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Antonio Flávio Pierucci & Reginaldo Prandi não era a religião enquanto conser- vação e permanência que interes- sava a Candido Procopio Ferreira de Camargo, mas sim a religião em mudança, a religião com possibilidade de ruptura e inovação, a mudança reli- giosa e, portanto, a mudança cultural. Desde tempos remotos, faz parte da ver- dade religiosa apresentar-se como imutá- vel, intemporal, eterna. Conforme diz a reza do Glória ao Pai: "assim como era no princípio, agora e sempre, por todos MAIO DE 1987 29

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antropologia da religião

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Antonio Flávio Pierucci & Reginaldo Prandi

não era a religião enquanto conser- vação e permanência que interes- sava a Candido Procopio Ferreira de Camargo, mas sim a religião

em mudança, a religião com possibilidade de ruptura e inovação, a mudança reli-

giosa e, portanto, a mudança cultural. Desde tempos remotos, faz parte da ver- dade religiosa apresentar-se como imutá- vel, intemporal, eterna. Conforme diz a reza do Glória ao Pai: "assim como era no princípio, agora e sempre, por todos

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os séculos dos séculos". E no entanto re- ligiões mudam, sempre mudaram.

No Brasil do último trintênio, a vida religiosa mudou e tem mudado em um grau, uma extensão e uma velocidade nunca dantes vistos em nossa história. A percepção aguda e insistente deste fa- to acompanhou Candido Procopio desde os anos 50, quando começou a se interes- sar por estudar empiricamente o desen- volvimento do que ele caracterizou como "continuum religioso mediúnico" (que vai do espiritismo kardecista à umbanda) bem como das seitas pentecostais, todas elas formações religiosas intensamente sacrais, que passavam a se alastrar pelo Brasil urbano, "exatamente nas regiões em que o país se moderniza e estabelece gradativamente padrões mais racionais e seculares" (Igreja e Desenvolvimento, p. 1). Este processo de expansão do pente- costalismo, do kardecismo e da umbanda é a contraface do declínio e da erosão da religião dominante tradicional, o catoli- cismo, desgaste que não se reduz a des- sacralização e secularização.

O panorama religioso brasileiro tem mudado não só porque há pessoas que desertam de seus deuses tradicionais lai- cizando suas vidas e seus valores, mas também porque há outras que em núme- ro crescente aderem a "novos" deuses, ou então redescobrem seus velhos deuses em novas maneiras.

De um lado, o "surto de crescimento de denominações religiosas intensamente sacrais, como as espíritas, umbandistas e pentecostais" (ibidem, p. 1), e, de outro, "o novo — e para muitos inesperado — dinamismo na religião católica e em seu papel na sociedade brasileira" (ibidem, p. 3) compunham aos olhos de Procopio um "quadro paradoxal" e a pôr em ques- tão "as generalizações sociológicas relati- vas à secularização da sociedade moder- na" (ibidem, p. 1). Por isto, um dos objetivos explícitos de sua obra de pes- quisador era "complementar a tendência predominante no século XIX e na litera- tura clássica das ciências sociais que en- fatizou ( . . . ) as funções da religião vistas como essencialmente conservadoras e rea- cionárias" (ibidem, p. 3). Daí seu pro- pósito recorrente de estudar, nas reli- giões, suas virtualidades para implemen- tar e incrementar a mudança social.

Para Procopio a mudança religiosa ti- nha um nome: internalização. "Religiões internalizadas, quer pentecostal, espírita ou católica, têm em comum o fato de

oferecerem modalidades de orientação de vida para considerável parcela da popu- lação brasileira que se vê envolvida em intenso processo de mudança social. ( . . . ) Estas modalidades religiosas são capazes, cada qual a seu modo, de dar forma e impregnar de sentido um estilo de vida relativamente adequado ao setor que se moderniza na sociedade brasilei- ra" (ibidem, p.2).

O que vem a ser o conceito de inter- nalização? Foi Max Weber quem distin- guiu dois tipos ideais de religião, o tipo tradicional e o tipo racionalizado, e esta- beleceu nesta bipolaridade um movimen- to evolutivo. Não obstante a extrema simplificação ou, o que dá no mesmo, a supergeneralização presente numa tipolo- gia binária, ela serviu de ponto de parti- da extremamente frutífero a Procopio para sua discussão do processo de mu- dança religiosa e, particularmente, do processo de transformação (de rejuvenes- cimento, como gostava de dizer) do cato- licismo no Brasil. Munido destes tipos ideais weberianos, Procopio vai identi- ficar no catolicismo brasileiro, já nos anos 50, uma cisão que se acentuava entre sociedade e religião católica, asso- ciando a tal cisão neste nível um processo interno de divisão dos católicos, de des- dobramento do catolicismo, no qual o catolicismo tradicional cedia terreno, no Brasil urbano principalmente mas tam- bém no rural, a distintas modalidades de catolicismo internalizado.

O eixo do contraste está na relação absolutamente diversa destes dois tipos com a formação social brasileira, ou, co- mo costumava dizer, com a sociedade inclusiva. Nas religiões tradicionais, as concepções religiosas apresentam-se de tal modo entrelaçadas aos modos de vida e aos costumes vigentes, de tal modo aderidas ao existente, que "todos os ra- mos da atividade humana estão como que capturados num círculo de magia simbólica", conforme palavras de Max Weber. Na trilha de Weber, Procopio vai apresentar como traços definidores do catolicismo tradicional o fato de fun- dar-se o comportamento religioso nos costumes e ser legitimado pela tradição, e a conseqüente "confusão entre os valo- res e normas da sociedade inclusiva e os propugnados pela coletividade religiosa" (ibidem, p. 7)

Já nas religiões racionalizadas de We- ber, as concepções e valores religiosos são afirmados "à parte", "acima", "fo-

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ra", "à frente", "no mais dentro". . . e a relação desta religião com a sociedade (já secular) passa de íntima a distante, de espontânea e tranqüila a problemática e tensionada. Ocorre portanto nessa muta- ção de tradicional a racionalizada um des- locamento importante na relação da cons- ciência religiosa com a sociedade: neste não identificar-se automaticamente com a sociedade, a religião é agora autocons- ciente (e, assim sendo, ganhou racionali- dade o agir religioso) ao mesmo tempo que consciente da relação que mantém com a ordem social. A partir desta mu- dança, qualquer que seja esta relação, vá no sentido da aceitação ou da recusa do realmente vigente, ela será tudo menos ingênua. Outro ganho em racionalidade. Vale lembrar que neste movimento de ruptura, de descolagem da religião em relação ao mundo presente, movimento que por sinal caracteriza o "desencanta- mento do mundo", está em curso um profundo distanciar-se entre o homem e o sagrado. Clifford Geertz, autor sempre lembrado por Procopio, dizia que "com este tremendo aumento de distância, por assim dizer, entre o homem e o sagrado, cresce a necessidade de se manterem os laços religiosos de maneira muito mais deliberada e crítica. À medida que o di- vino não pode mais ser capturado en pas- sant mediante incontáveis gestos rituais concretos, quase reflexos, é imperativo o estabelecimento de uma relação mais ge- ral e abrangente com o sobrenatural ( . . . ) para transpor (ou tentar transpor) o abismo enormemente alargado entre o profano e o sagrado, de um modo metódico, autoconsciente, explicitamente coerente" (Internal Conversion in Con- temporary Bali, p. 6). Este assumir conscientemente um determinado com- portamento religioso e, no mesmo mo- vimento, este distinguir-se em oposição à religião tradicional, é o que Procopio chamou de internalização. E assim como o tipo internalizado se recorta teorica- mente contra o tipo tradicional, assim o homem religioso internalizado se recorta efetivamente contra os valores de sua época. Diz Procopio: "Define-se como catolicismo internalizado: 1.°) o compor- tamento religioso e social orientado cons- cientemente por valores religiosos; 2.°) o que implica explicação racional dos va- lores, normas e papéis religiosos; 3.°) o que acarreta relativa diferenciação — e mesmo tensão — entre os valores reli- giosos conscientes e o sistema axiológico

predominante na sociedade inclusiva." A ocorrência (no caso brasileiro, a expan- são) de religiões internalizadas é, em si mesma, um acréscimo de racionalidade na órbita da cultura. A religião internali- zada "sói aparecer em sociedades em pro- cesso acentuado de mudança social, quando na controvérsia axiológica e normativa necessariamente emergente se reativa a consciência valorativa e refor- mula-se a constelação dos valores e co- nhecimentos religiosos" (Igreja e Desen- volvimento, pp. 7-8).

racionalização do agir religioso, que Procopio chama de internali- zação, conquista-se contra o tra- dicionalismo e contra os valores

dados. Neste sentido, mesmo as religiões mais densas de sacralidade podem ser portadoras de racionalidade, e por con- seguinte sintomas da modernização da sociedade onde surgem e se esparramam, desde que formas conscientes e voluntá- rias de adesão a um corpo de símbolos religiosos. Weberiano, Procopio vê a mudança religiosa como racionalização da ação religiosa, mais do que racionalização dos símbolos religiosos. Ao se autocon- ceber como distinta do mundo, não mais coextensiva à cultura dominante, a reli- gião internalizada fornece assim um pon- to de vista, um patamar outro a partir do qual a sociedade ou aspectos impor- tantes dela podem ser reavaliados, criti- cados e mesmo rejeitados. Isto é ruptura. Convivendo num ambiente intelectual predominantemente marxista ou pelo menos socialista, mas seguramente laico, que ainda concebia a consciência religio- sa (sobretudo a católica) como uma consciência conservadora, da ordem so- cial existente e para a ordem social exis- tente, quando não um epifenômeno fa- dado a desaparecer mais cedo ou mais tarde no rastro da secularização, Proco- pio chamava a atenção para a dimensão de crítica do existente contida nos pro- cessos de internalização religiosa. Dentro e fora do catolicismo. Ele esteve sempre atento às virtualidades das religiões in- ternalizadas de expressar ou mesmo de favorecer a transformação da sociedade. Nisto o ajudou não só sua formação we- berina, como também a leitura que cos- tumava fazer da famosa passagem de Marx, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, sobre a religião como ópio do povo. Eram freqüentes em suas aulas as

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discussões sobre as posições marxianas a esse respeito, e Procopio fazia ver que na Europa oitocentista de Marx as insti- tuições eclesiásticas, assim como de modo geral a consciência religiosa, eram ampla- mente comprometidas com a conserva- ção. E que, por isso, a cultura socialista e comunista se constituíra e se desenvol- vera em contraposição e em polêmica com a religião "apesar de Marx dizer que a crítica da religião já havia sido feita pelo século XVIII". Mas tentemos recu- perar a leitura que Procopio fazia da célebre passagem: A posição de Marx relativa à religião

é sabidamente crítica. E nem poderia ser de outro modo, dado o materialismo de sua construção teórica; mas, acrescentava Procopio, justamente por esta sua pecu- liar impostação materialista, que reco- menda que se considerem primeiro e sempre os determinantes históricos e es- truturais, sobretudo no caso dos fenô- menos de consciência, Marx viu a cons- ciência religiosa como expressiva de uma situação real. Claro, a fé religiosa supõe uma divindade, é crença num ser supe- rior aos homens, e neste sentido os com- prime e os santifica em sua fragilidade; é ópio que desestimula a vontade polí- tica de superar o status quo. Mas, ao mesmo tempo, é uma consciência que exprime nossa miséria real, as reais limi- tações que nos são postas por uma situa- ção histórica concreta. Aos olhos de Procopio, é aí que no pensamento de Marx se oferece a possibilidade de pen- sar positivamente a religião: esta não apenas exprime e legitima um mundo de dominadores e exploradores, mas expri- me também, com o conceito de Deus e os conceitos conexos de sua perfeição e de nossa perfectibilidade, o protesto da criatura oprimida contra a miséria real. A consciência religiosa, portanto, não funciona apenas como consciência que comprime o indivíduo em sua limitação e dependência de forças superiores, mas funciona também como consciência que mantém aberta ao indivíduo a perspecti- va de superar suas limitações e sua de- pendência. Neste sentido é uma consciên- cia de protesto, de crítica. De utopia. . . Para Procopio, uma leitura mais aten- ta e mais sensível dessa passagem de Marx ajudava a perceber na religião seu lado de consciência profética, aberta à superação do existente e mesmo do pos- sível, e por conseguinte dotada de um princípio de racionalidade inexaurível.

Quando, nas diversas religiões de um país, mesmo aquelas estabelecidas como igreja, aflora esta dimensão de perfecti- bilidade dos homens e do mundo dos homens, aflora no plano da ética (da cultura!) a afirmação de valores univer- salmente humanos: de justiça, de socia- bilidade radical, de solidariedade, de li- berdade individual, de libertação social e política. Quando a religião faz isto, quan- do separa e exalta em relação ao mundo existente valores humanos extremos, ela tende a suscitar motivações, expectativas e orientações no mínimo deslegitimadoras da sociedade vigente, e isto é importante. Isto é bom. E aqui, a travessia por Marx reconduzia nosso sociólogo a Weber: esta dimensão de crítica da ordem social não se exprime nas religiões de tipo tradi- cional, mas sim naquelas de tipo interna- lizado/racionalizado. "O processo de internalização religiosa, normalmente ine- rente à seita, pode também se desenvol- ver na igreja, como, por exemplo, na católica. Nas fases de mudança social mais intensa, a conscientização dos valo- res religiosos pode constituir uma opção ideológica e de orientação da vida. Pro- cessa-se, então, a internalização da reli- gião, a experiência de seus. valores e ensinamentos como algo de distinto da sociedade e especificamente ligado à co- letividade religiosa. Daí decorre certa ruptura e cisão no sistema valorativo e de conhecimentos (e em suas normas e papéis correspondentes), que anterior- mente amalgamavam de modo indistinto os objetivos da coletividade religiosa e os da sociedade inclusiva. Deixa de ocor- rer a identificação dos sistemas valorati- vos da sociedade e da religião; o grupo religioso torna-se consciente de seus va- lores específicos e neles funda uma críti- ca à sociedade" (ibidem, p. 29).

Esta concepção do que vem a ser re- ligião sedimenta-se na sociologia proco- piana exatamente pelo fato de, ao olhar para as religiões brasileiras, Procopio procurar a religião em mudança, chegan- do a desprezar, por assim dizer, aquilo que elas possam significar em termos de preservação cultural ou étnica, de conti- nuidade de identidades sócio-culturais. Definitivamente, ele não era um antro- pólogo da religião.

A obra de Procopio sobre as religiões é uma obra sobre a conversão religiosa. Sobre a escolha e sobre a deserção. Do catolicismo para religiões não católicas, do catolicismo para catolicismos. Inte-

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ressava-se ele principalmente por escolhas que atraem a muitos, alternativas "de alcance demográfico", como costumava dizer.

Ao enveredar pelas religiões de transe, religiões mediúnicas, que ele vai enfeixar no gradiente kardecista-umbandista, Pro- copio abandonou uma velha preocupação dos estudiosos dessas religiões no Brasil que o precederam: uma vez que o transe, como experiência religiosa, é controlado ritualmente, ele interessa apenas como uma das dimensões religiosas, conforme definidas por Charles Y. Glock, não se importando com aquilo que o transe tem ou pode ter de psicológico, exótico ou mesmo patológico. Seu foco sociológico privilegiará a doutrina que essas religiões são capazes de constituir e de inculcar, a influência moral que possam ter sobre a conduta de indivíduos e grupos em gran- de número. Na esteira de Glock, costu- mava dizer que a religião tem pelo menos cinco dimensões: ritual, experiência re- ligiosa, organização eclesiástica, doutrina e ética. Destas cinco, demorava-se parti- cularmente nas duas últimas. Isto lhe permitirá, muitas vezes, colocar lado a lado religiões intensamente sacralizadas e religiões de sacralidade bastante diluída.

A conversão a uma religião intensa- mente sacral não constitui simplesmente um mérito para a nova religião do con- verso, mas reflete sobretudo uma inca- pacidade da religião tradicional (no caso brasileiro: do catolicismo tradicional) que, ao se envolver num pacto seculari- zante com o saber moderno, esvazia-se de explicações que esse pacto promete mas não é capaz de cumprir inteiramen- te. Isto é, a ressacralização, visível à sociedade no crescimento das religiões mediúnicas e pentecostais, nada mais é do que conseqüência do colamento do catolicismo tradicional à secularização da sociedade. A adesão, consciente, a seitas marcadamente sacrais não é mais que a reposição de uma sacralidade de que o catolicismo abriu mão. É só quando o catolicismo refaz a utopia (e isto não de- pende da intensidade do sagrado!) apon- tando para uma outra sociedade, que ele é capaz de falar sobre a condição humana e suas carências, das quais, dirá Procopio, a mais importante em nossa sociedade é a econômica, mas não a única. Pensar o contrário seria dar à ciência um crédito que a experiência cotidiana não pode reiterar. O homem que se converte é um homem abandonado pela sua religião.

Mas antes terá sido abandonado pela ciência, pela psicanálise, pelas explicações racionais, pelos modelos institucionais incapazes, no limite, de fugir inteiramen- te à falência de sua presumida eficácia. Assim, as fronteiras da religião estão de- marcadas pelas fronteiras do mundo não sacral. E ao atuar neste mundo, a reli- gião não é mera crença, mas um comple- xo cultural variado, criativo, efervescente. Sua fragmentação e descontinuidade ori- ginais confluem para um verdadeiro tra- balho de bricolage tão bem representado pelas mais diversas formas de sincretismo religioso de que é pródigo o Brasil. De comum, há a procura de respostas a pro- blemas cotidianos de uma população em geral pobre, mas que não por serem co- tidianos deixam de ser "últimos", ulti- mate concerns, respostas ao sofrimento, à dor, à fragilidade da condição humana, à injustiça. . . aos "problemas de senti- do", enfim.

o estudar religiões como o karde- cismo, a umbanda, o pentecosta- lismo, Procopio mostrará como o surgimento delas corresponde a

um momento de aceleração do processo de mudança social das últimas décadas, mudança que é secularizante mas extre- mamente excludente, promissora mas frustrante, massificada, fragmentária, dis- sociativa. Numa de suas últimas palestras nos seminários que dirigia no CEBRAP às sextas-feiras, ele chamava a atenção para a peculiaridade de o Brasil poder contar com uma rica tradição religiosa de origem africana, capaz de fornecer re- cursos culturais para elaborações religio- sas doutrinariamente não constitutivas do pensamento ocidental (não perdendo de vista o longo e profundo processo de sin- cretismo que envolve o catolicismo com a filosofia laica e a ciência moderna). Não é por acaso que Procopio só foi se interessar pelo candomblé nestes últimos anos, a ponto de incluí-lo em seu último projeto de pesquisa. Para ele o candom- blé só ganha importância sociológica quando se põe em pé de igualdade com as demais religiões universais, ou seja, sem barreiras étnicas, geográficas ou con- tratuais. Quando muda, portanto.

A conversão religiosa nasce de uma ex- periência que está fora do sagrado. O in- divíduo vai ao médico e este não o cura, leva uma vida pautada por tudo aquilo que acredita dele se esperar e de repente

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vê escorregar por entre os dedos a segu- rança e a certeza de poder até mesmo prover-se materialmente e à sua família, persegue objetivos comezinhos e não os alcança, sofre perdas emocionais e en- frenta-se com a morte mas não é capaz de atinar com seu sentido. A religião supre aquilo que o mundo profano não dá. O catolicismo há muito se recusa a curar, preferindo entregar à ciência a competência de tratar dos males físicos e emocionais. E nesse momento, quando a medicina falha, a racionalidade econômi- ca frustra, a certeza dos propósitos rui, que as religiões de conversão se mostram como respostas. É no momento da crise existencial que a conversão se dá, quan- do se manifesta a cura, quando o proble- ma se resolve, quando a vida recupera sentido. E a religião se repõe como con- junto de símbolos capazes não somente de redefinir o mundo, mas sobretudo de transferir a eficácia da religião do exte- rior da pluralidade religiosa para o interior do próprio eu do converso. Quando a umbanda, o espiritismo, o pen- tecostalismo, o candomblé curam, supri- mindo o mal físico ou a loucura, aplai- nando a crise existencial, repondo a certeza na ação, ainda que a ciência possa constatar tal mudança, podendo até com- provar a eficácia terapêutica, não pode essa ciência interromper o sentido da ex- periência religiosa da cura. Estas religiões que curam são plurais e estão em cons- tante transformação, manipulando sím- bolos culturais de uma espantosa diver- sidade. E essa diversidade mais se alarga e se alastra quanto mais se ampliam as distâncias sociais, econômicas e culturais no interior da sociedade brasileira.

A medicina oficial não é capaz de apa- gar o efeito terapêutico dessas religiões, ainda que possa esconder sua pretensa onipotência no domínio dos fenômenos psicossomáticos. De novo, o demógrafo que foi Procopio insistirá em tratar essas práticas curativas como medicinas alter- nativas, situando a medida de sua eficá- cia curativa não na verificação experimen- tal, mas na vivência religiosa daquele que se julga curado — a cura não é um ato isolado, mas uma etapa da adesão capaz de alterar o sentido da própria doença, refazendo a explicação de sua etiologia, e oferecendo ao novo crente um novo conhecimento capaz de equipá-lo para enfrentar a adversidade através de um novo pacto com a divindade e, assim, de um nexo diverso com a sociedade global.

Ao estudar estas religiões não católi- cas, Procopio nelas enxergará coisas em comum com movimentos internalizados dentro do catolicismo. Nas comunidades eclesiais de base, como no pentecostalis- mo e na umbanda, vê incentivada a "for- mação de comunidades, surgindo em pequenos grupos relações fraternais, igua- litárias e voltadas para o auxílio mútuo". "A áspera determinação da sociedade", escreveu ele, "como que gera seu contrá- rio, a comunidade representada por di- ferentes e estreitos liames de relaciona- mento humano" (A Igreja do Povo, p. 50).

Para Procopio, a conversão religiosa é ruptura da norma. Ir para outra religião significa romper com a própria biografia. É ir ter pessoalmente com os guias do kardecismo, com o Espírito Santo do pentecostalismo, com os encantados da umbanda, com os orixás do candomblé, estabelecendo-se um contrato sagrado vo- luntário em que a resposta está de ime- diato posta no centro da relação com a divindade. Se a intimidade com o sagrado que há nessas religiões relativiza bastan- te a idéia de sobrenatural, muito marca- da na tradição católica, o catolicismo internalizado busca igualmente essa inti- midade. Não é de estranhar, por isso, o caráter democrático dessas formações re- ligiosas em oposição à rigída estrutura hierárquica do catolicismo-igreja.

Mas a religião é contraditória com a sociedade moderna. O capitalismo, que é a sociedade em que vivemos, não pre- cisa da religião. O mercado domina as relações entre os homens, o mundo cria oportunidades para que eles se realizem; a ciência dá explicações cognitivas e a arte supre suas necessidades profundas de expressão. Mas quando estas esferas falham, pode entrar a religião. Quando esse modelo tergiversa sobra a religião. E esse modelo, quando falha, transmuta as carências de modo que estas só podem ser atendidas como questões postas para a religião desembaraçar; não são mais problemas comuns, mas religiosos, de modo que a própria sociedade em sua constituição laica é capaz então de olhar a religião como domínio do faz-de-conta.

A solução religiosa para o problema da dor, segundo Procopio, não é questão mágica, meramente. Ela está plantada numa teodicéia que remete constante- mente à questão da justiça; as "questões de sentido", como as chamou Max We- ber, remetem para a esfera da ética, afi-

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nal. Ao definir ultimately a realidade, e portanto o eu, os símbolos religiosos pro- jetam um conjunto de "imagens-limite" (Robert Bellah, Religion and Progress in Modern Asia, p. 173) que indicam quais os tipos de ação possíveis e desejáveis. Não obstante pois a diversidade e com- plexidade do mundo numinoso de cada uma das religiões brasileiras, cada uma delas terá que dar conta, a seu modo, dos ultimate concerns (em inglês, como Procopio preferia). Para ele, a análise das "imagens-limite" propostas permiti- ria não somente hierarquizar as religiões em função de uma utopia de sociedade (significando entender seu potencial transformador, na política e na cultura) como também chegar aos diferentes ní- veis de ruptura que a diversidade social e cultural de uma sociedade como a bra- sileira impõe à condição humana como coleção desordenada de fracassos coti- dianos, mas também de possibilidades inesgotáveis. Decifrar a ordenação dessa ruptura na perspectiva de uma religião é entender o alcance do jogo que a religião (internalizada) joga com a sociedade em transformação. Nesse jogo, o mínimo que uma religião pode fazer é tornar a mu- dança tolerável e a vida menos insupor- tável.

Mas quando, na vida de uma socieda- de ou na cultura de um povo, a esfera dos valores se achata e adere ao "real- mente existente", ao meramente vigente, quando até mesmo o possível que se oferece é decepcionantemente pobre e rente, tacanho no horizonte que projeta, a consciência religiosa — com sua visão supramundo, extramundo, antimundo ou o que quer que seja — pode muito bem oferecer distância, altura e amplitude bastantes para desocultar aos mais sofri- dos, que são maioria, certas pistas que levam à descoberta do pouco valor (ou do não-valor) do realmente existente e mesmo do possível à vista.

Mesmo não levando em conta sua direção no leque das forças políticas, as mudanças que Procopio constata, registra e interpreta no panorama religioso do país a partir dos anos 50 continham em si mesmas, embutida, uma observação de ordem mais genérica: quanto mais racio- nal e consciente a escolha de um sistema de símbolos religiosos, quanto menos tra- dicional portanto a adesão a uma religião, maiores suas implicações favoráveis ao desenvolvimento e à inovação cultural. No limite, há em Procopio um juízo de

valor indisfarçável: quanto mais interna- lizada uma religião, melhor! E melhor porque conscientemente aceita, volunta- riamente abraçada. Esta espécie de cen- tralidade que ele confere à escolha cons- ciente, à responsabilidade individual em sua interpretação do papel das religiões num país em mudança, esta apologia do princípio voluntarista de organização re- ligiosa têm por trás de si a postulação óbvia do livre associacionismo como princípio de estruturação da sociedade civil e de criação cultural, e, portanto, a exigência do direito de livre associação e livre expressão como pilar de uma socie- dade democrática. Dito de outro ângulo, o corolário (não explicitado, mas flagran- te em seus aplausos incontidos às diver- sas formas de religião internalizada) desse associacionismo voluntário que Procopio defendia como o melhor cami- nho para o fortalecimento e a consolida- ção da democracia na sociedade brasilei- ra era a pré-figuração de que um dia a religião dominante no Brasil, a igreja católica, viesse a desempenhar seu im- portante papel cultural e político apenas e tão-somente na qualidade de uma asso- ciação voluntária no sentido estrito da palavra.

Trabalhos publicados

Além de inúmeros artigos, a obra de Procopio consiste dos seguintes livros e monografias:

Curso de formação social para menores aprendizes (editor e co-autor). São José dos Campos, Tecelagem Parahyba S.A. 3 vols. (mimeo), 1960. Kardecismo e umbanda: uma interpretação sociológica. São Paulo, Pioneira, 1961. Aspectos sociológicos del espiritismo en São Paulo. Fri- burgo (Suíça), ISS-FERES, 1961. Curso de educação social e cívica. São Paulo, Pioneira, 1963. O movimento de Natal. Louvain, ISS-FERES, 1968. L' action de l'Église Catholique dans le développement ru- ral du Nord-Est du Brésil: le mouvement de Natal. (Em colaboração com Oracy Nogueira), Louvain, ISS-FERES, 1968. Igreja e desenvolvimento. São Paulo, CEBRAP/Editora Brasileira de Ciências, 1971. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis, Vozes, 1973. As grandes religiões (editor). Série de 60 fascículos pre- parada para a Editora Abril, São Paulo, 1973-1975. São Paulo, 1975): crescimento e pobreza (editor em cola- boração). São Paulo, Loyola, 1976. A fecundidade em São Paulo: características demográficas, biológicas e sócio-econômicas (editor em colaboração). São Paulo, CEBRAP/Editora Brasileira de Ciências, 1977.

Antonio Flávio Pierucci. Sociólogo, professor do De- partamento de Ciências Sociais da USP, pesquisador do CEBRAP. Reginaldo Prandi. Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da USP.

Novos Estudos CEBRAP, São Paulo n.° 17 pp. 29-35, maio 87

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