaria da combinao entre agricultura, atividades pastoris e a caa, adaptando-se, como os andamaneses, ao ritmo sazonal de oferta de alimentos. Uma dieta montona, aos olhos ocidentais, submetida a variaes drsticas: s vezes passam a feijo, cogumelos, frutas selvagens. A autora afirma ser comum, inclusive, as clicas do excesso, quando a fartura de determinado alimento se anuncia, seja aps a caada de um grande animal, seja consumindo os primeiros frutos; tal como os trobriandeses acometidos por desinteria em conseqncia da ingesto de inhames verdes.

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Richards dedica parte deste trabalho ao destaque conferido por aquela cultura s diferentes sensaes fisiolgicas vivenciadas pelos nativos em sua prtica alimentar, desde os variados graus de fome e subnutrio s diferentes formas de saciedade. Em escala gradativa classificam e experimentam socialmente: a repleo, a satisfao, a satisfao parcial, o vago desconforto premonitrio da fome, e por fim dores agudas das contraes gstricas, languidez e dissociao mental como resultado da inanio. Os Bantu possuem uma rica experincia nas mudanas psquicas produzidas por condies fsicas, sendo inclusive capazes de reproduzir uma sensao fsica a partir do que comem; o que a autora vai definir como as bases fisiolgicas do uso ritual da comida, como a utilizao de purgantes e vomitivos ou a prpria prtica de jejum, freqentemente utilizado como propiciador do contato com o supernatural. De acordo com Richards, o homem primitivo, ou o Bantu especificamente, adquire suas crenas sobre a natureza do comer baseando-se na rica variedade de sensaes por ele provocadas, sejam elas fisiolgicas ou psicolgicas. Estas crenas so expressas em todo tipo de tabus e restries sobre o uso da comida.

In fact we cannot analyze the whole system of values centered round food in a primitive tribe unless we bear in mind the physiological nature of nutrition and the native theory of digestion current in that particular society. (p.170)

Para alm desta dimenso, podemos destacar um segundo aspecto da sacralizao das prticas alimentares, o fato do alimento ser fruto do trabalho rduo e do esforo cooperativo, sendo por isto permeado por um sentimento dbio entre querer o alimento e relutar em consumir aquele objeto de complexas sensaes emocionais. Algo como a amizade do Nuer, descrito por Evans Pritchard (1978), com seu gado e a relutncia de matar alguma rs, ou a prpria relutncia do trobriands em comer seus inhames. Alm disto, h ainda a considerao da comida enquanto valor social, resultado do esforo comunitrio comum e smbolo da coeso social.

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Food is sacred because it is the summit of the primitive mans ambitions and well being, but also because it represents the ties of kinship by which he is bound. (p.213) Outra referncia que merece ser lembrada um artigo de Meyer e Sonia Fortes Food in the domestic economy of the Tallensi, de 1936 (cf. Goody, 1982), que tambm trata de aspectos da produo e consumo de alimentos no nvel domstico. Em seus estudos mais detalhados sobre os Tallensi, Fortes retoma de forma curiosa o interesse dos precursores, Frazer e R. Smith, ao dar especial ateno aos aspectos do consumo alimentar relacionados religio, ao sacrifcio em particular, que a seu ver se definiria como um importante mecanismo solidariedade grupal. Malay Fisherman de Raymond Firth (1966) e Housekeeping among Malay

Peasants, de Rosemary Firth (1966) so monografias resultantes da pesquisa de campo do casal no final da dcada de 30 na Malaia. Fazem parte dos estudos de comunidade e cultura material ento em voga, procurando focalizar a questo da sobrevivncia e da subsistncia. Podemos consider-los como estudos complementares, numa diviso clssica de gnero, na medida em que R. Firth analisa a linha produtiva da atividade pesqueira numa pequena comunidade de pescadores da provncia de Kelatan, enquanto Rosemary, sua esposa, concentra-se na ponta do ciclo produtivo, ou seja, o consumo domstico. Baseando seus estudos na convivncia comunitria com estes habitantes durante 11 meses, este casal de antroplogos ingleses teve a oportunidade de retornar vinte anos mais tarde mesma localidade por mais 8 meses, e comparar os dois perodos. A comunidade sobrevive atravs da pesca artesanal, baseada em tecnologias simples com baixo nvel de produtividade. Interessa a Firth identificar como esta comunidade se sustenta por uma rede de trabalho cooperativo regido no s por leis econmicas como por obrigaes de parentesco. Rosemary j se concentra nos modos de vida desta comunidade,

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ou o que a famlia realmente faz com o que consegue ganhar. Para a autora, a rotina domstica de importncia vital para a compreenso de qualquer sistema econmico, na medida em que a casa se define como unidade bsica de distribuio e utilizao de riquezas, dentro de um todo interligado e funcional. O desafio comum a toda economia domstica nesta comunidade consiste no s em ter o suficiente para manter-se vivo, mas tambm satisfazer demandas religiosas, regras e obrigaes sociais to importantes para a vida do grupo como a simples subsistncia para a vida do organismo. Como alimento bsico, estes pescadores tm o arroz, que complementado por peixes e vegetais variados. O arroz ocupa papel de prestgio, simboliza riqueza, sendo freqentemente distribudo e oferecido em cerimnias em diversas ocasies, como funerais e casamentos. A importncia bsica da comida na economia familiar pode ser detectada na expresso chari nickan, significando ganhar a vida, ou literalmente buscar comida. A autora ainda analisa as possveis transformaes desta pequena comunidade face situao de mudana social ocorrida nestes vinte anos de intervalo entre suas estadias. A seu ver, as mudanas no campo econmico, tecnolgico e ideolgico tm a possibilidade de oferecer um variado leque de escolhas a uma pessoa, para as quais, porm, ela no foi preparada. A melhoria dos meios de transporte trouxe maior variedade de bens e servios aldeia, assim como maior contato com o mundo externo. Contudo, a expanso de facilidades pode concomitantemente aumentar o sentimento subjetivo de pobreza, na medida em que se tem a oferta de bens diversificados, mas no se tem o acesso. A melhoria do comrcio nesta localidade resultou na reduo do comrcio artesanal de alimentos, como o caso de algumas mulheres que preparavam quitutes e lanches rpidos baseados na culinria tradicional para serem vendidos entre os aldees. Outras transformaes se anunciavam com as oportunidades educacionais e o servio assistencial do governo, exigindo-se, porm destes pescadores a melhoria de tcnicas produtivas e o controle da natalidade.

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Uma ateno especial dedicada ao convvio domstico e organizao dos gastos com a sobrevivncia, registrando-se as provises alimentares, a quantidade consumida em cada refeio, ou o consumo per capta. O livro ainda enriquecido com detalhes da vida cotidiana do pescador malaio como a diviso do trabalho domstico, detalhes sobre a

educao infantil e a higiene da casa. Em relao aos hbitos alimentares, o livro traz ao final um conjunto de receitas tradicionalmente utilizadas pela comunidade base de diferentes tipos de arroz, qualidades de peixes, coco, pimentas e vegetais variados. Ilustra com a prpria experincia pessoal um aspecto curioso da cultura malaia, o fato das refeies no se constiturem, freqentemente, como acontecimentos sociais, pois cada um se serve e come solitariamente. Assim, convidado para um jantar de despedida, por grandes amigos aldees, o casal se viu atnito quando lhe foi oferecida uma mesa fartamente servida com pratos especiais, enquanto na cozinha permaneceram seus anfitries, comendo o trivial. Em termos gerais podemos verificar a preocupao deste casal em investigar o funcionamento do sistema econmico desta comunidade, aquilo que lhe possibilita a sobrevivncia. A marca da tradio britnica, particularmente de Malinowski, se faz presente no desafio da reconstruo detalhada da vida social, na busca das funes primordiais e, sobretudo, o que nos interessa particularmente, na preocupao com a forma como se satisfaz a necessidade vital de comer atravs de uma sociedade culturalmente integrada. Anos depois, Firth iria rever o estilo das monografias malinowskianas, ressaltando a dificuldade em promover snteses relevantes, confundindo-se facilmente a relevncia analtica da conexo emprica. (cf. Kuper,1978). Contudo, tais pesquisas, e em particular o trabalho de Rosemary Firth faz uma associao reflexiva fundamental para pensarmos a questo das prticas alimentares, que a investigao da economia local e as formas de organizao domstica e familiar.

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No h dvidas a respeito da importncia destes trabalhos para a reflexo sobre as construes dietticas. Definindo-se como uma linha particular de pesquisa, estas monografias fazem parte de um perodo em que o estudo da comida e da fome era considerado bsico para a compreenso das relaes sociais, da vida poltica, da questo da mudana social. A antropologia britnica se caracteriza, neste perodo, por seus estudos da organizao social e econmica de sociedades no industrializadas, subsistindo

principalmente de recursos locais. Destacam ainda que no se poderia ignorar o fato de que a procura, a preparao e o consumo da comida forneciam o foco primeiro da atividade diria destes grupos,consumindo-lhes a maior parte do tempo. Os valores emocionais e simblicos envolvidos na prtica alimentar certamente se referiam a esta necessidade primeira de sobrevivncia enquanto indivduo ou grupo. Enfatizam tambm a centralidade da cooperao social na aquisio e distribuio de vveres. Em termos gerais, podemos resumir a contribuio da escola funcionalista, no que toca s prticas alimentares, ao fato dos costumes exticos no serem mais explicados pela crena numa suposta evoluo humana, mas em termos da posio em que ocupam numa sociedade especfica, onde a funo seria o conferir sentido ao que no compreensvel. Uma noo ainda pouco elaborada do que seria esta dimenso simblica da vida social. Verificase tambm a ausncia da dimenso histrica, da noo de processo que em muito contribuiria para compreenso dos fatos presentes. E num exerccio intelectual poderamos nos indagar: afinal, se existe a funo, por que no tratar dos componentes desfuncionais enquanto tal? Motivadores de um processo de contnua transformao? Novamente nos deparamos com a premissa de uma sociedade esttica, cujas formas de nada ou pouco se alteram.

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1.3. Das lgicas simblicas

Aps a Segunda Grande Guerra os trabalhos monogrficos se diversificam, assim como crescem as diferenas internas dentro do campo ingls. A prpria situao das colnias britnicas se modifica, ocorrendo uma integrao cada vez maior de culturas antes isoladas ao fluxo dominante do mercado internacional. No que se refere aos estudos sobre as prticas alimentares, a influncia do pensamento simblico francs, atravs de Lvi-Strauss se faz marcante. Podemos dizer que depois de Lvi-Strauss a antropologia no seria mais a mesma. de Fischler o comentrio de que enquanto os ingleses estudam a comida, os franceses examinariam a cozinha, referindo-se assim a uma diferena de abordagem entre estes campos. (cf. Menezes, 1997). Este comentrio tem certa pertinncia, principalmente se considerarmos o perodo inicial da histria da antropologia britnica; porm, posteriormente, autores tais como Mary Douglas e Edmund Leach - e suas reflexes sobre as prticas alimentares - estabelecero laos criativos entre estas duas tradies. No h dvida de que o nome de Lvi-Strauss est vinculado de forma marcante aos estudos da cozinha e da comida, trazendo para este campo uma forma maussiana de se pensar a realidade. Se num primeiro momento este autor segue a tradio de correlacionar formas de pensar e outros aspectos da vida social, ele avana no sentido de investigar a estrutura do pensamento humano, ou mesmo da mente humana. Para atingir tal fim, ou seja, identificar as estruturas profundas e relacionar atitudes inconscientes dos indivduos e a estrutura social de um grupo, Lvi-Strauss destaca alguns temas que ao seu ver se apresentariam como que universais, relacionados evoluo e prpria constituio do humano. Da anlise das instituies que envolvem o sexo, como incesto, casamento e parentesco, volta sua ateno comida. A primeira referncia ao interesse terico neste tema aparece em 1958 com a publicao de alguns comentrios em Anthropologie Structurale, onde analisa

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comparativamente, de modo

breve, as estruturas fundamentais da cozinha inglesa e da ...analisvel em

cozinha francesa. Como a lngua, a cozinha de uma sociedade seria

elementos constitutivos, que poderamos chamar neste caso de gustemas, os quais so organizados conforme certas estruturas de oposio e correlao (...):

endgena /exgena central/ perifrica marcada/ no marcada

Cozinha inglesa + +

Cozinha Francesa

+

Em outras palavras: na cozinha inglesa os pratos principais das refeies compem-se de produtos nacionais preparados de maneira inspida e os complementos so produtos de base extica, onde todos os valores diferenciais esto fortemente marcados (ch, bolo de frutas, doce de laranja, porto). Na cozinha francesa, ao contrrio, a oposio endgena/ exgena se enfraquece ou desaparece, e os gustemas igualmente marcados so combinados entre si, quer na posio central como perifrica. (cf. LviStrauss, 1985:107)

Sua triologia,

Mythologiques (Le Cru et le Cuit; lOrigine des Manires de

laTtable et LHomme Nu) vo trazer referncias marcantes ao processo culinrio. Nos estudos sobre mito aborda o papel do fogo na transformao do cru para o cozido, um processo to significativo para a emergncia da humanidade, quanto o foi o tabu do incesto. Se na histria da antropologia, o fogo j havia sido objeto de reflexo, principalmente nos estudos sobre ritos, Lvi-Strauss o trata de forma destacada na transformao da comida, tanto nas narrativas dos mitos como nos termos dos processos em que preparado. Prope, ento, para analisar os aspectos distintivos de uma cozinha o nome de gustemas ou unidades que traduziriam sabores bsicos, em clara relao sua influncia da lingstica. Em LArc (1965) a anlise do processo culinrio faz uso do modelo lingstico de forma diversa: as unidades bsicas gustemas tornam-se tipos de operaes bsicas de transformao da comida, do estado cru ao estado cozido. Como a linguagem, o cozinhar universal nas sociedades

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humanas. O tringulo culinrio segue os moldes

do tringulo de oposies bsicas na

lingstica, o tringulo vogal e o tringulo consonantal. a k cru

u

i

p

t

cozido

apodrecido

Fig. 1: Os tringulos vogal, consonantal e culinrio (cf. Goody, 1972:20-1)

No tringulo culinrio subjaz uma dupla transformao: entre elaborado/ no elaborado e entre cultura e natureza. O cozido se define como transformao cultural do cru, enquanto o apodrecido, como transformao natural, tanto do cozido quanto do cru. De forma diversa de Richards, que procura produzir um conhecimento exaustivo sobre determinado grupo, Levi-Strauss objetiva encontrar as constantes na estrutura partindo da anlise de diferentes sociedades. O tringulo culinrio se torna posteriormente mais complexo, introduzindo outros aspectos da preparao da comida para o consumo, como o defumar e o guisar: cru

assado (-) Ar (+) defumado (-) (+) Cru (+) gua assado (-) guisado

cozido apodrecido Fig. 2: O tringulo culinrio de Lvi-Strauss em sua segunda verso (cf.Goody,1972: 22)

Em termos de meios, assar e defumar esto mais do lado da natureza, em oposio ao guisar, do lado da cultura, na medida em que os primeiros requerem o mnimo de

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equipamentos, ficando a comida em contato direto com o fogo; cozer, por sua vez, exige a produo do vasilhame. Em termos de resultado, defumar est do lado da cultura, pois segundo o autor, assar muda a carne profundamente enquanto defumar transforma o alimento em substncia preservada. J assar e guisar aproxima-se da natureza ao se identificarem com o apodrecido. Os limites de aplicao de tais esquemas so variados. O uso emprico destes instrumentos tem pouco alcance, na medida em que tais classificaes so por demais arbitrrias, assim como as justificativas. Tomemos por exemplo a primeira tentativa de sistematizao das polaridades no processo culinrio, onde este autor compara as cozinhas francesa e inglesa. Ao que parece a prpria avaliao do que seja francesa ou inglesa simplesmente reproduz num vocabulrio acadmico a imagem francesa da culinria inglesa; alm de estar comparando a alta cozinha francesa com expresses culinrias inglesas de cunho domstico. Conforme alguns autores (cf. Goody, op.cit.) que questionam a eficcia de uma interpretao estruturalista da realidade, a busca de um cdigo fixo, ou a estrutura profunda que repousaria em qualquer comportamento aparente, seria til se servisse para predizer outras estruturas superficiais desconhecidas, o que de fato este tipo de anlise no permite. Ao que parece, a apresentao de um sistema classificatrio no explica necessariamente a realidade. No explica as origens nem as mudanas nos padres de preferncia, reduz a viso de processo, buscando a dimenso esttica e constante nas estruturas; sob esta perspectiva os aspectos imutveis tornam-se mais reais e significativos do que outros, como por exemplo, as transformaes do uso da comida pela mudana cultural. Trata-se de um exerccio de anlise abstrata que exclui consideraes concretas de fatores sociais, tais como o momento histrico, ou a posio na estrutura social. Quanto s certa

limitaes do binarismo, a escolha dos termos culinrios torna-se fruto de

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arbitrariedade cultural por parte do autor, uma vez que se apresentam grande variedade de sentido e operaes. neste sentido que Goody (op.cit.:216)) apresenta o trabalho de Adrianne Lehrer como exemplo de uma possvel aplicao do tringulo culinrio de Lvi-Strauss. Lehrer faz uma anlise comparativa entre a cozinha inglesa e a cozinha de mais oito etnias, incluindo os franceses e os yorubas, com o objetivo de investigar os princpios de classificao. De modo preliminar j v limitaes de se tirar concluses extensas sobre a cultura, ou aquelas culturas em particular. Primeiro, e de acordo com Lehrer, pelo fato do modelo fonolgico binrio de Jackobson ser muito restrito s possibilidades da prtica culinria; segundo, devido ao estatuto de centralidade que ocupa a distino entre

assar/cozer na anlise levi-straussiana, na medida em que, nas lnguas investigadas, as polaridades se apresentariam noutros termos. E, finalmente, porque para a maioria das culturas referidas defumar no representado como processo de cozimento e sim de conservao. Contudo, Lehrer no rejeita completamente o tringulo culinrio, apresentando como proposta um tetraedro tridimensional. Ao invs de priorizar lexemas, utiliza as prticas operacionais; os fatos comuns entre as diferentes etnias referem-se ao uso semelhante de materiais e tcnicas na cozinha, prticas do mundo exterior, e no de uma estrutura interna. No h, portanto, uma estrutura neutra de conceitos culinrios, que seja vlida para todas as lnguas, produzindo-se ento diferentes estruturas semnticas. A busca de universais lgicos seria, a seu ver, fruto de uma desconsiderao ao jogo constante entre processo social e formas de linguagem.

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grelhar

assar AR fritar

no vapor GUA

defumar

ferver

LEO Fig.3. O tetraedro das operaes culinrias de acordo com Lehrer ( Goody, 1972: 219)

No h dvidas, porm, de que o estudo antropolgico das prticas alimentares deu um salto qualitativo aps as contribuies de Lvi-Strauss, influenciando diversos autores tais como Mary Douglas, Roland Barthes, Pierre Bourdieu e M. Sahlins. Podemos dizer, de forma ampla, que uma das grandes virtudes do estruturalismo, que se far presente nestes trabalhos posteriores, foi reconhecer que o gosto culturalmente moldado e socialmente controlado. Estes autores lanam novas luzes aos dilemas e caractersticas das sociedades ocidentais, modernas e industriais, a partir da cozinha , da comida e do consumo. Certamente tais anlises em muito podem fortalecer o pensamento reflexivo sobre as prticas alimentares, contribuindo para a viso de que a pluralidade de formas alimentares no se restringe a diferentes culturas, mas se faz presente dentro da mesma sociedade. Em particular, as sociedades complexas tm se revelado como campo frtil de anlise da ntima relao existente entre as regras de comestibilidade e as regras de conduta social. Bourdieu (1979 ) traz grande contribuio a este campo ao analisar as estratgias de aspirao social traadas pelas classes componentes da sociedade francesa, onde o consumo alimentar, dentre

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outros aspectos, opera como elemento distintivo.. As preferncias alimentares, refletindo o universo simblico daqueles que as partilham, traduzem, mas principalmente reforam, o status daquele grupo, sua localizao, no s dentro da sociedade, como dentro de uma mesma classe social. Sahlins (1979), por sua vez, analisa o comportamento alimentar da sociedade norteamericana demonstrando-nos serem as escolhas alimentares resultantes de algo mais do que a razo prtica, ou a lgica do mercado. Os padres de comestibilidade atuam simultaneamente em dois nveis. Como valor estruturante da cultura como um todo - o fato, por exemplo, dos ocidentais no comerem carne de cachorros e como valor distintivo - o fato das vsceras animais, objeto de repulsa controlada, serem destinadas s camadas inferiores da sociedade, em funo da impossibilidade monetria de acesso a carnes mais nobres. De forma diferenciada, estes autores procuram explicar a distribuio contempornea de preferncias alimentares atravs do processo social de excluso. Jack Goody (1982) outro autor que merece destaque, na tentativa de analisar a cozinha no contexto mais amplo - seja regional, seja temporal, seja hierrquico - do processo de produo, preparao e consumo numa perspectiva comparada. Parte da constatao de que, diferentemente da sociedade eurasiana, as culturas tradicionais africanas no apresentam uma cozinha diferenciada internamente entre as classes superiores e inferiores. Ao investigar os motivos pelos quais tais sociedades passam a apresentar a diferenciao interna entre high e low cuisine, este autor constri uma anlise valorosa da relao entre cozinha e hierarquia ao longo da histria, de forma que se compreenda o processo de desenvolvimento da produo industrial dos alimentos. Outros autores contemporneos de grande contribuio reflexo das prticas alimentares nas sociedades industriais, como Claude Fischler (1992), Jeffrey Pilcher (1992),

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Sidney Mintz (1985, 1996 ), Stephen Mennel (1996) sero discutidos ao longo dos prximos captulos.

1.4. Das diferentes perspectivas

O trabalho de Lvi-Strauss vem demonstrar como a relao entre Cultura e Natureza, e a discusso desta interao, na histria da antropologia, define-se como questo central. Os paradigmas desta cincia se vem, ao longo de sua histria, influenciados alternadamente por uma proximidade maior entre os dois plos, ora apoiando-se em explicaes naturalistas, ora em interpretaes simblicas. No que se refere s prticas alimentares esta dualidade se faz constantemente presente, dada a peculiaridade deste tema, ou seja, a de ser uma atividade imprescindvel para a manuteno da vida; se que podemos dizer que existam necessidades mais necessrias que outras.O fato que temas relacionados s prticas alimentares, como por exemplo, a questo dos padres de comestibilidade, tem se tornado um dos grandes desafios de interpretao do pensamento antropolgico. Em certos momentos a natureza foi a matriz inspiradora desta reflexo como no evolucionismo, no funcionalismo malinowskiano e no materialismo ecolgico. A cultura nesta perspectiva vista como um meio proposto para atingir um fim almejado, ou seja, manipular o ambiente de alguma forma, descobrindo os melhores caminhos para se lidar com os problemas impostos pela natureza; no caso, a fome, ou o imperativo de comer. A antropologia ecolgica, por exemplo, busca sua inspirao na ecologia para explicar o fenmeno cultural, onde os processos sociais so compreendidos a partir de termos tais como feedback, homeostase, fitness. De acordo com Sahlins (1979), um dos resultados desta abordagem seria a diluio do prprio conceito de cultura, como ocorre em Murdock

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(cf.Sahlins, 1979), que leva ao extremo o princpio das necessidades vitais, renunciando ao conceito de cultura e de sistema social. Um dos autores que podemos destacar nesta tendncia Marvin Harris (1985), que, em franco dilogo com Lvi-Strauss, afirma ser os animais bons para comer , e no bons para pensar, em oposio proposta estruturalista que analisa as escolhas culturais como resultado de uma classificao mais ampla da realidade. O materialismo cultural, proposto por Harris, se define como uma teoria ecolgica/evolucionista que tenta explicar que os hbitos humanos buscam satisfazer as necessidades da forma mais econmica possvel. Harris prope interpretaes utilitaristas de hbitos alimentares aparentemente irracionais, como o fato das vacas no serem comestveis entre os hindus, ou os porcos entre os mulumanos. A seu ver, os ocidentais acreditam que os indianos preferem morrer de fome a comer suas vacas; mas se as comessem que realmente morreriam de fome, pois so imprescindveis para a prtica da agricultura. No caso dos porcos, Harris (1974: 40) acredita que tanto a Bblia quanto o Coro condenariam seu consumo ...because pig farming was a threat to the integrity of the basic cultural and natural ecosystems of the Middle East. So animais interditados por terem dieta semelhante ao homem, tornando-se seu competidor. H muitas controvrsias do ponto de vista acadmico em torno deste nvel de explicaes, tornado-se estas um desafio questo da arbitrariedade cultural, conceito este to caro ao pensamento antropolgico. As sociedades tribais da Amaznia inspiraram uma srie de estudos dentro deste paradigma, gerando discusses sobre o papel dos fatores limitantes para a presena e o desenvolvimento de sociedades mais complexas do que aquelas que habitavam a Amaznia. Estabeleceram-se duas grandes explicaes: a primeira, inspirada nos trabalhos de Julian Steward (cf. Senra, 1996), na dcada de 40 do sculo passado, destacava que a baixa qualidade do solo equatorial no sustentaria uma agricultura intensiva, e conseqentemente

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uma grande populao. Interessava a Steward identificar a ao determinante que o meio ambiente exercia sobre a cultura , as causas materiais envolvidas no processo de mudana cultural, relacionando meios de subsistncia e organizao social. Posteriormente surge uma nova interpretao, proposta por Daniel Gross (cf. Senra, op.cit.), que destaca a escassez de protena animal como fator limitante e explicativo dos padres demogrficos e sociais daqueles grupos: na verdade Gross estabelece a conexo entre consumo de protena animal e desenvolvimento cultural. Juntamente com Eric Ross e Marvin Harris, estes autores

acreditam ser os tabus alimentares derivados de uma lgica conservacionista subjacente, como o fato de no se consumir animais de grande porte por se distriburem em pouca quantidade naquele meio. A escassez de protena animal torna-se, ento, fator causal do comportamento e dos padres culturais amerndios vindo a explicar a guerra, o infanticdio feminino, a supremacia masculina nas estruturas polticas etc. Apesar de posteriormente a antropologia ecolgica envolver-se com modelos pluricausais mais poderosos, que priorizariam a sinergia entre natureza e cultura para a compreenso do estilo de vida

amerndio , os estudos acima citados no deixam de identificar o modo de produo na base do comportamento humano, ocorrendo freqentemente uma associao apressada de nomadismo/simplicidade agrcola com privao alimentar/ penria. O outro paradigma que acompanhou a histria da antropologia foi responsvel pela identificao da cultura na base do comportamento humano, considerando o homem, no por seu material gentico, mas principalmente por sua capacidade de produzir cultura e de se socializar. Devemos a Boas a instituio desta forma de ver a realidade humana na antropologia, destacando a cultura como a lente atravs da qual os homens vem o mundo, ou seja, a cultura que vai condicionar todo o processo de percepo do mundo, por onde passa o conhecimento e de onde as prticas so orientadas. O lcus original da cultura, antes que a natureza, seria a tradio. (Sahlins, 1979). Neste sentido, a capacidade de dar e obter

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significado que vai orientar a base do relacionamento humano com o meio ambiente onde se insere, produzindo-se ento outra forma de se compreender as prticas alimentares. Certamente Lvi-Strauss tem um papel fundamental nesta histria da interao dos grupos com o meio natural, fortalecendo a viso da preeminncia da cultura na relao do homem com o meio ambiente. O longo debate a que se prope (em parte acima comentado) sobre a relao complexa entre Natureza e Cultura no processo de humanizao, j se inicia em As Estruturas Elementares do Parentesco (1976). Neste trabalho, Lvi-Strauss afirma, categoricamente, que no h estado selvagem humano, e que qualquer conjectura neste sentido representaria um estado de anormalidade, e no de um retorno. O Pensamento

Selvagem (1976a) se apresenta como obra inspiradora das reflexes posteriores sobre a questo das sociedades tribais e sua forma particular de organizao da realidade. Argumentando ser insipiente a classificao de primitivo para estas sociedades, vem demonstrar que no h descontinuidades entre nativo/civilizado,sendo equivocada a viso do nativo como uma forma pouco elaborada, no sentido da capacidade reflexiva, do civilizado. Afinal, os nativos utilizam categorias abstratas da mesma forma que os ocidentais, no sendo orientados em suas aes somente por uma razo prtica. O pensamento selvagem, portanto, antes de ser o pensamento dos selvagens se define por uma maneira de perceber o mundo e de orden-lo. A dimenso simblica como instauradora da vida social, defendida por Lvi-Strauss frente s interpretaes naturalistas do totemismo abrem novos horizontes aos estudos dos padres de comestibilidade. Mary Douglas (1976) apresenta interessante reflexo sobre a definio dos animais comestveis/ no comestveis no Antigo Testamento utilizando-se da dicotomia puro/ impuro e , principalmente das posies perigosas, que so as intermedirias, indefinidas, ameaadoras de uma realidade ordenada a partir de classificaes. Conclui que nas interdies alimentares subjaz a noo de que a pureza dos

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animais significa a conformidade completa sua classe, tornando-se as leis dietticas signos de inspirao da unidade e da integridade. As interdies alimentares tornam-se uma das narrativas possveis da estrutura social. Inspirando-se no pensamento de Evans-Pritchard , Douglas procura identificar como o grau de ordenao e de estabilidade de uma sociedade reflete o nvel de consenso e legitimidade alcanado pela ordenao e hierarquizao de experincias, puras ou impuras, onde o perigo representa a ameaa desestabilizao social. Sagrado e profano, pureza e poluio so classificaes relativas e complementares, cujo sentido as remete a um sistema totalizante. A prpria produo da sujeira a produo do sistema; contudo, ela reconhecida em determinadas situaes e no em outras, o que subentende uma classificao valorativa da realidade. As situaes de poluio/perigo so aquelas que envolvem desordem, sentido ambguo, ou referem-se a uma zona limtrofe, de passagem. Inspirando-se na anlise estruturalista, Douglas ainda traz grande contribuio reflexo das prticas alimentares no cotidiano (cf. Douglas, 1971, 1979, 1982). Entre suas diversas contribuies podemos destacar a pesquisa entre operrios ingleses em Londres. A partir da observao de sua vida familiar, esta autora procura analisar as regras que ordenam os sistemas alimentares daquelas famlias. Sua estrutura relaciona-se intimamente estrutura da vida familiar, podendo ser compreendidos a partir das relaes binrias que os compem. Para a autora, cada refeio um evento social estruturado, cujo sentido encontra-se num sistema de analogias repetidas: seu significado conferido em relao s outras refeies. Sua contribuio aos estudos das prticas alimentares vincula-se percepo da dimenso simblica desta atividade humana, que por ser estruturante, e estruturada, apresenta-se ordenada, na maioria das vezes, de forma inconsciente. Edmond Leach (1983) traz a tentativa de exerccio semelhante, buscando a interpretar as classificaes sociais das culturas inglesa e Kachin de forma ampliada. Desta-se como

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uma das qualidades deste estudo a de procurar integrar diferentes aspectos da vida social. Temas anteriormente tratados separadamente como tabu, abuso verbal, padres de comestibilidade e obscenidade social so analisados de forma correlacionada, levando-o identificao de uma realidade cultural mais profunda, no sentido interno (uma

cosmoviso?) e no tomando as regras simplesmente como imposies, ou o costume como aquele que restringe e exerce uma coero arbitrria. Para Leach, a grande questo : qual a operao lgica que orienta a seleo de alimentos potenciais por parte de uma sociedade? Parte-se do pressuposto que o ambiente fsico de qualquer sociedade humana contm um amplo espectro de materiais que so tanto comestveis quanto nutritivos e que, contudo, somente uma parte deste meio ser de fato classificada como alimento. Leach prope, ento, uma diviso bsica destes alimentos em potenciais: as substncias comestveis que fazem parte de uma dieta a normal; os alimentos possveis que so comidos em ocasies especiais, cujo consumo regido por alguma forma de tabu, sendo alimentos conscientemente interditados; e as substncias tidas como no comestveis, ou inconscientemente interditadas (substncias que no so concebidas como alimento). Sua anlise parte das categorias verbais como forma de discriminao de reas do espao social em termos de distncia de um dado Ego. Destaca tambm a tendncia universal da associao tanto ritual, como verbal, entre o ato sexual e o comer, identificando, ento, uma ntima correspondncia entre padres de acessibilidade sexual e categorias de comestibilidade. Para este autor o modo pelo qual os animais so categorizados em relao a sua comestibilidade ter alguma correspondncia ao modo pelo qual os seres humanos so categorizados com respeito s relaes sexuais, assim como ambas as classificaes vinculam-se ordenao do espao:

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Acessibilidade sexual Ambiente fsico Comestibilidade

irm casa no comestvel

prima fazenda

vizinha floresta

estrangeira remoto no comestvel

comestvel com comestvel interdies

Fig. 4: Padres de comestibilidade e padres de sexualidade entre os ingleses. (Leach, 1986)

EGO (EU)

no casamento, casamento relaes ilcitas NI (sogra) NA/NAU irm NAM prima cruzada casvel perto (no ocasio sagrada floresta comestvel) (comestvel se (comestvel) sacrificada)

incesto

no parentes distantes RAW fogo da floresta (no comestvel)

Fig. 5: Categorias Kachin de relacionamentos humanos (Leach , 1986:198)

Em franco dilogo com Lvi-Strauss e suas reflexes sobre o pensamento selvagem, Leach expressa o intuito de ampliar a questo das classificaes. No lugar de dicotomias, prope uma escala possvel de gradaes de proximidade e distncia, por entender no ser suficiente um esquema de discriminao de extremos como eu/isto ou ns/eles. Assim, as coisas do mundo no so classificadas simplesmente como sagradas/ no sagradas, e sim como mais sagradas ou menos sagradas, ou seja, as classificaes operam dentro de uma escala graduada entre os dois limites possveis, mais perto/ mais longe, mais como eu/ menos como eu.(op.cit.:198). Para Leach, a lgica dos padres de comestibilidade se definiria pelos mesmos parmetros, interditando os animais por demais como ns , assim como aqueles completamente como eles, ou seja, afastado do universo reconhecido. Ainda como desdobramento deste paradigma, a antropologia cognitiva surge na dcada de 60 no sentido de investigar a lgica interna das culturas estudadas, com ateno

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especial s formas de classificaes nativas do mundo que os rodeia. Se o mtodo estruturalista de Lvi-Strauss parte de uma ordem universal pr-concebida, onde a realidade observada se encaixaria, o mtodo cognitivo tem como objetivo revelar esta ordem a partir dos dados fornecidos: a etnocincia (etnobotncia, etnobiologia etc.) vem se dedicar a esta sistemtica classificatria nativa. Se a princpio este estudo do discurso nativo ainda procura inseri-lo dentro de uma ordem cientifica ocidental, posteriormente ele vai ganhando legitimidade e reconhecimento do nativo como pensador, ou seja, aquele capaz de sistematizar conhecimento sobre o seu ambiente. Neste sentido, podemos destacar o estudo liderado por Darryl Posey , entre os Mebngkre demonstrando como as classificaes do ecossistema tm referncia bsica nos parmetros culturais: plantas , por exemplo, possuem personalidades especficas, o que vai explicar o motivo pelo qual algumas se associam, crescem juntas, e outras no. Outro trabalho que se destaca o de Reichel-Dolmatoff entre os Desana e sua percepo integrativa e histrica do ecossistema, visto como resultado da interligao de seres vivos e espritos (cf. Mercante, 2005) Autores como Ingold (1996) e Descola (1998) vm amadurecer a reflexo sobre a dicotomia entre Natureza e Cultura, assim como as relativizaes possveis a esta dicotomia, atravs da valorizao das categorias nativas de entendimento do ecossistema. Ingold prope a substituio do conceito de natureza pelo de meio ambiente, destacando que o conceito de natureza ocidental como realidade l fora, o qual o homem deveria decodificar deveria ser superado pela situao de envolvimento do ser humano com aquilo que o forma e o envolve. A seu ver, as sociedades tribais apresentam um envolvimento ativo e perceptivo com o meio que o cerca, priorizando a imagem da interdependncia. Ao contrrio das representaes ocidentais, que conferem presena humana o princpio instaurador do mundo natural, estes povos tm a vida orgnica como ativa e no simplesmente reativa presena humana; o que faz compreender o motivo pelo qual a sua relao com o mundo

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representada como um processo de revelao, e no de decodificao. A humanidade se torna, neste sentido, como uma possibilidade entre as vrias formas de vida (Descola, 1998), pois a intencionalidade e a conscincia reflexiva no so atributos exclusivos da humanidade, mas potencialmente de todos os seres do cosmo. Outro autor que se destaca na histria das interaes dos grupos humanos com o meio natural e no que nos interessa particularmente, na reflexo sobre as prticas alimentares frente a diviso natureza e cultura - Kaj Arhem (1996). Baseando-se em estudos na sociedade Makuna, este autor destaca o fato de que entre os amerndios a noo de natureza contgua ao de sociedade, constituindo juntos uma ordem integrada, onde a humanidade vista como uma forma particular de vida participando de uma comunidade mais ampla de seres vivos, regulados por um conjunto nico de regras de conduta. Diferentemente dos ocidentais, os Makuna, e os amerndios em geral, no operam ruptura e sim relaes de continuidade entre natureza e cultura. Ecosofia o conceito por este autor explorado para expressar este sentimento amerndio de ser integrante de uma grande teia csmica, onde todos os seres participam; um campo de interao social baseado na cadeia de predao e troca. O mundo vivo construdo como uma sociedade csmica, onde seres mortais so ontologicamente iguais: humanos e animais se submetem a mesma realidade integrada, se unificando por um pacto de reciprocidade, onde atuaro, potencialmente, como comedor/ comida, caador/ presa. (op.cit: 189)

This is a hunter universe; the world seen from a male, predatory point of view. The limits of the system are defined, at one extreme, by the supreme predators, who prey on all living beings but are prey to none; and, at the other extreme, edible plants which other extreme, , in relation to the other life forms in the system, are only food. The intemediate trophic level comprises most life forms, including human beings, who are at the same time both eaters and food. And since all animals in their essential aspect are people, the scheme applies to any animal; from the point of view of game and fish, men are

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included in the category of predators, while fruits, seeds, insects, and plant detritus are included in their food category. Ou seja, diversidade das formas exteriores corresponde uma unidade interna de essncia espiritual, tornado-se os animais parentes virtuais dos ndios. Neste sentido, a caa vai estar intimamente relacionada afinidade: ela produz afins ao propor uma troca a vida do animal vai ser substituda pelo nascimento de outro-, estabelece uma relao recproca, onde a morte (predao), ao promover a regenerao, atua como instrumento de reproduo da vida. A caa se torna um ritual de reciprocidade, onde se reverencia e se recompensa o animal que se deseja capturar. esta idia, ou, nos termos do autor, ideologia de reciprocidade, que vai orientar moralmente a interao deste povo com o meio ambiente, impondo fortes sanes super-explorao da floresta. Ahren destaca, ento, alguns princpios que regem os padres de comestibilidade entre os Makuna. A comida , por essncia, ambivalente e poderosa (ou perigosa, nos termos de Douglas). Contm as substncias primordiais de que o mundo foi feito e atravs