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    Marco Ginoulhiac

    O ensino do projecto de Arquitectura

    Contribuies para um debate crtico em torno daprtica contempornea

    Tese de Doutoramento em Arquitectura

    UNIVERSIDADE DO PORTO

    Faculdade de Arquitectura

    2009

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    Luisa, Clara e Teresa

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    Que fazer? Ali estou eu, completamente nu, com uma rapariga de vinte mildiabos to vestida como eu, no meio de um quarto onde h uma cama e nadamais. evidente que um problema que no me ensinaram a resolver naUniversidade.Boris Vian1

    Diremos que o professor de arquitectura tem de ensinar arquitectura naconvico de que ela se ensina e na plenitude da convico contrria, de queela no se ensina, nem pode ensinar-se.Alexandre Alves Costa2

    Os novos temas, que se propagam cultura arquitectnica, esto,paradoxalmente, aqum e alm da arquitectura. No pretendemos

    reconhecer historicamente nenhuma saudade, mas tambm nenhumaprofecia apocalptica nesse reconhecimento. Nenhuma saudade: pois quandoo papel de uma disciplina se extingue, transforma-se em pura utopiaregressiva, e da pior espcie, qualquer tentativa de travar o curso das coisas.Nenhuma profecia: porque o processo evolui quotidianamente sob os nossosolhos e, para quem quisesse uma prova clamorosa disto, seria suficientereflectir na percentagem de arquitectos laureados que efectivamente exercema profisso. no entanto verdadeiro que queda do profissionalismo nocorresponde ainda nenhum papel institucionalmente definido para ostcnicos anteriormente empregues na edificao. Assim, encontramo-nos anavegar num espao vazio, no qual tudo pode acontecer mas nada decisivo.Manfredo Tafuri3

    Perch ci che si salver non sar mai quel che abbiamo tenuto al riparodai tempi, ma ci che abbiamo lasciato mutare, perch ridiventasse se stessoin un tempo nuovo. Alessandro Baricco4

    11VIAN, Boris (1947).Morte aos Feios.Lisboa: Relgio dgua, 2002, p. 20.2 ALVES COSTA, Alexandre. 2007. Textos datados. Coimbra: Departamento de Arquitectura,Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade de Coimbra, p. 255.3TAFURI, Manfredo. (1973). Projecto e utopia.Lisboa: Editorial Presena, 1985, p. 10.4BARICCO, Alessandro. 2006.I barbari. Saggio sulla mutazione.Roma: Fandango, p. 180.

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    Sumrio

    1 Analogia introdutiva: o Senhor Palomar 17

    1.1 Advertncias ao leitor e enquadramento terico 22

    1.2 Primeira abordagem ao argumento 31

    1.3 Ensino e profisso: uma unio de facto 39

    1.4 Ensino de Arquitectura: um debate em crescimento 50

    2 Ensino do projecto de Arquitectura: do conceito ao projecto 65

    2.1 Os traos dominantes do projecto 77

    2.2 O projecto como construo de conhecimento 87

    2.3 Da educao ao ensino do projecto de Arquitectura 972.4 Ensino do projecto e modernidade 116

    3 As mudanas do cenrio intelectual 121

    3.1 O debate sobre a ps-modernidade 127

    3.2 As meta-narrativas da modernidade 136

    3.3 Linguagem e legitimao 146

    3.4 Do determinismo para a incerteza 153

    3.5 O enfraquecimento da ideia de progresso 1593.6 Projecto e novas possibilidades 165

    3.7 A reaco disciplinar da arquitectura 171

    4 O ensino do projecto de Arquitectura face ps-modernidade 183

    4.1 Uma nova configurao social 187

    4.2 Massificao e medianidade 193

    4.3 A crise das instituies 199

    4.4 As derivaes no ensino de projecto 210

    4.5 A omniscincia 216

    4.6 O tecnicismo 223

    4.7 O formalismo 231

    4.8 O autismo 238

    4.9 Criatividade e inteligncia 244

    5 Hermenutica e Arquitectura, um encontro provvel 257

    5.1 Projecto de Arquitectura e indefinio 261

    5.2 Indefinio e ensino de projecto: a abertura construtivista 268

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    5.3 Indefinio e ensino de projecto: o caminho hermenutico 274

    5.4 A centralidade do preconceito 281

    5.5 O pensamento dialctico como processo de negociao 2886 As condies da negociao projectual 299

    6.1 O papel do docente 302

    6.2 Avaliao como racionalizao 309

    6.3 O docente: subjectividade e influncias 318

    6.4 A importncia do preconceito e da autoridade 323

    6.5 A representao como plataforma de negociao projectual 331

    6.6 Novas plataformas de negociao projectual 339

    6.7 A contingncia da compreenso, do projecto proairesis 348

    7 O enquadramento epistemolgico do projecto: a avaliao 361

    7.1 O conhecimento como ar de famlia 372

    7.2 O conhecimento histrico 380

    7.3 A construo dos preconceitos 387

    8 Concluses 395

    9 Olhando para trs 40510 Bibliografia 423

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    Agradecimentos

    Um primeiro agradecimento, tanto institucional como, e sobretudo, pessoal,

    vai para o orientador deste trabalho, o Professor Doutor Lus Soares Carneiro com

    o qual se estabeleceu, desde logo, uma relao amizade e de simbiose intelectual

    sobre as quais se construiuram a compreenso e a produo do e no discurso

    construdo pela tese.

    Outro agradecimento dirigido, com igual intensidade e dedicao, para o

    Professor Doutor Vtor Silva que, no papel de co-orientar manteve um olhar

    sempre atento e crtico sobre o processo de investigao e sobre os seus

    resultados.

    Os caminhos que a investigao traou saram frequentemente do mbito

    restrito da Arquitectura. Estas exploraes gozaram do apoio de colegas de outros

    campos disciplinares sem a ajuda dos quais a tese no teria sido possvel. Entreeles: o anterior co-orientador Professor Doutor Vasco Branco, da Universidade de

    Aveiro, a Professora Doutora Sofia Miguens e o Professor Paulo Tunhas, ambos

    da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A ajuda e pacincia destes

    colegas representaram factores indispensveis para que, em vrios momentos, o

    receio intelectual deixasse o lugar para um saudvel atrevimento, sem o qual nada

    disso poderia ter sido feito.

    Todo e qualquer trabalho de produo , em muita boa parte, um percurso

    solitrio. Todavia o autor teve a sorte de gozar da amizade, da solidariedade e da

    competncia dos colegas que, ao longo de quatro anos, tiveram sempre prontos

    para partilhar com ele tanto a exaltao da escrita e da inveno como a depresso

    do bloqueio e da rejeio. Neste estado de bipolaridade emocional e intelectual,

    foram insubstituveis as ajudas de Anni Gunther, Antnio Madureira, Eliseu

    Gonalves, Jos Quinto e Lus Viegas. Colegas e amigos que, sem nenhum tipo

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    de obrigao, nem enquanto amigos nem enquanto colegas, leram ou discutiram

    vrias partes ou verses do trabalho. Foram eles que, dia aps dia, permitiram

    manter uma sade e firmeza mental tanto atravs de pacientes e pontuaismanifestaes de amizade, como contnuos estmulos e desafios.

    Dada a disponibilidade e interesse que demonstrou para com os temas

    abordados, um reconhecimento particular destina-se ao Professor Gianni Vattimo

    que, apesar da distncia geogrfica, disciplinar e pessoal que o separa deste

    trabalho, manifestou uma disponibilidade exemplar ao ler o trabalho e uma

    generosa prontido em enviar um elogio. A sua participao nos trabalhos,

    anteriormente temida com receio dada a grande notoriedade da pessoa em

    questo, alm de ter legitimado a linha de pesquisa, revelou-se um enorme

    estmulo para a prossecuo.

    Conversas informais, comentrios ocasionais ou rpidas sugestes foram,

    em determinadas alturas, extremamente importantes e frteis. A todos os que,

    directa ou indirectamente, ajudaram dar consistncia e estrutura ao trabalho, a

    dar energias e clareza mental ao seu autor vai, finalmente, um caloroso

    agradecimento nas esperanas que, ao lerem este texto possam, tambm,

    reconhecer a sua prpria contribuio.

    Um agradecimento especial, com grande amizade e admirao, vai para o

    Fernando Lisboa cuja obra e cuja lembrana tem sido to importantes para este

    trabalho.

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    Resumo

    A tese fundamenta-se no pressuposto de que se, por um lado, certamente

    verdade que as rotinas didcticas que suportam o ensino do projecto de

    Arquitectura se mantm substancialmente idnticas desde as suas primeiras

    manifestaes, que remontam ao sculo XV, tambm verdade que o contexto

    intelectual na qual se encontram, que actualmente as rodeia, alimenta e legitima,

    mudou profundamente os seus paradigmas de funcionamento.

    Tendo como cenrio esse enquadramento terico, que mantido

    propositadamente provisrio at sua progressiva legitimao, a tese procede para

    uma caracterizao conceptual das ideias de projecto e de ensino. Tendo este

    objectivo, defende-se um posicionamento construtivista que se alimenta,

    historicamente, da galxia conceptual que roda em torno de outro conceito

    fundador: o associado ideia de modernidade.

    A estabilizao de uma estrutura discursiva tripartida (projecto de

    Arquitectura, ensino e modernidade) permite sucessivas leituras das dobras

    tericas que caracterizaram a passagem da ideia de modernidade para um

    enquadramento filosfico prximo da aceitao da ideia de ps-modernidade.

    Esta passagem analisada segundo alguns eixos que, alm de se demonstrarem

    particularmente pertinentes para o argumento da tese, inauguram novas leituras

    baseadas em novas ligaes teorticas.

    Desta forma, o ensino do projecto de Arquitectura, quando colocado

    teoricamente na plataforma crtica da actualidade, denuncia um conjunto de

    comportamentos desviantes que so objecto de descrio e de articulao com o

    enquadramento geral da tese. Tambm a actual configurao social, assim como a

    massificao do ensino e a crise das instituies sociais representam elementos de

    problematizao que participam na construo discursiva do problema que reside

    na base de uma pergunta tcita colocada pela construo da tese. Por outras

    palavras procura-se desenhar e equilibrar uma plataforma terica de suporte ao

    debate que pode ser construdo em torno de alguns comportamentos

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    contemporneos, intelectuais e materiais, que contaminam, com particular

    intensidade, justamente as rotinas do ensino do projecto de Arquitectura. Esta

    plataforma fornece um plano de corte epistemolgico no qual possveldesenvolver diversos caminhos analticos em torno dos fenmenos em estudo.

    A construo e articulao epistemolgica do problema colocado torna-se

    naturalmente dependente da construo de uma sua possvel soluo ou, pelo

    menos, organizao. Nesse sentido, um enquadramento teortico prximo da

    Filosfica Hermenutica proporciona as condies tericas para que possa ser

    levada a cabo esta articulao. A construo de uma verdade projectual enquanto

    acto de interpretao , de facto, um dos processos mais importantes no interior

    das dinmicas de explicao e aprendizagem do ensino do projecto de

    Arquitectura. O desvendamento destes elementos, que resultam ser tanto

    conceptuais como processuais, permite a articulao de um quadro analtico

    extremamente abrangente e frtil para a compreenso e discusso da actual

    condio epistemolgica do projecto de Arquitectura e do seu ensino, alm de

    fornecer algumas linhas tericas de suporte para um renovado enquadramentocrtico.

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    Abstract

    The Thesis is based on the assumption that if it is really true that daily

    didactic routines that support the design studio teaching have been kept identical

    from the very beginning, dating from 15thcentury, it is also true that the actual

    intellectual context that feeds and legitimizes them have changed radically their

    task paradigms.

    Having as background this theoretical profile, maintained decidedly

    transient until its progressive legitimization, the thesis proceeds towards a

    conceptual characterization of ideas on design studio teaching. Having these

    issues as aim, it is defensible a constructivist positioning fed historically by the

    conceptual galaxy turning around another founding concept: the idea of

    modernity.

    The stabilization of a discourse tripartite structure design studio teaching

    and modernity allows successive readings of theoretical plies characterizing the

    stream of the idea of modernity to a philosophical frame near the acceptance of

    the idea ofpost-modernity. This stream is analyzed under some axes that beyond

    particularly relevant for the argument of the thesis, launch new understandings

    based upon new theoretical attachments.

    In this way, the design studio teaching, when theoretically set on the critical

    platform of today, denounces a set of deviant behaviours that are items of

    depiction and articulation of and with the general outline of the thesis. The actual

    social configuration as the teaching amalgamation together with social

    institutions crisis represent elements of predicaments participating in the discourse

    construction of the problem dwelling in the fundaments of a tacit question arose

    by the elaboration of the thesis. In other words one tries to draw and establish a

    stable theoretical platform due to support debates concerning some

    contemporaneous intellectual and material state of minds that lie behind the

    routine and taints the design studio teaching. This platform provides a flat surface

    for an epistemological slash where it is possible to develop several analytical

    ways around the phenomenological matters under focus.

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    The epistemological construction and articulation of the predicament turns

    out to be dependent on the creation of one eventual resolution or, at least, one

    structure. In that sense, a theoretical outlined adjoining hermeneutic philosophyprovides the theoretic settings in order to accomplish that articulation. The

    building of a projective truth understood as an interpretation fact is, indeed, one of

    the most important procedures in the interior of the dynamics of explanation and

    learning of the didactics of the project design studio. The unveiling of those

    elements resulting as conceptual as procession allows the articulation of an

    analytical structure extremely abrangent and prolific for the understanding and

    discussion of the actual epistemological pursuit of the design studio and itsdidactics beyond the contribution for some theoretical support for a renovated

    critical frame.

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    Rsum

    La prsente thse repose sur l'ide pralable selon laquelle, s'il est certes vrai

    que les routines didactiques qui soutiennent l'enseignement du projet

    d'Architecture sont, pour l'essentiel, identiques depuis ses premires

    manifestations, qui surgissent au XVe sicle, il est tout aussi vrai que le contexte

    intellectuel dans lequel elles se trouvent actuellement, qui les entoure, les nourrit

    et les lgitime, a profondment boulevers les paradigmes de son fonctionnement.

    Cette thse, ayant pour toile de fond ce cadre thorique, lequel sera

    expressment conserv sous sa forme provisoire jusqu' sa lgitimation graduelle,

    entreprend une spcification conceptuelle des ides de projet et d'enseignement.

    Se basant sur cet objectif, le texte plaide pour une conception constructiviste,

    laquelle, historiquement, se nourrit de l'ensemble conceptuel qui tourne autour

    d'un autre concept fondateur: celui qui se trouve associ l'ide de modernit.

    La stabilisation d'une structure tripartite du discours (projet d'architecture,

    enseignement et modernit) permet de successives lectures des productionsthoriques qui caractrisent l'volution de l'ide de modernit vers un cadre

    philosophique proche de la reconnaissance de l'ide de postmodernit. Cette

    volution est analyse selon certains vecteurs, qui, au del du fait qu'ils se rvlent

    particulirement appropris la dialectique de la thse, donnent lieu de

    nouvelles approches bases sur des liaisons thortiques nouvelles.

    Par consquent, l'enseignement du projet d'Architecture, une fois valuthoriquement sur la plate-forme critique de l'actualit, rvle un ensemble de

    comportements dviants qui sont objet de description et d'articulation avec le

    cadre gnral de la prsente thse. Par ailleurs, la configuration sociale, ainsi que

    la massification de l'enseignement et la crise des institutions sociales, constituent

    des lments de questionnement qui font partie de la conception de l'expos du

    problme, lequel se retrouve la base d'une question tacite pose par l'laboration

    de la thse. En d'autres mots, la thse se propose de tracer et de rendre quilibre

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    une plate-forme thorique de soutien du dbat qui peut tre difi autour de

    certains comportements contemporains, qu'ils soient intellectuels ou matriels, qui

    dnaturent considrablement les routines de l'enseignement du projetd'Architecture. Cette plate-forme nous offre un plan pistmologique l'intrieur

    duquel on peut dvelopper plusieurs voies analytiques bties autour des

    phnomnes tudis.

    La construction et l'articulation pistmologique du problme soulev

    deviennent tout naturellement dpendantes de la mise au point d'une solution ou,

    tout au moins, de son organisation. A cet effet, un encadrement thortique proche

    de la philosophie hermneutique offre les conditions thoriques pour que l'on

    puisse charpenter cette articulation. La construction d'un projet cohrent en tant

    qu'acte d'interprtation est, en fait, un des plus importants processus dans le cadre

    des dynamiques d'explication et d'apprentissage de l'enseignement du projet

    d'Architecture. La rvlation de ces lments, qui relvent simultanment du

    concept et du processus, permet l'articulation d'un cadre analytique extrmement

    tendu et fertile en vue de la comprhension et discussion de l'actuelle forme

    pistmologique du projet d'Architecture et de son enseignement; en outre, elle

    trace un certain nombre de vecteurs thoriques de soutien un encadrement

    critique renouvel.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 17

    1 Analogia introdutiva: o Senhor Palomar

    Ci si potrebbe ancora domandare: ma allopera in mezzo a noi qualchemutazione epistemica, o sociale coinvolgente arte e scienza, cultura alta ebassa, i principi del maschile e del femminile, frammenti e totalit di ognitipo? Non ci resta che congetturare in continuazione: la scrittura invisibile,linchiostro del tempo, diventa leggibile come storia. Ihab Hassan1

    Na lio inaugural da cadeira de Semiologia Literria, no Colgio de

    Frana, proferida em 7 de Janeiro de 1977, Roland Barthes afirmou que se por

    um qualquer excesso de socialismo ou de barbrie todas as nossas disciplinas

    fossem retiradas do ensino, exceptuando uma, a literatura deveria ser a disciplinasalvaguardada, porque todas as cincias se encontram disseminadas no

    monumento literrio2. A literatura, que Barthes considera como a prtica de

    escrever. (...) o texto, quer dizer o tecido de significantes que constitui a obra3,

    possui a capacidade de trabalhar nos interstcios da cincia4, diminuindo as

    distncias e corrigindo as diferenas que separam uma cincia grosseira de

    uma vida subtil. Barthes fala, assim, de uma literatura que permite, por

    exemplo, a Bateson explicar, de forma exmia, o conceito de entropia5, a Minsky e

    Harrison de compreender a inteligncia artificial6ou, ainda, a Borges de abordar o

    complexo tema da organizao do conhecimento7. Que melhores leituras se no as

    de Honor de Balzac, mile Zola, Gustave Flaubert, Anton Tchkhov ou Mark

    Twain, para compreender a condio humana do sculo XIX, ou melhores filmes

    que os de Lucchino Visconti, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica ou de Pier

    Paolo Pasolini, para entender o que era viver na euforia e na misria do ps-guerra

    1 HASSAN, Ihab em: Carravetta, Peter e Paolo Spedicato. Organizao. 1984. Postmoderno eletteratura. Percorsi e visioni della critica in Amrica. Milano: Bompiani. p. 99-106.2BARTHES, Roland (1977).Lio. Lisboa: Edies 70, 1997.3Idem, p. 18.4Idem, p. 20.5BATESON, Gregory (1972).Metadilogos. Lisboa: Gradiva. 1996. Neste notvel livro, Batesonaborda vrios argumentos de elevada complexidade numa hipottica conversa com a sua filha,ainda criana.6HARRISON, Harry e Marvin Minsky. 1992.The turing option.New York: Warner Books. Olivro, uma excelente obra de fico cientfica, explora uma narrativa onde se encontram aplicadasas teorias sobre a inteligncia artificial de Marvin Minsky.7BORGES, Jorge Luis (1944). Fices. Lisboa: Teorema, 2000.

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    18 Marco Ginoulhiac

    italiano. A obra literria, enquanto obra de arte, , segundo Deleuze, um

    monumento, (...) um bloco de sensaes presentes que s devem a si prprias a

    sua conservao, e do ao acontecimento o composto que o celebra8, cria umbloco de sensaes, isto , um composto de perceptos e de afecto onde os

    perceptos no so j percepes, so independentes de um estado dos que as

    experimentam; os afectos no so j sentimentos ou afeces, excedem a fora

    dos que passam por elasou, ainda, a paisagem anterior do homem, na ausncia

    do homem9. Desta forma, a literatura participa nos processos de construo e

    suspenso dos perceptos e, enquanto arte, conserva-os10, permitindo a manuteno

    e cristalizao da imagem de uma condio humana num determinado contextohistrico, social ou cultural. A literatura, e mais especificamente a prosa, permite

    tecer uma narrativa capaz de sobrevoar um territrio heterogneo detectando

    manchas e zonas homogneas onde a descrio de singularidades e minudncias,

    de episdios aparentemente banais, serve de elemento reagente e aglutinador para

    uma reaco semitica e cognitiva onde as fronteiras entre o universal da cincia e

    o particular do humano se esbatem at anulao.

    Tomando como ponto de partida estas consideraes e querendo abordar as

    mutaes que ocorreram no seio do panorama intelectual que caracterizou as

    ltimas dcadas do sculo XX, com o objectivo de reconhecer, analisar e

    descrever o cenrio no qual se articulam as experincias de ensino do projecto de

    Arquitectura, as vicissitudes do senhor Palomar, no homnimo livro de Italo

    Calvino11, podem ser consideradas como representativas das aventuras cognitivas

    e intelectuais do sujeito contemporneo. Os pequenos acontecimentos,aparentemente triviais, que se sucedem num escrita ligeira, mas nem por isso

    inocente ou banal, quando lidos com ateno, conseguem desvendar e

    desencadear uma rede de exploses cognitivas e emocionais que deixam o leitor

    8DELEUZE, Gilles e Flix Guattari (1991). O que a filosofia?Lisboa: Editorial Presena, 1992.p. 148.9Idem, p. 144 e 149.10Idem, p. 144.11CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994.

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    num estado de desconforto intelectual diante dos pensamentos e das consideraes

    do protagonista do livro12. Desconforto, este, no tanto consequncia de uma

    possvel empatia para com o senhor Palomar, mas de uma sbita compreenso ecompaixo diante da sua condio. Uma compaixo, entendida como um

    sofrimento partilhado com outrem, que surge, justamente, da compreenso da

    prpria condio existencial que resulta ser, de facto, em muito, se no

    demasiado, parecida com a dele.

    O Senhor Palomar procura conhecer o mundo atravs da contnua

    estruturao e sistematizao da sua observao. Ele mantm uma atitude

    intelectual extremamente sistemtica procura de regras, de estruturassubjacentes, de possveis organizaes e esquemas analticos. Olha para as ondas

    do mar, para os fios de relva, para os telhados da cidade, para os bandos de

    pssaros, ou ainda para os inmeros queijos venda numa sofisticada loja

    parisiense. Cada vez que olha procura compreender, organizar e estruturar a

    realidade. Quando o campo de viso demasiado abrangente, resolve concentrar-

    se numa poro (o caso do relvado); quando os fenmenos parecem ser demasiado

    aleatrios ou contingentes, procura encontrar as regras subjacentes heterogeneidade (como acontece com as ondas do mar). O senhor Palomar sente a

    necessidade, quase visceral, de modelar a realidade. Esta necessidade claramente

    descrita por Calvino quando afirma que: Na vida do senhor Palomar houve uma

    poca em que a regra era esta: primeiro, construir na sua mente um modelo, o

    mais perfeito, lgico, geomtrico possvel; segundo, verificar se o modelo se

    adaptava aos casos prticos observveis na experincia; terceiro, introduzir as

    correces necessrias para que o modelo e a realidade coincidissem13. Mas,

    infelizmente, a incomensurabilidade e infinita heterogeneidade da realidade no

    lhe permitem uma modelao suficientemente abrangente e coerente. Cada vez

    12Veja-se, a este respeito, o conceito de semiose ilimitada de C. S. Pierce retomado por UmbertoEco onde, segundo o autor italiano: cada objecto a que um signo referido pode tornar-se porsua vez o significante do prprio significado do significante inicial ou mesmo o significante cujosignificado metalingustico o significante inicial. Em: ECO, Umberto (1973). O signo.Lisboa:Editorial Presena, 1997, p. 151.13CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994, p. 113.

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    que procura olhar para a realidade, com o fim de encontrar uma regra subjacente

    (as ondas na praia, os fios de relva no seu quintal, as estrelas no cu ou os

    pssaros na cidade), acaba por afastar-se com os nervos tensos como haviachegado e ainda mais inseguro de tudo14. Palomar passa, ento, a querer

    estabelecer um dilogo com a realidade, se o modelo no consegue transformar

    a realidade, a realidade deveria conseguir transformar o modelo15. Assim, a

    abordagem de Palomar muda, procurando, no meio da incomensurvel diferena

    da realidade, modelos adaptveis, flexveis ou combinveis; modelos de modelos,

    sub-modelos, meta-modelos. Mas inevitavelmente compreende que um modelo

    no s um meio de conhecimento como de modelao da prpria realidade; umamesma realidade que, alm disso, vai mudando em continuao, apesar da sua

    representao e modelao. Diante desta dinmica circular entre a realidade e a

    sua possvel representao descritiva, Palomar resolve, ento, deixar a sua mente

    aberta, vazia, tentando, contudo, encontrar uma forma sistemtica para organizar

    os seus pensamentos. A estratgia passa a residir nas dinmicas internas e nas

    configuraes do prprio pensamento. Palomar prefere manter as suas

    convices no estado fluido, verific-las caso a caso e fazer delas a regra

    implcita do seu prprio comportamento quotidiano, no fazer e no no fazer, no

    escolher e excluir, no falar e no calar-se16. Este processo de fluidificao

    acontece, contudo, com o perene temor de que, a partir desta nova sistematizao,

    pudesse resultar, outra vez, um modelo e com este pudesse recomear tudo desde

    o princpio.

    Nas reflexes do senhor Palomar poder reconhecer-se o percurso dodesenvolvimento intelectual que acompanhou o sujeito ao longo dos ltimos cinco

    sculos de histria. O senhor Palomar, cujo pensamento est irremediavelmente

    comprometido com a modernidade, procura uma modelao do mundo acabando

    por admitir a impossibilidade ou os perigos dessa mesma modelao. Abdicando

    14Idem, p. 15.15Idem, p. 115.16Idem, p. 116.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 21

    diante das mltiplas tentativas, todas elas frustradas, procura de alguma solidez

    ou sossego cognitivos, acaba por deixar-se levar pela fluidez das poucas

    convices que ainda possui17. Quando o Senhor Palomar observa a cidade, apartir do seu terrao, colocando-se no olhar das aves na tentativa de escapar

    priso cognitiva da sua subjectividade e peso corpreo, afastando-se da realidade

    observada, afirma que c de cima tem-se a impresso de que a verdadeira crosta

    terrestre esta, desigual mas compacta, mesmo se sulcada por fracturas que

    no se sabe quo profundas so18, e chega concluso paradoxal de que s

    depois de ter conhecido a superfcie das coisas (...) nos podemos aventurar a

    procurar o que est por baixo. Mas a superfcie das coisas inesgotvel19

    .Doisplanos, duas escalas de observao sobrepem-se e confundem-se. Contnuos

    movimentos circulares de anlise acumulam informao de natureza heterognea

    aumentando a dificuldade analtica dos processos de pensamento. Diferena,

    complexidade, interpretao, tornam-se alguns dos conceitos sobre os quais o

    pensamento procura refundar as suas prprias bases intelectuais num contnuo

    esforo de adaptao e de construo. Um esforo que surge da atvica dialctica,

    tanto terminolgica como epistemolgica, entre o universale o particular, entre

    realidadeepensamento, entre verdadee interpretao.

    17O conceito de fluidez aplicado passagem entre o pensamento moderno e o ps-moderno pautaa obra do socilogo polaco Zygmunt Bauman. Entre as suas obras, Liquid Modernity (2000),Liquid Love: On the Frailty of Human Bonds (2003),Liquid Life(2005)e Liquid Fear (2008).18CALVINO, Italo (1983). Palomar. Lisboa: Companhia das Letras, 1994, p. 62.19Idem, p. 63.

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    22 Marco Ginoulhiac

    1.1

    Advertncias ao leitor e enquadramento terico

    Dantes eu estava indeciso, mas agora j nem disso tenho a certeza.Boscoe Pertwee citado por Umberto Eco20

    Antes de avanar no ulterior desenvolvimento deste trabalho, pretende-se

    apresentar algumas consideraes no que se refere sua forma e contedo. O

    texto procura abordar o mbito do ensino do projecto de Arquitectura a partir de

    vrios quadrantes do saber, na tentativa de criar uma possvel rede de

    conhecimento e de implementar ligaes epistemolgicas atravs das quais se

    poder aprofundar os diferentes aspectos do fenmeno.

    Pede-se, desde j, ao leitor que no procure, neste documento, frmulas ou

    prescries omnicompreensivas; no decididamente esta a finalidade deste

    trabalho, alm de que, se elas estivessem presentes, representariam um sinal de

    despotismo intelectual (despotismo que, como se compreender mais adiante, no

    representa propriamente o objectivo deste trabalho, muito pelo contrrio). Pede-

    se, antes, que se mantenha sensvel para compreender um enredo, um tecido onde

    interessa maioritariamente detectar uma configurao cromtica geral e no

    descrever cada linha existente. Tratar-se- de um patchwork onde se juntam

    tecidos de vrias cores e feitios mas que conserva, quando observado distncia,

    um certo e determinado aspecto geomtrico e tonal. O presente trabalho pretende

    ser, antes de mais, uma meta-estrutura dialgica, sem ter a pretenso de ser

    monolgico, exaustivo ou exageradamente propositivo. O que interessa,

    maioritariamente, reconhecer um territrio de debate cujo levantamento e estudo

    no resulte comprometido pelos erros de paralaxe que existem, quando os

    objectos observados se encontram excessivamente prximos. Em suma, trata-se de

    tentar ganhar uma distncia crtica necessria para um debate sobre algo, como o

    ensino, que vive de processos a mdio e longo prazo, de elevada complexidade e

    abrangncia, e que nunca pode ser objecto de uma abordagem fugaz ou sectorial.

    20ECO, Umberto (1997). Kant e o Ornitorrinco.Algs: Difel Editorial, 1999, p. 13.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 23

    Com base neste propsito, o nvel de complexidade existente nas diferentes

    abordagens, que esto aqui presentes, teve que ser uniformizado por razes de

    honestidade intelectual e de homogeneidade literria e cientfica. Foi feito umesforo no sentido de conseguir transmitir os aspectos do problema considerados

    determinantes, de forma compreensvel e, sobretudo, articulada, mesmo que isso

    possa ter porventura acontecido em detrimento de um conjunto de

    aprofundamentos que cada leitor possa, com base na sua preparao intelectual e

    interesse pessoal, considerar como fulcrais ou at incontornveis. Um excessivo

    aprofundamento teria causado fracturas na integridade do texto e consequentes

    desnorteamentos ou distraces, que em nada contribuem para a compreenso dasideias e ligaes apresentadas e das resolues propostas.

    Uma vez que o texto procura articular o ensino do projecto de Arquitectura

    inserido na condio intelectual da contemporaneidade, no podia deixar de

    percorrer alguns caminhos que pertencem tradicionalmente ao mbito da

    Filosofia. A Filosofia contribui para o debate na medida em que possui uma

    abrangncia e uma complexidade disciplinares suficientes para permitir que cada

    aspecto presente seja passvel de ser observado a partir de um ponto de vista maisafastado e cauteloso. Isto permite criar uma rede relacional entre comportamentos

    prprios disciplina da Arquitectura e comportamentos que podem ser

    considerados como derivantes da condio intelectual contempornea, mas que

    atravessam e contaminam a prpria Arquitectura. Todavia, o presente trabalho no

    , nem pretende ser, um trabalho em Filosofia. Ele , antes de mais, um trabalho

    circunscrito ao mbito da Arquitectura e, mais especificamente, do seu ensino,

    com o auxlio da Filosofia. Desta forma, as incurses que sero feitas na Filosofia

    sero sempre a partir do ensino de projecto, campo, aonde iro sempre regressar

    aps ter recebido a devida ajuda na organizao e na compreenso dos fenmenos.

    Poder dizer-se mais alguma coisa em relao multidisciplinaridade

    presente neste trabalho. Como seria de esperar, esta causou, tanto ao longo da sua

    preparao como da sua redaco, uma certa confuso terminolgica derivante do

    facto de que, frequentemente, o mesmo conceito pode ser objecto de definies

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    24 Marco Ginoulhiac

    diferentes consoante o mbito disciplinar no qual utilizado. Pense-se, por

    exemplo, no conceito de ps-moderno e nas diferentes abordagens s quais

    sujeito nos vrios mbitos, entre os quais o filosfico e o arquitectnico21

    .A deciso tomada foi manter uma certa heterogeneidade terminolgica

    respeitando, de forma geral, o enquadramento que cada campo e cada autor fazem

    dos conceitos. Teria sido intelectualmente abusivo, por exemplo, alterar os termos

    nas citaes ou nas referncias citadas. Contudo, existem vrias passagens onde,

    mesmo mantendo uma certa diversidade terminolgica, se sentiu a necessidade de

    abordar os conceitos e descrev-los de forma a se tornarem o mais unvocos

    possvel para o leitor. Isto porque o prprio texto necessita de formular, de quandoem quando, um prprio posicionamento terminolgico e, com este propsito,

    pontualmente criar momentos de estabilizao terminolgica para evitar que o

    leitor possa cair em possveis desvios de compreenso comprometendo, desta

    forma, a leitura e o entendimento do trabalho.

    Uma possvel diferenciao epistemolgica entre escalas projectuais no

    mbito da Arquitectura foi, tambm, objecto de problematizao terica ao longoda preparao do trabalho. Mesmo no que respeita s fontes bibliogrficas, que

    iro participar na construo do texto, elas so tanto do domnio do design

    industrial, como do projecto de Arquitectura ou do Urbanismo. Diante de uma

    possvel crtica, dir-se- que se considerou e se estudou o projecto enquanto

    manifestao intelectual genrica em detrimento, em alguns casos, das suas

    manifestaes operacionais especficas. Isto permitiu detectar os traos comuns

    entre as vrias escalas de interveno, seguindo o princpio de E. N. Rogers deque ensinar a fazer um copo ou uma cpula , do ponto de vista metodolgico, o

    mesmo problema porque ambos contm, em linha de princpio, muitos elementos

    em comum, mas unicamente o elenco dos elementos construtivos desvenda a

    21Como ser repetido mais adiante, a noo de ps-moderno em Arquitectura limita-se, de formageral, a um determinado tipo de linguagem projectual, enquanto na Filosofia representa uma formade pensamento. Tambm a ideia de projecto, quando abordada no seio da Filosofia, ganhasignificados e valncia que no mbito da Arquitectura resultam ser extremamente teis.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 25

    diversidade dos objectos, clarifica as suas particulares intencionalidades, a

    construo fenomenolgica e, em concluso, garante a percepo directa. 22

    Quer-se com isto afirmar que, existindo diferenas entre as vrias escalas, noenquadramento epistemolgico que cada uma pode e deve construir, as dinmicas

    processuais e cognitivas conservam um elevado grau de semelhana, uma vez que

    os prprios elementos empregues so portadores de diferena. A possvel

    diferenciao no se encontra, por outras palavras, a montante do processo

    projectual mas sim no seu interior e ao longo do seu desenvolvimento. Como ser

    ulteriormente defendido, cada projecto constri, por si prprio, o seu universo de

    conhecimento e, com este, o seu enquadramento epistemolgico e as suas regrasde crescimento, de progresso e de produo.

    No mbito do ensino de projecto interessa, portanto, abordar

    maioritariamente os aspectos que se encontram partilhados pelas vrias

    manifestaes fenomenolgicas e operacionais do projecto de Arquitectura. Este

    posicionamento encontra-se claramente presente em autores como Donald Schn,

    segundo o qual a prtica da Arquitectura, do Urbanismo, da Engenharia, da

    Planificao Territorial e Urbana so todas passveis de ser reunidas sob umacategoria mais ampla pela sua caracterstica comum de serem profisses

    projectuais23. Com este propsito, o autor cita Herbert Simon24que, por sua vez,

    22ROGERS, Ernesto Nathan. 1981.Gli elementi del fenomeno architettonico.Napoli: Guida, p. 40 traduo livre.23SCHN, Donald. (1983).Il professionista riflessivo. Per una nuova epistemologia della pratica

    professionale. Bari: Laterza, 2003. Donald Schn (1930-1997) De formao filsofo (Yale eSorbonne), msico com estudos avanados em piano e clarinete, Donald Schn foi um dos tericosdas organizaes mais influentes do sculo XX. Aps ter sido docente em Filosofia naUniversidade da California e do Kansas, Schn foi Professor Emeritus junto do MassachusettsInstitute of Technology MIT onde foi docente de Urban Studies and Educatione Senior Lecturerjunto da School of Architecture and Planning e director, entre 1990 e 1992, do Department ofUrban Studies and Planning.Entre os seus livros: The displacement of concepts (1963), Beyondthe stable state(1971), Educating the reflective practitioner(1987) e, com Chris Argyris, Theoryin Practice (1974), Organizational Learning: a theory of action Perspective (1978). As suasteorias sobre o desenvolvimento cognitivo baseado na aco so fortemente inspiradas, eexplicitamente referenciadas, obra do filsofo e pedagogo norte-americano John Dewey. Dewey,

    por sua vez, inspira-se em outro pedagogo norte-americano, William Heard Kilpatrick, que, em1918, escreveu um ensaio com o ttulo The project methodonde defendia a importncia de uma

    aprendizagem baseada em projectos em detrimento de uma centrada na transmisso deconhecimento. No mbito deste trabalho interessa maioritariamente o facto de ele ter desenvolvido

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    defende que o projecto representa toda e qualquer actividade que se ocupe das

    transformaes de situaes existentes para situaes desejadas. Com base nesse

    princpio, Schn reconhece as diferenas que separam as vrias actividadesprojectuais mas tambm considera que existe um nvel mais profundo onde reside

    um processo geral de projecto na base de tais diferenas25que representa, de

    facto, o mago tanto da ideia de projecto como da do pensamento projectual.

    Schn avana ulteriormente quando, no mesmo texto, poucas linhas depois,

    afirma que a Arquitectura a profisso projectual reconhecida h mais tempo e,

    enquanto tal, funciona como prottipo para o conceito de projecto nas outras

    profisses. Pois se existe um processo fundamental por baixo das diferenasentre profisses de tipo projectual, na Arquitectura que mais provavelmente o

    encontraremos26. O projecto de Arquitectura , portanto, um arqutipo

    processual e intelectual do pensamento projectual, de traos e caractersticas

    suficientemente genricas, passvel de servir como estrutura de compreenso da

    integridade do fenmeno. Neste sentido, abordar o projectoenquanto actividade

    intelectual, que visa predispor os meios para alterar o futuro, e tentar detectar

    quais as contaminaes oriundas das condies filosficas e materiais

    contemporneas no seu ensino, no parece necessitar, neste registo, de um ulterior

    aprofundamento ou repartio que contemple cada uma das suas manifestaes.

    Mantendo activa, ao longo do trabalho, uma grelha polarizadora que garanta ao

    mesmo no se desviar demasiado do mbito da Arquitectura, poder ento

    implementar-se um discurso super-partesonde o conceito de projecto e as suas

    diferentes manifestaes possam ser aproximadas de forma suficientemente

    genrica para no cair num discurso demasiado tecnicista ou exclusivamente

    processual.

    trabalhos no campo da prtica profissional e, nomeadamente, do projecto de Arquitectura enquantodocente do Departamento de Estudos Urbanos do MIT.24Herbert Alexander Simon (1916-2001) economista, psiclogo e informtico norte-americano. considerado um dos fundadores da Inteligncia Artificial, da teoria das organizaes, dos sistemascomplexos, do problem solving e da simulao computorizada. Em 1978, foi galardoado com o

    prmio Nobel de Economia.25SCHN, Donald. (1983).Il professionista riflessivo. Per una nuova epistemologia della praticaprofessionale. Bari: Laterza, 2003, p. 102 traduo livre.26Idem.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 27

    Algumas consideraes devem ser reservadas, tambm, bibliografia e s

    referncias de e para outros autores. A partir da colocao do problema e de umasumria delimitao territorial, foi-se construindo uma rede de conhecimento

    traada por linhas de investigao parcialmente autnomas e, por vezes,

    contingentes. A ausncia de um corpus bibliogrfico exclusivo ao mbito do

    ensino de Arquitectura e, mais especificamente, do ensino de projecto, juntamente

    com a vontade, j expressa e defendida, de manter um registo de investigao

    alargado, obrigaram progressiva construo de percursos crticos que no

    estivessem necessariamente ligados a algum tipo de narrativa preexistente. Esteerrar, certamente mais intenso e livre, numa primeira parte, mas mais penetrante e

    mas regrado, numa segunda, chegou a traar um conjunto de trilhos que, ao longo

    do tempo, foram aprofundando sulcos at ganhar as direces e as profundidades

    finais. Ao longo destas heursticas de investigao, a j referida relativa falta de

    bibliografia dedicada exclusivamente ao ensino do projecto de Arquitectura

    determinou as frequentes aproximaes ao campo profissional, apesar deste, como

    ser referido ao longo do texto, repetidas vezes, conservar profundas diferenasem relao ao ensino. A maior parte destes documentos produzida por

    arquitectos e direccionada para arquitectos, apresentando, consequentemente, e

    maioritariamente, produtos e no processos. As questes relativas aco

    projectual, que poderiam ser revertidas para o seu ensino, encontram-se

    frequentemente dissimuladas, obrigando o leitor a uma preparao intelectual

    capaz de suportar um atento processo crtico. Todavia, os textos produzidos pelos

    prprios arquitectos ajudam na medida em que abordam os processos projectuais,

    a jusante, desvendando muitas vezes aspectos que s um olhar a posterioripode

    detectar e descrever.

    Diante da heterogeneidade das referncias bibliogrficas, muitas das quais

    em lngua italiana, devido ao facto de esta ser a lngua me do autor e de existir,

    em Itlia, um mercado editorial muito mais amplo e por norma mais econmico,

    decidiu-se optar por traduzir as citaes quando estas possam ser de difcil

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    compreenso, onde, por outras palavras, a troca de idioma poderia representar um

    obstculo para uma leitura mais fluida. Nos casos em que as citaes estejam

    parcialmente ou totalmente isoladas, como o caso das epgrafes introdutrias aoscaptulos, procurou-se, por outro lado, manter o idioma original. Tambm, no que

    respeita colocao das referncias bibliogrficas, a heterogeneidade destas foi

    razo para que as mesmas estejam presentes tanto na pgina do texto citado como

    na bibliografia. Alm disso, para evitar penosas e cansativas procuras na seco

    bibliogrfica, as referncias dos textos, assim como, quando considerado

    oportuno, a apresentao dos autores, aparecem logo abaixo do texto. Isto permite

    que mesmo os autores estrangeiros ou aqueles que no pertenamtradicionalmente ao mbito da Arquitectura, possam estar presentes sem que isso

    seja causa de desconforto ou distraco ao longo da leitura.

    Uma ulterior advertncia deve ser feita em relao ao necessrio processo

    de reduo histrica 27que teve que ser utilizado nas seces que, de alguma

    forma, procuram descrever uma narrativa histrica. O objectivo destas descries

    o de dar a conhecer parte de uma realidade que, segundo a tese exposta ao longodeste trabalho, est, directa ou indirectamente, em relao com os fenmenos que

    se pretende abordar. Com base neste objectivo procurou-se reconhecer e descrever

    as estruturas intelectuais subjacentes s alteraes que sofreu o ensino do projecto

    de Arquitectura, tanto no que respeita ao seu enquadramento intelectual, como

    processual. Este reconhecimento teve, portanto, que ser feito de forma abrangente

    sociedade, filosofia e, em geral, histria do pensamento. Um propsito

    claramente demasiado ambicioso para no ter que sofrer de alguma reduo, tantono que respeita informao apresentada como s ligaes que desta naturalmente

    surgem. Foi assim aplicado um filtro crtico na tentativa de obter uma reduo que

    resultasse homognea entre o campo da Arquitectura e os outros. Desta forma, por

    exemplo, quando abordado o longo caminho histrico do ensino do projecto de

    Arquitectura, sero apresentadas as experincias, os momentos e os fenmenos

    27DE FUSCO, Renato. 1981. Storia dellarchitettura contemporanea. Roma: Laterza, p. VI.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 29

    que funcionaram como pontos de cruzamentos das tendncias artsticas,

    intelectuais e sociais que se demonstraram, sucessivamente, fortemente

    contaminantes para o futuro. Este peneirar da histria foi feito tendo, comocenrio epistemolgico, o princpio expresso por Thomas Kuhn quando, ao

    defender o conceito de paradigma como constelaes de crenas, valores e

    tcnicas partilhadas pela comunidade28, afirma que para compreender a

    especificidade do desenvolvimento da cincia, no precisamos de deslindar os

    detalhes biogrficos e de personalidade que levam cada indivduo a uma escolha

    particular (...) precisamos entender a maneira pela qual um conjunto

    determinado de valores compartilhados entra em interaco com as experinciasparticulares comuns a uma comunidade de especialistas, de tal modo que a maior

    parte do grupo acabe por considerar que um conjunto de argumentos mais

    decisivo que outro29. O reconhecimento dos paradigmas foi feito atravs da

    leitura e do estudo de algumas obras que, ao longo da formulao da tese, foram

    perdendo visibilidade e importncia. Como acontece numa estrutura em beto

    armado, onde a cofragem, apesar de ser um elemento fundamental para a sua

    construo, no fim desaparace, muitas vezes, sem deixar sinais da sua existncia,

    muitas obras lidas ajudaram a construo teorica da tese sem, por isso, manter-se

    visveis na sua verso final.

    Finalmente parece pertinente afirmar, desde j, que este texto poder

    parecer, por vezes, algo moralista. No querendo de forma alguma evitar este

    28 A teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn insere-se no debate epistemolgico em 1962,contemporaneamente ao ensaio de Karl Popper Conjecturas e refutaes (um refinamento eajuste das teorias de Popper presentes na obra A lgica da pesquisa cientfica,de 1934) onde oautor defende a falsificabilidade da cincia como meio para o aperfeioamento das descobertas.Um desenvolvimento posterior teoria de Popper est presente na obra Falsificao emetodologia dos programas de investigao cientfica, em 1976, de Imre Laktos, onde o autorcritica mas aprofunda o falsificacionaismo popperiano. Finalmente, em 1975, Paul Feyerabendformula a teoria da epistemologia anarquista no seu texto Contra o mtodo. Apesar de cadateoria ter desenvolvimentos e posicionamentos profundamente diferentes entre si, existe umconsenso acerca da existncia de uma necessria partilha de valores entre cientistas seuscontemporneos.29KUHN, Thomas S. (1962).A estrutura das revolues cientficas.So Paulo: Perspectiva, 2005,

    p. 248.

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    30 Marco Ginoulhiac

    confronto, considerado sempre til e estimulante, parece pertinente deixar claro

    que qualquer abordagem, em qualquer mbito de conhecimento e que de alguma

    forma aborde um possvel enquadramento tico do mesmo no pode, e nem deve,resultar tica ou moralmente, isenta. Mesmo tentando manter um afastamento

    sereno e uma frieza intelectual na aproximao aos assuntos, inevitvel que

    tanto a riqueza semntica da linguagem como a configurao intelectual e

    ideolgica de quem escreve ou de quem l, provoquem apreenses diferentes da

    mesma palavra escrita. O desafio torna-se ainda maior quando, como o caso

    deste texto, pedida ajuda Filosofia; pois qualquer abordagem a esta disciplina

    requer, de antemo e por paradoxal que possa parecer, um posicionamentofilosfico do sujeito. Por outras palavras, impossvel, por exemplo, tratar da

    tica projectual sem, antes disso, ter ganho um posicionamento tico, mesmo que

    este possa mudar ao longo da investigao. Como ser afirmado mais adiante, o

    projecto , na sua essncia comportamental, algo estritamente ligado ideia de

    liberdade e, enquanto tal, algo necessariamente impregnado de um enquadramento

    tico. Por estas razes, parece tanto impossvel como indesejvel que, ao longo do

    texto, no transparea, de forma explcita ou implcita, um possvel

    posicionamento do autor.

    Pede-se, assim, clemncia ao filsofo e pacincia ao arquitecto.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 31

    1.2

    Primeira abordagem ao argumento

    Fino a quando non scoppi la seconda guerra mondiale, il mondo miappariva un arco di diverse graduazioni di coralit e di costumi, noncontrapposte ma messe luna a fianco dellaltra (...). Un quadro come questonon imponeva affatto delle scelte categoriche come pu sembrare ora. ItaloCalvino30

    Com o propsito, para j ainda de carcter provocatrio e retrico mas nem

    por isso inocente, ingnuo ou casual, de lanar as bases de uma dialctica de

    entendimento dos fenmenos abordados neste trabalho, parece possvel afirmar

    que os ltimos trinta anos do sculo XX assistiram a uma reconfigurao dos

    paradigmas culturais que, desde o sculo XV, tinham suportado e alimentado as

    condutas intelectuais do sujeito. Neste perodo de tempo, as mltiplas leituras, que

    foram sucessivamente formuladas nos vrios mbitos do saber, resultaram

    orientadas por um objectivo: a compreenso do nosso tempo como tempo da

    ps-modernidade31. Todas elas se encontraram inseridas na abertura de um

    debate filosfico em torno de alguns dos conceitos fundamentais do pensamento

    moderno cuja integridade ontolgica tinha sido abalada desde a crise intelectualque marcou o ps-guerra com uma abrangncia planetria. Como ser abordado

    de forma mais aprofundada e articulada, aps-modernidadefoi progressivamente

    assistindo crtica de conceitos, tais como o de progresso, de tecnologiaou de

    futuro, que estiveram na base da modernidade e que representaram o espao

    crtico de uma viragem epocal32 que iria marcar, se no determinar, uma

    incipiente e nova configurao intelectual.

    Apesar de existir um nmero virtualmente infinito de abordagens possveispara registar e descrever a citada viragem, no contexto deste trabalho possvel

    afirmar que o mbito do ensino de Arquitectura, considerado como territrio de

    30Italo Calvino em resposta ao questionrio do peridico milans Il paradosso, n 23-24, Set-Dic. 1960, p. 11-18.31CARRILHO, Manuel Maria. 1989. Elogio da modernidade. Lisboa: Editoral Presena, p. 60.32VATTIMO, Gianni. 2002.Tecnica ed esistenza. Una mappa filosofica del Novecento . Milano:Bruno Mondatori, p. 63 traduo livre.

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    32 Marco Ginoulhiac

    confluncia e sobreposio de duas manifestaes intelectuais fortemente

    sensveis ao contexto cultural - a da educao e a da Arquitectura - no ficou

    isento face s profundas alteraes que ocorreram em cada um destes campos. Deum ponto de vista social, os acontecimentos que marcaram os finais dos anos de

    60 e que encontraram em Maio de 68 o seu momento de mxima violncia fsica e

    intelectual, puseram prova, em todo o mundo, os sistemas de ensino e, em geral,

    o exerccio e a legitimidade da autoridade que se encontravam tradicionalmente

    ligadas educao. A tomada de conscincia dos desequilbrios polticos e

    sociais33, alm de definir, mesmo que virtualmente, um denominador comum no

    que respeita ao grau mnimo de exigncia democrtica, provocaram, no seio daeducao, um fenmeno de revolta cujas ondas de propagao ainda se sentem na

    actualidade. Apesar de se ter dado um quase definitivo apaziguamento no que

    respeita intensidade e s formas da revolta, a actual matriz social que sustenta a

    relao entre docente e discente, entre instituio e aluno , em muito boa parte,

    determinada pelos acontecimentos que se deram nessa poca.

    Por outro lado, no mbito da produo arquitectnica, os anos 70 assistiram

    ao enfraquecimento daquela corrente terica que, a partir dos princpios do sculoXX, tinha representado a destilao dos paradigmas ideolgicos da ideia de

    Modernidade: o Movimento Moderno. Segundo Charles Jencks, a demolio do

    conjunto habitacional de Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri34, acontecida no dia

    15 de Julho de 197235, representa o momento exacto da morte do Movimento

    Moderno36. O especfico lao ontolgico e metodolgico que a Arquitectura tinha

    33

    ARENDT, Hannah (1967). Verit e politica. La conquista dello spazio e la statura dell'uomo .Milano: Bollati Boringhieri, 2004.34O que resta de Pruitt-Igoe uma longa sequncia do filme de culto Koyaanisqatsi, de GodfreyReggio (1982).35 JENCKS, Charles (1977). The Language of Post-Modern Architecture. New York: Rizzoli,1984.36Uma das reaces modernidade no mbito da Arquitectura concretizou-se, a partir da dcadade 80, nas demolies que pautaram a resposta poltica da sociedade diante de casos em muito

    parecidos com Pruitt-Igoe. O exemplo mais conhecido no mbito europeu, devido aosacontecimentos de Novembro de 2005, o das banlieues francesas. A lei Borloo de Agosto de2003 , em Frana, a ltima de uma longa srie de programas governamentais que se sucederam aolongo das ltimas trs dcadas. A partir da primavera de 2004, este programa previa a demolio

    de 200 000 fogos de habitao social construdos ao abrigo dos programas como o HLM(Habitation Loyer Modr -1951), ou o ZUP (Zones Urbaniser en Priorit - 1958), ou ainda o

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 33

    vindo a desenvolver, juntamente com a trade Vitruviana - utilitas, firmitas e

    venustas - tinha sido quebrado deixando o lugar a um posicionamento terico

    equvoco, multifacetado e complexo37. A multiplicidade e heterogeneidadeexistentes entre os possveis posicionamentos ideolgicos e paradigmas

    projectuais que se instalaram, aps os anos 70, chegou para problematizar e

    redimensionar as pretenses de universalidade da filosofia idealista subjacente ao

    Movimento Moderno38, colocando-se no centro de uma densa crtica, tanto

    ideolgica como formal ou, em geral, compositiva39.

    Finalmente, as dinmicas culturais da sociedade que o filsofo norte-ZAC (Zones d'Amnagement Concerte - 1967). No conjunto, este programa destinou 30 milmilhes de euros para serem gastos entre 2004 e 2008. Tambm em outros pases a demolio foiutilizada como resoluo definitiva para o problema, muitas vezes de natureza maioritariamentesocial, das periferias. O bairro Ballymun localizado a norte de Dublin, partes do QuartiereLaurentino 38 em Roma, Castle Vale em Birmingham, ou partes do bairro Bijlmermeer emAmsterdo, so somente alguns dos exemplos possveis de uma prtica tornada corrente. Em todosos casos a atitude das administraes manifestou um grito de impotncia (Renzo Piano 2003.Demolire? No, ridiamo la vita alle periferie" entrevista com Elisabetta Rosaspina em Corrieredella Sera de 6 de Setembro de 2003) juntamente com uma clara inteno de apagardefinitivamente os erros cometidos no passado. Impotncia, essa, que, ainda segundo Piano, nascede um vazio ideolgico (s uma pequena parte dos 23 hectares de Pruitt-Igoe actualmenteocupada com um edifcio escolar novo, sendo o resto um descampado baldio) mas que parece

    manifestar, subjacente, uma vontade em conservar um descomprometimento, chegando a ser, emcertos casos, uma recusa para com algumas partes do passado e em manter uma atitude intelectualmais flexvel mesmo que resulte, por ventura, ideologicamente mais leviana. (Para maisinformaes: Frank Wassenberg. 2006. Motives for demolition. Comunicao apresentada naENHR conference "Housing in an expanding Europe: theory, policy, participation andimplementation", Ljubljana, Slovenia. 2 - 5 July 2006).37 VENTURI, Robert. (1966). Complejidad y contradiccin en la arquitectura. Barcelona:Gustavo Gili, 1978.38 O idealismo subjacente ao Movimento Moderno manifestou-se, por exemplo, nas pesquisasfuncionalistas sobre a habitao, as investigaes formais sobre um Estilo Internacionalou, ainda,sobre as formas de planeamento urbano e, mais especificamente, no que respeita ao conceito dezoning.39 Se verdade que os anos 70 registaram, como defendido neste trabalho, uma profundaviragem intelectual, tambm verdade que o Movimento comeou a sua trajectria descendente jalgumas dcadas antes. Neste contexto, a intensidade e o traado do percurso do MovimentoModerno podem ser seguidos pelos acontecimentos que pautaram os CIAM ao longo da suaexistncia. Se o momento de apoteose ideolgica foi registado em 1933 com a produo da Cartade Atenas, a partir dos anos 50 (mais especificamente de 1951, ano do CIAM em Hoddesdon,Inglaterra, cujo tema principal era The Heart of the City), tanto a legitimidade como ahomogeneidade hidelgica destas reunies foram perdendo progressivamente fora. SegundoVittorio Gregotti, nestes anos que comea a emergere la questione che si dimostrer centraleper i quarantanni successivi: il problema dellascolto del contesto, del progetto come dialogo conesso in quanto forma depositata della storia del luogo specifico. Tendo como base este

    pressuposto, sempre segundo Gregotti, la generazione pi giovane non riprese in alcun modo ilvecchio dibattito ideologico tra accademici e avanguardia ma piuttosto si pose lobbiettivo didiscutere dallinterno lideologia del moderno. GREGOTTI, Vittorio, Editoriale em: Rassegna(Gli ultimi CIAM), n 52, Dicembre 1992, p. 5.

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    34 Marco Ginoulhiac

    americano Fredric Jameson apelidou tardo-capitalista, reestruturaram as matrizes

    crticas da produo cultural em todos os mbitos de produo terica e material40.

    O surgir de uma esttica populista, cultural e socialmente veiculada e legitimada,entre outras, pelo sucesso crtico e comercial da pop-art, foi diminuindo a

    clivagem existente entre uma cultura elitista e uma cultura de massas baseada em

    dinmicas comerciais. Uma nova cultura televisiva, cinematogrfica, jornalstica,

    musical, mas tambm arquitectnica, foi fundindo vrios vectores de produo

    num nico onde a distino entre valor cultural e de mercado se foi gradualmente

    esbatendo at anulao. Criou-se, assim, um espao homogneo, tanto de

    produo como de fruio, onde coincidiam as dinmicas crticas com ascomerciais, ambas inseridas numa crescente compresso temporal que, quando

    implementada pelas tecnologias digitais, provocava uma progressiva e definitiva

    alterao da relao entre autor e obra e entre obra e utilizador.

    Colocado neste cenrio, o ensino do projecto de Arquitectura tem sofrido

    uma bipolarizao da sua misso e desafios diante da sociedade. Por um lado,

    manifesta a necessidade em dar continuidade e estrutura ao acervo de saber, tantoterico como pragmtico, atravs do qual se criam as condies para que se

    realizem os processos de transmisso de conhecimento prprio do seu mbito

    disciplinar. Uma misso, esta, levada a cabo num clima de profundo

    deterioramento das relaes hierrquica e de autoridade, que tinham suportado o

    ensino anteriormente e sobre as quais este se tinha vindo a desenvolver. Por outro

    lado, patenteia a necessidade de acompanhar e de tentar apreender e compreender

    aquela fragrncia histrica

    41

    que caracteriza, de forma mltipla e heterognea,a cultura e, mais especificamente, a Arquitectura contempornea.

    40 Segundo Fredric Jameson, o ps-moderno representa uma ideologia cultural dominante denatureza maioritariamente econmica. Segundo uma viso fortemente marxista dos fenmenos,Jameson afirma que esta mercantilizao contaminou, definitivamente, todas as esferas de

    produo e de veiculao cultural, alm das relaes sociais baseadas na produo ou na trocaintelectual. JAMESON, Fredric. (1991). Postmodernismo. Ovvero la logica culturale del tardocapitalismo.Roma: Fazi, 2007.41 TAFURI, Manfredo. (1968). Teorias e Histria da Arquitectura. Lisboa: Editorial Presena,1979.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 35

    Considerando o exerccio do projecto como espao pedaggico de encontro

    e de sntese entre um saber arquitectnico e um posicionamento e funcionamento

    intelectual - individual e exclusivo de cada aluno - ambos inseridos num contextosocial e cultural determinado por factores histricos e contingentes, compreender-

    se- que o actual cenrio determina, atravs das suas contaminaes, uma nova

    configurao terica e prtica, profundamente diferente em relao que

    acompanhou a modernidade e, nomeadamente, as experincias escolares dos

    sculos XVIII, XIX e XX. Por outras palavras, est-se diante de uma mudana de

    paradigma no que respeita tanto s condutas de ensino como s que caracterizam o

    mbito disciplinar da Arquitectura42

    .Nesta ptica, no existe, de facto, razo para a qual o mbito do projecto de

    Arquitectura poderia, hipoteticamente, ficar absolutamente isento das alteraes

    decorrentes de um contexto intelectual mais abrangente. Pelo contrrio, alguns

    dos elementos caracterizantes da actualidade, como so, por exemplo, as

    tecnologias digitais ou as dinmicas de mercantilizao artstica, tiveram, no

    campo do ensino do projecto de Arquitectura, um espao de reverberao, seno

    mesmo, em alguns caos, de amplificao. Neste sentido, parece possvel epertinente operar uma abordagem ao conjunto de aces materiais e intelectuais

    que formam e determinam o processo de ensino/aprendizagem do projecto de

    Arquitectura. Esta abordagem necessita, contudo, de ser encaminhada e

    desenvolvida num contexto intelectual e filosfico mais abrangente. Contexto esse

    que, como ser ulteriormente investigado, se revela determinante quando

    relacionado com os comportamentos cognitivos do sujeito, sobretudo no que

    respeita s condutas projectuais, uma vez que, como j foi referido, estas possuem

    estritas ligaes de natureza epistemolgica e ontolgica com conceitos to

    complexos e abrangentes como so os defuturo, deprogressoe de autonomia.

    Face a este enquadramento terico, a abertura de um debate volta da

    42 FINDELI, Alain. 2001. Rethinking Design Education for the 21st Century: Theoretical,Methodological, and Ethical Discussion.Design Issues. Volume 17, Number 1, Winter 2001, p. 5-17.

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    36 Marco Ginoulhiac

    condio contempornea do ensino do projecto de Arquitectura torna-se possvel,

    unicamente, atravs de um relativo afastamento do problema, uma vez que uma

    excessiva proximidade no permitiria a deteco e a descrio do conjunto deforas e de linhas que atravessam e contaminam, vindas do exterior, os fenmenos

    em anlise. Seria, assim, um erro cabal considerar o ensino de Arquitectura, e

    mais especificamente o ensino de projecto, como algo de isolado e autnomo que

    se esgota numa especificidade operacional ou cujo funcionamento resulta ser

    determinado unicamente por factores que lhe so endgenos. Dificilmente seria

    possvel detectar as suas derivaes ou vcios intelectuais e, ainda mais difcil,

    conseguir compreend-las e explic-las. Trata-se, portanto, de diagnosticar,compreender e problematizar as contaminaes que este mbito sofreu, por

    simpatia, quando encarado como aco intelectual, inserida num contexto

    histrico ainda em fermentao mas que j manifestou os prprios traos

    dominantes e as respectivas consequncias nas condutas sociais e culturais,

    individuais e colectivas do sujeito.

    neste cenrio que o ensino do projecto de Arquitectura o espao de

    encontro e de fuso dialctica onde coexistem as duas linhas de debatecaracterizadas por profundos laos e ligaes recprocas: uma primeira que aponta

    para a formao do indivduo, representada, segundo Edgar Faure, por um

    aprender a ser43. Aprender a ser,escreve Faure, para melhor desenvolver a

    sua personalidade e estar altura de agir com cada vez maior capacidade de

    autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, no

    negligenciar na educao nenhuma das potencialidades de cada indivduo:

    memria, raciocnio, sentido esttico, capacidades fsicas, aptido para

    comunicar-se44. Uma segunda, mais prpria e restrita ao mbito disciplinar, a de

    43FAURE, Edgar e Felipe Herrera, Abdul-Razzak Kaddoura, Henri Lopes, Arthur V. Petrovsky,Majid Rahnema, Frederick Champion Ward. (1972)Learning to be. The world of education todayand tomorrow.Relatrio da Comisso Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao. Paris:UNESCO. Edio portuguesa: Aprender a Ser. Lisboa: Livraria Bertrand. 1981. Versoelectrnica retirada de: http://unesdoc.unesco.org/ulis/ em Junho de 2006. Edgar Faure (1908/88),formado em Direito, alm de ter sido por duas vezes primeiro-ministro da Repblica Francesa(1952 e 1955-1956), foi vrias vezes secretrio de Estado e ministro (da economia, do interior, dosnegcios estrangeiros, da agricultura e da educao).44Idem, p. 102.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 37

    aprender a fazer Arquitectura. Pois ao longo da actividade projectual,

    considerada como momento de sntese e de estruturao de conhecimento, que se

    fundem as aces materiais com as rotinas intelectuais do campo disciplinar.Momento e espao de encontro, e de dilogo do sujeito com a sociedade, com o

    conhecimento, com a disciplina. Quebrar este lao dialgico s pode ser feito em

    detrimento da riqueza, complexidade e pertinncia do discurso sobre o ensino de

    Arquitectura. Os alunos que frequentam um curso de Arquitectura procuram, sem

    dvida, aprender uma profisso, mas eles so, antes de mais, jovens em processo

    de crescimento e de formao intelectual, inseridos numa sociedade especfica e

    numa determinada poca histrica. So filhos, irmos, amigos, pais ou colegas.Nesse sentido a aco no mbito da Arquitectura representa s uma mnima parte

    da aco de cada sujeito, pois ela tambm conserva em si o condensado de uma

    conduta humana e de um posicionamento intelectual do sujeito diante do mundo,

    da tcnica e da tica, do indivduo e da sociedade, do ser e do conhecimento. Por

    outras palavras, ser Arquitecto , antes de mais, ser homem.

    Diante da necessidade em desenvolver uma abordagem que no se tornerefm das rotinas intelectuais exclusivas, e por vezes viciadas, do prprio mbito

    da Arquitectura, poder implementa-se r uma abordagem com a ajuda das

    ferramentas conceptuais desenvolvidas no seio da Filosofia. Esta

    interdisciplinaridade permite, antes de mais, uma observao das dinmicas que,

    mesmo quando aparentemente exclusivas ao ensino do projecto de Arquitectura,

    ganham, se colocadas sob o olhar da Filosofia, inesperadas e frutferas ligaes.

    Os processos de racionalizao e de legitimao da Arquitectura, frequentementeexgenos mesma, encontram uma continuidade e contiguidade que lhe atribuem

    um significado e uma relevncia num maior contexto relacional. Uma Filosofia

    que, como afirma Carlo Sini45, olha para as nossas comuns, contnuas e

    45 Carlo Sini (Bolonha, 1933) um filsofo italiano. , actualmente, regente da Cattedra diFilosofia Teoretica na Universit Statale di Milano. membro da Accademia dei Lincei e doInstitut International de Philosophie em Paris. considerado responsvel por ter divulgado, juntodo pblico italiano, a importncia da obra de Charles Peirce, alm de ter aprofundado a ligaoentre este e Martin Heidegger.

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    38 Marco Ginoulhiac

    quotidianas experincias, e retrocede nelas at ao fundamento; procura, em

    suma, olhar nelas para o miolo mais resistente, mais concreto46. Uma Filosofia

    que no se perca em meras reflexes tericas mas que contribua para um exercciode pensamento sobre assuntos concretos e especficos, sobre comportamentos e

    fenmenos reais. Mas, tambm, uma Filosofia que consiga proporcionar uma

    grelha dialctica para suportar um debate onde a particularidade exista em relao

    generalidade; onde possveis comportamentos desviantes no se esgotem na

    unicidade do sujeito mas encontrem um plano relacional onde podem ser

    abordados, estudados e, porventura, atenuados ou corrigidos. Em suma uma

    Filosofia que possa oferecer as suas ferramentas de pensamento Arquitectura;campo de onde sai e para onde sempre volta o discurso deste trabalho.

    Este esforo feito na certeza de que, como afirma Emanuele Severino 47,

    mesmo na esquizofrenia terica48que caracterizou o fim da modernidade e de

    alguma forma ainda contamina a contemporaneidade, a cultura arquitectnica

    contempornea (...) necessita sempre e de qualquer das maneiras de uma teoria

    tanto potente como aperfeioada49sobre a qual pode edificar os seus processos

    intelectuais e as suas rotinas de legitimao; sobre a qual pode construir umprocesso de ensino que no esteja permanentemente sujeito s alteraes que

    marcam, com frequncia crescente, a contemporaneidade.

    46SINI, Carlo. 1992. Pensare il progetto.Milano: Tranchida Editori Inchiostro, p. 13 traduolivre.47Emanuele Severino (Brescia, 1929) um filsofo italiano. Professor emrito pela Universit CFoscari em Veneza, actualmente docente na Universit Vita-Salute San Raffaele em Milo. Temvrias dezenas de livros publicados, membro da Accademia dei Lincei e colabora regularmentecom o dirio Corriere della Sera.48 SEVERINO, Emanuele. 2003. Tecnica e architettura. Milano: Raffaello Cortina Editore traduo livre.49Idem, p. 9.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 39

    1.3

    Ensino e profisso: uma unio de facto

    A dificuldade de organizao de uma escola de arquitectura passa pelacriao de uma estrutura que permita um contacto directo com a prticaextra-escolar e simultnea aplicao de bases tericas rigorosas que apoiemo mergulho nessa prtica. Tudo isso sem perda de autonomia e de distncia.Tambm aqui as snteses possveis so feitas de oscilaes e cruzamentos, enunca estveis ou perfeitamente equilibradas, sendo contudo indispensvelque exista, em cada instante, uma definio clara de escola. So fragmentosde conhecimento que permitem aproximaes seguras, apesar do perigoeminente de no conseguir integr-los numa politica global. Ser odesenvolvimento dessa capacidade o essencial do ensino.lvaro Siza50

    Quando se aborda o ensino do projecto de Arquitectura, considerado comouma prtica didctica baseada num exerccio concreto de simulao projectual,

    torna-se extremamente difcil, se no mesmo impossvel, isolar o mbito do

    ensino do profissional. Apesar de ser certamente vivel a construo de um

    discurso autnomo, este no poder deixar de ter referncias para um material

    terico oriundo da actividade profissional, uma vez que o exerccio projectual

    representa, no que respeita s suas bases epistemolgicas e s suas rotinas

    processuais, um fenmeno transversal que une, de forma biunvoca, ensino eprofisso.

    Esta transversalidade est presente, historicamente, no desenvolvimento do

    ensino de Arquitectura e pode ser considerada como um dos elementos

    caracterizantes das alteraes ocorridas no seu seio. Olhar para a relao entre

    ensino e profisso significa, por outras palavras, olhar para um lento processo de

    destilao onde rapidez e heterogeneidade das experincias profissionais

    correspondeu uma cristalizao de princpios tanto arquitectnicos comopedaggicos que se reverteu, progressivamente, para o campo do ensino. Estas

    transferncias e contaminaes resultaram particularmente evidentes em

    determinados momentos que foram, de facto, historicamente marcantes no

    processo de construo do actual modelo de ensino de Arquitectura e, mais

    50 lvaro Siza citado por COSTA, Alexandre Alves. 2007. Textos datados. Coimbra:Departamento de Arquitectura, Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade de Coimbra, p.240.

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    especificamente, no que respeita ao ensino de projecto. Com base nesse princpio,

    desenvolve-se um conjunto de leituras historicamente localizadas com o fim de

    assinalar as etapas mais determinantes deste processo. O que se procuroudemonstrar foi a necessidade de o ensino do projecto de Arquitectura se manter

    criticamente aberto para o mbito da profisso. Uma profisso periodicamente

    impulsionada por oscilaes que parecem, cada vez com maior frequncia, abalar

    as suas estruturas essenciais e questionar os seus princpios fundadores. Mas

    tambm uma profisso cujas ligaes polticas, culturais ou econmicas no

    deixam de influenciar a forma atravs da qual o ensino procura adaptar-se aos

    contextos conjunturais que se sucederam ao longo do tempo.

    De um ponto de vista histrico, o ensino de Arquitectura desenvolveu-se,

    numa fase inicial, atravs de um processo de osmose entre mestre e aluno,

    chegando a no existir uma clara e explcita distino entre a figura do

    colaborador e a do aprendiz. A escola existia na obra e no atelierdo mestre e a

    transmisso do conhecimento baseava-se, quase exclusivamente, num ambiente

    intelectualmente e materialmente determinado pela prtica artesanal51

    . A obra erao lugar da experincia e de formao contnua onde os arquitectos aprendiam,

    por voz ou pelos desenhos, os conhecimentos empricos da profisso52. Existia

    uma relao de proximidade fsica e intelectual que pode encontrar-se, ainda hoje,

    nas vrias formas de estgios exigidos por muitas ordens profissionais. Poder

    afirmar-se que, de modo geral, o estgio profissionalizante o legado de um

    sistema de ensino baseado na pupilagem, sistema que representou, ao longo de

    muitos sculos, uma forma de ensino paralela e/ou complementar formal

    53

    .Mesmo com a institucionalizao do ensino de Arquitectura, que, embora

    51 PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: histria e crtica, ensino e profisso. Porto:FAUPpublicaes.52CASTAGNARO, Alessandro. 2003.La formazione dellarchitetto. Botteghe Accademie FacoltEsperienze Architettoniche.Napoli: Liguori Editore, p. 8 - traduo livre.53BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.

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    comeando no sculo XVI na Florena renascentista54, encontrou no sculo XVIII

    as formas que ainda hoje o caracterizam, a proximidade entre a aprendizagem e a

    profisso manteve-se fortemente presente55

    . Nas escolas de Arquitectura queforam surgindo neste hiato de tempo, um pouco por toda a Europa, a formao era

    maioritariamente de carcter pragmtico e os problemas levantados no mbito do

    ensino eram tratados e resolvidos com base nos fundamentos tericos e prticos

    da profisso56.

    Esta promiscuidade esteve presente tambm, nos finais do sculo XIX, nos

    cursos de matriz politcnica que foram surgindo no territrio europeu57e onde a

    54Cita-se, a ttulo de exemplo, a Accademia del disegnode Vasari em Florena ou, sempre emFlorena, a escola de Arquitectura que Bernardo Buontalenti, duque superintendente pelaarquitectura civil e militar da Toscnia, conduzia em sua casa.55Aliceradas neste paradigma, a partir do sculo XVI foi progressivamente abrindo, por toda aEuropa, um grande nmero de escolas. A de Bernardo Buontalenti, por exemplo, conhecido comoBernardino delle Girandole e duque superintendente pela arquitectura civil e militar da Toscnia,foi aberta na sua prpria casa em finais do sculo XVI. A Accademia del Disegno de GiorgioVasari (com aulas de desenho, perspectiva e arquitectura) ou a de Santa Lucia em Roma, abertaem 1593. Ainda a Scuola dArchitettura dirigida por Fabio Mengoni em Milo desde 1620 at

    1631, ou a Acadmie royale de peinture et de sculptureem Paris que foi fundada em 1648 e queiria durar, apesar das progressivas alteraes, mais de 320 anos. Sucessivamente, o sculo XVIIIassiste abertura, em 1790, da Academia das Artes e Ciencias Mecnicasna Prssia de FedericoII, por mo de Heinitz, seu ministro, alm da abertura seguida da cole Centrale ds TravauxPubliques de Rondelet em 1793 (que mudar para cole Polytechnique em 1795), da coleSpcial dArchitectureem 1795 e, j nos princpios do sculo XIX, em 1806, fundao da RoyalAcademy of Artsde Londres e do Politcnico de Praga (BANNISTER, Turpin. 1954. The Architectat Mid-Century. Evolution and Achievement. New York: Reinhold). Todas estas escolas resultaraminseridas em cenrios de ensino fortemente determinados pela necessidade de transmisso de umconhecimento arquitectnico informado numa matriz cientfica e matemtica que se encontrava,

    por exemplo, na axiomatizao e na normativizao dos tratados e dos manuais. Mas tambmeram instituies fortemente politicizadas uma vez que representavam manifestaes de umavontade representativa de natureza governamental.

    56 PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: histria e crtica, ensino e profisso. Porto:FAUPpublicaes.57Em 1975, a cole centrale des travaux publique, fundada em 1793 por Jean-Baptiste Rondelet, transformada em Ecole Polytechnique. Esta era uma escola de cariz militar que abrangia os

    principais ramos da engenharia (sob o lema Pour la Patrie, les sciences et la gloire) e queinfluenciou, ao longo do sculo XIX, especialmente na zona central da Europa, a abertura devrios cursos de matriz politcnica. Em 1799, por exemplo, abriu a Bau-Akademia, na Prssia;seguiram-se: Praga em 1806, Viena em 1815, o Instituto politcnico da Baviera em 1823 (a partirdo qual, quatro anos mais tarde, surge a seco de Munique que se torna uma reconhecida escolade Arquitectura), o de Kalsruhe (Alemanha) em 1825 (cujo currculo em Arquitectura ficou cedoreconhecido como um dos mais fortes de Europa). Outros se seguiram: Braunschweig, Estugarda,Hannover, Dresdem e Darmstadt. Em 1854 surge o Politcnico Federal Suo em Zurique. EmBANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.

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    42 Marco Ginoulhiac

    composio arquitectnica fazia parte da matria de ensino. Nestes cursos era

    pedido, ao longo dos estudos, que os alunos dedicassem vrios anos

    aprendizagem dos princpios tcnicos da profisso e, sucessivamente, tivessemque desenvolver uma experincia prtica de projectos junto de instituies

    governamentais ou de escritrios privados58.

    Num cenrio assim delineado, havia pouco ou nenhum espao de debate

    sobre pedagogias ou didcticas especficas do ensino de Arquitectura. O ensino

    era considerado, de um ponto de vista social e filosfico, um processo de

    preparao do sujeito para a vida intelectual activa59. Apesar de o exerccio

    projectual representar uma actividade central do curso, qual tanto alunos comodocentes consagravam a maior parte do tempo, a autonomia intelectual do aluno

    estava condicionada tanto pelo paradigma esttico corrente como por uma

    abordagem fortemente tecnicista, baseada e legitimada pela presena das

    disciplinas cientficas, de forma muito igual ao que acontecia na prtica

    profissional diria60. Assim, a uniformidade tanto formal como metodolgica que

    caracterizava a produo arquitectnica e artstica, em geral, permitia

    menosprezar os aspectos relativos actividade cognitiva do indivduo e s formasde aprendizagem da matria, uma vez que o sistema de ensino apontava para a

    formao de sujeitos de competncias normalizadas cujo referente era, na maioria

    das vezes, encontrado na profisso61. Por exemplo, o conjunto de textos de apoio

    actividade lectiva que pautaram o ensino francs desde o sculo XVIII tinha um

    carcter maioritariamente prescritivo em relao aprendizagem do aluno. Como

    afirmou G. C. Argan, o referente clssico, objecto de estudo e de interpretao

    tanto pelos manuais como pelo coleccionismo, pelas pesquisas e pelo grand tour,

    marcava de tal maneira o processo intelectual do projecto que a verdadeira

    58BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.59 CONDORCET, Marqus de (Marie Jean Antoine Nicolas Caritat) Ecrits sur l'Instruction

    publique, tome II, Rapport sur l'Instruction publique. Paris: 1792. Edilig, p. 81-87. Versoconsultada on-line em Julho 2005: http://gallica.bnf.fr.60BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. NewYork: Reinhold.61Idem.

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    O ensino do projecto de Arquitectura.Contribuies para um debate crtico em torno da prtica contempornea. 43

    tcnica do artista a tcnica do projecto, toda a arte neoclssica rigorosamente

    projectada. A execuo a tradio do projecto atravs dos instrumentos

    operacionais que no resultam ser exclusivos do artista, mas fazem parte dacultura e do modo de vida da sociedade. (...) Neste processo de adaptao tcnica

    e prtica elimina-se necessariamente o carcter individual, o arbtrio genial da

    primeira inveno, mas, em compensao, a obra adquire um interesse directo

    para a colectividade e desempenha aquele papel de educao civil que a esttica

    iluminista entrega arte no lugar da antiga funo religiosa e didasclica62.

    Neste contexto, os tratados e os manuais63, apesar de poderem certamente

    contribuir para o debate terico no mbito da Arquitectura, no possuam umaparticular preocupao no que se refere s actividades cognitivas presentes no

    ensino, limitando-se a servir de guio projectual vlido tanto para o ensino como

    para a profisso.

    A abertura da Bauhaus de Weimar, em 1919, marcou uma profunda

    mudana no que respeita relao entre profisso e aprendizagem e, com esta, no

    debate volta do prprio ensino da Arquitectura. As teorias psicolgicas,filosficas e educativas que foram surgindo na viragem do sculo XVIII para o

    sculo XIX e que viram uma solidificao nos princpios do sculo XX, tiveram

    um forte impacto tanto na estruturao do currculo da escola como na

    implementao de um novo discurso sobre o ensino das artes e,

    consequentemente, da Arquitectura. A obra do filsofo norte-americano John

    62 ARGAN, Giulio Carlo. 1970. Larte moderna 1770-1970. Firenze: Sansoni, p. 19 e 21 traduo livre.63 Segundo Giorgio Grassi Sia il termine trattato che il termine manuale, nella loroaccezione canonica, fanno riferimento a una teoria della progettazione. Se il primo infattirappresenta proprio la costruzione di una teoria della progettazione, il secondo la presupponesempre (...) il termine manuale designa una casistica, una serie finita di esempi, un quadro dimodelli direttamente traducibili. Ma in ogni altra situazione questa distinzione non ha pi alcunsignificato: ogni manuale infatti dovrebbe permetter, cio esporre i