20080626 Da Guerra Das Reliquias

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DA GUERRA DAS RELÍQUIAS AO QUINTO IMPÉRIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DA HISTÓRIA NO BRASIL 1 Manuela Carneiro da Cunha RESUMO O advento do Novo Mundo, com o Descobrimento da América, resulta num trabalho de dupla tradução. Primeiro, trata-se inserir o mundo novo no antigo, alocando-lhe um lugar que já lhe estava prefigurado na geografia, na história sagrada e no plano divino. O segundo movimen- to, inverso, visa imprimir o antigo no novo (a administração colonial, a imposição das línguas européias etc.). Este artigo analisa dois episódios exemplares desse processo no Brasil do século XVII, envolvendo os jesuítas Francisco Pinto e Antônio Vieira — respectivamente, uma guerra das relíquias que não houve e uma profecia que não se cumpriu. Palavras-chave: Brasil colonial; jesuítas; Francisco Pinto; Antônio Vieira. SUMMARY The advent of the New World, following the discovery of America, resulted in a labor of double translation. First, it was a matter of inserting the New World into the Old, ascribing it a place already ascertained in existing geographical knowledge, in sacred history and in the divine scheme of things. The second movement, in the opposite direction, sought to imprint the old on the new (through colonial administration, the imposition of European languages etc.). This article analyzes two episodes that illustrate this process in seventeenth-century Brazil, involving the Jesuits Francisco Pinto and Antônio Vieira: a war of relics that never happened and a prophecy that was not fulfilled. Keywords: Colonial Brazil; Jesuits; Francisco Pinto, S.J.; Antônio Vieira, S.J. Com o advento do Novo Mundo, há um trabalho de dupla tradução: trata-se primeiro de inserir esse mundo novo na memória, e portanto na topografia e nos eventos já conhecidos, perceber o novo nos quadros intelectuais do antigo. É o trabalho de um José d'Acosta, por exemplo. O Mundo Velho tem de ser capaz de assimilar o Novo, descobrir seu lugar prefigurado em sua geografia, na história sagrada e no plano divino, ou seja alocar-lhe o lugar que seria seu, desde o início dos tempos, e que lhe faltava apenas ocupar. Não se trata pois de uma "descoberta" no sentido contem- porâneo. O conhecimento do Novo Mundo é o prelúdio para algo mais fundamental: seu "reconhecimento". A segunda tradução opera no sentido inverso: em vez das chaves que traduzem o novo nos quadros de pensamento já conhecidos, ela imprime o antigo no novo e estabelece no presente, na colônia, os sinais tangíveis de nn (1) Este artigo foi elaborado para o Seminário intitulado "El Malestar de la Memória", orga- nizado por Manoel Gutierrez Estévez e realizado em Trujillo, Espanha, de 4 a 10 de Junho de 1995. Sua versão castelhana deverá ser publicada em breve. MARÇO DE 1996 73

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  • DA GUERRA DAS RELQUIAS AO QUINTO IMPRIO

    IMPORTAO E EXPORTAO DA HISTRIA NO BRASIL1

    Manuela Carneiro da Cunha

    RESUMO O advento do Novo Mundo, com o Descobrimento da Amrica, resulta num trabalho de dupla traduo. Primeiro, trata-se inserir o mundo novo no antigo, alocando-lhe um lugar que j lhe estava prefigurado na geografia, na histria sagrada e no plano divino. O segundo movimen-to, inverso, visa imprimir o antigo no novo (a administrao colonial, a imposio das lnguas europias etc.). Este artigo analisa dois episdios exemplares desse processo no Brasil do sculo XVII, envolvendo os jesutas Francisco Pinto e Antnio Vieira respectivamente, uma guerra das relquias que no houve e uma profecia que no se cumpriu. Palavras-chave: Brasil colonial; jesutas; Francisco Pinto; Antnio Vieira.

    SUMMARY The advent of the New World, following the discovery of America, resulted in a labor of double translation. First, it was a matter of inserting the New World into the Old, ascribing it a place already ascertained in existing geographical knowledge, in sacred history and in the divine scheme of things. The second movement, in the opposite direction, sought to imprint the old on the new (through colonial administration, the imposition of European languages etc.). This article analyzes two episodes that illustrate this process in seventeenth-century Brazil, involving the Jesuits Francisco Pinto and Antnio Vieira: a war of relics that never happened and a prophecy that was not fulfilled. Keywords: Colonial Brazil; Jesuits; Francisco Pinto, S.J.; Antnio Vieira, S.J.

    Com o advento do Novo Mundo, h um trabalho de dupla traduo: trata-se primeiro de inserir esse mundo novo na memria, e portanto na topografia e nos eventos j conhecidos, perceber o novo nos quadros intelectuais do antigo. o trabalho de um Jos d'Acosta, por exemplo. O Mundo Velho tem de ser capaz de assimilar o Novo, descobrir seu lugar prefigurado em sua geografia, na histria sagrada e no plano divino, ou seja alocar-lhe o lugar que seria seu, desde o incio dos tempos, e que lhe faltava apenas ocupar. No se trata pois de uma "descoberta" no sentido contem-porneo. O conhecimento do Novo Mundo o preldio para algo mais fundamental: seu "reconhecimento".

    A segunda traduo opera no sentido inverso: em vez das chaves que traduzem o novo nos quadros de pensamento j conhecidos, ela imprime o antigo no novo e estabelece no presente, na colnia, os sinais tangveis de nn

    (1) Este artigo foi elaborado para o Seminrio intitulado "El Malestar de la Memria", orga-nizado por Manoel Gutierrez Estvez e realizado em Trujillo, Espanha, de 4 a 10 de Junho de 1995. Sua verso castelhana dever ser publicada em breve.

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    ligao de um mundo com o outro. A empresa levada a cabo em paralelo pelo poder temporal e pelo poder espiritual: a administrao colonial, a imposio da lngua portuguesa, a reivindicao de ttulos jurdicos vlidos no mundo antigo cuja transposio para o mundo novo validada (a guerra justa, o domnio da terra...) so parte do processo. Trata-se de tecer os fios de uma memria local que se ate, que se ligue, ao mundo velho, e que se reconhea nessa ligao.

    Assim, o mundo antigo tem de reconhecer o novo, mas o novo mundo tem por sua vez de se reconhecer no antigo.

    Tratarei aqui deste duplo aspecto atravs de dois episdios a meu ver paradigmticos uma guerra das relquias que no houve e uma profecia que no se cumpriu e de dois jesutas seiscentistas que me so desigualmente caros: Francisco Pinto e o grande, incomparvel, Antnio Vieira.

    A disputa das relquias

    Em 1618, os ossos de um jesuta por pouco no desencadearam uma guerra indgena no Cear. Tinham dez anos os ossos, e haviam sustentado o corpo j velho do padre Francisco Pinto.

    Eis a crnica, encontrada ao acaso de uma pesquisa na Biblioteca Nacional de Lisboa, na carta de um padre da Companhia: nesse ano de 1618, um jesuta passou pelo Cear a caminho do Maranho. Aos ndios que encontrou e que lhe faziam grandes festas, pediu que lhe entregassem um osso do pe. Francisco Pinto, para lev-lo como relquia ao Colgio da Bahia. Os ndios no consentiram e ameaaram pegar em armas para defender os ossos do pe. Francisco Pinto, que lhes traziam a chuva e o sol, cada um a seu tempo, virtude particularmente preciosa no Cear que sujeito a prolongadas secas. E se faltasse chuva ou sol, iam os ndios aos ossos e diziam "Pai Pinto, dai-nos gua, ou dai-nos sol, conforme a sua necessidade" e, continua o narrador, "Deus Nosso Senhor para honrar o seu servo lhe concede tudo medida de seu desejo" (Biblioteca Nacional de Lisboa, mss. 29, n 31, fol. 3).

    "Ainda que me fora fcil com duas companhias de arcabuzeiros", prossegue o jesuta, "tir-lo fora, tive por melhor deix-los gozar daqueles tesouros com que Deus os enriquecia... No desisti contudo por outro meio mais eficaz procurar algumas relquias daquele sagrado corpo e pedi ao vigrio de uma fortaleza, o qual estava de caminho para Pernambuco que de noite fosse ermida onde estava o corpo num caxo enterrado, e desenterrando-o, tomasse alguns ossos e os levasse ao Colgio de Pernam-buco porque lhe no poderia levar pedras preciosas de mais estima" (Biblioteca Nacional de Lisboa, mss. 29, n 31, fol. 3). Em poucas palavras, o que o jesuta fez foi pedir ao vigrio que roubasse os ossos. Os ndios, no entanto, prevendo o que poderia acontecer, j haviam desenterrado e nnnnnnn

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    escondido o corpo em lugar mais seguro. Mas ao saberem da tentativa do vigrio, pegaram em armas para persegui-lo, e tendo-o alcanado aps vrios dias de viagem, revistaram-no escrupulosamente, a ele e sua escolta, para verificar se no levavam algum osso roubado do padre Francisco Pinto.

    Francisco Pinto havia sido morto a bordunadas pelos tocarijus, ndios tapuias, e desde ento tido por mrtir. Aoriano de Angra, havia entrado na Companhia de Jesus aos dezessete anos, na Bahia. Conta o hagigrafo que seu martrio lhe havia sido profetizado pelo padre Anchieta. Estando desenganado para morrer, e j tendo recebido a extrema-uno, Anchieta teria entrado na enfermaria e mandado que se vestisse: sua hora no era chegada. Restavam-lhe muitas converses a fazer e o martrio ao final. Francisco Pinto foi, com o padre Figueira, um dos dois primeiros jesutas a chegar ao Cear, em 1607. Instalaram-se os padres na serra de Ibiapaba, entre os remanescentes dos tabajaras, que haviam sido dizimados uns trs anos antes pela expedio de Pero Coelho. Fizeram aliana com certo morubixaba, chamado "Diabo Grande" (Jurupariguau). Mas os tapuias tocarijus (provavelmente de lingua g ou macro-g), talvez instigados pelos franceses do Maranho, investiram contra a aldeia e trucidaram o padre Pinto2 (Baro de Studart, 1903, 1916 e 1917). O padre Figueira, que escapou, levou o tacape de juc, instrumento do martrio de Francisco Pinto, para o Colgio da Bahia, onde essa relquia era tida em grande venerao (Serafim Leite. Histria da Companhia de Jesus no Brasil, vol. 3, pp. 11 ss.).

    Importante salientar que, segundo seu cronista, Francisco Pinto tinha j em vida os preciosos poderes que seus ossos conservaram, os de fazer chover. Por isso teria sido alcunhado Amanijara, "senhor da chuva" (Baro de Studart, 1903).

    Relquias

    As relquias tm diretamente a ver com a implantao da memria no Brasil, e isso de duas maneiras: como sinais do enxerto do Velho Mundo sobre o Novo, mas tambm como sinais do enraizamento da f.

    Difcil tomar posse da terra3. Os portugueses so lavradores e os sinais da posse tambm so de camponeses, pedras com a marca do dono: os "padres" que so corruptela de "pedres". Igualmente agrcolas so os termos dos missionrios. A Cruz, marcada com armas de Portugal, o equivalente da pedra, com uma diferena: a pedra assinala poderio, a Cruz, que lenho, tem de se enraizar, conforme a iconografia da poca s vezes ilustra. Como o galho de so Jos que floresceu, nico entre os pretendentes da Virgem, a Cruz transplantada tem de tomar vida no Novo Mundo. Para tanto, necessrio reg-la e a rega por excelncia o sangue dos mrtires: falta destes ou como seu complemento, relquias do Velho Mundo.

    (2) Studart. "Documentos rela-tivos ao mestre de Campo Mo-raes Navarro" (extermnio dos Paiacu, excomunho e priso de Moraes Navarro em Per-nambuco, 1700). Revista do Ins-tituto do Cear t. 30, pp. 350-64, 1916 e t. 31, pp. 161-223, 1917. Idem, "Relao do Mara-nho de Lus Figueira". Revista do Instituto do Cear, t.17, pp. 98 ss., 1903.

    (3) Sobre este tema, ver o im-portante trabalho de Pat Seed (1992).

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    Como fizeram com as espcies naturais, os portugueses tambm transplantaram, de um lado ao outro do oceano, as relquias dos santos. Os termos agrcolas que aqui uso so os da poca: a catequese era um cultivo, que se iniciava seja com a semeadura seja com o transplante. Fincava-se na terra a Cruz e semeava-se a Palavra. Inspirado talvez na parbola do Semeador, o uso desse vocabulrio de cultivadores ultrapassava o da Escritura: at as travessias martimas eram para citarmos termos de Jos d'Acosta uma forma de arar os mares, j que arar era a forma privilegiada de domesticar a natureza. Os portugueses so lavradores mesmo em alto-mar e suas metforas so camponesas. A domesticao do Novo Mundo passava portanto por esse cultivo espiritual e os missionrios eram seus horteles.

    A cruz a planta, (trans)plantada. A palavra a semente, o sangue dos mrtires a rega. Por isso os jesutas tanto almejam por mrtires: no por uma questo de realizao pessoal motivo escuso que no se admite que Nbrega ou Anchieta anseiam pelo martrio, mas para que floresa enfim a f entre os brasis. Mas os mrtires so raros, ou melhor, os candidatos no so facilmente reconhecidos4. Os irmos coadjutores Pero Correia e Joo de Souza foram mortos pelos carijs em 1554 e os dois ndios que os acompanhavam foram devorados. Por que no foram considerados mrtires? Na realidade, foram-no por um curto perodo (e Anchieta no tem dvidas quanto ao mrito), mas a unio de Portugal e da Espanha veio pr obstculos polticos a seu reconhecimento, j que o instigador das mortes dos dois irmos havia sido um espanhol. Essa pelo menos a interpretao muito plausvel de Serafim Leite (1938-1950, vol. II, pp. 241-2). Os primeiros a serem oficialmente "martirizados" parecem ter sido os jesutas que, em 1570, a caminho do Brasil, so atacados e mortos por corsrios franceses no mar das Canrias; no ano seguinte, mais alguns jesutas so mortos tambm por protestantes franceses e ingleses em pleno oceano Atlntico. Desta vez, a condio de hereges dos corsrios atacantes no se prestava a discusses. As quarenta vtimas de 1570, encabeadas por Incio de Azevedo, foram beatificadas e proclamadas Padroeiros do Brasil embora ainda no tivessem c pisado, e razes burocrticas apenas explicam que o processo de Pedro Dias e de seus companheiros mortos no ano seguinte at hoje aguarde providncias (ibidem, pp. 264 ss.). Com aprovao romana, a festa dos quarenta mrtires comeou a ser celebrada no Brasil a 15 de julho de 1574, quatro anos precisamente aps o primeiro desastre. Reconhecido ou no, o padre Pero Dias recebeu as mesmas honras. Anchieta comps at um auto (no se sabe se em 1575 ou em 1592, se em So Vicente ou em Salvador), por ocasio da entronizao da esttua do padre Pero Dias Mrtir em uma igreja (Anchieta, 1977, pp. 17, 193 ss.), e provavel que a ilha de So Pedro, em Sergipe, territrio dos ndios xoc, tenha sido colocada sob a proteo desse "santo" (Serafim Leite, 1938-1950, vol. II, p. 266). Significativamente, em uma carta que comenta o seu martrio, vemos escrito: "e, assim como o Brasil mundo novo, provncia nova, cristandade nova; assim tambm Deus Nosso Senhor quis nele fundar sua Igreja com lhe dar novos santos, e novos nn

    (4) Como se ver adiante, Si-mo de Vasconcellos elabora uma lista de 64 "insignes e virtuosos jesutas", alguns dos quais sobressaem como candi-datos santidade, mas no des-taca os primeiros mrtires. Do padre Francisco Pires diz sim-plesmente: "Varo esforado e conhecido em toda a Provncia [do Brasil] e to venerado dos ndios da Capitania do Cear, em cujo Serto a mos dos gentios Tapuias deu a vida em uma gloriosa Misso de Obedi-ncia" (Simo de Vasconcellos, 1658, p. 19).

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    padroeiros nos cus. Pelo qual, com muita razo podemos esperar que a Igreja de Deus naquelas partes vir a ser mui florente, e mui acrescentada e dar frutos de bno, pois vemos que est prantada com sangue de tantos e to grandes servos de Deus" (Carta do Colgio de Santo Anto a Nosso Padre, Monumenta Brasiliae 15, pp. 213-4, apud Serafim Leite, 1938-1950, vol. II, p. 265). Novamente a linguagem de cultivadores.

    Na realidade, e apesar desses mrtires locais, a dcada de 1570 parece encerrar um ciclo de expectativas em torno de santos locais. J em 1575 tem incio uma intensa exportao de relquias de Portugal para o Brasil, organizada pelos jesutas. Pelos dados de que disponho atualmente, a mais antiga meno a tais relquias refere-se a duas cabeas das Onze Mil Virgens, companheiras de santa rsula. Mandou-as de Lisboa o geral da Companhia de Jesus, Francisco de Borja, ao provincial padre Ignacio de Toloza. Chegaram a Salvador numa quinta-feira, dia de Corpus Christi, 2 de junho de 1575, a bordo do galeo So Lucas, e, aps muitos regozijos pblicos, foram distribudas pela Bahia afora5. Data de 1577 a chegada de outra cabea de mesma origem, desta vez a So Vicente, e um auto de Anchieta celebra o acontecimento (Anchieta, 1977, p. 18). Outros autos se sucedem sobre a mesma temtica, que so adaptados do original, em 1581, 1583 (data em que o visitador padre Cristvo de Gouveia teria trazido mais uma cabea das Onze Mil Virgens) e 1584 na Bahia. Finalmente, possivelmente em 1585, Anchieta compe o auto de santa rsula "Quando no Esprito Santo se recebeu uma relquia das Onze Mil Virgens". Neste auto, no se sabe se de 1585 ou, mais provavelmente, de 1595 (ibidem, p. 277), por ocasio da chegada dessa relquia incrustada em uma coluneta de prata, Anchieta (ibidem, pp. 90, 276 ss.) pe em cena santa rsula sendo recebida por dois santos cujas relquias j se encontravam na igreja de Vitria, so Maurcio e so Vital, mrtires da Legio Tebana (Serafim Leite, 1918-1950, vol. 1, p. 222). Havia portanto em Vitria do Esprito Santo, na igreja de So Tiago, relquias anteriores voga das Onze Mil Virgens6. Em 1595, outro auto de Anchieta composto em Vitria celebra a cabea de so Maurcio que era invocada contra as secas e as epidemias (Anchieta, 1977, pp. 285 ss.).

    Quando o padre Cristvo de Gouvea procede visita da provncia do Brasil, em 1583, assiste-se a uma distribuio geral de relquias a par-ticulares e a vrias cidades: aos moradores e aos estudantes o visitador distribua relquias, relicrios, alm de Agnus Dei, imagens e contas bentas; aos ndios, vernicas e nminas (F. Cardim, 1980, pp. 143, l6l). Para as cidades, as relquias eram mais importantes: o visitador havia trazido para o Rio de Janeiro uma relquia de so Sebastio engastada em um brao de prata (ibidem, p. 169) e para a Bahia a terceira cabea das Onze Mil Virgens, "com outras relquias engastadas em um meio corpo de prata, pea rica e bem acabada" (ibidem, p. 143). Como de praxe, encenou-se um auto, em que as duas outras virgens cujas cabeas j estavam na S da Bahia, alm do estudante que representava a prpria S, acolhiam a nova virgem. Um outro ator representando a Cidade entregou nova santa as chaves da Bahia de Todos os Santos.

    (5) Certido de 18 de Dezem-bro de 1719 passada pelo Pa-dre Jozeph Bernardino, Reitor do Colgio de Jesus da Bahia respectivamente a terem se ali recebido as cabeas das onze mil virgens em 1575, manda-das pelo Geral de sua Ordem (Biblioteca da Ajuda, Cota 54-XIII-4 n.76, antigo n.21 do Ca-tlogo de Carlos Alberto Ferrei-ra).

    (6) Na Bahia, havia uma Con-fraria das Onze Mil Virgens, composta por estudantes do Colgio dos Jesutas, que eram encarregados da festa que as celebrava (Cardim, 1980, p. 165).

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    Por essa poca, eram j tantas as relquias na S da Bahia (que incluam um Santo Lenho engastado em uma Cruz de prata, alem, doada pela rainha da Espanha) que, para que ficassem mais bem-acomodadas, o visitador mandou fazer dezesseis armrios de jacarand, forrados de cetim carmesim (F. Cardim, 1980, p. 169).

    Finalmente, no sculo XVII, comeam a aparecer relquias de santos da prpria Companhia de Jesus, particularmente de santo Incio e de so Francisco Xavier7.

    Relquias e a geografia espiritual

    A devoo crist s relquias dos mrtires e mais tarde dos confessores surgiu no Oriente mas prosperou no Ocidente. Costuma-se atribuir o contraste entre a preeminncia do culto dos cones e do das relquias, caractersticos respectivamente do leste e do oeste da cristandade, a uma maior rusticidade do Ocidente (Herrmann-Mascard, 1975, pp. 18-9). Mas se verdade que a tenso entre correntes pr-icnicas e antiicnicas endmica em toda a histria do Cristianismo Antigo (Kitzinger, 1954, p. 85), poder-se-ia perceber essa mesma tenso entre relquias e imagens manifesta na alternncia de sua popularidade.

    Os medievalistas e historiadores do direito da Igreja parecem concor-dar na periodizao do direito costumeiro relativo s relquias na Igreja do Ocidente, que se distancia progressivamente do Direito Romano. Este assegura a inviolabilidade das sepulturas, desde que a inumao tenha sido feita em carter definitivo (Herrmann-Mascard, 1975, p. 27); e o mesmo preceito da intangibilidade dos corpos santos continuar oficialmente em vigncia, tanto no Oriente quanto no Ocidente, desde aps a queda do Imprio Romano at por volta da metade do sculo VII (ibidem, p. 33). Os restos dos mrtires e confessores devem portanto ser honrados no prprio lugar de sua sepultura. Abrem-se algumas excees, por exemplo para aqueles santos que morreram no exlio e que poderiam legitimamente ser retornados ao seu lugar de origem ou ento em casos de risco de profanao (ibidem, pp. 35-6). A translao de corpos comea a ser praticada, embora em carter de excepcionalidade, no sculo IV, enquanto a interdio de fragmentar os corpos santos parece ser observada com maior rigor. Nada impede porm que se receba com alegria um fragmento cuja responsabili-dade incumbe a outrem (ibidem pp. 39-40). As relquias reais, ou seja objetos ou roupas que tivessem pertencido ao santo, e as relquias representativas (brandea, pignora etc.) derivadas de um contato de um objeto com o corpo morto (tecidos, flores, lquidos, principalmente leos, usados em contato com o cadver ou os ossos) (ibidem, pp. 45-8) constituem um modo usual de difuso da potentia do santo.

    A partir da metade do sculo VII, e sobretudo nos sculos VIII e IX, as translaes dos corpos dos santos entram nos costumes, mas as fragmenta- nn

    (7) Duas esttuas relicrios en-contram-se por exemplo no Museu de Arte Sacra de So Lus do Maranho.

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    es dos corpos s se tornaro prtica corrente aps o sculo IX. Concomi-tantemente, as relquias representativas vo perdendo importncia (ibidem, pp. 49-70).

    Os corpos dos santos, como se sabe, eram frequentemente tidos por incorruptveis. Mas a partir de sculo IX, a sede de relquias do Ocidente realiza o que a morte no havia logrado fazer, e desmembra-se o corpo do santo, real ou suposto, espalhando-o por toda a cristandade. Peter Brown chama a ateno para o contraste entre a centralizao dos lugares sagrados e relquias islmicas e a descentralizao que a difuso das relquias crists realiza (Brown, 1981, p. 90), ligando esse padro s relaes de amicitia e solidariedade entre as elites crists do final do Imprio Romano (ibidem, pp. 94-5). As relquias seguiriam assim nessa poca as rotas das relaes sociais das elites, e o mesmo padro parece perdurar at a primeira metade do sculo IX (Michalowski, 1981, p. 410).

    Durante vrios sculos, a cristandade do Ocidente ir coincidir com os limites do antigo Imprio Romano, tanto na Europa quanto na frica do Norte. aparentemente quando a expanso do Imprio dos Francos transborda dessas antigas fronteiras e alarga a cristandade que as relquias se tornam verdadeiramente mveis e fragmentveis, e desenham uma nova "geografia espiritual" (o termo de Patrick Geary, 1984, pp. 268, 2708) Seja como for, ao cabo do processo, toda a cristandade estava mapeada por relquias. O reverso do desmembramento dos corpos dos santos era precisamente a unidade virtual que eles expressavam atravs dessa imensa rede de fragmentos de ossos e gotas de sangue, cujos elos eram os caminhos das peregrinaes e que cobria todo o territrio cristo. Era nesses termos que, no final do sculo IV, o bispo de Ruo, Victricius, chamava a ateno para a juno misteriosa que unia em uma unidade imensa e invisvel os stios de culto de todo o Mediterrneo (Victricius de Rouen, De laude sanctorum 1, P/L 20.443B; apud Brown, 1981, p. 96). A praesentia atribuda ao santo atravs de sua relquia presentificava tambm a totalidade da Igreja em cada um desses territrios longnquos.

    Patrick Geary (1984, p. 270) fornece elementos para se pensar que o perodo subsequente quarta Cruzada, que inflacionou com o saque de Constantinopla (em 1204) a oferta de relquias muito antigas e prestigiosas, foi tambm um perodo de centralizao ou de globalizao: santos "universais", mais conhecidos e em menor nmero, cujas relquias estavam agora desmembradas por toda a Europa, passam, nos sculos XII e XIII, a dominar os santos locais. Mas na mesma poca, as imagens associadas ao culto da Virgem, sobretudo na Europa meridional, comeam a competir com sucesso com o culto das relquias (Geary, 1984, p. 270; Christian, 1981, p. 13). Seria de se perguntar se essa hiperdulia que o culto marial em relao ao culto de dulia dos santos (Herrmann-Mascard, 1975) bem como o culto do Cristo Crucificado nos sculos XVII e XVIII no estariam ligados crescente centralizao da Europa.

    A questo da relao entre imagens milagrosas e relquias, que ecoa as diferenas entre a Igreja do Oriente, com seu culto dos cones, e a Igreja nnnn

    (8) Para idias semelhantes vide P. Brown, 1981; e A. Lass, 1987 pp. 96-7, que escreve: "Assim, a cristandade conquistou a Eu-ropa, a sia Menor e o Norte da frica por meio da dissemina-o de milhares de pequenos fragmentos do corpo de Cristo e dos santos".

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    do Ocidente, reaparece pois nos sculos XII e XIII de forma surpreendente9. Conforme sugere W. Christian (1981, pp. 20-1), s relquias tornadas completamente mveis e desterritorializadas se opem as imagens milagro-sas que insistem em ser cultuadas no lugar em que foram encontradas. Histrias abundam na Espanha central e na Catalunha de esttuas achadas que no consentem em ser transportadas para a cidade e retornam milagrosamente ao lugar de sua descoberta. Na costa cantbrica e nas Astrias, so os materiais de construo do santurio que voltam ao seu lugar original (ibidem pp. 13, 20-1). Histrias semelhantes, relativas averso dos santos a qualquer translao de seus corpos e a milagrosas voltas aos seus tmulos de origem, datam de uns oito sculos antes. como se a tenso entre a universalidade da Igreja e a importncia do nvel local tivesse encontrado novas formas de expresso: desta vez, so as imagens milagrosas, eminentemente enraizadas e resistentes a qualquer desloca-mento, que encarnam os valores locais, tomando assim o lugar dos antigos santos puramente regionais, esquecidos. A Virgem de Monserrate realiza essa sntese entre a generalidade de ser a me de Deus e a peculiaridade de estar arraigada a um lugar especfico e insubstituvel, de tal forma que o culto que lhe endereado, ao mesmo tempo que diviniza o local, tambm localiza o divino. Tal como os antigos cones, a janela para o outro mundo ancora o outro mundo neste.

    E possvel pensar-se que, com os descobrimentos, as relquias teriam readquirido o status que tinham no momento da expanso da cristandade para alm das fronteiras do antigo Imprio Romano. A Companhia de Jesus parece ter tido, alis, uma coleo importante de relquias: tanto a igreja do Ges em Roma quanto a igreja de So Roque em Lisboa transbordam de relquias. Na primeira, talvez predominem as dos santos da Companhia. Mas nesta ltima, claramente, santos e santas antigos espalham-se pelos relic-rios, os dos homens esquerda do altar-mor e os das mulheres direita: at entre relquias, o decoro importante. A importao para o Brasil das cabeas das companheiras de santa rsula insere-se nesta geografia espiri-tual, ultramarina desta vez: cabeas de santas que so tambm cabeas de ponte entre uma metrpole religiosa e seus novos domnios.

    O que estou sugerindo que os descobrimentos reatualizam a corrente metonmica da representao do sagrado e pem em nova voga as relquias, se bem que, como veremos, no por toda a Amrica. No seria incongruente se pensar nas pegadas atribudas a so Tom que o padre Nbrega confirmou estarem inscritas numa pedra do Brasil10 como uma relquia dita "secundria", do mesmo tipo daquela impresso de Seu torso e Suas mos que Cristo teria deixado na coluna da flagelao (Kitzinger, 1954, p. 104). As pegadas de so Tom, que incontestavelmente so marcas de posse do Novo Mundo pela Igreja e podem ser postas em paralelo (e contraste) com os padres rgios, operam assim na lgica das relquias, e no na lgica das imagens.

    Salta aos olhos o contraste com o Mxico: l so as imagens milagrosas e santas que so implantadas, desde a Virgem de Guadalupe suposta- nnnnn

    (9) E. Kitzinger (1954, p. 119 et passim), analisando o perodo ps-justiniano e pr-iconocls-tico da Igreja dos sculos VI e VII, chama a ateno para o paralelismo pelo menos de fun-es entre relquias e imagens e para o fato de que, no Orien-te, o culto das relquias abriu caminho para o culto das ima-gens, que s se emancipou completamente do primeiro no sculo VII.

    (10) Para detalhes e fontes, vide Carneiro da Cunha, no prelo.

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    mente trazida por Corts mas reinventada pela sua apario a Juan Diego por volta de 1530 em um tecido indgena, e tornada protetora dos ndios e "mestizos" at as vrias outras Virgens que parecem se substituir s divindades dos diversos povos mexicanos (Turner e Turner, 1978, pp. 40-103). Embora os jesutas ponham frequentemente suas aldeias sob a invocao da Virgem, no h registro no Brasil colonial de Virgens milagrosas. tentador se ver uma correlao entre tais Virgens e os velhos Imprios pr-hispnicos, com sua centralizao poltica, e as peregrinaes do Mxico e dos Andes (onde os Cristos Crucificados so at mais numerosos que as Virgens) poderiam corroborar esta hiptese (Turner e Turner, 1978; Sallnow, 1991). Nas baixas terras da Amrica do Sul, entre povos carentes de f, de lei e de rei, as imagens talvez no tivessem onde assentar-se.

    Relquias e memria

    De certa forma, as relquias so veculos de transporte de lugares. No so lugares, mas aludem diretamente a lugares, o lugar do martrio, no caso de mrtires, o lugar da morte, de forma geral. So mapas de enraizamento da f. So tambm imagens vividas, geralmente assinaladas pelos instru-mentos ou pelos rgos do martrio: so Pedro Claver aparece com uma espada na cabea, so Brs com a prpria cabea debaixo do brao, so Loureno com a grelha, santa Luzia e santa gata com os olhos ou os seios, respectivmente, em um prato, so Sebastio crivado de flechas, so Romo de Antioquia com sua lngua cortada. So enfim sinais durveis e tangveis: ossos ou instrumentos de suplcios, com a vantagem suplementar de serem mveis ou at semoventes, como nos casos de translatio em que os santos decidem mudar de cidade por conta prpria.

    Prestam-se assim de forma privilegiada a ser suportes de memria: a arte da memria, desde a sua suposta inveno atribuda a Simonides de Ceos, baseia-se com efeito na ligao mental de lugares (topoi, loci) com imagens. De preferncia, conforme o Ad Herennium (sec. I a. C.), a principal fonte sobre o assunto na antiguidade, imagens impressionantes, que se imprimam na imaginao (Yates, 1966).

    O transporte de relquias do Antigo ao Novo Mundo significa assim um translado de um espao para outro, a implantao de uma memria, atravs de seus sinais tangveis. Enquanto seus veculos privilegiados, as relquias recriariam e imprimiriam a memria do Mundo Antigo no Mundo Novo. Ora, a memria cria identidade11: a toponmia real estabelece na colnia um fio que a liga metrpole e assegura-lhe uma identidade portuguesa. As relquias jesutas criam uma memria alternativa na colnia, que estabelece uma identidade crist. Porque sua topografia essencial a dos santos, das relquias e dos lugares do mundo antigo aos quais eles aludem, os jesutas parecem sentir-se dispensados de batizar com nomes portugueses os nnnnnnnn

    (11) A identidade enquanto fun-damentada na memria tema de muitos autores, entre os quais s mencionarei aqui uma passagem de Marcel Proust em Sodoma e Gomorra II (1921-22) que responde implicita-mente a Bergson. Ver tambm, sobre memria e identidade, Carneiro da Cunha, 1995.

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    lugares do Brasil e Maranho. Essa uma das censuras que o rancoroso mas perspicaz marqus de Pombal lhes far ao expuls-los em 1759. Suas primeiras medidas aps a expulso consistem, alis, em renomear com nomes de cidades portuguesas as aldeias indgenas: quando nascem Santarm, Soure, Olivena... A partir do final do sculo XVII12, com efeito, afastada a ameaa de outras potncias europias sobre o Brasil, os jesutas se tornaram concorrentes diretos da Coroa.

    Furta Sacra

    Voltemos aos ossos do padre Francisco Pinto. Alguns temas, s em aparncia exticos, figuram em sua crnica. O primeiro o do seu roubo, planejado pelo vigrio.

    O roubo de relquias, que aparece pelo menos em inteno, seno em ao, no episdio do padre Francisco Pinto, na realidade um tema clssico: roubar relquias era tido como um dentre os modos legtimos de adquiri-las, e os venezianos, por sinal, parecem ter sido os especialistas nesse modo (Herrmann-Mascard, 1975, pp. 368 ss.). Laudabile furtum, furtum sacrum, este modo singular de transmisso da cadeia dominial repousava frequen-temente sobre o princpio moral de que o santo cujo corpo ou fragmento de corpo era roubado consentia na sua translao. O prprio sucesso do roubo era prova desse consentimento, que Patrick Geary associa com razo ao casamento por rapto (Geary, 1984; idem, 1993, pp. 166 ss.).

    O segundo tema, que irei apenas mencionar aqui, o da disputa entre ndios e jesutas pelas relquias do padre. No existe nenhuma indicao de qualquer interesse, no que convencionalmente se pode chamar a "cultura tupi", pelos ossos ou qualquer outro resto de corpo. O rastro tupi se inscreve no corpo dos inimigos13: literalmente no corpo do matador que se ornamenta de tatuagens que o fazem semelhante, diz o cronista, ao couro de Crdoba e no estmago dos que o devoram. Memria inscrita portanto no que h de mais transitrio, o corpo, ela feita para ser transmitida pela carne, no pelos ossos (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985).

    Converso indgena e agncia: os homens-deuses

    O que foi dito antes sobre o desinteresse tupi por ossos indicaria que o apego dos ndios pelos ossos do padre Pinto, a ponto de enfrentarem e arrazoa-rem a tropa do vigrio que os poderia estar roubando, deve ser entendido em outro registro. Ilustra em um modo menor uma das caractersticas importantes da converso dos ndios: sua busca de agncia na nova religio.

    Os ndios aderiam sem dificuldades ao discurso cristo, mas sua adeso era, por assim dizer, excessiva: frequentemente, entendiam encar- nnn

    (12) No primeiro sculo e meio, enquanto perduram as rivali-dades europias sobre o dom-nio do Brasil, os religiosos nada tm de transnacional. Os jesu-tas portugueses e espanhis se dividem, os capuchinhos fran-ceses caluniam os jesutas no Maranho.

    (13) Sobre este tema, veja-se por exemplo, Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985.

    (14) Vide Viveiros de Castro, 1993.

    (15) Sobre as datas de elabora- o da Histria do futuro, vide Cantel, 1964.

    (16) Vemos aqui, de passagem, que o contraste histria/profe- cia paralelo ao de histria/ etnologia em Lvi-Strauss.

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    nar eles prprios as figuras sagradas (o que era compatvel com a escatologia tupi que dos homens fazia deuses14) e deter o controle e a agncia no domnio religioso. Desde a segunda metade do sculo XVI at incios do sculo XVII, vrias "santidades" agitaram o Brasil. O termo "santidade" designava, significativamente, tanto aqueles profetas que se diziam Deus ou Jesus Cristo, quanto seus rituais ou os movimentos que eles lideravam e que podiam incluir, como no caso da Santidade de Jaguaripe, iniciada em 1585, a Me de Deus e um papa (Vasconcellos, 1658; Vainfas, 1995).

    To importante foi esse aspecto no Brasil, que o tema da contrafao da religio, da similitude que no seno obra do Demnio, invade os escritos jesuticos: em Montoya, por exemplo, e em Simo de Vasconcellos patente essa preocupao. Os ndios no se opem, no resistem verdadeira religio: mas contrafazem-na.

    Essa contrafao tem a ver diretamente com o controle da Igreja e o domnio do sagrado. No bastava aos missionrios fazer crer no discurso cristo, tambm tinham que incutir nos espritos o senso da autoridade da Igreja e de sua hierarquia. Nesse sentido, as relquias vindas da Europa talvez se prestassem melhor para didaticamente distinguir a metrpole da colnia. Os ossos do padre Pinto podiam se prestar a contestaes entre ndios e jesutas, mas as cabeas das companheiras de santa rsula no deixavam dvidas.

    Exportao da memria. O Quinto Imprio

    Terei de ser mais breve sobre este tpico, que mereceria um desenvolvimento parte. Mas no queria deixar de mencion-lo.

    Por volta de 1650, os bolandistas haviam iniciado sua gigantesca obra hagiogrfica. Possivelmente no mesmo movimento de idias, Simo de Vasconcellos, provincial dos jesutas no Brasil, publica suas crnicas jesuticas, uma das quais, a que versa sobre o padre Joo de Almeida, uma transparente tentativa de promover canonizaes no Brasil (Vasconcellos, 1658). Ora, nessa mesmssima poca, Antnio Vieira estaria elaborando sua Histria do futuro15. Simo de Vasconcellos e Antnio Vieira ilustram na realidade as duas faces que mencionei do trabalho da memria. No seu conjunto so um Janus bifronte, Simo de Vasconcellos enxertando labori-osamente a Igreja no Brasil, e Antnio Vieira enxertando o Brasil na Histria da Igreja.

    Antnio Vieira parte de uma vasta efervescncia messinica que agita o sculo XVII, com avatares curiosos que vo de Esmirna e Salnica a Amsterd e Lisboa. Esse aspecto proftico j muito discutido de Vieira encontra-se sobretudo em trs de suas obras. So elas: uma carta escrita em 1659 na Amaznia ao bispo do Japo ("Esperanas de Portugal, primeira e segunda vida de el-rei d. Joo IV"); a Histria do futuro (escrita entre 1649 n

    REFERNCIAS Anchieta, pe. Jos de. Teatro de Anchieta. Edio e notas do padre Armando Cardoso SJ. Obras completas, 3 volume. So Paulo: Loyola, 1977, 372 pp.

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  • DA GUERRA DAS RELQUIAS AO QUINTO IMPRIO

    e 1664); e a Clavis Prophetarum, iniciada em 1665. As duas primeiras foram o pretexto de seus intensos dissabores, para usar de um eufemismo, com a Inquisio portuguesa, a partir de 1663. Comentarei aqui apenas alguns aspectos da questo.

    Vieira espera o advento do Quinto Imprio os anteriores seriam o Assrio, o Persa, o Grego e o Romano , em que, conforme so Joo escreve, haver um s rebanho e um s pastor: et erit unum ovile et pastor. Esse Imprio universal seria espiritual e temporal ao mesmo tempo, e supunha a converso de toda a humanidade f crist, extirpadas todas as heresias, seitas e outras religies. Assim, judeus e gentios se uniriam em um s povo, e os judeus, convertidos universalmente e a estariam includas as dez tribos perdidas de Israel , seriam restitudos a sua ptria. Ao reino de Cristo no espiritual corresponderia um imperador no temporal, que reinaria sobre o globo. Esse Imprio, que duraria at ao fim do mundo, quando ento viria o Anticristo, seria fundado em Lisboa: o imperador no seria d. Sebastio o Encoberto, mas d. Joo IV, o Restaurador da Inde-pendncia Portuguesa e sua morte, em 1656, Vieira chega a afirmar que ressuscitaria para assumir seu papel , ou possivelmente um de seus filhos, o infante d. Pedro ou d. Afonso VI.

    O messianismo de Vieira no est, como dissemos, isolado. A base do messianismo do sculo XVII por toda a Europa assenta nas profecias de Daniel II: 31-45, Esdras e Isaas, e tem razes no milenarismo de Joaquim de Fiori. As ligaes do messianismo de Vieira com o do grande rabino portugus Menass-ben-Israel, de Amsterd, foram evidenciadas por Sarai-va (1972). Mas a verso de Vieira tambm essencialmente portuguesa, pois se apia no sebastianismo, nas trovas do Bandarra, na tradio do milagre de Ourique o Cristo crucificado que teria aparecido ao fundador do reino portugus, d. Afonso Henriques e na profecia da fundao de um Imprio: "quero em ti e teus descendentes fundar para mim um Imprio" (Cantel, 1960, p. 250).

    Estilo de Deus e estilo dos homens: Vieira historiador do futuro

    Por que "Histria do futuro"? Vieira, no captulo primeiro dos seus prolegmenos, explica o

    paradoxo de seu ttulo por razes puramente estilsticas. Poder-se-ia pensar simplesmente que aos historiadores competiria a narrativa do tempo passado, aos profetas, a do tempo futuro: mas no assim. Os profetas, que podem narrar tanto o passado (como Moiss, diz Vieira, que desvenda a Gnese) quanto o futuro, diferem dos historiadores, no pelo seu objeto mas pelo seu estilo. Onde aqueles usam de metforas e enigmas, estes fornecem em estilo claro a ordem e sucesso dos eventos, seus personagens, seus lugares de ocorrncia, suas datas16. isso que ele, Vieira, se prope fazer. Na sua defesa perante o Santo Ofcio (Vieira, 1957, vol. 1, pp. 83-4), voltar n

    Christian, William A. Jr. Appa-ritions in Late Medieval and Renaissance Spain. Princeton University Press, 1981.

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  • MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

    ao assunto dizendo que a histria escrita no estilo dos homens, claro, vulgar e sem metforas, que todos podem entender (como Deus recomen-dou a Isaas que escrevesse, fazendo dele assim ocasionalmente um historiador) (Vieira, 1982, p. 47), enquanto as metforas e enigmas so "propriedade do estilo proftico, ou por melhor dizer, do estilo divino com que Deus fala pelos Profetas". Mas no captulo nono Histria do futuro (pp. 139 ss.), se ele continua afirmando que estar fazendo obra de historiador, as fontes que ele utilizar, afirma, sero "os autores dos tempos futuros, que so somente os Profetas, pois s eles os conheceram" bem como, no que puder servir, a Escritura Sagrada, cujo Autor Deus. A "todos ou quase todos os profetas cannicos, desde Osias at Malaquias", que Vieira afirma serem suas fontes, acrescente-se bem entendido o Bandarra, o sapateiro-profeta de Trancoso que por prudncia s evocado criptica-mente na Histria do futuro (p. 143), mas veementemente defendido diante do Santo Ofcio.

    Assim, Vieira, historiador do futuro, no seno aquele que capaz de traduzir o estilo de Deus no estilo dos homens. No profeta, seno historiador: aquele que articula (e com que maestria!) "o discurso como arquiteto de toda esta grande fbrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por consequncia e razo natural se segue e infere" (p. 140); que ajunta "o lume natural do discurso ao lume sobrenatural da profecia" (p. 141). Para percorrer esse escuro labirinto, "as profecias e os Doutores nos serviro de tochas; o entendimento e o discurso de fio" (p. 143).

    Evitemos anacronismos: a histria do sculo XVII o plano divino, uma teologia da histria. Vieira no um filsofo das luzes, o conhecimento cujo progresso ele preconiza, como bem observou Marcel Bataillon (1964, p. 11), o conhecimento do plano de Deus. Assim, a tarefa do historiador do futuro reconhecer os sinais presentes do plano divino. aqui que o Brasil e a Amaznia figuram.

    O tempo, como o mundo, tem dois hemisfrios: um superior e visvel que o passado, outro inferior e invisvel, que o futuro. No meio de um e outro hemisfrio ficam os horizontes do tempo, que so estes instantes que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro comea. Desde este ponto toma seu princpio a nossa Histria, a qual nos ir descobrindo as novas regies e os novos habitadores deste segundo hemisfrio do tempo, que so os antpodas do passado. Oh que coisas grandes e raras haver que ver neste novo descobrimento!

    Studart, Baro de. "Francisco Pinto e Luiz Figueira, O mais antigo documento existente sobre a histria do Cear" e "Relao do Maranho de Lus Figueira". Revista Trimestral do Instituto do Cear, t. 17, pp. 98 ss., 1903

    . "Documentos relativos ao mestre de campo Moraes Navarro" (extermnio dos Pai-acu, excomunho e priso de Moraes Navarro em Pernam-buco, 1700). Revista Trimes-tral do Instituto do Cear, t. 30, pp. 350-64, 1916; e t. 31, pp. 161-223, 1917.

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    Valensi, Lucette. "From sacred history to historical memory and back: the Jewish past". History and Anthropology, vol. 2:283-305, 1986.

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    Yates, Frances. The art of me-mory, 1966.

    Esta passagem, que figura nas primeiras pginas da Histria do futuro (p. 45), elucidativa: queria destacar apenas dois de seus aspectos.

    Primeiro, a idia de uma simetria entre tempo passado e tempo futuro, e de que ambos se unem no equador que o tempo presente. Acho nnnnnnnn

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    provvel que, nesta passagem, Vieira se refira implicitamente a santo Agostinho e sua clebre concepo de que existem trs tempos: o passado no presente, o presente no presente e o futuro no presente17. A profecia seria, nessa concepo simtrica do tempo, uma forma de memria prospectiva, ou, se se preferir, uma antimemria, compartilhando com ela, no entanto, uma mesma natureza. possvel inserir Vieira na tradio neoplatnica da arte da memria que prosperou no Renascimento, derivada de santo Agostinho, Raimundo Lulio e influenciada pela Cabala (Yates, 1966). H indcios de que Vieira estava perfeitamente a par dessa tradio. Suas referncias a autores como Giordano Bruno, Pico della Mirandola e sua obsesso com o nmero 1666, data inaugural do Quinto Imprio, apontam nessa direo. 1666, como j muito se comentou, um nmero que, quando escrito em algarismos romanos, envolve em ordem decrescente todos os nmeros, que no se repetem: MDCLXVI. Outras associaes de Vieira com numerologia apontam na mesma direo18.

    Segundo, na mesma passagem acima citada, a metfora dos descobri-mentos aponta para uma associao entre o hemisfrio austral e a chave de leitura do futuro. O navegador e o historiador do futuro perseguem projetos anlogos: um no espao, outro no tempo, ambos buscam os antpodas.

    Essa ilao corroborada pela longa exegese de uma terrvel profecia de Isaas (cap. XVIII) que figura no captulo doze dos "Prolegmenos ou Livro AntePrimeiro Histria do Futuro" (Vieira, 1982, pp. 209-19). Vieira sustenta, usando de recursos eclticos mas eruditssimos e etnograficamente interessantes, que a viso de Isaas se aplica aos ndios do Brasil, do Maranho e Gro-Par. D testemunho, de passagem, do desastre que significou para os ndios a chegada dos portugueses: gentem conculcatam et dilaceratam, gente arrancada e despedaada.

    Vieira, para atribuir esta profecia de Isaas aos ndios, apia-se em uma longa lista de predecessores que ele cita, entre os quais Jos d'Acosta o mais conhecido. Marcel Bataillon acrescenta-lhe um outro avatar, contem-porneo de Vieira, o auditor d. Diego Andrs Rocha (Bataillon, 1964), que desloca a interpretao americanista de Isaas para o Peru e o Mxico. de se notar uma relao que Bataillon no faz mas que se esclarece luz de um artigo de Antonio Jos Saraiva, a saber, a questo de saber se os ndios (ou alguns deles) seriam as dez tribos perdidas de Israel. A controvrsia antiga, e Jos d'Acosta e Oviedo a discutem. Na mesma poca de Vieira, o provincial Simo de Vasconcellos (1655) a menciona19. O auditor Rocha parece opinar que sim e Vieira no se pronuncia, pelo menos no que sobrou de seu livro. Mas a questo com certeza o interessava, pois tinha tudo a ver com sua Histria do Futuro.

    Antonio Jos Saraiva identifica no sapateiro-profeta de Trancoso, Bandarra, perseguido pela Inquisio em 1541, a popularidade do tema do ressurgimento das Tribos Perdidas de Israel mencionadas no profeta Esdras. No sonho do Bandarra, as tribos perdidas saem de detrs dos rios e se dirigem a Jerusalm. No plano do livro quarto da Histria do futuro, a questo da converso das dez tribos perdidas de Israel abordada: sim, as nn

    (17) E possvel argumentar tam- bm que h uma referncia irnica a santo Agostinho na meno aos antpodas.

    (18) Talvez seja at possvel associar o topos do teatro, que Vieira usa como tantos em sua poca (Bataillon, 1964, p. 20), aos teatros de memria (F. Yates). (19) "Outros dizem tambm que os ndios deste Novo mun- do so aqueles mesmos judeus que, levados cativos por Sal- manasar, rei dos Assrios, no tempo do rei Osias, se aparta- ram dos gentios para melhor guardarem sua lei, conforme escreve Esdras em seu quarto livro, que alguns julgam ap- crifo. So essas as dez tribos perdidas que Deus guiou para longe dos gentios, abrindo-lhes caminho pelas guas do Eufra- tes, e detendo a corrente do rio. E esses judeus foram leva- dos por caminhos mui compri- dos de ano e meio de viagem, at Arsareth, onde jamais habi- tara gente humana, e de onde voltaro com a mesma prote- o do Altssimo. Dizem que este ndios so essas mesmas gentes, o que o Padre d'Acosta nega igualmente: pois se se apartaram as dez tribos dos gentios, com evidente prote- o divina, para guardarem suas cerimnias e leis, como teriam perdido qualquer lem- brana dessas prticas, sendo hoje idlatras como os do Peru e os do Mxico, ou despidos de f como os brasis, tendo perdi- do toda memria de sua ori- gem e todo seu judasmo? E como do Eufrates teriam vindo ao Novo mundo e deste Novo mundo retornariam, conforme se anuncia em Esdras, ao mes- mo Eufrates?" (Simo de Vas- concellos, 1658, pp. 16-8). "Que fossem descendentes de he- breus no seria de muito es- panto: como os hebreus, to- mam demasiados banhos, e la- vam-se a cada rio por que pas- sam. Como eles tambm, tm por costume casar com a viva do irmo defunto, para conser- varem-lhe a gerao. Como os hebreus, tm mais de uma mu- lher. E mostram ainda muitas pedras nos rios com inscries em letras hebrias" (D'Acosta, 1590, livro primeiro, caps. 7 ss.).

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    dez tribos entraro na converso dos judeus. Ora, essa converso um s rebanho sob um s pastor e a volta dos judeus a Jerusalm eram prolegmenos do milnio, no s em Vieira mas, como mostrou Saraiva, no messianismo judeu do sculo XVII20. Em 1644, ao voltar da Amrica, um judeu portugus, Antnio Montesinos, cujo nome hebraico era Aaro Levy, anuncia em Amsterd ter encontrado a tribo de Rubem na Colmbia (Saraiva, 1972, p. 36). Como foi dito, a questo no era nova mas alimentava a efervescncia que culminou com o advento do messias Sabateu Zevi em 1666 em Esmirna, e com o anunciado incio do Quinto Imprio de Vieira.

    O Brasil e o Maranho, para Vieira, so assim sinais que permitem uma leitura adequada do plano divino. Das relquias ao Quinto Imprio, tentei mostrar aqui a ida e a volta da histria do Novo Mundo. Pois se o Brasil importa uma histria atravs das relquias, que lhe enxertam uma memria de outros tempos e lugares, ele tambem por sua vez exporta uma histria: a do final dos tempos. Ou melhor, o Brasil fornece uma chave de leitura para uma histria que, nessa metade do sculo XVII, ainda encerra um plano, que se trata de desvendar. Dialtica da colnia e da metrpole, onde, em filigrana tambm, se percebem os movimentos indgenas de que, no en-tanto, no tratei aqui.

    (20) To difundido o assunto, que aparece em um quadro atualmente na Alt Pinakothek de Munique, datado do come-cinho do sculo XVII, de Jan Brueghel o velho e Hendrik von Ballen. Intitulado As profe-cias de Isaas, o quadro retrata o desarmamento universal e a idia de "um s rebanho sob um s pastor" que central no messianismo da poca.

    Recebido para publicao em janeiro de 1996. Manuela Carneiro da Cunha professora do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP e pesquisadora do NHII-USP.

    Novos Estudos CEBRAP

    N. 44, maro 1996 pp. 73-87

    MARO DE 1996 87