2009_O Ensino Do Projecto de Arquitectura
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7/24/2019 2009_O Ensino Do Projecto de Arquitectura
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Marco Ginoulhiac
O ensino do projecto de Arquitectura
Contribuies para um debate crtico em torno daprtica contempornea
Tese de Doutoramento em Arquitectura
UNIVERSIDADE DO PORTO
Faculdade de Arquitectura
2009
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Luisa, Clara e Teresa
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Que fazer? Ali estou eu, completamente nu, com uma rapariga de vinte mildiabos to vestida como eu, no meio de um quarto onde h uma cama e nadamais. evidente que um problema que no me ensinaram a resolver naUniversidade.Boris Vian1
Diremos que o professor de arquitectura tem de ensinar arquitectura naconvico de que ela se ensina e na plenitude da convico contrria, de queela no se ensina, nem pode ensinar-se.Alexandre Alves Costa2
Os novos temas, que se propagam cultura arquitectnica, esto,paradoxalmente, aqum e alm da arquitectura. No pretendemos
reconhecer historicamente nenhuma saudade, mas tambm nenhumaprofecia apocalptica nesse reconhecimento. Nenhuma saudade: pois quandoo papel de uma disciplina se extingue, transforma-se em pura utopiaregressiva, e da pior espcie, qualquer tentativa de travar o curso das coisas.Nenhuma profecia: porque o processo evolui quotidianamente sob os nossosolhos e, para quem quisesse uma prova clamorosa disto, seria suficientereflectir na percentagem de arquitectos laureados que efectivamente exercema profisso. no entanto verdadeiro que queda do profissionalismo nocorresponde ainda nenhum papel institucionalmente definido para ostcnicos anteriormente empregues na edificao. Assim, encontramo-nos anavegar num espao vazio, no qual tudo pode acontecer mas nada decisivo.Manfredo Tafuri3
Perch ci che si salver non sar mai quel che abbiamo tenuto al riparodai tempi, ma ci che abbiamo lasciato mutare, perch ridiventasse se stessoin un tempo nuovo. Alessandro Baricco4
11VIAN, Boris (1947).Morte aos Feios.Lisboa: Relgio dgua, 2002, p. 20.2 ALVES COSTA, Alexandre. 2007. Textos datados. Coimbra: Departamento de Arquitectura,Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade de Coimbra, p. 255.3TAFURI, Manfredo. (1973). Projecto e utopia.Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 10.4BARICCO, Alessandro. 2006.I barbari. Saggio sulla mutazione.Roma: Fandango, p. 180.
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Sumrio
1 Analogia introdutiva: o Senhor Palomar 17
1.1 Advertncias ao leitor e enquadramento terico 22
1.2 Primeira abordagem ao argumento 31
1.3 Ensino e profisso: uma unio de facto 39
1.4 Ensino de Arquitectura: um debate em crescimento 50
2 Ensino do projecto de Arquitectura: do conceito ao projecto 65
2.1 Os traos dominantes do projecto 77
2.2 O projecto como construo de conhecimento 87
2.3 Da educao ao ensino do projecto de Arquitectura 972.4 Ensino do projecto e modernidade 116
3 As mudanas do cenrio intelectual 121
3.1 O debate sobre a ps-modernidade 127
3.2 As meta-narrativas da modernidade 136
3.3 Linguagem e legitimao 146
3.4 Do determinismo para a incerteza 153
3.5 O enfraquecimento da ideia de progresso 1593.6 Projecto e novas possibilidades 165
3.7 A reaco disciplinar da arquitectura 171
4 O ensino do projecto de Arquitectura face ps-modernidade 183
4.1 Uma nova configurao social 187
4.2 Massificao e medianidade 193
4.3 A crise das instituies 199
4.4 As derivaes no ensino de projecto 210
4.5 A omniscincia 216
4.6 O tecnicismo 223
4.7 O formalismo 231
4.8 O autismo 238
4.9 Criatividade e inteligncia 244
5 Hermenutica e Arquitectura, um encontro provvel 257
5.1 Projecto de Arquitectura e indefinio 261
5.2 Indefinio e ensino de projecto: a abertura construtivista 268
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5.3 Indefinio e ensino de projecto: o caminho hermenutico 274
5.4 A centralidade do preconceito 281
5.5 O pensamento dialctico como processo de negociao 2886 As condies da negociao projectual 299
6.1 O papel do docente 302
6.2 Avaliao como racionalizao 309
6.3 O docente: subjectividade e influncias 318
6.4 A importncia do preconceito e da autoridade 323
6.5 A representao como plataforma de negociao projectual 331
6.6 Novas plataformas de negociao projectual 339
6.7 A contingncia da compreenso, do projecto proairesis 348
7 O enquadramento epistemolgico do projecto: a avaliao 361
7.1 O conhecimento como ar de famlia 372
7.2 O conhecimento histrico 380
7.3 A construo dos preconceitos 387
8 Concluses 395
9 Olhando para trs 40510 Bibliografia 423
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Agradecimentos
Um primeiro agradecimento, tanto institucional como, e sobretudo, pessoal,
vai para o orientador deste trabalho, o Professor Doutor Lus Soares Carneiro com
o qual se estabeleceu, desde logo, uma relao amizade e de simbiose intelectual
sobre as quais se construiuram a compreenso e a produo do e no discurso
construdo pela tese.
Outro agradecimento dirigido, com igual intensidade e dedicao, para o
Professor Doutor Vtor Silva que, no papel de co-orientar manteve um olhar
sempre atento e crtico sobre o processo de investigao e sobre os seus
resultados.
Os caminhos que a investigao traou saram frequentemente do mbito
restrito da Arquitectura. Estas exploraes gozaram do apoio de colegas de outros
campos disciplinares sem a ajuda dos quais a tese no teria sido possvel. Entreeles: o anterior co-orientador Professor Doutor Vasco Branco, da Universidade de
Aveiro, a Professora Doutora Sofia Miguens e o Professor Paulo Tunhas, ambos
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A ajuda e pacincia destes
colegas representaram factores indispensveis para que, em vrios momentos, o
receio intelectual deixasse o lugar para um saudvel atrevimento, sem o qual nada
disso poderia ter sido feito.
Todo e qualquer trabalho de produo , em muita boa parte, um percurso
solitrio. Todavia o autor teve a sorte de gozar da amizade, da solidariedade e da
competncia dos colegas que, ao longo de quatro anos, tiveram sempre prontos
para partilhar com ele tanto a exaltao da escrita e da inveno como a depresso
do bloqueio e da rejeio. Neste estado de bipolaridade emocional e intelectual,
foram insubstituveis as ajudas de Anni Gunther, Antnio Madureira, Eliseu
Gonalves, Jos Quinto e Lus Viegas. Colegas e amigos que, sem nenhum tipo
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de obrigao, nem enquanto amigos nem enquanto colegas, leram ou discutiram
vrias partes ou verses do trabalho. Foram eles que, dia aps dia, permitiram
manter uma sade e firmeza mental tanto atravs de pacientes e pontuaismanifestaes de amizade, como contnuos estmulos e desafios.
Dada a disponibilidade e interesse que demonstrou para com os temas
abordados, um reconhecimento particular destina-se ao Professor Gianni Vattimo
que, apesar da distncia geogrfica, disciplinar e pessoal que o separa deste
trabalho, manifestou uma disponibilidade exemplar ao ler o trabalho e uma
generosa prontido em enviar um elogio. A sua participao nos trabalhos,
anteriormente temida com receio dada a grande notoriedade da pessoa em
questo, alm de ter legitimado a linha de pesquisa, revelou-se um enorme
estmulo para a prossecuo.
Conversas informais, comentrios ocasionais ou rpidas sugestes foram,
em determinadas alturas, extremamente importantes e frteis. A todos os que,
directa ou indirectamente, ajudaram dar consistncia e estrutura ao trabalho, a
dar energias e clareza mental ao seu autor vai, finalmente, um caloroso
agradecimento nas esperanas que, ao lerem este texto possam, tambm,
reconhecer a sua prpria contribuio.
Um agradecimento especial, com grande amizade e admirao, vai para o
Fernando Lisboa cuja obra e cuja lembrana tem sido to importantes para este
trabalho.
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Resumo
A tese fundamenta-se no pressuposto de que se, por um lado, certamente
verdade que as rotinas didcticas que suportam o ensino do projecto de
Arquitectura se mantm substancialmente idnticas desde as suas primeiras
manifestaes, que remontam ao sculo XV, tambm verdade que o contexto
intelectual na qual se encontram, que actualmente as rodeia, alimenta e legitima,
mudou profundamente os seus paradigmas de funcionamento.
Tendo como cenrio esse enquadramento terico, que mantido
propositadamente provisrio at sua progressiva legitimao, a tese procede para
uma caracterizao conceptual das ideias de projecto e de ensino. Tendo este
objectivo, defende-se um posicionamento construtivista que se alimenta,
historicamente, da galxia conceptual que roda em torno de outro conceito
fundador: o associado ideia de modernidade.
A estabilizao de uma estrutura discursiva tripartida (projecto de
Arquitectura, ensino e modernidade) permite sucessivas leituras das dobras
tericas que caracterizaram a passagem da ideia de modernidade para um
enquadramento filosfico prximo da aceitao da ideia de ps-modernidade.
Esta passagem analisada segundo alguns eixos que, alm de se demonstrarem
particularmente pertinentes para o argumento da tese, inauguram novas leituras
baseadas em novas ligaes teorticas.
Desta forma, o ensino do projecto de Arquitectura, quando colocado
teoricamente na plataforma crtica da actualidade, denuncia um conjunto de
comportamentos desviantes que so objecto de descrio e de articulao com o
enquadramento geral da tese. Tambm a actual configurao social, assim como a
massificao do ensino e a crise das instituies sociais representam elementos de
problematizao que participam na construo discursiva do problema que reside
na base de uma pergunta tcita colocada pela construo da tese. Por outras
palavras procura-se desenhar e equilibrar uma plataforma terica de suporte ao
debate que pode ser construdo em torno de alguns comportamentos
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contemporneos, intelectuais e materiais, que contaminam, com particular
intensidade, justamente as rotinas do ensino do projecto de Arquitectura. Esta
plataforma fornece um plano de corte epistemolgico no qual possveldesenvolver diversos caminhos analticos em torno dos fenmenos em estudo.
A construo e articulao epistemolgica do problema colocado torna-se
naturalmente dependente da construo de uma sua possvel soluo ou, pelo
menos, organizao. Nesse sentido, um enquadramento teortico prximo da
Filosfica Hermenutica proporciona as condies tericas para que possa ser
levada a cabo esta articulao. A construo de uma verdade projectual enquanto
acto de interpretao , de facto, um dos processos mais importantes no interior
das dinmicas de explicao e aprendizagem do ensino do projecto de
Arquitectura. O desvendamento destes elementos, que resultam ser tanto
conceptuais como processuais, permite a articulao de um quadro analtico
extremamente abrangente e frtil para a compreenso e discusso da actual
condio epistemolgica do projecto de Arquitectura e do seu ensino, alm de
fornecer algumas linhas tericas de suporte para um renovado enquadramentocrtico.
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Abstract
The Thesis is based on the assumption that if it is really true that daily
didactic routines that support the design studio teaching have been kept identical
from the very beginning, dating from 15thcentury, it is also true that the actual
intellectual context that feeds and legitimizes them have changed radically their
task paradigms.
Having as background this theoretical profile, maintained decidedly
transient until its progressive legitimization, the thesis proceeds towards a
conceptual characterization of ideas on design studio teaching. Having these
issues as aim, it is defensible a constructivist positioning fed historically by the
conceptual galaxy turning around another founding concept: the idea of
modernity.
The stabilization of a discourse tripartite structure design studio teaching
and modernity allows successive readings of theoretical plies characterizing the
stream of the idea of modernity to a philosophical frame near the acceptance of
the idea ofpost-modernity. This stream is analyzed under some axes that beyond
particularly relevant for the argument of the thesis, launch new understandings
based upon new theoretical attachments.
In this way, the design studio teaching, when theoretically set on the critical
platform of today, denounces a set of deviant behaviours that are items of
depiction and articulation of and with the general outline of the thesis. The actual
social configuration as the teaching amalgamation together with social
institutions crisis represent elements of predicaments participating in the discourse
construction of the problem dwelling in the fundaments of a tacit question arose
by the elaboration of the thesis. In other words one tries to draw and establish a
stable theoretical platform due to support debates concerning some
contemporaneous intellectual and material state of minds that lie behind the
routine and taints the design studio teaching. This platform provides a flat surface
for an epistemological slash where it is possible to develop several analytical
ways around the phenomenological matters under focus.
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The epistemological construction and articulation of the predicament turns
out to be dependent on the creation of one eventual resolution or, at least, one
structure. In that sense, a theoretical outlined adjoining hermeneutic philosophyprovides the theoretic settings in order to accomplish that articulation. The
building of a projective truth understood as an interpretation fact is, indeed, one of
the most important procedures in the interior of the dynamics of explanation and
learning of the didactics of the project design studio. The unveiling of those
elements resulting as conceptual as procession allows the articulation of an
analytical structure extremely abrangent and prolific for the understanding and
discussion of the actual epistemological pursuit of the design studio and itsdidactics beyond the contribution for some theoretical support for a renovated
critical frame.
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Rsum
La prsente thse repose sur l'ide pralable selon laquelle, s'il est certes vrai
que les routines didactiques qui soutiennent l'enseignement du projet
d'Architecture sont, pour l'essentiel, identiques depuis ses premires
manifestations, qui surgissent au XVe sicle, il est tout aussi vrai que le contexte
intellectuel dans lequel elles se trouvent actuellement, qui les entoure, les nourrit
et les lgitime, a profondment boulevers les paradigmes de son fonctionnement.
Cette thse, ayant pour toile de fond ce cadre thorique, lequel sera
expressment conserv sous sa forme provisoire jusqu' sa lgitimation graduelle,
entreprend une spcification conceptuelle des ides de projet et d'enseignement.
Se basant sur cet objectif, le texte plaide pour une conception constructiviste,
laquelle, historiquement, se nourrit de l'ensemble conceptuel qui tourne autour
d'un autre concept fondateur: celui qui se trouve associ l'ide de modernit.
La stabilisation d'une structure tripartite du discours (projet d'architecture,
enseignement et modernit) permet de successives lectures des productionsthoriques qui caractrisent l'volution de l'ide de modernit vers un cadre
philosophique proche de la reconnaissance de l'ide de postmodernit. Cette
volution est analyse selon certains vecteurs, qui, au del du fait qu'ils se rvlent
particulirement appropris la dialectique de la thse, donnent lieu de
nouvelles approches bases sur des liaisons thortiques nouvelles.
Par consquent, l'enseignement du projet d'Architecture, une fois valuthoriquement sur la plate-forme critique de l'actualit, rvle un ensemble de
comportements dviants qui sont objet de description et d'articulation avec le
cadre gnral de la prsente thse. Par ailleurs, la configuration sociale, ainsi que
la massification de l'enseignement et la crise des institutions sociales, constituent
des lments de questionnement qui font partie de la conception de l'expos du
problme, lequel se retrouve la base d'une question tacite pose par l'laboration
de la thse. En d'autres mots, la thse se propose de tracer et de rendre quilibre
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une plate-forme thorique de soutien du dbat qui peut tre difi autour de
certains comportements contemporains, qu'ils soient intellectuels ou matriels, qui
dnaturent considrablement les routines de l'enseignement du projetd'Architecture. Cette plate-forme nous offre un plan pistmologique l'intrieur
duquel on peut dvelopper plusieurs voies analytiques bties autour des
phnomnes tudis.
La construction et l'articulation pistmologique du problme soulev
deviennent tout naturellement dpendantes de la mise au point d'une solution ou,
tout au moins, de son organisation. A cet effet, un encadrement thortique proche
de la philosophie hermneutique offre les conditions thoriques pour que l'on
puisse charpenter cette articulation. La construction d'un projet cohrent en tant
qu'acte d'interprtation est, en fait, un des plus importants processus dans le cadre
des dynamiques d'explication et d'apprentissage de l'enseignement du projet
d'Architecture. La rvlation de ces lments, qui relvent simultanment du
concept et du processus, permet l'articulation d'un cadre analytique extrmement
tendu et fertile en vue de la comprhension et discussion de l'actuelle forme
pistmologique du projet d'Architecture et de son enseignement; en outre, elle
trace un certain nombre de vecteurs thoriques de soutien un encadrement
critique renouvel.
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1 Analogia introdutiva: o Senhor Palomar
Ci si potrebbe ancora domandare: ma allopera in mezzo a noi qualchemutazione epistemica, o sociale coinvolgente arte e scienza, cultura alta ebassa, i principi del maschile e del femminile, frammenti e totalit di ognitipo? Non ci resta che congetturare in continuazione: la scrittura invisibile,linchiostro del tempo, diventa leggibile come storia. Ihab Hassan1
Na lio inaugural da cadeira de Semiologia Literria, no Colgio de
Frana, proferida em 7 de Janeiro de 1977, Roland Barthes afirmou que se por
um qualquer excesso de socialismo ou de barbrie todas as nossas disciplinas
fossem retiradas do ensino, exceptuando uma, a literatura deveria ser a disciplinasalvaguardada, porque todas as cincias se encontram disseminadas no
monumento literrio2. A literatura, que Barthes considera como a prtica de
escrever. (...) o texto, quer dizer o tecido de significantes que constitui a obra3,
possui a capacidade de trabalhar nos interstcios da cincia4, diminuindo as
distncias e corrigindo as diferenas que separam uma cincia grosseira de
uma vida subtil. Barthes fala, assim, de uma literatura que permite, por
exemplo, a Bateson explicar, de forma exmia, o conceito de entropia5, a Minsky e
Harrison de compreender a inteligncia artificial6ou, ainda, a Borges de abordar o
complexo tema da organizao do conhecimento7. Que melhores leituras se no as
de Honor de Balzac, mile Zola, Gustave Flaubert, Anton Tchkhov ou Mark
Twain, para compreender a condio humana do sculo XIX, ou melhores filmes
que os de Lucchino Visconti, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica ou de Pier
Paolo Pasolini, para entender o que era viver na euforia e na misria do ps-guerra
1 HASSAN, Ihab em: Carravetta, Peter e Paolo Spedicato. Organizao. 1984. Postmoderno eletteratura. Percorsi e visioni della critica in Amrica. Milano: Bompiani. p. 99-106.2BARTHES, Roland (1977).Lio. Lisboa: Edies 70, 1997.3Idem, p. 18.4Idem, p. 20.5BATESON, Gregory (1972).Metadilogos. Lisboa: Gradiva. 1996. Neste notvel livro, Batesonaborda vrios argumentos de elevada complexidade numa hipottica conversa com a sua filha,ainda criana.6HARRISON, Harry e Marvin Minsky. 1992.The turing option.New York: Warner Books. Olivro, uma excelente obra de fico cientfica, explora uma narrativa onde se encontram aplicadasas teorias sobre a inteligncia artificial de Marvin Minsky.7BORGES, Jorge Luis (1944). Fices. Lisboa: Teorema, 2000.
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italiano. A obra literria, enquanto obra de arte, , segundo Deleuze, um
monumento, (...) um bloco de sensaes presentes que s devem a si prprias a
sua conservao, e do ao acontecimento o composto que o celebra8, cria umbloco de sensaes, isto , um composto de perceptos e de afecto onde os
perceptos no so j percepes, so independentes de um estado dos que as
experimentam; os afectos no so j sentimentos ou afeces, excedem a fora
dos que passam por elasou, ainda, a paisagem anterior do homem, na ausncia
do homem9. Desta forma, a literatura participa nos processos de construo e
suspenso dos perceptos e, enquanto arte, conserva-os10, permitindo a manuteno
e cristalizao da imagem de uma condio humana num determinado contextohistrico, social ou cultural. A literatura, e mais especificamente a prosa, permite
tecer uma narrativa capaz de sobrevoar um territrio heterogneo detectando
manchas e zonas homogneas onde a descrio de singularidades e minudncias,
de episdios aparentemente banais, serve de elemento reagente e aglutinador para
uma reaco semitica e cognitiva onde as fronteiras entre o universal da cincia e
o particular do humano se esbatem at anulao.
Tomando como ponto de partida estas consideraes e querendo abordar as
mutaes que ocorreram no seio do panorama intelectual que caracterizou as
ltimas dcadas do sculo XX, com o objectivo de reconhecer, analisar e
descrever o cenrio no qual se articulam as experincias de ensino do projecto de
Arquitectura, as vicissitudes do senhor Palomar, no homnimo livro de Italo
Calvino11, podem ser consideradas como representativas das aventuras cognitivas
e intelectuais do sujeito contemporneo. Os pequenos acontecimentos,aparentemente triviais, que se sucedem num escrita ligeira, mas nem por isso
inocente ou banal, quando lidos com ateno, conseguem desvendar e
desencadear uma rede de exploses cognitivas e emocionais que deixam o leitor
8DELEUZE, Gilles e Flix Guattari (1991). O que a filosofia?Lisboa: Editorial Presena, 1992.p. 148.9Idem, p. 144 e 149.10Idem, p. 144.11CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994.
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num estado de desconforto intelectual diante dos pensamentos e das consideraes
do protagonista do livro12. Desconforto, este, no tanto consequncia de uma
possvel empatia para com o senhor Palomar, mas de uma sbita compreenso ecompaixo diante da sua condio. Uma compaixo, entendida como um
sofrimento partilhado com outrem, que surge, justamente, da compreenso da
prpria condio existencial que resulta ser, de facto, em muito, se no
demasiado, parecida com a dele.
O Senhor Palomar procura conhecer o mundo atravs da contnua
estruturao e sistematizao da sua observao. Ele mantm uma atitude
intelectual extremamente sistemtica procura de regras, de estruturassubjacentes, de possveis organizaes e esquemas analticos. Olha para as ondas
do mar, para os fios de relva, para os telhados da cidade, para os bandos de
pssaros, ou ainda para os inmeros queijos venda numa sofisticada loja
parisiense. Cada vez que olha procura compreender, organizar e estruturar a
realidade. Quando o campo de viso demasiado abrangente, resolve concentrar-
se numa poro (o caso do relvado); quando os fenmenos parecem ser demasiado
aleatrios ou contingentes, procura encontrar as regras subjacentes heterogeneidade (como acontece com as ondas do mar). O senhor Palomar sente a
necessidade, quase visceral, de modelar a realidade. Esta necessidade claramente
descrita por Calvino quando afirma que: Na vida do senhor Palomar houve uma
poca em que a regra era esta: primeiro, construir na sua mente um modelo, o
mais perfeito, lgico, geomtrico possvel; segundo, verificar se o modelo se
adaptava aos casos prticos observveis na experincia; terceiro, introduzir as
correces necessrias para que o modelo e a realidade coincidissem13. Mas,
infelizmente, a incomensurabilidade e infinita heterogeneidade da realidade no
lhe permitem uma modelao suficientemente abrangente e coerente. Cada vez
12Veja-se, a este respeito, o conceito de semiose ilimitada de C. S. Pierce retomado por UmbertoEco onde, segundo o autor italiano: cada objecto a que um signo referido pode tornar-se porsua vez o significante do prprio significado do significante inicial ou mesmo o significante cujosignificado metalingustico o significante inicial. Em: ECO, Umberto (1973). O signo.Lisboa:Editorial Presena, 1997, p. 151.13CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994, p. 113.
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que procura olhar para a realidade, com o fim de encontrar uma regra subjacente
(as ondas na praia, os fios de relva no seu quintal, as estrelas no cu ou os
pssaros na cidade), acaba por afastar-se com os nervos tensos como haviachegado e ainda mais inseguro de tudo14. Palomar passa, ento, a querer
estabelecer um dilogo com a realidade, se o modelo no consegue transformar
a realidade, a realidade deveria conseguir transformar o modelo15. Assim, a
abordagem de Palomar muda, procurando, no meio da incomensurvel diferena
da realidade, modelos adaptveis, flexveis ou combinveis; modelos de modelos,
sub-modelos, meta-modelos. Mas inevitavelmente compreende que um modelo
no s um meio de conhecimento como de modelao da prpria realidade; umamesma realidade que, alm disso, vai mudando em continuao, apesar da sua
representao e modelao. Diante desta dinmica circular entre a realidade e a
sua possvel representao descritiva, Palomar resolve, ento, deixar a sua mente
aberta, vazia, tentando, contudo, encontrar uma forma sistemtica para organizar
os seus pensamentos. A estratgia passa a residir nas dinmicas internas e nas
configuraes do prprio pensamento. Palomar prefere manter as suas
convices no estado fluido, verific-las caso a caso e fazer delas a regra
implcita do seu prprio comportamento quotidiano, no fazer e no no fazer, no
escolher e excluir, no falar e no calar-se16. Este processo de fluidificao
acontece, contudo, com o perene temor de que, a partir desta nova sistematizao,
pudesse resultar, outra vez, um modelo e com este pudesse recomear tudo desde
o princpio.
Nas reflexes do senhor Palomar poder reconhecer-se o percurso dodesenvolvimento intelectual que acompanhou o sujeito ao longo dos ltimos cinco
sculos de histria. O senhor Palomar, cujo pensamento est irremediavelmente
comprometido com a modernidade, procura uma modelao do mundo acabando
por admitir a impossibilidade ou os perigos dessa mesma modelao. Abdicando
14Idem, p. 15.15Idem, p. 115.16Idem, p. 116.
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diante das mltiplas tentativas, todas elas frustradas, procura de alguma solidez
ou sossego cognitivos, acaba por deixar-se levar pela fluidez das poucas
convices que ainda possui17. Quando o Senhor Palomar observa a cidade, apartir do seu terrao, colocando-se no olhar das aves na tentativa de escapar
priso cognitiva da sua subjectividade e peso corpreo, afastando-se da realidade
observada, afirma que c de cima tem-se a impresso de que a verdadeira crosta
terrestre esta, desigual mas compacta, mesmo se sulcada por fracturas que
no se sabe quo profundas so18, e chega concluso paradoxal de que s
depois de ter conhecido a superfcie das coisas (...) nos podemos aventurar a
procurar o que est por baixo. Mas a superfcie das coisas inesgotvel19
.Doisplanos, duas escalas de observao sobrepem-se e confundem-se. Contnuos
movimentos circulares de anlise acumulam informao de natureza heterognea
aumentando a dificuldade analtica dos processos de pensamento. Diferena,
complexidade, interpretao, tornam-se alguns dos conceitos sobre os quais o
pensamento procura refundar as suas prprias bases intelectuais num contnuo
esforo de adaptao e de construo. Um esforo que surge da atvica dialctica,
tanto terminolgica como epistemolgica, entre o universale o particular, entre
realidadeepensamento, entre verdadee interpretao.
17O conceito de fluidez aplicado passagem entre o pensamento moderno e o ps-moderno pautaa obra do socilogo polaco Zygmunt Bauman. Entre as suas obras, Liquid Modernity (2000),Liquid Love: On the Frailty of Human Bonds (2003),Liquid Life(2005)e Liquid Fear (2008).18CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994, p. 62.19Idem, p. 63.
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1.1
Advertncias ao leitor e enquadramento terico
Dantes eu estava indeciso, mas agora j nem disso tenho a certeza.Boscoe Pertwee citado por Umberto Eco20
Antes de avanar no ulterior desenvolvimento deste trabalho, pretende-se
apresentar algumas consideraes no que se refere sua forma e contedo. O
texto procura abordar o mbito do ensino do projecto de Arquitectura a partir de
vrios quadrantes do saber, na tentativa de criar uma possvel rede de
conhecimento e de implementar ligaes epistemolgicas atravs das quais se
poder aprofundar os diferentes aspectos do fenmeno.
Pede-se, desde j, ao leitor que no procure, neste documento, frmulas ou
prescries omnicompreensivas; no decididamente esta a finalidade deste
trabalho, alm de que, se elas estivessem presentes, representariam um sinal de
despotismo intelectual (despotismo que, como se compreender mais adiante, no
representa propriamente o objectivo deste trabalho, muito pelo contrrio). Pede-
se, antes, que se mantenha sensvel para compreender um enredo, um tecido onde
interessa maioritariamente detectar uma configurao cromtica geral e no
descrever cada linha existente. Tratar-se- de um patchwork onde se juntam
tecidos de vrias cores e feitios mas que conserva, quando observado distncia,
um certo e determinado aspecto geomtrico e tonal. O presente trabalho pretende
ser, antes de mais, uma meta-estrutura dialgica, sem ter a pretenso de ser
monolgico, exaustivo ou exageradamente propositivo. O que interessa,
maioritariamente, reconhecer um territrio de debate cujo levantamento e estudo
no resulte comprometido pelos erros de paralaxe que existem, quando os
objectos observados se encontram excessivamente prximos. Em suma, trata-se de
tentar ganhar uma distncia crtica necessria para um debate sobre algo, como o
ensino, que vive de processos a mdio e longo prazo, de elevada complexidade e
abrangncia, e que nunca pode ser objecto de uma abordagem fugaz ou sectorial.
20ECO, Umberto (1997). Kant e o Ornitorrinco.Algs: Difel Editorial, 1999, p. 13.
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O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 23
Com base neste propsito, o nvel de complexidade existente nas diferentes
abordagens, que esto aqui presentes, teve que ser uniformizado por razes de
honestidade intelectual e de homogeneidade literria e cientfica. Foi feito umesforo no sentido de conseguir transmitir os aspectos do problema considerados
determinantes, de forma compreensvel e, sobretudo, articulada, mesmo que isso
possa ter porventura acontecido em detrimento de um conjunto de
aprofundamentos que cada leitor possa, com base na sua preparao intelectual e
interesse pessoal, considerar como fulcrais ou at incontornveis. Um excessivo
aprofundamento teria causado fracturas na integridade do texto e consequentes
desnorteamentos ou distraces, que em nada contribuem para a compreenso dasideias e ligaes apresentadas e das resolues propostas.
Uma vez que o texto procura articular o ensino do projecto de Arquitectura
inserido na condio intelectual da contemporaneidade, no podia deixar de
percorrer alguns caminhos que pertencem tradicionalmente ao mbito da
Filosofia. A Filosofia contribui para o debate na medida em que possui uma
abrangncia e uma complexidade disciplinares suficientes para permitir que cada
aspecto presente seja passvel de ser observado a partir de um ponto de vista maisafastado e cauteloso. Isto permite criar uma rede relacional entre comportamentos
prprios disciplina da Arquitectura e comportamentos que podem ser
considerados como derivantes da condio intelectual contempornea, mas que
atravessam e contaminam a prpria Arquitectura. Todavia, o presente trabalho no
, nem pretende ser, um trabalho em Filosofia. Ele , antes de mais, um trabalho
circunscrito ao mbito da Arquitectura e, mais especificamente, do seu ensino,
com o auxlio da Filosofia. Desta forma, as incurses que sero feitas na Filosofia
sero sempre a partir do ensino de projecto, campo, aonde iro sempre regressar
aps ter recebido a devida ajuda na organizao e na compreenso dos fenmenos.
Poder dizer-se mais alguma coisa em relao multidisciplinaridade
presente neste trabalho. Como seria de esperar, esta causou, tanto ao longo da sua
preparao como da sua redaco, uma certa confuso terminolgica derivante do
facto de que, frequentemente, o mesmo conceito pode ser objecto de definies
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diferentes consoante o mbito disciplinar no qual utilizado. Pense-se, por
exemplo, no conceito de ps-moderno e nas diferentes abordagens s quais
sujeito nos vrios mbitos, entre os quais o filosfico e o arquitectnico21
.A deciso tomada foi manter uma certa heterogeneidade terminolgica
respeitando, de forma geral, o enquadramento que cada campo e cada autor fazem
dos conceitos. Teria sido intelectualmente abusivo, por exemplo, alterar os termos
nas citaes ou nas referncias citadas. Contudo, existem vrias passagens onde,
mesmo mantendo uma certa diversidade terminolgica, se sentiu a necessidade de
abordar os conceitos e descrev-los de forma a se tornarem o mais unvocos
possvel para o leitor. Isto porque o prprio texto necessita de formular, de quandoem quando, um prprio posicionamento terminolgico e, com este propsito,
pontualmente criar momentos de estabilizao terminolgica para evitar que o
leitor possa cair em possveis desvios de compreenso comprometendo, desta
forma, a leitura e o entendimento do trabalho.
Uma possvel diferenciao epistemolgica entre escalas projectuais no
mbito da Arquitectura foi, tambm, objecto de problematizao terica ao longoda preparao do trabalho. Mesmo no que respeita s fontes bibliogrficas, que
iro participar na construo do texto, elas so tanto do domnio do design
industrial, como do projecto de Arquitectura ou do Urbanismo. Diante de uma
possvel crtica, dir-se- que se considerou e se estudou o projecto enquanto
manifestao intelectual genrica em detrimento, em alguns casos, das suas
manifestaes operacionais especficas. Isto permitiu detectar os traos comuns
entre as vrias escalas de interveno, seguindo o princpio de E. N. Rogers deque ensinar a fazer um copo ou uma cpula , do ponto de vista metodolgico, o
mesmo problema porque ambos contm, em linha de princpio, muitos elementos
em comum, mas unicamente o elenco dos elementos construtivos desvenda a
21Como ser repetido mais adiante, a noo de ps-moderno em Arquitectura limita-se, de formageral, a um determinado tipo de linguagem projectual, enquanto na Filosofia representa uma formade pensamento. Tambm a ideia de projecto, quando abordada no seio da Filosofia, ganhasignificados e valncia que no mbito da Arquitectura resultam ser extremamente teis.
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O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 25
diversidade dos objectos, clarifica as suas particulares intencionalidades, a
construo fenomenolgica e, em concluso, garante a percepo directa. 22
Quer-se com isto afirmar que, existindo diferenas entre as vrias escalas, noenquadramento epistemolgico que cada uma pode e deve construir, as dinmicas
processuais e cognitivas conservam um elevado grau de semelhana, uma vez que
os prprios elementos empregues so portadores de diferena. A possvel
diferenciao no se encontra, por outras palavras, a montante do processo
projectual mas sim no seu interior e ao longo do seu desenvolvimento. Como ser
ulteriormente defendido, cada projecto constri, por si prprio, o seu universo de
conhecimento e, com este, o seu enquadramento epistemolgico e as suas regrasde crescimento, de progresso e de produo.
No mbito do ensino de projecto interessa, portanto, abordar
maioritariamente os aspectos que se encontram partilhados pelas vrias
manifestaes fenomenolgicas e operacionais do projecto de Arquitectura. Este
posicionamento encontra-se claramente presente em autores como Donald Schn,
segundo o qual a prtica da Arquitectura, do Urbanismo, da Engenharia, da
Planificao Territorial e Urbana so todas passveis de ser reunidas sob umacategoria mais ampla pela sua caracterstica comum de serem profisses
projectuais23. Com este propsito, o autor cita Herbert Simon24que, por sua vez,
22ROGERS, Ernesto Nathan. 1981.Gli elementi del fenomeno architettonico.Napoli: Guida, p. 40 traduo livre.23SCHN, Donald. (1983).Il professionista riflessivo. Per una nuova epistemologia della pratica
professionale. Bari: Laterza, 2003. Donald Schn (1930-1997) De formao filsofo (Yale eSorbonne), msico com estudos avanados em piano e clarinete, Donald Schn foi um dos tericosdas organizaes mais influentes do sculo XX. Aps ter sido docente em Filosofia naUniversidade da California e do Kansas, Schn foi Professor Emeritus junto do MassachusettsInstitute of Technology MIT onde foi docente de Urban Studies and Educatione Senior Lecturerjunto da School of Architecture and Planning e director, entre 1990 e 1992, do Department ofUrban Studies and Planning.Entre os seus livros: The displacement of concepts (1963), Beyondthe stable state(1971), Educating the reflective practitioner(1987) e, com Chris Argyris, Theoryin Practice (1974), Organizational Learning: a theory of action Perspective (1978). As suasteorias sobre o desenvolvimento cognitivo baseado na aco so fortemente inspiradas, eexplicitamente referenciadas, obra do filsofo e pedagogo norte-americano John Dewey. Dewey,
por sua vez, inspira-se em outro pedagogo norte-americano, William Heard Kilpatrick, que, em1918, escreveu um ensaio com o ttulo The project methodonde defendia a importncia de uma
aprendizagem baseada em projectos em detrimento de uma centrada na transmisso deconhecimento. No mbito deste trabalho interessa maioritariamente o facto de ele ter desenvolvido
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defende que o projecto representa toda e qualquer actividade que se ocupe das
transformaes de situaes existentes para situaes desejadas. Com base nesse
princpio, Schn reconhece as diferenas que separam as vrias actividadesprojectuais mas tambm considera que existe um nvel mais profundo onde reside
um processo geral de projecto na base de tais diferenas25que representa, de
facto, o mago tanto da ideia de projecto como da do pensamento projectual.
Schn avana ulteriormente quando, no mesmo texto, poucas linhas depois,
afirma que a Arquitectura a profisso projectual reconhecida h mais tempo e,
enquanto tal, funciona como prottipo para o conceito de projecto nas outras
profisses. Pois se existe um processo fundamental por baixo das diferenasentre profisses de tipo projectual, na Arquitectura que mais provavelmente o
encontraremos26. O projecto de Arquitectura , portanto, um arqutipo
processual e intelectual do pensamento projectual, de traos e caractersticas
suficientemente genricas, passvel de servir como estrutura de compreenso da
integridade do fenmeno. Neste sentido, abordar o projectoenquanto actividade
intelectual, que visa predispor os meios para alterar o futuro, e tentar detectar
quais as contaminaes oriundas das condies filosficas e materiais
contemporneas no seu ensino, no parece necessitar, neste registo, de um ulterior
aprofundamento ou repartio que contemple cada uma das suas manifestaes.
Mantendo activa, ao longo do trabalho, uma grelha polarizadora que garanta ao
mesmo no se desviar demasiado do mbito da Arquitectura, poder ento
implementar-se um discurso super-partesonde o conceito de projecto e as suas
diferentes manifestaes possam ser aproximadas de forma suficientemente
genrica para no cair num discurso demasiado tecnicista ou exclusivamente
processual.
trabalhos no campo da prtica profissional e, nomeadamente, do projecto de Arquitectura enquantodocente do Departamento de Estudos Urbanos do MIT.24Herbert Alexander Simon (1916-2001) economista, psiclogo e informtico norte-americano. considerado um dos fundadores da Inteligncia Artificial, da teoria das organizaes, dos sistemascomplexos, do problem solving e da simulao computorizada. Em 1978, foi galardoado com o
prmio Nobel de Economia.25SCHN, Donald. (1983).Il professionista riflessivo. Per una nuova epistemologia della praticaprofessionale. Bari: Laterza, 2003, p. 102 traduo livre.26Idem.
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O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 27
Algumas consideraes devem ser reservadas, tambm, bibliografia e s
referncias de e para outros autores. A partir da colocao do problema e de umasumria delimitao territorial, foi-se construindo uma rede de conhecimento
traada por linhas de investigao parcialmente autnomas e, por vezes,
contingentes. A ausncia de um corpus bibliogrfico exclusivo ao mbito do
ensino de Arquitectura e, mais especificamente, do ensino de projecto, juntamente
com a vontade, j expressa e defendida, de manter um registo de investigao
alargado, obrigaram progressiva construo de percursos crticos que no
estivessem necessariamente ligados a algum tipo de narrativa preexistente. Esteerrar, certamente mais intenso e livre, numa primeira parte, mas mais penetrante e
mas regrado, numa segunda, chegou a traar um conjunto de trilhos que, ao longo
do tempo, foram aprofundando sulcos at ganhar as direces e as profundidades
finais. Ao longo destas heursticas de investigao, a j referida relativa falta de
bibliografia dedicada exclusivamente ao ensino do projecto de Arquitectura
determinou as frequentes aproximaes ao campo profissional, apesar deste, como
ser referido ao longo do texto, repetidas vezes, conservar profundas diferenasem relao ao ensino. A maior parte destes documentos produzida por
arquitectos e direccionada para arquitectos, apresentando, consequentemente, e
maioritariamente, produtos e no processos. As questes relativas aco
projectual, que poderiam ser revertidas para o seu ensino, encontram-se
frequentemente dissimuladas, obrigando o leitor a uma preparao intelectual
capaz de suportar um atento processo crtico. Todavia, os textos produzidos pelos
prprios arquitectos ajudam na medida em que abordam os processos projectuais,
a jusante, desvendando muitas vezes aspectos que s um olhar a posterioripode
detectar e descrever.
Diante da heterogeneidade das referncias bibliogrficas, muitas das quais
em lngua italiana, devido ao facto de esta ser a lngua me do autor e de existir,
em Itlia, um mercado editorial muito mais amplo e por norma mais econmico,
decidiu-se optar por traduzir as citaes quando estas possam ser de difcil
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compreenso, onde, por outras palavras, a troca de idioma poderia representar um
obstculo para uma leitura mais fluida. Nos casos em que as citaes estejam
parcialmente ou totalmente isoladas, como o caso das epgrafes introdutrias aoscaptulos, procurou-se, por outro lado, manter o idioma original. Tambm, no que
respeita colocao das referncias bibliogrficas, a heterogeneidade destas foi
razo para que as mesmas estejam presentes tanto na pgina do texto citado como
na bibliografia. Alm disso, para evitar penosas e cansativas procuras na seco
bibliogrfica, as referncias dos textos, assim como, quando considerado
oportuno, a apresentao dos autores, aparecem logo abaixo do texto. Isto permite
que mesmo os autores estrangeiros ou aqueles que no pertenamtradicionalmente ao mbito da Arquitectura, possam estar presentes sem que isso
seja causa de desconforto ou distraco ao longo da leitura.
Uma ulterior advertncia deve ser feita em relao ao necessrio processo
de reduo histrica 27que teve que ser utilizado nas seces que, de alguma
forma, procuram descrever uma narrativa histrica. O objectivo destas descries
o de dar a conhecer parte de uma realidade que, segundo a tese exposta ao longodeste trabalho, est, directa ou indirectamente, em relao com os fenmenos que
se pretende abordar. Com base neste objectivo procurou-se reconhecer e descrever
as estruturas intelectuais subjacentes s alteraes que sofreu o ensino do projecto
de Arquitectura, tanto no que respeita ao seu enquadramento intelectual, como
processual. Este reconhecimento teve, portanto, que ser feito de forma abrangente
sociedade, filosofia e, em geral, histria do pensamento. Um propsito
claramente demasiado ambicioso para no ter que sofrer de alguma reduo, tantono que respeita informao apresentada como s ligaes que desta naturalmente
surgem. Foi assim aplicado um filtro crtico na tentativa de obter uma reduo que
resultasse homognea entre o campo da Arquitectura e os outros. Desta forma, por
exemplo, quando abordado o longo caminho histrico do ensino do projecto de
Arquitectura, sero apresentadas as experincias, os momentos e os fenmenos
27DE FUSCO, Renato. 1981. Storia dellarchitettura contemporanea. Roma: Laterza, p. VI.
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que funcionaram como pontos de cruzamentos das tendncias artsticas,
intelectuais e sociais que se demonstraram, sucessivamente, fortemente
contaminantes para o futuro. Este peneirar da histria foi feito tendo, comocenrio epistemolgico, o princpio expresso por Thomas Kuhn quando, ao
defender o conceito de paradigma como constelaes de crenas, valores e
tcnicas partilhadas pela comunidade28, afirma que para compreender a
especificidade do desenvolvimento da cincia, no precisamos de deslindar os
detalhes biogrficos e de personalidade que levam cada indivduo a uma escolha
particular (...) precisamos entender a maneira pela qual um conjunto
determinado de valores compartilhados entra em interaco com as experinciasparticulares comuns a uma comunidade de especialistas, de tal modo que a maior
parte do grupo acabe por considerar que um conjunto de argumentos mais
decisivo que outro29. O reconhecimento dos paradigmas foi feito atravs da
leitura e do estudo de algumas obras que, ao longo da formulao da tese, foram
perdendo visibilidade e importncia. Como acontece numa estrutura em beto
armado, onde a cofragem, apesar de ser um elemento fundamental para a sua
construo, no fim desaparace, muitas vezes, sem deixar sinais da sua existncia,
muitas obras lidas ajudaram a construo teorica da tese sem, por isso, manter-se
visveis na sua verso final.
Finalmente parece pertinente afirmar, desde j, que este texto poder
parecer, por vezes, algo moralista. No querendo de forma alguma evitar este
28 A teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn insere-se no debate epistemolgico em 1962,contemporaneamente ao ensaio de Karl Popper Conjecturas e refutaes (um refinamento eajuste das teorias de Popper presentes na obra A lgica da pesquisa cientfica,de 1934) onde oautor defende a falsificabilidade da cincia como meio para o aperfeioamento das descobertas.Um desenvolvimento posterior teoria de Popper est presente na obra Falsificao emetodologia dos programas de investigao cientfica, em 1976, de Imre Laktos, onde o autorcritica mas aprofunda o falsificacionaismo popperiano. Finalmente, em 1975, Paul Feyerabendformula a teoria da epistemologia anarquista no seu texto Contra o mtodo. Apesar de cadateoria ter desenvolvimentos e posicionamentos profundamente diferentes entre si, existe umconsenso acerca da existncia de uma necessria partilha de valores entre cientistas seuscontemporneos.29KUHN, Thomas S. (1962).A estrutura das revolues cientficas.So Paulo: Perspectiva, 2005,
p. 248.
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confronto, considerado sempre til e estimulante, parece pertinente deixar claro
que qualquer abordagem, em qualquer mbito de conhecimento e que de alguma
forma aborde um possvel enquadramento tico do mesmo no pode, e nem deve,resultar tica ou moralmente, isenta. Mesmo tentando manter um afastamento
sereno e uma frieza intelectual na aproximao aos assuntos, inevitvel que
tanto a riqueza semntica da linguagem como a configurao intelectual e
ideolgica de quem escreve ou de quem l, provoquem apreenses diferentes da
mesma palavra escrita. O desafio torna-se ainda maior quando, como o caso
deste texto, pedida ajuda Filosofia; pois qualquer abordagem a esta disciplina
requer, de antemo e por paradoxal que possa parecer, um posicionamentofilosfico do sujeito. Por outras palavras, impossvel, por exemplo, tratar da
tica projectual sem, antes disso, ter ganho um posicionamento tico, mesmo que
este possa mudar ao longo da investigao. Como ser afirmado mais adiante, o
projecto , na sua essncia comportamental, algo estritamente ligado ideia de
liberdade e, enquanto tal, algo necessariamente impregnado de um enquadramento
tico. Por estas razes, parece tanto impossvel como indesejvel que, ao longo do
texto, no transparea, de forma explcita ou implcita, um possvel
posicionamento do autor.
Pede-se, assim, clemncia ao filsofo e pacincia ao arquitecto.
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1.2
Primeira abordagem ao argumento
Fino a quando non scoppi la seconda guerra mondiale, il mondo miappariva un arco di diverse graduazioni di coralit e di costumi, noncontrapposte ma messe luna a fianco dellaltra (...). Un quadro come questonon imponeva affatto delle scelte categoriche come pu sembrare ora. ItaloCalvino30
Com o propsito, para j ainda de carcter provocatrio e retrico mas nem
por isso inocente, ingnuo ou casual, de lanar as bases de uma dialctica de
entendimento dos fenmenos abordados neste trabalho, parece possvel afirmar
que os ltimos trinta anos do sculo XX assistiram a uma reconfigurao dos
paradigmas culturais que, desde o sculo XV, tinham suportado e alimentado as
condutas intelectuais do sujeito. Neste perodo de tempo, as mltiplas leituras, que
foram sucessivamente formuladas nos vrios mbitos do saber, resultaram
orientadas por um objectivo: a compreenso do nosso tempo como tempo da
ps-modernidade31. Todas elas se encontraram inseridas na abertura de um
debate filosfico em torno de alguns dos conceitos fundamentais do pensamento
moderno cuja integridade ontolgica tinha sido abalada desde a crise intelectualque marcou o ps-guerra com uma abrangncia planetria. Como ser abordado
de forma mais aprofundada e articulada, aps-modernidadefoi progressivamente
assistindo crtica de conceitos, tais como o de progresso, de tecnologiaou de
futuro, que estiveram na base da modernidade e que representaram o espao
crtico de uma viragem epocal32 que iria marcar, se no determinar, uma
incipiente e nova configurao intelectual.
Apesar de existir um nmero virtualmente infinito de abordagens possveispara registar e descrever a citada viragem, no contexto deste trabalho possvel
afirmar que o mbito do ensino de Arquitectura, considerado como territrio de
30Italo Calvino em resposta ao questionrio do peridico milans Il paradosso, n 23-24, Set-Dic. 1960, p. 11-18.31CARRILHO, Manuel Maria. 1989. Elogio da modernidade. Lisboa: Editoral Presena, p. 60.32VATTIMO, Gianni. 2002.Tecnica ed esistenza. Una mappa filosofica del Novecento . Milano:Bruno Mondatori, p. 63 traduo livre.
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confluncia e sobreposio de duas manifestaes intelectuais fortemente
sensveis ao contexto cultural - a da educao e a da Arquitectura - no ficou
isento face s profundas alteraes que ocorreram em cada um destes campos. Deum ponto de vista social, os acontecimentos que marcaram os finais dos anos de
60 e que encontraram em Maio de 68 o seu momento de mxima violncia fsica e
intelectual, puseram prova, em todo o mundo, os sistemas de ensino e, em geral,
o exerccio e a legitimidade da autoridade que se encontravam tradicionalmente
ligadas educao. A tomada de conscincia dos desequilbrios polticos e
sociais33, alm de definir, mesmo que virtualmente, um denominador comum no
que respeita ao grau mnimo de exigncia democrtica, provocaram, no seio daeducao, um fenmeno de revolta cujas ondas de propagao ainda se sentem na
actualidade. Apesar de se ter dado um quase definitivo apaziguamento no que
respeita intensidade e s formas da revolta, a actual matriz social que sustenta a
relao entre docente e discente, entre instituio e aluno , em muito boa parte,
determinada pelos acontecimentos que se deram nessa poca.
Por outro lado, no mbito da produo arquitectnica, os anos 70 assistiram
ao enfraquecimento daquela corrente terica que, a partir dos princpios do sculoXX, tinha representado a destilao dos paradigmas ideolgicos da ideia de
Modernidade: o Movimento Moderno. Segundo Charles Jencks, a demolio do
conjunto habitacional de Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri34, acontecida no dia
15 de Julho de 197235, representa o momento exacto da morte do Movimento
Moderno36. O especfico lao ontolgico e metodolgico que a Arquitectura tinha
33
ARENDT, Hannah (1967). Verit e politica. La conquista dello spazio e la statura dell'uomo .Milano: Bollati Boringhieri, 2004.34O que resta de Pruitt-Igoe uma longa sequncia do filme de culto Koyaanisqatsi, de GodfreyReggio (1982).35 JENCKS, Charles (1977). The Language of Post-Modern Architecture. New York: Rizzoli,1984.36Uma das reaces modernidade no mbito da Arquitectura concretizou-se, a partir da dcadade 80, nas demolies que pautaram a resposta poltica da sociedade diante de casos em muito
parecidos com Pruitt-Igoe. O exemplo mais conhecido no mbito europeu, devido aosacontecimentos de Novembro de 2005, o das banlieues francesas. A lei Borloo de Agosto de2003 , em Frana, a ltima de uma longa srie de programas governamentais que se sucederam aolongo das ltimas trs dcadas. A partir da primavera de 2004, este programa previa a demolio
de 200 000 fogos de habitao social construdos ao abrigo dos programas como o HLM(Habitation Loyer Modr -1951), ou o ZUP (Zones Urbaniser en Priorit - 1958), ou ainda o
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vindo a desenvolver, juntamente com a trade Vitruviana - utilitas, firmitas e
venustas - tinha sido quebrado deixando o lugar a um posicionamento terico
equvoco, multifacetado e complexo37. A multiplicidade e heterogeneidadeexistentes entre os possveis posicionamentos ideolgicos e paradigmas
projectuais que se instalaram, aps os anos 70, chegou para problematizar e
redimensionar as pretenses de universalidade da filosofia idealista subjacente ao
Movimento Moderno38, colocando-se no centro de uma densa crtica, tanto
ideolgica como formal ou, em geral, compositiva39.
Finalmente, as dinmicas culturais da sociedade que o filsofo norte-ZAC (Zones d'Amnagement Concerte - 1967). No conjunto, este programa destinou 30 milmilhes de euros para serem gastos entre 2004 e 2008. Tambm em outros pases a demolio foiutilizada como resoluo definitiva para o problema, muitas vezes de natureza maioritariamentesocial, das periferias. O bairro Ballymun localizado a norte de Dublin, partes do QuartiereLaurentino 38 em Roma, Castle Vale em Birmingham, ou partes do bairro Bijlmermeer emAmsterdo, so somente alguns dos exemplos possveis de uma prtica tornada corrente. Em todosos casos a atitude das administraes manifestou um grito de impotncia (Renzo Piano 2003.Demolire? No, ridiamo la vita alle periferie" entrevista com Elisabetta Rosaspina em Corrieredella Sera de 6 de Setembro de 2003) juntamente com uma clara inteno de apagardefinitivamente os erros cometidos no passado. Impotncia, essa, que, ainda segundo Piano, nascede um vazio ideolgico (s uma pequena parte dos 23 hectares de Pruitt-Igoe actualmenteocupada com um edifcio escolar novo, sendo o resto um descampado baldio) mas que parece
manifestar, subjacente, uma vontade em conservar um descomprometimento, chegando a ser, emcertos casos, uma recusa para com algumas partes do passado e em manter uma atitude intelectualmais flexvel mesmo que resulte, por ventura, ideologicamente mais leviana. (Para maisinformaes: Frank Wassenberg. 2006. Motives for demolition. Comunicao apresentada naENHR conference "Housing in an expanding Europe: theory, policy, participation andimplementation", Ljubljana, Slovenia. 2 - 5 July 2006).37 VENTURI, Robert. (1966). Complejidad y contradiccin en la arquitectura. Barcelona:Gustavo Gili, 1978.38 O idealismo subjacente ao Movimento Moderno manifestou-se, por exemplo, nas pesquisasfuncionalistas sobre a habitao, as investigaes formais sobre um Estilo Internacionalou, ainda,sobre as formas de planeamento urbano e, mais especificamente, no que respeita ao conceito dezoning.39 Se verdade que os anos 70 registaram, como defendido neste trabalho, uma profundaviragem intelectual, tambm verdade que o Movimento comeou a sua trajectria descendente jalgumas dcadas antes. Neste contexto, a intensidade e o traado do percurso do MovimentoModerno podem ser seguidos pelos acontecimentos que pautaram os CIAM ao longo da suaexistncia. Se o momento de apoteose ideolgica foi registado em 1933 com a produo da Cartade Atenas, a partir dos anos 50 (mais especificamente de 1951, ano do CIAM em Hoddesdon,Inglaterra, cujo tema principal era The Heart of the City), tanto a legitimidade como ahomogeneidade hidelgica destas reunies foram perdendo progressivamente fora. SegundoVittorio Gregotti, nestes anos que comea a emergere la questione che si dimostrer centraleper i quarantanni successivi: il problema dellascolto del contesto, del progetto come dialogo conesso in quanto forma depositata della storia del luogo specifico. Tendo como base este
pressuposto, sempre segundo Gregotti, la generazione pi giovane non riprese in alcun modo ilvecchio dibattito ideologico tra accademici e avanguardia ma piuttosto si pose lobbiettivo didiscutere dallinterno lideologia del moderno. GREGOTTI, Vittorio, Editoriale em: Rassegna(Gli ultimi CIAM), n 52, Dicembre 1992, p. 5.
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americano Fredric Jameson apelidou tardo-capitalista, reestruturaram as matrizes
crticas da produo cultural em todos os mbitos de produo terica e material40.
O surgir de uma esttica populista, cultural e socialmente veiculada e legitimada,entre outras, pelo sucesso crtico e comercial da pop-art, foi diminuindo a
clivagem existente entre uma cultura elitista e uma cultura de massas baseada em
dinmicas comerciais. Uma nova cultura televisiva, cinematogrfica, jornalstica,
musical, mas tambm arquitectnica, foi fundindo vrios vectores de produo
num nico onde a distino entre valor cultural e de mercado se foi gradualmente
esbatendo at anulao. Criou-se, assim, um espao homogneo, tanto de
produo como de fruio, onde coincidiam as dinmicas crticas com ascomerciais, ambas inseridas numa crescente compresso temporal que, quando
implementada pelas tecnologias digitais, provocava uma progressiva e definitiva
alterao da relao entre autor e obra e entre obra e utilizador.
Colocado neste cenrio, o ensino do projecto de Arquitectura tem sofrido
uma bipolarizao da sua misso e desafios diante da sociedade. Por um lado,
manifesta a necessidade em dar continuidade e estrutura ao acervo de saber, tantoterico como pragmtico, atravs do qual se criam as condies para que se
realizem os processos de transmisso de conhecimento prprio do seu mbito
disciplinar. Uma misso, esta, levada a cabo num clima de profundo
deterioramento das relaes hierrquica e de autoridade, que tinham suportado o
ensino anteriormente e sobre as quais este se tinha vindo a desenvolver. Por outro
lado, patenteia a necessidade de acompanhar e de tentar apreender e compreender
aquela fragrncia histrica
41
que caracteriza, de forma mltipla e heterognea,a cultura e, mais especificamente, a Arquitectura contempornea.
40 Segundo Fredric Jameson, o ps-moderno representa uma ideologia cultural dominante denatureza maioritariamente econmica. Segundo uma viso fortemente marxista dos fenmenos,Jameson afirma que esta mercantilizao contaminou, definitivamente, todas as esferas de
produo e de veiculao cultural, alm das relaes sociais baseadas na produo ou na trocaintelectual. JAMESON, Fredric. (1991). Postmodernismo. Ovvero la logica culturale del tardocapitalismo.Roma: Fazi, 2007.41 TAFURI, Manfredo. (1968). Teorias e Histria da Arquitectura. Lisboa: Editorial Presena,1979.
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Considerando o exerccio do projecto como espao pedaggico de encontro
e de sntese entre um saber arquitectnico e um posicionamento e funcionamento
intelectual - individual e exclusivo de cada aluno - ambos inseridos num contextosocial e cultural determinado por factores histricos e contingentes, compreender-
se- que o actual cenrio determina, atravs das suas contaminaes, uma nova
configurao terica e prtica, profundamente diferente em relao que
acompanhou a modernidade e, nomeadamente, as experincias escolares dos
sculos XVIII, XIX e XX. Por outras palavras, est-se diante de uma mudana de
paradigma no que respeita tanto s condutas de ensino como s que caracterizam o
mbito disciplinar da Arquitectura42
.Nesta ptica, no existe, de facto, razo para a qual o mbito do projecto de
Arquitectura poderia, hipoteticamente, ficar absolutamente isento das alteraes
decorrentes de um contexto intelectual mais abrangente. Pelo contrrio, alguns
dos elementos caracterizantes da actualidade, como so, por exemplo, as
tecnologias digitais ou as dinmicas de mercantilizao artstica, tiveram, no
campo do ensino do projecto de Arquitectura, um espao de reverberao, seno
mesmo, em alguns caos, de amplificao. Neste sentido, parece possvel epertinente operar uma abordagem ao conjunto de aces materiais e intelectuais
que formam e determinam o processo de ensino/aprendizagem do projecto de
Arquitectura. Esta abordagem necessita, contudo, de ser encaminhada e
desenvolvida num contexto intelectual e filosfico mais abrangente. Contexto esse
que, como ser ulteriormente investigado, se revela determinante quando
relacionado com os comportamentos cognitivos do sujeito, sobretudo no que
respeita s condutas projectuais, uma vez que, como j foi referido, estas possuem
estritas ligaes de natureza epistemolgica e ontolgica com conceitos to
complexos e abrangentes como so os defuturo, deprogressoe de autonomia.
Face a este enquadramento terico, a abertura de um debate volta da
42 FINDELI, Alain. 2001. Rethinking Design Education for the 21st Century: Theoretical,Methodological, and Ethical Discussion.Design Issues. Volume 17, Number 1, Winter 2001, p. 5-17.
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condio contempornea do ensino do projecto de Arquitectura torna-se possvel,
unicamente, atravs de um relativo afastamento do problema, uma vez que uma
excessiva proximidade no permitiria a deteco e a descrio do conjunto deforas e de linhas que atravessam e contaminam, vindas do exterior, os fenmenos
em anlise. Seria, assim, um erro cabal considerar o ensino de Arquitectura, e
mais especificamente o ensino de projecto, como algo de isolado e autnomo que
se esgota numa especificidade operacional ou cujo funcionamento resulta ser
determinado unicamente por factores que lhe so endgenos. Dificilmente seria
possvel detectar as suas derivaes ou vcios intelectuais e, ainda mais difcil,
conseguir compreend-las e explic-las. Trata-se, portanto, de diagnosticar,compreender e problematizar as contaminaes que este mbito sofreu, por
simpatia, quando encarado como aco intelectual, inserida num contexto
histrico ainda em fermentao mas que j manifestou os prprios traos
dominantes e as respectivas consequncias nas condutas sociais e culturais,
individuais e colectivas do sujeito.
neste cenrio que o ensino do projecto de Arquitectura o espao de
encontro e de fuso dialctica onde coexistem as duas linhas de debatecaracterizadas por profundos laos e ligaes recprocas: uma primeira que aponta
para a formao do indivduo, representada, segundo Edgar Faure, por um
aprender a ser43. Aprender a ser,escreve Faure, para melhor desenvolver a
sua personalidade e estar altura de agir com cada vez maior capacidade de
autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, no
negligenciar na educao nenhuma das potencialidades de cada indivduo:
memria, raciocnio, sentido esttico, capacidades fsicas, aptido para
comunicar-se44. Uma segunda, mais prpria e restrita ao mbito disciplinar, a de
43FAURE, Edgar e Felipe Herrera, Abdul-Razzak Kaddoura, Henri Lopes, Arthur V. Petrovsky,Majid Rahnema, Frederick Champion Ward. (1972)Learning to be. The world of education todayand tomorrow.Relatrio da Comisso Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao. Paris:UNESCO. Edio portuguesa: Aprender a Ser. Lisboa: Livraria Bertrand. 1981. Versoelectrnica retirada de: http://unesdoc.unesco.org/ulis/ em Junho de 2006. Edgar Faure (1908/88),formado em Direito, alm de ter sido por duas vezes primeiro-ministro da Repblica Francesa(1952 e 1955-1956), foi vrias vezes secretrio de Estado e ministro (da economia, do interior, dosnegcios estrangeiros, da agricultura e da educao).44Idem, p. 102.
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aprender a fazer Arquitectura. Pois ao longo da actividade projectual,
considerada como momento de sntese e de estruturao de conhecimento, que se
fundem as aces materiais com as rotinas intelectuais do campo disciplinar.Momento e espao de encontro, e de dilogo do sujeito com a sociedade, com o
conhecimento, com a disciplina. Quebrar este lao dialgico s pode ser feito em
detrimento da riqueza, complexidade e pertinncia do discurso sobre o ensino de
Arquitectura. Os alunos que frequentam um curso de Arquitectura procuram, sem
dvida, aprender uma profisso, mas eles so, antes de mais, jovens em processo
de crescimento e de formao intelectual, inseridos numa sociedade especfica e
numa determinada poca histrica. So filhos, irmos, amigos, pais ou colegas.Nesse sentido a aco no mbito da Arquitectura representa s uma mnima parte
da aco de cada sujeito, pois ela tambm conserva em si o condensado de uma
conduta humana e de um posicionamento intelectual do sujeito diante do mundo,
da tcnica e da tica, do indivduo e da sociedade, do ser e do conhecimento. Por
outras palavras, ser Arquitecto , antes de mais, ser homem.
Diante da necessidade em desenvolver uma abordagem que no se tornerefm das rotinas intelectuais exclusivas, e por vezes viciadas, do prprio mbito
da Arquitectura, poder implementa-se r uma abordagem com a ajuda das
ferramentas conceptuais desenvolvidas no seio da Filosofia. Esta
interdisciplinaridade permite, antes de mais, uma observao das dinmicas que,
mesmo quando aparentemente exclusivas ao ensino do projecto de Arquitectura,
ganham, se colocadas sob o olhar da Filosofia, inesperadas e frutferas ligaes.
Os processos de racionalizao e de legitimao da Arquitectura, frequentementeexgenos mesma, encontram uma continuidade e contiguidade que lhe atribuem
um significado e uma relevncia num maior contexto relacional. Uma Filosofia
que, como afirma Carlo Sini45, olha para as nossas comuns, contnuas e
45 Carlo Sini (Bolonha, 1933) um filsofo italiano. , actualmente, regente da Cattedra diFilosofia Teoretica na Universit Statale di Milano. membro da Accademia dei Lincei e doInstitut International de Philosophie em Paris. considerado responsvel por ter divulgado, juntodo pblico italiano, a importncia da obra de Charles Peirce, alm de ter aprofundado a ligaoentre este e Martin Heidegger.
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quotidianas experincias, e retrocede nelas at ao fundamento; procura, em
suma, olhar nelas para o miolo mais resistente, mais concreto46. Uma Filosofia
que no se perca em meras reflexes tericas mas que contribua para um exercciode pensamento sobre assuntos concretos e especficos, sobre comportamentos e
fenmenos reais. Mas, tambm, uma Filosofia que consiga proporcionar uma
grelha dialctica para suportar um debate onde a particularidade exista em relao
generalidade; onde possveis comportamentos desviantes no se esgotem na
unicidade do sujeito mas encontrem um plano relacional onde podem ser
abordados, estudados e, porventura, atenuados ou corrigidos. Em suma uma
Filosofia que possa oferecer as suas ferramentas de pensamento Arquitectura;campo de onde sai e para onde sempre volta o discurso deste trabalho.
Este esforo feito na certeza de que, como afirma Emanuele Severino 47,
mesmo na esquizofrenia terica48que caracterizou o fim da modernidade e de
alguma forma ainda contamina a contemporaneidade, a cultura arquitectnica
contempornea (...) necessita sempre e de qualquer das maneiras de uma teoria
tanto potente como aperfeioada49sobre a qual pode edificar os seus processos
intelectuais e as suas rotinas de legitimao; sobre a qual pode construir umprocesso de ensino que no esteja permanentemente sujeito s alteraes que
marcam, com frequncia crescente, a contemporaneidade.
46SINI, Carlo. 1992. Pensare il progetto.Milano: Tranchida Editori Inchiostro, p. 13 traduolivre.47Emanuele Severino (Brescia, 1929) um filsofo italiano. Professor emrito pela Universit CFoscari em Veneza, actualmente docente na Universit Vita-Salute San Raffaele em Milo. Temvrias dezenas de livros publicados, membro da Accademia dei Lincei e colabora regularmentecom o dirio Corriere della Sera.48 SEVERINO, Emanuele. 2003. Tecnica e architettura. Milano: Raffaello Cortina Editore traduo livre.49Idem, p. 9.
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1.3
Ensino e profisso: uma unio de facto
A dificuldade de organizao de uma escola de arquitectura passa pelacriao de uma estrutura que permita um contacto directo com a prticaextra-escolar e simultnea aplicao de bases tericas rigorosas que apoiemo mergulho nessa prtica. Tudo isso sem perda de autonomia e de distncia.Tambm aqui as snteses possveis so feitas de oscilaes e cruzamentos, enunca estveis ou perfeitamente equilibradas, sendo contudo indispensvelque exista, em cada instante, uma definio clara de escola. So fragmentosde conhecimento que permitem aproximaes seguras, apesar do perigoeminente de no conseguir integr-los numa politica global. Ser odesenvolvimento dessa capacidade o essencial do ensino.lvaro Siza50
Quando se aborda o ensino do projecto de Arquitectura, considerado comouma prtica didctica baseada num exerccio concreto de simulao projectual,
torna-se extremamente difcil, se no mesmo impossvel, isolar o mbito do
ensino do profissional. Apesar de ser certamente vivel a construo de um
discurso autnomo, este no poder deixar de ter referncias para um material
terico oriundo da actividade profissional, uma vez que o exerccio projectual
representa, no que respeita s suas bases epistemolgicas e s suas rotinas
processuais, um fenmeno transversal que une, de forma biunvoca, ensino eprofisso.
Esta transversalidade est presente, historicamente, no desenvolvimento do
ensino de Arquitectura e pode ser considerada como um dos elementos
caracterizantes das alteraes ocorridas no seu seio. Olhar para a relao entre
ensino e profisso significa, por outras palavras, olhar para um lento processo de
destilao onde rapidez e heterogeneidade das experincias profissionais
correspondeu uma cristalizao de princpios tanto arquitectnicos comopedaggicos que se reverteu, progressivamente, para o campo do ensino. Estas
transferncias e contaminaes resultaram particularmente evidentes em
determinados momentos que foram, de facto, historicamente marcantes no
processo de construo do actual modelo de ensino de Arquitectura e, mais
50 lvaro Siza citado por COSTA, Alexandre Alves. 2007. Textos datados. Coimbra:Departamento de Arquitectura, Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade de Coimbra, p.240.
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especificamente, no que respeita ao ensino de projecto. Com base nesse princpio,
desenvolve-se um conjunto de leituras historicamente localizadas com o fim de
assinalar as etapas mais determinantes deste processo. O que se procuroudemonstrar foi a necessidade de o ensino do projecto de Arquitectura se manter
criticamente aberto para o mbito da profisso. Uma profisso periodicamente
impulsionada por oscilaes que parecem, cada vez com maior frequncia, abalar
as suas estruturas essenciais e questionar os seus princpios fundadores. Mas
tambm uma profisso cujas ligaes polticas, culturais ou econmicas no
deixam de influenciar a forma atravs da qual o ensino procura adaptar-se aos
contextos conjunturais que se sucederam ao longo do tempo.
De um ponto de vista histrico, o ensino de Arquitectura desenvolveu-se,
numa fase inicial, atravs de um processo de osmose entre mestre e aluno,
chegando a no existir uma clara e explcita distino entre a figura do
colaborador e a do aprendiz. A escola existia na obra e no atelierdo mestre e a
transmisso do conhecimento baseava-se, quase exclusivamente, num ambiente
intelectualmente e materialmente determinado pela prtica artesanal51
. A obra erao lugar da experincia e de formao contnua onde os arquitectos aprendiam,
por voz ou pelos desenhos, os conhecimentos empricos da profisso52. Existia
uma relao de proximidade fsica e intelectual que pode encontrar-se, ainda hoje,
nas vrias formas de estgios exigidos por muitas ordens profissionais. Poder
afirmar-se que, de modo geral, o estgio profissionalizante o legado de um
sistema de ensino baseado na pupilagem, sistema que representou, ao longo de
muitos sculos, uma forma de ensino paralela e/ou complementar formal
53
.Mesmo com a institucionalizao do ensino de Arquitectura, que, embora
51 PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: histria e crtica, ensino e profisso. Porto:FAUPpublicaes.52CASTAGNARO, Alessandro. 2003.La formazione dellarchitetto. Botteghe Accademie FacoltEsperienze Architettoniche.Napoli: Liguori Editore, p. 8 - traduo livre.53BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.
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comeando no sculo XVI na Florena renascentista54, encontrou no sculo XVIII
as formas que ainda hoje o caracterizam, a proximidade entre a aprendizagem e a
profisso manteve-se fortemente presente55
. Nas escolas de Arquitectura queforam surgindo neste hiato de tempo, um pouco por toda a Europa, a formao era
maioritariamente de carcter pragmtico e os problemas levantados no mbito do
ensino eram tratados e resolvidos com base nos fundamentos tericos e prticos
da profisso56.
Esta promiscuidade esteve presente tambm, nos finais do sculo XIX, nos
cursos de matriz politcnica que foram surgindo no territrio europeu57e onde a
54Cita-se, a ttulo de exemplo, a Accademia del disegnode Vasari em Florena ou, sempre emFlorena, a escola de Arquitectura que Bernardo Buontalenti, duque superintendente pelaarquitectura civil e militar da Toscnia, conduzia em sua casa.55Aliceradas neste paradigma, a partir do sculo XVI foi progressivamente abrindo, por toda aEuropa, um grande nmero de escolas. A de Bernardo Buontalenti, por exemplo, conhecido comoBernardino delle Girandole e duque superintendente pela arquitectura civil e militar da Toscnia,foi aberta na sua prpria casa em finais do sculo XVI. A Accademia del Disegno de GiorgioVasari (com aulas de desenho, perspectiva e arquitectura) ou a de Santa Lucia em Roma, abertaem 1593. Ainda a Scuola dArchitettura dirigida por Fabio Mengoni em Milo desde 1620 at
1631, ou a Acadmie royale de peinture et de sculptureem Paris que foi fundada em 1648 e queiria durar, apesar das progressivas alteraes, mais de 320 anos. Sucessivamente, o sculo XVIIIassiste abertura, em 1790, da Academia das Artes e Ciencias Mecnicasna Prssia de FedericoII, por mo de Heinitz, seu ministro, alm da abertura seguida da cole Centrale ds TravauxPubliques de Rondelet em 1793 (que mudar para cole Polytechnique em 1795), da coleSpcial dArchitectureem 1795 e, j nos princpios do sculo XIX, em 1806, fundao da RoyalAcademy of Artsde Londres e do Politcnico de Praga (BANNISTER, Turpin. 1954. The Architectat Mid-Century. Evolution and Achievement. New York: Reinhold). Todas estas escolas resultaraminseridas em cenrios de ensino fortemente determinados pela necessidade de transmisso de umconhecimento arquitectnico informado numa matriz cientfica e matemtica que se encontrava,
por exemplo, na axiomatizao e na normativizao dos tratados e dos manuais. Mas tambmeram instituies fortemente politicizadas uma vez que representavam manifestaes de umavontade representativa de natureza governamental.
56 PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: histria e crtica, ensino e profisso. Porto:FAUPpublicaes.57Em 1975, a cole centrale des travaux publique, fundada em 1793 por Jean-Baptiste Rondelet, transformada em Ecole Polytechnique. Esta era uma escola de cariz militar que abrangia os
principais ramos da engenharia (sob o lema Pour la Patrie, les sciences et la gloire) e queinfluenciou, ao longo do sculo XIX, especialmente na zona central da Europa, a abertura devrios cursos de matriz politcnica. Em 1799, por exemplo, abriu a Bau-Akademia, na Prssia;seguiram-se: Praga em 1806, Viena em 1815, o Instituto politcnico da Baviera em 1823 (a partirdo qual, quatro anos mais tarde, surge a seco de Munique que se torna uma reconhecida escolade Arquitectura), o de Kalsruhe (Alemanha) em 1825 (cujo currculo em Arquitectura ficou cedoreconhecido como um dos mais fortes de Europa). Outros se seguiram: Braunschweig, Estugarda,Hannover, Dresdem e Darmstadt. Em 1854 surge o Politcnico Federal Suo em Zurique. EmBANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.
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composio arquitectnica fazia parte da matria de ensino. Nestes cursos era
pedido, ao longo dos estudos, que os alunos dedicassem vrios anos
aprendizagem dos princpios tcnicos da profisso e, sucessivamente, tivessemque desenvolver uma experincia prtica de projectos junto de instituies
governamentais ou de escritrios privados58.
Num cenrio assim delineado, havia pouco ou nenhum espao de debate
sobre pedagogias ou didcticas especficas do ensino de Arquitectura. O ensino
era considerado, de um ponto de vista social e filosfico, um processo de
preparao do sujeito para a vida intelectual activa59. Apesar de o exerccio
projectual representar uma actividade central do curso, qual tanto alunos comodocentes consagravam a maior parte do tempo, a autonomia intelectual do aluno
estava condicionada tanto pelo paradigma esttico corrente como por uma
abordagem fortemente tecnicista, baseada e legitimada pela presena das
disciplinas cientficas, de forma muito igual ao que acontecia na prtica
profissional diria60. Assim, a uniformidade tanto formal como metodolgica que
caracterizava a produo arquitectnica e artstica, em geral, permitia
menosprezar os aspectos relativos actividade cognitiva do indivduo e s formasde aprendizagem da matria, uma vez que o sistema de ensino apontava para a
formao de sujeitos de competncias normalizadas cujo referente era, na maioria
das vezes, encontrado na profisso61. Por exemplo, o conjunto de textos de apoio
actividade lectiva que pautaram o ensino francs desde o sculo XVIII tinha um
carcter maioritariamente prescritivo em relao aprendizagem do aluno. Como
afirmou G. C. Argan, o referente clssico, objecto de estudo e de interpretao
tanto pelos manuais como pelo coleccionismo, pelas pesquisas e pelo grand tour,
marcava de tal maneira o processo intelectual do projecto que a verdadeira
58BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.59 CONDORCET, Marqus de (Marie Jean Antoine Nicolas Caritat) Ecrits sur l'Instruction
publique, tome II, Rapport sur l'Instruction publique. Paris: 1792. Edilig, p. 81-87. Versoconsultada on-line em Julho 2005: http://gallica.bnf.fr.60BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.61Idem.
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tcnica do artista a tcnica do projecto, toda a arte neoclssica rigorosamente
projectada. A execuo a tradio do projecto atravs dos instrumentos
operacionais que no resultam ser exclusivos do artista, mas fazem parte dacultura e do modo de vida da sociedade. (...) Neste processo de adaptao tcnica
e prtica elimina-se necessariamente o carcter individual, o arbtrio genial da
primeira inveno, mas, em compensao, a obra adquire um interesse directo
para a colectividade e desempenha aquele papel de educao civil que a esttica
iluminista entrega arte no lugar da antiga funo religiosa e didasclica62.
Neste contexto, os tratados e os manuais63, apesar de poderem certamente
contribuir para o debate terico no mbito da Arquitectura, no possuam umaparticular preocupao no que se refere s actividades cognitivas presentes no
ensino, limitando-se a servir de guio projectual vlido tanto para o ensino como
para a profisso.
A abertura da Bauhaus de Weimar, em 1919, marcou uma profunda
mudana no que respeita relao entre profisso e aprendizagem e, com esta, no
debate volta do prprio ensino da Arquitectura. As teorias psicolgicas,filosficas e educativas que foram surgindo na viragem do sculo XVIII para o
sculo XIX e que viram uma solidificao nos princpios do sculo XX, tiveram
um forte impacto tanto na estruturao do currculo da escola como na
implementao de um novo discurso sobre o ensino das artes e,
consequentemente, da Arquitectura. A obra do filsofo norte-americano John
62 ARGAN, Giulio Carlo. 1970. Larte moderna 1770-1970. Firenze: Sansoni, p. 19 e 21 traduo livre.63 Segundo Giorgio Grassi Sia il termine trattato che il termine manuale, nella loroaccezione canonica, fanno riferimento a una teoria della progettazione. Se il primo infattirappresenta proprio la costruzione di una teoria della progettazione, il secondo la presupponesempre (...) il termine manuale designa una casistica, una serie finita di esempi, un quadro dimodelli direttamente traducibili. Ma in ogni altra situazione questa distinzione non ha pi alcunsignificato: ogni manuale infatti dovrebbe permetter, cio esporre i