2011 EliasMendesGomes VRev (2)

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA, LITERATURA E

    CULTURA RABE

    ELIAS MENDES GOMES

    MIL E UM VERBOS RABES: UMA PROPOSTA LEXICOGRFICA

    (Verso Corrigida) So Paulo

    2011

  • ELIAS MENDES GOMES

    MIL E UM VERBOS RABES: UMA PROPOSTA LEXICOGRFICA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lngua, Literatura e Cultura rabe, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Lngua, Literatura e Cultura rabe.

    Orientadora: Profa. Dra. SAFA ALFERD ABOU CHAHLA JUBRAN

    (Verso Corrigida) So Paulo

    2011

  • DEDICATRIA

    De sua concepo ao estgio final, numerosas pessoas direta ou indiretamente participaram dessa pesquisa. O produto final dedicado a elas.

    ... .

  • AGRADECIMENTOS

    A quem crdito, crdito...

    Agradeo a Deus pela capacitao e graa concedida ao longo de todo este perodo de estudos.

    Sou grato minha orientadora, Profa. Dra. Safa Jubran, que creu no meu projeto de pesquisa (ainda disforme) e me acolheu sob sua tutela. Sua dedicao, compromisso, e pacincia fonte de inspirao e motivao.

    Agradeo a todos os membros da banca examinadora.

    Agradeo aos amigos e familiares que durante todo o perodo de estudos mostraram apoio e incentivo.

    Agradeo em especial aos colegas do setor de rabe do Departamento de Letras Orientais numerosos demais para nome-los individualmente com os quais aprendi alguns aspectos que no fazem parte do currculo acadmico, entre eles, o sentido da amizade e o comprometimento com o conhecimento.

    Aos funcionrios do DLO em especial ao lvaro, Jorge, Luis, e Maribel obrigado pela disponibilidade e amabilidade na prestao de servios.

    CAPES, pela concesso da bolsa de mestrado e pelo suporte financeiro para a realizao dessa pesquisa.

    Neide Moura, por me fornecer uma extensa bibliografia sobre as cincias da linguagem (em especial a lexicografia), por me ensinar a utilizar o programa Toolbox (.mdf) e por customiz-lo para meu uso.

    Remerciement particulier Marieke Houweling une femme spciale de rare beaut, fidlit, qualit, et talent. Merci dtre l pendant cette priode difficile [mais motivante !] de ma vie.

  • O primeiro leitor insatisfeito com um dicionrio que acaba de ser construdo e publicado, tenho hoje a certeza disto, o seu inventor e organizador. Uma obra dicionarstica sempre uma obra inacabada- Carlos Ceia

    Every other author may aspire to praise. The lexicographer can only hope to escape reproach, and even this negative recompense has been granted to very few- Samuel Johnson

  • GOMES, E. M. Mil e um verbos rabes: Uma proposta lexicogrfica. 186 f. Dissertao (Mestrado) Departamento de Letras Orientais Programa de Ps-Graduao em Lngua, Literatura e Cultura rabe. Faculdade de Filosofia, Letras, Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    RESUMO

    Embora a lngua rabe com a poesia altamente desenvolvida na poca da Jhiliyya (perodo que antecede ao Isl) tivesse seu indiscutvel lugar na Pennsula Arbica, foi somente com o advento e expanso do Islamismo que ela ganhou a projeo que a levou para alm de suas fronteiras lingusticas histricas. Atravs dos sculos, a religio continuou a desempenhar um papel primordial na expanso da lngua rabe, visto ser esta a lngua litrgica do islamismo, entretanto, ultimamente, outros fatores tm contribudo para um interesse maior pelo idioma, pouco, porm, tem sido feito para facilitar a sua aprendizagem, especialmente entre os lusfonos. Esta pesquisa, preocupada com a falta de apoio didtico para a aprendizagem e o aprofundamento no conhecimento lingustico que, via de regra, se adquire com a decodificao de textos no idioma almejado, prope a elaborao de um dicionrio monodirecional de verbos rabe-portugus. O dicionrio proposto nessa dissertao singulariza os mil e um verbos mais frequentes nos corpora jornalstico e literrio e ser compilado tendo por base princpios descritivos cientficos da lexicografia moderna, no estando limitado a uma teoria particular, entretanto, privilegiando a lexicografia pedaggica de Welker (2004 e 2008). Em seu trabalho, Welker (2008) discute a lexicografia pedaggica (LP), apresentando tcnicas que, se seguidas, auxiliaro os consulentes em sua tarefa de compreenso e decodificao de textos em lngua estrangeira. Esse arcabouo terico interpretado sob a tica da Escola de Filologia de Kfa que considerava o verbo como o originador do universo lxical rabe. Essa posio sustentada por vrios arabistas modernos que reconhecem que, embora nem todas as palavras possam ser rastreadas a uma raiz verbal, a maioria de seus lexemas deriva-se de um verbo simples. O levantamento do corpus verbal ser primordialmente baseado nos trabalhos de Moshe Brill (1940) e Jacob Landau (1959) que, seguindo os parmetros da lingustica de corpus, compilaram as palavras mais frequentes na mdia e literatura rabes. Devido ao escopo do rabe padro moderno como a lingua franca entre todos os pases rabes, e por ser esta a vertente mais usada no ensino de rabe para estrangeiros, escolheu-se essa variante para este trabalho.

    Palavras-chave: Lngua rabe. lexicografia bilngue. verbos rabes.

  • GOMES, E. M. A thousand and one Arabic verbs: A lexicographical proposal. 186 f. Dissertao (Mestrado) Departamento de Letras Orientais Programa de Ps-Graduao em Lngua, Literatura e Cultura rabe. Faculdade de Filosofia, Letras, Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    ABSTRACT

    Even though the Arabic language with the poetry highly developed during the Age of Jhiliyya (period that precedes the coming of Islam) had its indisputable place in the Arabian Peninsula, it was only with the advent and expansion of Islam that it gained the projection to beyond its historical borders. Through the centuries, religion continued to play a primordial role in the expansion of the Arabic language, as this is the liturgical language of Islam, but, recently, other factors have contributed to a greater interest in the language, few things, however, have been done to facilitate its learning, especially among the Brazilians. This research, concerned with lack of didactic support for the learning and deepening of linguistic knowledge that, as a general rule, is acquired with the decoding of texts in the desired language, proposes the elaboration of a mono-directional dictionary of Arabic-Portuguese verbs. The dictionary proposed in this thesis singles out the most frequent one thousand and one verbs in the journalistic and literary corpora and will be compiled according to the scientific descriptive principles of modern lexicography, not limited to particular theory, but the pedagogical lexicography of Welker (2004; 2008) will be favoured. Welker (2008) discusses the pedagogical lexicography (PL), presenting techniques that, if followed, will help the dictionary user in the task of comprehending and decoding texts in foreign language. This theoretical background is interpreted through the view of the Philological School of Kfa that considered the verb as the originator of the Arabic lexical universe. This position is undertaken by several modern Arabists who acknowledge that, although not all words can be traced back to a verbal root, the majority of the languages lexemes come from a simple verb. The verbal corpus will be based on the works of Moshe Brill (1940) and Jacob Landau (1959) who, following the parameters of the corpus linguistics, compiled a list of the most frequent words in the Arabic media and literature. Due to the scope of the Modern Standard Arabic as the lingua franca in all Arab countries, and because this is the most used variety in the teaching of Arabic to foreigners, it was chosen as the variant for this research.

    Keywords: Arabic. Bilingual lexicography. Arabic verbs.

  • SISTEMA DE TRANSLITERAO ADOTADO NESSA DISSERTAO:

    Grafema rabe Correspondente na transliterao

    Guia de equivalncia fonolgica no portugus do Brasil

    a longo [a:]

    b b como em bota

    t t como em tapete

    t th como no ingls thin

    j j como em jogo h do ingls sem aspirao

    rr como em carro no dialeto carioca

    d d como em delta

    th como no ingls this

    r r como em careta

    z z como em zabumba

    s s como em sapo

    ch como em chave

    som similar ao s em sapo, porm enftico

    som de d em delta, porm enftico

    som de t em tapete, porm enftico

    1 som similar ao z em zero, porm enftico

    c som gutural sem equivalncia em portugus

    r como no francs parisiense rat

    f f como em faca

    q semelhante ao k porm gutural

    k c como em copo

    l l como em laranja m m como em marca

    n n como em navio

    h h como no ingles hospital

    w / u longo [u:]

    y / i longo [i:]

    parada glotal

    1 A transliterao de como , embora imprecisa, mantida aqui por conveno internacional.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................ . 1 Reviso de Literatura ........................................................................ . 6

    CAPTULO I: OS RABES E SUA LNGUA: UMA BREVE HISTRIA ...... . 13 1. Etnia e lngua rabe................................................................................. . 13 2. Origem e desenvolvimento do rabe clssico ........................................ . 20

    2.1 Codificao lingustica .................................................................... 21 2.2 Estratificao lingustica ................................................................ . 26

    3. Declnio lingustico e estagnao intelectual ......................................... . 29 4. Reavivamento lingustico......................................................................... 33

    4.1 Contato com o Ocidente .................................................................. 33 4.2 O estabelecimento das academias de letras ..................................... 35

    CAPTULO II: A GRAMTICA RABE CODIFICADA: A ESTRUTURA VERBAL ......................................................................................................... 40

    1. As escolas de Bara e Kfa: Gnese da tradio gramatical ................... 44 1.1 Fundao das escolas ....................................................................... 45 1.2 O status do verbo em Kfa e em Bara .......................................... . 49

    2. O alfabeto e o verbo rabe: Informaes preliminares ............................ 52 2.1 O alfabeto: Caractersticas gerais .................................................... 52 2.2 O verbo rabe: Caractersticas gerais ............................................. . 53 2.3 A radical verbal como paradigma derivacional ............................... 58

    2.3.1 Forma I < /faccala/ ........................................................ 61 2.3.3 Forma III ?

  • 4.2 Classificao dos dicionrios ............................................................ 81 5. Terminologia e terminografia .................................................................... 82 6. Estudos lexicogrficos rabes .................................................................... 84

    6.1 Lexicografia rabe monolngue ......................................................... 85 6.1.1 Transmisso dos dicionrios ........................................................ 86 6.1.2 Organizao da macroestrutura ................................................... 87

    6.1.3 Caractersticas gerais desses dicionrios ..................................... 90 6.2 Lexicografia rabe bilngue ........... 93 6.2.1 Primeiros dicionrios bilngues ... 94 6.3 Terminologia / terminografia rabe ................................................... 99

    CAPTULO IV: DICIONRIO DE VERBOS RABE-PORTUGUS: UMA PROPOSTA .................................................................................................... ... 106

    1. Aspectos tcnicos .................................................................................. ... 106 1.1 Alvo geral .......................................................................................... 107 1.2 Delimitao do pblico alvo ............................................................. 107 1.3 Extenso e seleo ............................................................................ 107 1.4 Forma de organizao da nomenclatura ........................................... 107

    1.4.1 Quanto macroestrutura ............................................................. 108 1.4.2 Quanto microestrutura ........................................................... .. 108

    1.5 Funcionalidade ............................................................................... .. 111 1.6 Reciprocidade ................................................................................... 111 1.7 Direcionalidade .............................................................................. .. 111

    2. Lista dos verbos mais frequentes ............................................................. 112 2.1 Lista de Frequncia de Brill ........................................................... .. 112 2.2 Lista de Frequncia de Landau ......................................................... 113 2.3 As listas combinadas ...................................................................... .. 115 2.4 Tabela com os verbos mais frequentes ............................................. 116

    3. Amostragem de verbos ............................................................................ 159

    CONSIDERAES FINAIS .......................................................................... 168 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................ 173 ANEXOS ......................................................................................................... 186

  • 1

    INTRODUO De todas as terras comparveis Arbia em extenso, e de todos os povos que se aproximam aos rabes em interesse histrico e importncia, nenhum pas e nenhuma nacionalidade tem sido alvo de to poucas pesquisas nos tempos modernos como a Arbia e os rabes. Philip Hitti2

    A lngua rabe, cuja histria funde-se com aquela da religio islmica, uma das lnguas de maior expresso na atualidade. Ela um dos idiomas oficiais da ONU bem como a lngua oficial de vinte pases3, cujo territrio chega a aproximadamente quatorze milhes de quilmetros quadrados. Ela o meio de comunicao diria para mais de trezentos milhes de pessoas. E, sendo a lngua litrgica do Islamismo, ela

    tambm desempenha um papel muito importante para mais de um bilho de muulmanos em todos os recantos do mundo.4

    A trajetria da lngua rabe caracterizada por etapas definidas: ascenso, apogeu, declnio e revitalizao. Durante o perodo de declnio (ou, na opinio de alguns, estagnao), ela permaneceu isolada, em especial durante partes do Califado Otomano5 que conhecido entre os rabes, sob o epteto de /car al-ini/ Era da decadncia. O isolamento foi rompido com a invaso francesa ao Egito em 1798, e desde ento o mundo de expresso rabe tem estado em contnuo contato com o Ocidente. Esse contato tem se manifestado de diferentes formas e em esferas distintas

    dependendo do perodo investigado, mas inclui a colonizao franco-britnica de quase toda a regio, a Guerra do Golfo, a invaso norte-americana ao Iraque e

    Afeganisto, alcanando os dias atuais, com o envolvimento da OTAN na Lbia.

    2 Of all the lands comparable to Arabia in size, and all the people approaching the Arabs in historical

    interest and importance, no country and no nationality has received so little study in modern times as has Arabia and the Arabs. (HITTI, [1937] 1970, p. 3) Traduo nossa. Doravante os textos originais das citaes traduzidas, sempre por ns, constaro em notas. 3 Jacquemond (2006, p. 08) assevera que a lngua rabe ocupa a sexta posio entre as oitos lnguas

    utilizadas por metade da humanidade, aps o chins, o ingls, o hndi, o espanhol, o russo, e antes do francs. Seu territrio compreende da Mauritnia no extremo oeste ao Iraque no extremo leste; e da Repblica rabe Sria no norte ao Sudo no sul. 4 O nmero de muulmanos estimado em 1.3 bilhes de pessoas. De acordo com Aloisi (2008) essa

    cifra perfaz cerca de 19.2% da populao mundial. 5 O Imprio Otomano (1299-1922) foi um das maiores e mais duradouras civilizaes na histria

    moderna. Com um incio humilde, o imprio ganhou foras com a conquista de Constantinopla (1453). A partir de 1517, o sulto otomano tambm recebia o ttulo de Califa do Isl.

  • 2

    A partir de 1989 com a imploso do sistema socialista sovitico e a exploso do capital em nvel mundial que seguiu em seu encalo (com todas suas transformaes e consequncias), inaugurou-se o perodo da moderna globalizao como um fenmeno que demanda um conhecimento maior do outro. Dessa forma, os recentes gritos por reforma nos pases rabes, tm instigado o mundo ocidental a uma compreenso dos fenmenos polticos e sociais do mundo rabe e islmico

    contemporneo, compreenso essa que ultrapasse os esteretipos to midiatizados, mas to pouco analisados com profundidade. A prpria importncia geopoltica da

    regio salienta a necessidade desses estudos6. E, como to sabiamente o expressou Dr. Mamede Jarouche, sabido e consabido que o estudo de qualquer civilizao deve iniciar-se, necessariamente, por sua lngua7, o estudo da lngua rabe essencial para esse entendimento de maneira imparcial.

    Observada em uma perspectiva histrica, a lngua rabe em seu apogeu pode ser considerada como um farol que irradiou o conhecimento nos vrios domnios do saber, em especial durante os muitos sculos da chamada Idade Mdia, visto ser a lngua da cultura e das reflexes inovadoras, em especial durante os sculos nove e doze, quando mais obras foram escritas em rabe do que em qualquer outra lngua,

    seja no domnio da lingustica, ou de outras cincias como a astronomia, geografia, filosofia, histria, e religio. Ela preservou o legado das antigas lnguas de erudio

    tornando-se depositria de um dos maiores centros interculturais de transferncia intelectual na histria do mundo, gerando, dessa maneira, um fascnio sobre o imaginrio ocidental, que foi imortalizado pelos relatos quimricos de Marco Polo (BRASWELL, 1996).

    Sua influncia nas lnguas da Europa Ocidental notada atravs dos inmeros emprstimos lingusticos que as permeiam (o rabe, depois do latim e grego, foi a lngua que mais enriqueceu o lxico do portugus, por exemplo). Contudo, seu legado no se limita lingustica. Durante os quase oito sculos de convivncia na Pennsula Ibrica, os rabes transmitiram ideias e conceitos que foram instrumentais para o

    avano das cincias, entre as quais a matemtica (lgebra, o conceito do zero, etc.), a

    6 Roger (2004, p. 276) afirma que a regio de enorme importncia estratgica e econmica. [...] of

    enornous strategic and economic importance. 7 Na apresentao da obra rabe e portugus: Fonologia contrastiva de Safa Jubran (2004).

  • 3

    astronomia, e a geografia.8 Seu alfabeto , depois do latino, o sistema mais usado no mundo.9

    A lngua rabe, como no passado, continua a despertar o interesse do mundo ocidental. Outrora devido conquista poltico-religiosa, atualmente em virtude de seu rico legado cultural e, mais recentemente, em consequncia de sua associao com o terrorismo. Duian (2001) e Mahmoud (2004) asseguram que o interesse pela apreenso do rabe tem crescido paulatinamente desde o atentado ao World Trade Center (e o que ele simbolizava) em setembro/2001. Como uma consequncia desse episdio, Khoury (2008) atesta que o National Security Language Initiative (2006) dos Estados Unidos, conceituou o rabe como uma lngua estrangeira crtica, ou

    seja, uma lngua estratgica que necessita um maior nmero de falantes competentes (entre os americanos).

    Numa esfera diferente, mas igualmente importante, vrias pessoas percebem a

    aprendizagem da lngua e cultura rabe como um nicho do mercado de trabalho que tem sido pouco explorado. Essas pessoas, potencialmente, estariam trabalhando como tradutores e consultores culturais. O entendimento da lngua e cultura prov as ferramentas que minimizaro o rudo na comunicao que limita a interao entre o ocidente e os possveis parceiros das ricas naes rabes (e vice-versa).

    O fator religio continua mantendo um papel preponderante na aquisio lingustica do rabe, j que o conhecimento da lngua rabe imprescindvel para a boa apreenso do significado do Alcoro, e para a performance dos rituais litrgicos do islamismo. Entretanto, aqueles atributos10 que, a priori, atraem as pessoas para a

    8 Os astrnomos rabes confeccionaram as tbuas afonsinas nas quais figuravam os principais

    elementos concernentes ao sol, lua, planetas e estrelas mais brilhantes. Os gegrafos preparam as cartas martimas, ou seja, cartas planas, fceis de manejar e ao mesmo tempo suficientemente exatas. (GIORDANI, 1985, p. 354) 9 Uma vez que usado para escrever mais de cem lnguas, entre as quais, o urdu (Paquisto), persa

    (Ir), pashto (Afeganisto), hau (Nger, Nigria, Sudo, e Tchad), e suali (Qunia, Tanznia). (KAYE, 1990). 10

    Marzari (2006, p. 7) assim descreve o rabe: O rabe uma lngua fascinante. O alfabeto rabe encanta pelas elegantes propores de suas letras e ligamentos que faz com que as palavras escritas dancem em um ritmo visual e passem a impresso que querem transpor as fronteiras do plano funcional. Em si, as fontes tipogrficas fascinam pela composio das letras e a beleza de suas propores, contudo, ainda mais cativantes so as decoraes caligrficas nas mesquitas e noutros lugares, todas elas genunas obras de arte. Alm disso, a sonoridade do rabe provoca prazer, da mesma forma que os inslitos conceitos semnticos encerrados nas palavras rabes. Cheias de associaes, estas palavras frequentemente surpreendem e fascinam; elas mostram o uso de uma linguagem aparentemente mais arraigada na era potica do que no uso funcional e no sentimental da verso

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    sua aprendizagem, isto , sua caracterstica mstica e ritualista, e a sua rica herana lingustica, literria, cultural e religiosa de muitos sculos, tendem a lhes repelirem

    com o passar do tempo. A grafia peculiar do idioma, sua natureza diglssica, a riqueza vernacular e a falta de materiais paradidticos inibem e desmotivam o aprendiz.

    No Brasil, essa realidade anloga quela do Atlntico Norte. Os diferentes fatores mencionados acima atraem as pessoas para a aprendizagem do rabe, mas

    pouco tem sido feito para facilitar a sua aprendizagem, mesmo com a significativa interao11 entre o Brasil e as naes da frica do Norte e Oriente Mdio, em especial as diferentes nacionalidades oriundas do Levante,12 que tm feito parte da cultura brasileira desde longa data. A presena rabe vista em vrios setores da sociedade,

    particularmente, mas no exclusivamente, no setor comercial. Esse contato cultural

    entre os diferentes grupos rabes e a sociedade brasileira tem deixado marcas indelveis no make-up cultural da nao brasileira.

    No que tange ao ensino da lngua rabe no Brasil como parte do intercmbio cultural comeou, como atesta Jorge Safady (1972), com a criao de um curso livre de rabe na USP em 1944, estimulado pelo Centro Brasileiro de Cultura rabe estabelecido pouco tempo antes. Esse despretensioso princpio desencadeou na

    formao do curso de Bacharel em letras rabes (em carter oficial) em 1963. No Rio de Janeiro, O Setor de Estudos rabes foi criado em 1969 e o curso outorga o diploma em Bacharel em Letras com habilitao em portugus-rabe.

    escrita do ingls ou alemo. Arabic is a fascinating language. The Arabic alphabet enchants by the elegant proportions of its letters and ligatures which make the written words dance in a visual rhythm and convey the impression of wanting to transgress the boundaries of functional design. Alone the typographic fonts fascinate by the composition of the letters and the beauty of their proportions, but even more fetching are the calligraphic decorations in mosques and elsewhere, all of them veritable works of art. Furthermore, the sound of Arabic delights, as do the unusual semantic concepts enclosed in Arabic words. Full of associations, these words often surprise and fascinate; they show a usage of language seemingly more rooted in a poetic age than the functional and unemotional usage of the English or German written language. 11

    Reconhece-se aqui que inmeras associaes de cunho comercial, cultural e educacional tm sido formadas para promover o entendimento mtuo. Menciona-se os diferentes centros de cultura rabe (Centro Cultural Srio, Clube Homs, e seus correlatos em vrias cidades brasileiras, notavelmente onde a presena rabe se faz sentir de maneira mais significativa), os centros de negcios (Cmara rabe do comrcio, por exemplo, que fomenta as relaes comerciais entre o Brasil e o mundo rabe), os centros de divulgao do Isl e, em especial, o ICArabe que providencia um espao para a difuso cultural, mas tambm para reflexo e discusso de questes que afligem aquela regio (conflito rabe-israelense, por exemplo). 12

    Levante: Conjunto de pases do Mediterrneo Oriental que inclui a Cisjordnia, Jordnia, Lbano e Sria.

  • 5

    Desde ento outras universidades tm disponibilizado disciplinas regulares, optativas, ou cursos de extenso que contemplam a histria do pensamento e cultura

    rabe (notavelmente a UNIFESP com a Histria da Filosofia Medieval rabe, e a Introduo ao Pensamento e Identidade rabes - da UFPR). Nessa histria de pouco mais de quatro dcadas, muitas pessoas foram formadas e muitos desenvolveram importantes pesquisas no campo dos estudos rabes no Brasil, tanto nas referidas

    universidades quanto em outras.13

    Entretanto, uma das maiores dificuldades no ensino da lngua rabe no Brasil

    continua sendo a falta de material didtico. Durante o Primeiro Encontro de Arabistas Luso-Brasileiros (Rio de Janeiro, 2009), Dra. Safa Jubran (2010, p. 46) verbalizou aquilo que o anseio e a motivao de todo arabista e aspirante a arabista brasileiro:

    [...] Trata-se de elaborar, testar, adotar e difundir um mtodo de ensino de lngua rabe que seja eficaz e moderno, e que possa dar conta de todos os aspectos da lngua rabe, seja em sua variante padro ou dialetal, empregando as vrias mdias de que dispomos modernamente.

    Embora no especificado diretamente nessa declarao, o dicionrio fator imprescindvel para aquisio e solidificao lingustica. Sua ausncia emperra o avano da aprendizagem. A obviedade de sua presena no ensino e aprendizagem de

    uma lngua (quer seja materna ou estrangeira) dispensa maiores comentrios, embora seu status tenha mudado consideravelmente nas diferentes fases histricas do ensino e aprendizagem de lnguas14, ele ainda mantm seu lugar de destaque como ferramenta no campo da aquisio lingustica. Segundo Schmitz (1998), a vasta maioria dos aprendizes de lngua considera o dicionrio uma das mais importantes fontes de definio de vocbulos; todavia, apenas um nmero restrito deles carrega consigo

    uma gramtica da lngua que estuda.

    A proposta para a compilao de um dicionrio especificamente de verbos no surge em um vcuo. Usualmente, os dicionrios bilngues de lngua geral no tratam

    13 Vale ressaltar que apenas duas universidades (USP e UFRJ) mantm um programa estruturado de

    estudos rabes oferecendo ao estudante a possibilidade de habilitao em rabe (graduao) e ps-graduao (especializao na UFRJ, e mestrado e doutorado na USP). 14

    Angela Zucchi (2010, p. 69) assim descreve essa trajetria histrica do dicionrio: Seu papel no ensino de lnguas passou de imprescindvel, nos tempos da prtica de gramtica e traduo, a condenvel nos tempos dos mtodos diretos e, em tempos mais recentes, a instrumento de auxlio no ensino por vezes recomendado ainda com restries pelos professores, apesar dos avanos da Lexicografia Pedaggica.

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    com preciso a questo das preposies, talvez porque, para o lexicgrafo, o enfoque deva ser mais para o aspecto semntico-pragmtico das entradas do que para o papel

    da preposio. Entretanto, sabe-se que tanto a omisso quanto o tratamento das preposies de forma parcial ou ambgua acarretam prejuzos para a compreenso e para a produo do aprendiz.

    REVISO DE LITERATURA

    Como j mencionado, o interesse pelos estudos rabes no Brasil proliferou-se a partir do sculo passado, impulsionado pelo fluxo imigratrio da comunidade rabe. J a partir da dcada de 40 comearam-se os primeiros cursos de lngua e o interesse foi consolidado com a criao dos cursos de graduao na Universidade de So Paulo (USP) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De acordo com Nabhan (1988) os professores procuravam organizar pequenos vocabulrios, na tentativa de prover um substituto ao to necessrio dicionrio. As obras redigidas pelos

    professores Alphonse Nagib Sabbagh (1988 e 2011) da UFRJ e Helmi Nasr (2005) da USP vieram responder a essa premente necessidade.

    Abaixo faz-se a reviso desses dicionrios seguindo os critrios propostos por Duran e Xatara (2007). As duas fontes utilizadas so as informaes apresentadas no prefcio e apresentao15 dos dicionrios em questo e, em um segundo momento, uma verificao generalizada da sistematizao da macro e microestrutura.

    1) Dicionrio rabe-Portugus-rabe (1988)

    Organizada por Sabbagh (1988), a obra foi compilada tendo em vista a necessidade do estudante de rabe. Professor de rabe na UFRJ, Sabbagh dedicou uma parte significativa de sua trajetria universitria para elaborar essa primeira obra lexicogrfica rabe-portugus.

    De incio, fichava o vocabulrio utilizado nas aulas, que foi crescendo, crescendo de tal forma, que as caixas de sapato em que guardava as fichas no cabiam mais dentro do armrio. Chegou o dia em que resolvi arriscar a publicao. Como no poderia deixar

    15 J foi dito que a apresentao do dicionrio como um contrato que o lexicgrafo firma com o leitor,

    descrevendo naquela poucas pginas o que o leitor vai encontrar na obra. Sob este aspecto, procura-se avaliar se o dicionrio examinado cumpre o que promete.

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    de ser, algo ainda incompleto. Foi o ponto de partida. Reunimos cerca de 8000 palavras (SABBAGH, 2011, p. 19).

    A obra foi publicada em parceria entre a editora da UFRJ e Ao livro tcnico. O dicionrio conta com 332 pginas, das quais 249 so devotadas direcionalidade rabe portugus; 62 pginas para a direcionalidade portugus rabe (cujos vocbulos so apresentados remissivamente); e 20 pginas destinadas apresentao, prefcio, guia de pronunciao, e uma introduo lngua rabe que apresenta importantes particularidades da lngua.

    Em sua introduo ao dicionrio, Sabbagh (1988) afirma que o dicionrio foi elaborado de acordo com os padres cientficos, usando as convenes necessrias para que pudesse ser consultado tanto por arabistas, como por iniciantes na lngua. Ele

    menciona publicaes existentes que, em seu julgamento, no passavam de pequenos vocabulrios, porm no foram levadas em considerao as tcnicas indispensveis para o bom desempenho da obra (SABBAGH 1988, p. 7). Desafortunadamente, no foi possvel encontrar essas obras lexicogrficas.

    Como j mencionado, o dicionrio conta com cerca de oito mil verbetes que so organizados por ordem alfabtica pura16. Os significados apresentados so breves, contando com uma nica acepo, em geral a mais frequente. A pgina segmentada em trs colunas: 1) a lngua fonte entrada, 2) a transliterao da entrada em caracteres latinos17, seguida pela parte do discurso, nmero e gnero; 3) a lngua de chegada.

    Os verbos so apresentados no perfectivo (terceira pessoa, singular, masculino que a conveno adotada pelos lexicgrafos rabes e pelos arabistas) e tambm a sua forma do imperfectivo. As informaes da segunda coluna indicam a (in) transitividade verbal. A regncia verbal indicada apenas em alguns poucos casos. Os

    nomes18

    (adjetivos, advrbios, numeral, substantivos, etc.) so apresentados em sua

    16 Essa nomenclatura (KHOURY, 1996) difere da forma tradicional de apresentar os verbetes na lngua

    rabe, que normalmente redigido por ordem alfabtica pelas razes. Nela, as formas derivadas so apresentadas como entradas em si, e no como subentradas de um verbete. 17

    A conveno de fornecer a transliterao foi muito difundida, em especial no perodo que antecedeu ao computador, porque, muitas vezes, encontrava-se dificuldade quando da diagramao de diacrticos em vocbulos. A transliterao, de certa forma, desobriga o lexicgrafo de apresentar os vocbulos com seus respectivos diacrticos. 18

    As partes do discurso em rabe so divididas em trs: verbo, nome e partcula. Maiores informaes so apresentadas no captulo II.

  • 8

    forma cannica, seguidos por sua forma no plural. J as partculas (interjeies, preposies, pronomes etc.) seguem o mesmo padro de apresentao dos nomes.

    2) Dicionrio rabe-Portugus (2005)

    O compilador, Dr. Helmi Nasr (2005), nativo do Egito e veio ao Brasil em 1962. J em 1963 tornou-se professor na USP e permaneceu por muito tempo o docente responsvel pelas aulas de lngua e literatura rabe, bem como as disciplinas ligadas cultura islmica (HANANIA, 1987).

    O Dicionrio rabe-Portugus uma obra monodirecional (rabe portugus) e foi publicada pela Cmara de Comrcio rabe Brasileira. Ele conta com duas verses idnticas: uma em papel e uma verso eletrnica disponvel gratuitamente em rede19. Contm uma curta introduo (3 pginas) e o guia de transliterao de palavras. As 416 pginas restantes so dedicadas ao dicionrio em si, que so divididas em duas colunas. A primeira inclui as entradas da lngua fonte seguida por sua transliterao (em vermelho). A segunda coluna registra os equivalentes na lngua de chegada.

    Na introduo ao dicionrio, Nasr (2005) relata a trajetria da obra, desde a concepo da ideia at a materializao da mesma. O presente dicionrio foi motivado

    pela necessidade que os estudantes do curso de rabe da USP tinham desse tipo de obra de referncia. O alvo prover uma ferramenta para leitura e compreenso de textos em rabe. O dicionrio tambm se presta a servir como auxlio para o rabe que

    est aprendendo o portugus. Assim, ele pretende ser bifuncional atendendo s necessidades dos arabfonos e lusfonos.

    A seleo das entradas baseada na obra de Hans Wehr Dictionary of Modern Written Arabic, um dicionrio que apareceu primeiramente em alemo e depois foi traduzido para o ingls. Essa obra foi escolhida devido ao fato que ela continha todo o vocabulrio usado na imprensa, na televiso, no rdio e na conversao diria. Observamos tambm que ele se distinguia com a preciso e explicao clara, longe das complicaes gramaticais. (NASR, 2005, p. i).

    19 Ver: http://www.favus.com.br/Clientes/dicionarioarabe/.

  • 9

    Nasr tambm alude ao fato que o critrio para a seleo dos verbetes no foi necessariamente cientfica: ... comeamos a escolher as palavras convenientes do

    dicionrio rabe-ingls e a traduzi-las ao portugus. Ele tambm reconhece que este no um dicionrio abrangente: Longe estamos de pretender seja ele um dicionrio completo, uma vez que no contm seno pouco mais de 70.000 (setenta mil) vocbulos (NASR, 2005, p. i).

    No se sabe exatamente como Nasr chegou a esse nmero de entradas, pois esse dicionrio no conta seno com aproximadamente 9.000 entradas, que so apresentadas em ordem alfabtica de acordo com as razes. Os verbos, seguindo a

    organizao de Hans Wehr, aparecem no perfectivo e, depois da transliterao, so seguidos pela vogal que tomam no imperfetivo. Apenas alguns verbos apresentam as

    preposies que devem ser usadas com eles (regncia verbal). Os nomes so apresentados em sua forma cannica, seguidos por sua forma no plural.

    Nasr no fornece muitas informaes sobre a lngua rabe, mas salienta duas

    informaes importantes no final de sua introduo: a vogal que o verbo tomar no imperfectivo, e a conveno que os orientalistas usam para indicar as modificaes

    que atingem a raiz do verbo. Essas caractersticas so meticulosamente seguidas quando do tratamento dos verbos.

    Um rpido exame na microestrutura revela certa falta de coeso interna e homogeneidade. Muitas vezes o nome deverbal20 para o primeiro paradigma no aparece. Nas instncias onde o nome deverbal registrado, s vezes aparece escrito em rabe e na forma transliterada, algumas vezes apenas na forma transliterada. Os paradigmas verbais aparecem ora em preto, ora em vermelho. Algumas informaes

    contidas na microestrutura apresentam grafemas rabes ( ), mas no existe uma explicao para elas, ou seja, falta uma tabela das convenes usadas. O sistema adotado para a transliterao incongruente e, algumas vezes existe uma divergncia entre a transliterao e as palavras escritas em rabe.

    20 Na opinio de muitos arabistas e de fillogos e lexicgrafos rabes (particularmente os partidrios da

    Escola Filolgica de Kfa ver captulo II), o nome deverbal era a primeira derivao de um verbo.

  • 10

    3) Dicionrio rabe-Portugus (2011)

    Recentemente publicado, o Dicionrio rabe-portugus tambm de Sabbagh (2011), a mais nova adio s obras lexicogrficas na direcionalidade rabe portugus21. Publicada pela Fundao Biblioteca Nacional em coedio com Almdena, o dicionrio traz uma apresentao do autor em que constam informaes

    acerca da organizao do dicionrio, que so oferecidas em rabe e portugus, e que cobrem dezesseis pontos importantes no que concerne microestrutura. Uma tabela das abreviaes utilizadas (tanto nas colunas da lngua fonte como na da lngua de chegada) ocupa as trs pginas restantes.

    A apresentao reflete a preocupao do dicionrio publicado em 1988, ou seja, a inexistncia de uma boa obra de referncia abarcadora. O dicionrio redigido tendo como pblico alvo, de um lado, os estudantes e arabistas que utilizam o

    portugus em suas duas vertentes, a europia e a sul-americana. Por outro lado, ele tambm procura responder as necessidades de rabes que esto interessados no portugus. O dicionrio , portanto, bifuncional e recproco.22

    Em sua apresentao, Sabbagh no enumera a quantidade de verbetes nem o corpus que proveu tais entradas. Uma nica aluso macroestrutura e s entradas, que a presente obra ocupa-se da lngua rabe literria contempornea, sem desprezar, contudo, palavras e expresses que possibilitem aos usurios estudarem a literatura do perodo clssico, que desperta grande interesse no mundo acadmico (SABBAGH, 2011, p. 19). Procurou-se contar as entradas que chegaram a cerca de 25.000 verbetes, divididos em 735 pginas. Cada pgina dividida ao meio, cada metade com duas colunas. A primeira apresenta os verbetes na lngua fonte e a segunda apresenta os equivalentes na lngua de chegada.

    Semelhante ao seu primeiro dicionrio, a organizao estruturada na forma alfabtica pura, onde as diferentes derivaes aparecem como entradas e no como

    21 O Dicionrio portugus-rabe (SABBAGH, 2004) foi publicado pela editora Librarie du Liban. Esta

    obra no mencionada aqui por no ser parte da direcionalidade que contempla essa dissertao. 22

    O critrio da funcionalidade diz respeito s duas funes bsicas de um dicionrio bilngue: 1) apoio codificao (na direo lngua materna lngua estrangeira) e 2) apoio decodificao (direo lngua estrangeira lngua materna); O critrio da reciprocidade diz respeito lngua materna do pblico alvo do dicionrio bilngue. O dicionrio bilngue recproco aquele que tem como pblico alvo tanto os falantes da lngua fonte quanto os da lngua alvo. (DURAN E XATARA, 2007, p. 313).

  • 11

    subentradas de uma radical verbal. Diferente do primeiro dicionrio, Sabbagh (2011) no fornece em portugus informaes lingusticas como nmero e gnero

    (embora, em rabe, essas informaes apaream indicados pelo grafema [] para os plurais irregulares e [] para algumas formas femininas)23. As partes do discurso so apresentadas na coluna designada para a lngua de chegada. Sabbagh (2011) tambm no fornece a transliterao das entradas, mas estas so grafadas com todos os acentos diacrticos.

    Os verbetes, de maneira geral, so mais trabalhados e apresentam diferentes acepes e sinnimos. Os verbos so apresentados no perfectivo (terceira pessoa, singular, masculino), seguidos pela vogal que caracteriza sua forma no imperfectivo. A regncia indicada, pelo menos as mais frequentes. No h indicao da (in) transitividade verbal. Os nomes e partculas so apresentados em sua forma cannica, seguidos por sua forma no plural (se irregulares).

    Para concluir, pode-se atestar que os trs dicionrios analisados se propem a auxiliar o estudante na tarefa de decodificao, sendo que os dois ltimos, Nasr (2005) e Sabbagh (2011), tambm tm como pblico alvo o falante da rabe, que usaria o dicionrio para a codificao. No se sabe com exatido quais foram os critrios para a seleo das entradas e, estas, somente no mais recente, Sabbagh (2011), so tratadas de maneira um pouco mais exaustiva. Em suma, acredita-se que os dicionrios examinados acima cumpram aquilo a que se propuseram. Contudo, acredita-se que o tratamento lexicogrfico, em especial para com o verbo (com seu status de mola propulsora do lxico rabe24), poderia ser mais amplo, incluindo diferentes acepes, fornecendo ampla sinonmia, sua regncia e exemplos de uso para os aprendizes.

    Ezquerra (1993) salienta que uma das razes pelas quais o estudante deixa de usar o dicionrio bilngue o seu nmero reduzido de entradas. Esse fato, em si, pode ser considerado positivo mas, quando se trata de idiomas de outros troncos lingusticos, o estudante leva muito tempo (e talvez nunca o faa) para poder utilizar um dicionrio monolngue. O autor tambm observa que o tratamento lexicogrfico

    23 Esses dois grafemas so as primeiras consoantes das palavras () /jamc/ plural e ()

    /muanna/ feminino. 24

    Conforme se discute no captulo II desta dissertao.

  • 12

    das entradas nos dicionrios bilngues muito limitado uma vez que, geralmente, apenas privilegia a traduo de uma dada unidade lexical.25

    Levando em considerao esses fatores e tendo em mente que a aprendizagem e o aprofundamento no conhecimento lingustico, via de regra, se adquire com a leitura no idioma almejado, esta pesquisa prope a elaborao de um dicionrio bilngue de verbos focando na regncia e em seus usos. Assim, dedica-se o primeiro captulo dessa dissertao a um panorama geral da lngua rabe focando em suas distintas etapas, incluindo a ascenso, apogeu, declnio e revitalizao. O segundo captulo discorre sobre a gramtica rabe e a codificao lingustica bem como o lugar do verbo em duas tradicionais escolas filolgicas. No terceiro captulo apresenta-se o arcabouo terico para essa pesquisa, descrevendo de maneira multidisciplinar as

    diferentes disciplinas dentre as cincias do lxico que tratam do fazer lexicogrfico. Apresenta-se tambm, com base em obras lexicogrficas, as principais caractersticas

    da lexicografia rabe de cunho monolngue, bilngue e terminogrfica. Finalmente, no quarto captulo, apresenta-se o dicionrio propriamente dito. Elencam-se os 1001 verbos mais frequentes nos corpora literrio e jornalstico e, dentre esses verbos, selecionam-se alguns para uma amostragem do tratamento lexicogrfico, em especial

    aqueles que tm suas acepes originais alteradas quando seguidos por preposio.

    25 Ezquerra (1993, p. 147) afirma que La enorme reduccin del lxico es uno de los motivos por los

    cuales los estudiantes extranjeros con un conocimiento avanzado de la lengua se sienten obligados a utilizar los diccionarios monolinges, y no los bilinges como venan haciendo durante las primeras etapas del aprendizaje. [...]Los diccionarios que abarcan una sola lengua, reduciendo sus caractersticas hasta un rasgo elemental, explican el significado de las palabras, mientras que los otros los plurilinges, se limitan a su traduccin.

  • 13

    CAPTULO I

    OS RABES E SUA LNGUA: UMA BREVE HISTRIA

    Os rabes construram tanto um imprio quanto uma cultura. [...] Eles absorveram e assimilaram os principais aspectos da cultura greco-romana, e subsequentemente atuaram como veculos de transmisso dessas influncias intelectuais para a Europa medieval, o que, em ltima anlise, resultou no despertamento do mundo ocidental e o colocou no caminho para sua renascena moderna. Nenhum povo na Idade Mdia contribuiu tanto para o progresso humano quanto o fizeram os rabes e os povos de expresso rabe. Philip Hitti.26

    Discusses sobre a origem da lngua rabe e o seu status antes e durante sua codificao tm resultado em debates acirrados e muitas controvrsias tanto entre os

    falantes nativos da lngua (exegetas, fillogos e gramticos) quanto entre os arabistas que possuem a lngua rabe como objeto de estudo. Esse captulo pretende apresentar um pano-de-fundo histrico de sua formao e desenvolvimento; a estratificao que resultou nos falares regionais (dialetos); e, por ltimo, o ocaso e a revitalizao lingustica resultante da Naha27 nos tempos modernos. A relevncia desses assuntos tonar-se- evidente quando da escolha da vertente lingustica que nortear a escolha dos verbetes no proposto dicionrio.

    1. ETNIA E LNGUA RABE

    Os rabes mencionados na epgrafe acima se referem aos descendentes diretos ou por associao28 dos povos culturalmente heterogneos que habitavam a

    26 The Arabs built an empire as well as a culture ... They absorbed and assimilated the main features of

    the Greco-Roman culture, and subsequently acted as a medium for transmitting to medieval Europe many of those intellectual influences which ultimately resulted in the awakening of the western world, and in setting it on the road toward its modern renaissance. No people in the Middle Ages contributed to human progress so much as did the Arabians and the Arabic-speaking peoples (HITTI, 1970, p. 4). 27

    Naha um termo derivado da raiz /n-h-/ cuja carga semntica levantar-se, por-se de p (WEHR, 1979). Em um sentido conotativo, Naha implica em estar pronto para, estar preparado, em forma. Esse termo usado para designar o renascimento da literatura e pensamento rabe sob a influncia ocidental inaugurada depois da invaso de Napoleo ao Egito em 1789, mas que tomou forma a partir da segunda metade do sculo XIX. Frequentemente tanto o conceito quanto a nomenclatura tm sido traduzidos como Renascena. Tomiche (1993, p. 900) a fim de evitar uma abordagem eurocentrista, sugere a traduo Despertamento ao termo em questo. Segundo ele, essa equivalncia est mais prxima ao sentido da raiz, e portanto, mais satistatria. 28

    Durante o Califado Omada (660-750), o casamento entre os membros de diferentes grupos tnicos atenuou o conceito de arabismo, dando lugar a um novo entendimento do ser rabe. Hitti (1970, p. 240) atesta que, um rabe [] tornou-se qualquer pessoa que professasse o isl e falasse e escrevesse a lngua rabe, independente de sua afiliao racial. Jenssen (2001, p. 135), ratificando a posio de

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    Pennsula Arbica, que foram divididos, historicamente, em duas partes: O norte, com sua populao tipicamente nmade que ocupava a regio do Najd e Al-ijz; e o sul, com uma populao sedentria que habitava a rea hoje conhecida como Imen. (YUSHMANOV, 1961).

    Figura 1: Mapa das tribos rabes do perodo pr-islmico

    Hitti, relata um /ad/ tradio oral atribuda ao Profeta do Isl no qual este teria dito: meu povo! Deus um e o mesmo. Nosso pai [ou seja, Ado] o mesmo. Ningum entre vs herda o rabe de seu pai ou me. O rabe um hbito da lngua, ento, qualquer pessoa que fale o rabe um rabe. A questo da identidade rabe tem sido um assunto muito discutido atravs dos sculos. Suleiman (2003, p. 64), em seu livro The Arabic language and national identity, discorre sobre vrias teorias na formao dessa identidade e, em sua interpretao do citado /ad/, aponta que existe uma forte associao entre lngua e povo na conceptualizao da identidade grupal na cultural rabe, ainda que as razes histricas dessa associao sejam normalmente enquadradas no contexto islmico. Ele tambm cita um famoso jurisprudente islmico, Imam afici (morte 820), que em sua obra /risla/ epstola, carta argumenta contra o uso do fator descendncia ou linhagem como um definitivo critrio para assero da arabidade de algum. Para Imam afici, um muulmano se torna um rabe se ele tem competncia na lngua, e abandona sua arabidade se perde essa competncia.

  • 15

    Antes do sculo VII d.C. extremamente difcil ouvir falar da lngua e cultura rabe de uma maneira pontual. Vrios registros histricos referem-se aos rabes,

    notavelmente a Bblia, mas foi o advento do Islamismo que os projetou, juntamente com sua lngua e cultura, para alm de suas fronteiras histricas.

    O causa principal dessa mudana foi o aparecimento do profeta Muammad (Maom), o fundador do Islamismo. Ele nasceu em Meca em 570 d.C., membro de uma famlia influente. Pouco conhecido sobre sua infncia, mas sabe-se que seu pai falecera antes de seu nascimento e que sua me tambm faleceu pouco tempo depois.

    Muammad cresceu sob os cuidados de seu tio Ab-lib, um comerciante bem-sucedido. Casou-se aos vinte e cinco anos com uma rica viva adja e pouco

    tempo depois comeou uma srie de meditaes em uma caverna nos arredores de Meca, onde teve revelaes msticas, nas quais o anjo Gabriel verbalizava o contedo de um registro pr-existente nos cus29, que era, por sua vez, recitado por Muammad

    e depois transmitido oralmente para seus compatriotas rabes. Essa coletnea de mensagens resultou, posteriormente, na formao do Alcoro30, o sagrado livro islmico (KHATIB, 1981).

    A nova mensagem foi anunciada fielmente, a princpio entre parentes e

    amigos, e logo, de uma maneira mais pblica. Suas palavras encontraram um solo frtil e vrias pessoas foram atradas a seus ensinos, que podem ser sumariados em

    cinco pontos principais: (1) Rejeio idolatria e nfase na unicidade divina; (2) Existncia de um dia de prestao de contas julgamento resultando na retribuio divina: paraso para os fiis, e o inferno para os incrdulos; (3) A resposta humana diante da soberania divina deve ser a adorao ao nico Deus; (4) Deus tambm espera a generosidade por parte dos seres humanos (nos relacionamentos interpessoais), sendo esse um dos quesitos fundamentais no dia de julgamento; (5)

    29 Para os muulmanos, a nica fonte para o Alcoro o prottipo tbua custodiada, da qual o

    Alcoro terrestre uma cpia fiel. Esse arqutipo est guardado nos cus (Alcoro 85:22), e foi enviado a terra atravs da intermediao do anjo Gabriel. 30

    O vocbulo Alcoro significa recitao ou, numa segunda acepo, leitura, seu primeiro versculo revelado denomina o livro: L, em nome de teu Senhor (Alcoro 96:1). Essa revelao foi intermitente e continuou por aproximadamente 23 anos (ABU-HAMDIYYAH, 2000). Essencialmente o livro organizado em captulos (sra) que variam em extenso, de breves (3 versculos) a longos (286 versculos). McAuliffe (2006), citando um hermeneuta do sculo XIII, esclarece que o Alcoro contm 323.015 letras, 77.439 palavras, e 6.239 versculos em suas 114 sras. Hitti (1944, p. 37) acrescenta que o Alcoro equivale a quatro-quintos do tamanho do Novo Testamento, portanto um livro de mdia extenso.

  • 16

    Reconhecimento de Muammad como um mensageiro especial de Deus para seu povo e como um atalaia discorrendo sobre o julgamento vindouro (HOLT; LAMBTON; LEWIS, 1970).

    Enquanto a nova doutrina fascinava alguns segmentos restritos da populao (especialmente entre os escravos e as pessoas das classes mais humildes), ela tambm atraa a ateno da oligarquia de Meca, que se sentia ameaada pelo teor da

    mensagem. Assim, levantou-se uma forte oposio aos ensinos e tentativas de reformas de Muammad, j que a nova doutrina restringiria a fora repressora destes lderes, diminuindo sua influncia na regio. Nessa poca algumas famlias migraram para a Abissnia, onde os neo-muulmanos encontraram guarida nos domnios do rei

    Negus. Poucos anos mais tarde uma segunda leva juntou-se a essas onze famlias originais (HITTI, 1944).

    Mas a perseguio continuou a aumentar, e Muammad e seus seguidores

    foram ento forados a partirem de Meca e emigrarem para Yarib que mais tarde recebeu o nome de Madnat An-Nab (Cidade do Profeta) ou simplesmente Medina. Esse evento, denominado hgira (do rabe /hijra/ emigrao) marca o incio do calendrio islmico.

    Pouco tempo depois, o islamismo foi estabelecido tanto poltica quanto socialmente em Medina e, em 630 d.C., Muammad marcha para Meca e conquista a cidade. A partir de ento comeam suas incurses sob o estandarte da f islmica para

    outras regies da Pennsula (BEESTON et al., 1983).

    Seu falecimento ocorreu dois anos depois da conquista de Meca (632 d.C.). Ele faleceu sem deixar herdeiros vares, e a tarefa de liderar politicamente a

    comunidade de f, no sem controvrsias, passou para os califas, ou seja, sucessores (NEWBY, 2002). Com o governo centrado nas mos dos trs primeiros califas, o Imprio Islmico teve um perodo de expanso e consolidao. Em algumas poucas dcadas, as fronteiras do novo imprio extenderam-se atravs do Norte da frica at a atual Tunsia, ao norte at a moderna Turquia, e a leste at a Prsia.

    Com o advento da Dinastia Omada (661-750), o Imprio alcanou o extremo oeste do Norte da frica (Marrocos), atravessou o Estreito de Gibraltar e adentrou a

  • 17

    Pennsula Ibrica ao norte. A leste, as fronteiras foram alargadas at a ndia (Lahore) e China. O mapa seguinte ilustra a expanso geogrfica do Imprio Islmico durante

    seus primrdios (Braswell, 1996).

    Figura 2: Mapa da expanso do imprio rabe-islmico

    Com a queda da Dinastia Omada, percebe-se que o Islamismo havia testemunhado uma expanso externa impressionante (tanto geograficamente quanto em influncia); na Dinastia Abssida, entretanto, o Imprio Islmico testemunhar uma consolidao e expanso interna sem precedentes. Durante os quase oito sculos de domnio do Califado Abssida (750-1258), o territrio geogrfico do Islamismo extendeu-se muito pouco, contudo, a civilizao islmica deu um salto para tornar-se exemplo de modernidade, erudio e desenvolvimento. Braswell (1996) atesta esse fato ao relatar: Quando os mongis saquearam Bagd em 1258 tendo em vista por um fim ao Califado Abssida l, a civilizao islmica tinha sido estruturada em

    teologia, jurisprudncia e cincia; e o rabe era falado da Espanha ndia.31

    31 By the time the Mongols sacked Baghdad in 1258 to end the Abbasid Caliphate there, Islamic

    civilization had been shaped in theology, law, and science; and Arabic was spoken from Spain to India. (Braswell, 1996, p. 45)

    ````

    NORTH AFRICA

    SPAIN

    PERSIA

    ARABIA

    Yemen

    Oman

    750

    674

    699

    712

    652637

    637

    640

    644

    MeccaMedina

    644

    646

    698699

    EGYPT

    725

    711

    672 649

    EUROPA

    !Rome

    ````

    ```` Conquests to 632 A.D. (Death of Muhammad)

    Boundary of the Byzantine Empire about 750 A.D.

    Present-day Boundaries637 Dates Show When First Conquered

    Conquests Under First Three Caliphs, 632-661 A.D. Conquests Under Umayyad Caliphs, 661-750 A.D.

  • 18

    Durante o primeiro sculo da Dinastia Abssida, o Imprio Islmico experimentou um renascimento cultural que afetou a arte, a literatura, a cincia e a

    medicina islmica e pavimentou o caminho para a o estabelecimento da civilizao islmica. A avidez pelo saber, a relativa estabilidade poltica e econmica durante esse perodo, e a postura de conquistadores, providenciaram um terreno frtil para o florescimento dessas disciplinas. Concomitantemente, o estabelecimento das Escolas

    de Filologia de Bara e Kfa (que mais tarde se fundiram e deram origem a Escola de Bagd) atesta que os rabes estavam no somente preocupados com o conhecimento e modernidade, mas com o desenvolvimento de uma nova terminologia que mantivesse a elegncia e o estilo de sua lngua (EL-KHAFAIFI, 1985).

    O segundo califa da Dinastia Abssida, Al-Manr (754-775) construiu a nova capital do imprio, Bagd, s margens do Rio Tigre. Depois de seu reinado, outros importantes califas se levantaram: Al-Mahd (775-785), Hrn Ar-Rad (786-809) e Al-Mamn (813-833). Braswell (1996, p.46) relata:

    Sob esses soberanos, Bagd tornou-se uma metrpole esplndida, presidindo sobre um vasto domnio com energia e com poder implacveis, desfrutando de um extenso comrcio e abrigando um dos maiores centros interculturais de transferncia intelectual na histria do mundo.32

    O califa Al-Mamn marcou o apogeu da dinastia Abssida. Durante seu governo, Bagd desabrochou para as cincias e tornou-se renomada por seus intelectuais. Attie Filho (2002, pp. 119, 120) testifica que o prprio califa interessou-se pelas obras gregas que eram traduzidas por cristos e judeus para a lngua rabe, e incentivou esse movimento. Sob seu patrocnio foi fundada o /bayt al-ikma/ A Casa da Sabedoria em 830, cuja a principal tarefa era abrigar e traduzir obras cientficas e filosficas. [F]oi nesse cenrio rico de influncias que, em pouco tempo, os rabes se viram detentores de grande parte da herana filosfica e cientfica da Antiguidade que, paulatinamente, foi sendo traduzida para a lngua rabe. (ATTIE FILHO, 2002, p. 134).

    32 Under these sovereigns, Baghdad became a splendid metropolis, presiding with energy as well as

    with ruthless power over a vast dominion, enjoying a far-flung commerce and housing one of the greatest intercultural centers of intellectual exchange in the history of the world.

  • 19

    Previamente, o Islamismo havia triunfado sobre outros povos e impingido a marca rabe sobre o mundo conquistado, semelhante fenmeno ocorria agora, mas em

    direo contrria. Dessa vez, porm, os rabes no entraram em contato com a herana de conhecimento atravs da conquista, mas atravs de misses especiais enviadas especialmente para procurar por manuscritos para a traduo. Gutas (1998) atesta que o movimento de traduo que ocorreu entre meados do sculo oito e fim do

    sculo dez, testemunhou a verso de quase todo o corpo literrio grego para a lngua rabe: de alquimia e cincias ocultas astrologia, passando pela aritmtica,

    astronomia, geometria e msica, sem deixar de lado toda a extensa filosofia aristotlica, incluindo a tica, fsica, lgica e metafsica entre outros. O impacto dessas tradues foi to intenso que quase impossvel pensar no estudo dos escritos gregos antigos sem levar em conta a influncia do rabe.

    O movimento de traduo no mundo rabe perpetuou o legado das antigas lnguas de comrcio, erudio e pensamento muito aps o declnio destas. A princpio os tradutores, e mais tarde, os prprios filsofos rabes, desenvolveram um sistema de referncia que no apenas auxiliou os arabfonos de suas pocas a entenderem e assimilarem os conceitos universais propostos pelas civilizaes passadas, antes os

    colocaram na posio de dialogar com os grandes mestres, e a desenvolverem suas prprias premissas e axiologias. Esse trabalho de sistematizao de conceitos,

    linguagem e pensamento ajuda tambm o mundo ocidental hodierno a entender o pensamento clssico (antigo e medieval).

    O amor ao saber caracterizou essas primeiras geraes da civilizao islmica. Gacek (2001) advoga que uma das principais caractersticas dessa poca foi indubitavelmente o culto ao livro. A posio central que o livro ocupa na cultura rabe, segundo ele, deve-se ao Isl, mais apropriadamente ao Alcoro, o livro rabe por excelncia. Uma evidncia para essa reivindicao pode ser notada nas dezenas de

    milhares de obras em rabe numa ampla gama de disciplinas e tpicos, tanto em assuntos religiosos quanto em temas cientficos. Esse rico legado pode ser visto ainda

    hoje nos manuscritos encontrados em diversas bibliotecas universitrias e nas numerosos colees particulares e governamentais em todo o mundo, que testemunha um dos mais extraordinrios captulos na evoluo histrica de uma das maiores lnguas do mundo.

  • 20

    2. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO RABE CLSSICO

    A lngua rabe um membro do subgrupo semtico do tronco afro-asitico

    de lnguas, juntamente com o acdico, aramaico, e hebraico dentre outras. As lnguas semticas se enraizaram e floresceram no Mediterrneo, especialmente nas regies que circundavam os rios Tigre e Eufrates e na rea costeira do Levante. Duas das vertentes mencionadas extinguiram-se ainda no comeo da era crist: O acdico (antiga lngua da Mesopotmia) e o hebraico, que sobreviveu apenas como lngua litrgica, mas que desapareceu como linguagem do cotidiano. O aramaico se subdividia em diferentes

    dialetos, notavelmente o siraco (usados pela populao crist da Sria e Mesopotmia) e o nabateu (de uso restrito cidade caravaneira de Petra, na atual Jordnia).

    O ancestral comum de todo o desdobramento lingustico semtico chamado pelos especialistas de Proto-semtico, uma matriz lingustica cujos falantes ocupavam uma regio geogrfica ainda no identificada com exatido, mas que alguns estudiosos acreditam ser originria da frica Oriental, provavelmente na rea que hoje corresponde Somlia e Etipia (OLEARY, [1923] 2000), enquanto outros advogam seu bero como sendo o Oriente Mdio, entre a Sria-Palestina e a

    Mesopotmia. (HOLES, 2004).

    O proto-semtico tem sido bastante pesquisado, e baseado em reconstrues, os lingustas recobraram muitos aspectos fonolgicos, morfolgicos e sintxicos dessa

    variedade lingustica, chegando concluso de que a lngua rabe mais atrelada lngua originadora do que qualquer outra variedade semtica moderna.

    (INAYATULLAH, 1969).

    Jacquemond (2006) advoga que a vertente oral do rabe cristalizou-se no primeiro milnio antes do advento do cristianismo, enquanto que como vertente

    escrita apareceu ainda nos primeiros sculos da era crist, com um alfabeto derivado do nabateu, uma forma de aramaico.

    Assinala-se aqui o relacionamento entre a lngua rabe e o aramaico pelo fato de que a primeira evidncia epigrfica do rabe ser uma lpide que marca a localizao do tmulo de Imruu l-Qays b. Amr grafado no alfabeto aramaico. Essa

  • 21

    lpide, conhecida como a Inscrio de Namarah, foi descoberta por Rn Dussaud e Frdric Macler em 1901, em uma regio localizada cerca de cem quilmetros de Damasco. A lpide datada de 223 da era de Bostra, que segundo arquelogos, equivalente a 328 d.C. Bellamy (1985) examinou o epitfio e chegou concluso de que o vocabulrio e a sintaxe do registro so virtualmente idnticos forma clssica do rabe codificado no Alcoro, com poucas excees, como bar em vez de ibn, um item lexical claramente aramaico. Um grande legado dessa descoberta foi que o registro escrito mais antigo da lngua rabe datava de 512 d.C., o achado da Inscrio de Namarah retrocedeu para quase dois sculos o primeiro testemunho epigrfico rabe.

    2.1 CODIFICAO LINGUSTICA33

    A lngua rabe, na qualidade de lngua do estado e da cultura, suplantou (e, em muitos casos, totalmente desarraigou) muitos falares regionais: o grego e aramaico na Sria e Palestina; o copta no Egito; o latim e o berbere na frica do Norte; e o persa e outros falares regionais nas provncias do lado oriental do imprio. Essa influncia, contudo, no foi unilateral, muito embora muito tenha sido feito para refrear o efeito em direo contrria.

    Ibn aldn34 em seu Al-Muqqadima (Prolegmenos), atesta que cUmar, o segundo califa, proibiu o uso do idioma nativo em todos os confins do imprio islmico. O uso da lngua rabe tornou-se um smbolo de lealdade ao isl e de

    obedincia aos conquistadores. Essa coibio, embora tenha restringido a influncia lingustica, no a exterminou. O emprstimo lingustico, um fenmeno to velho

    quanto a prpria linguagem, um trao comum na histria das lnguas e a premissa bsica dos estudos de lnguas em contato, pois, a reciprocidade de relaes traz em seu mago um intercmbio vocabular muito significativo para as partes envolvidas.

    33 Tema brevemente abordado aqui. Ele ser retomado no prximo captulo quando da discusso das

    escolas gramaticais. 34

    Ibn-aldn (1332-1406), foi o maior historiador islmico medieval. Nasceu em Tunis, filho de uma famlia espanhola-rabe, e serviu ao imprio islmico em vrias regies, incluindo, Arglia, Egito, Granada, Marrocos e Tunsia. Em 1375 refugiou-se em Frenda (na atual Arglia) onde escreveu seu livro /al-muqaddima/ Prolegmenos, que o primeiro volume de seu /kitb al-ibar/ Histria Universal. Em 1382, a caminho de sua peregrinao Meca, foi-lhe oferecida uma ctedra na famosa universidade islmica Al-Azhar em Cairo, cargo que ocupou at sua morte em 1406.

  • 22

    Crystal (2004, p. 42) atesta: Nenhuma lngua existe em isolamento.Todas as lnguas em contato influenciam umas as outras. E o rabe no foi uma exceo

    regra. Sua histria est repleta de instncias onde sua supremacia foi afrontada, s vezes de modo sutil, e em outros de maneira intensa e quase brutal35.

    Versteegh (1997) e Esposito (1999) testam que o papel preponderante que a lngua rabe desempenhava na recm criada liturgia islmica, bem como o domnio

    poltico da nao rabe nos territrios conquistados, requeriam uma inadivel estruturao lingustica que forneceria um paradigma inaltervel para os futuros

    fillogos, gramticos, e linguistas, perpetuando assim sua hegemonia.

    Respondendo a essa necessidade o fillogo all Ibn-Amad (ca. 718-791), procedente da provncia onde se encontra o moderno Sultanato de Oman, compilou o

    inteiro vocabulrio rabe em uma nica obra, o Kitb al-cAyn (o livro [da letra] cayn). all Ibn-Amad tambm fundou a primeira escola de filologia do mundo rabe, onde

    seus discpulos analisaram a lngua e fixaram a gramtica rabe tendo por base o texto do Alcoro, as poesias da era pr-islmica, e o falar beduno (HOLES, 2004). Jacquemond (2006) assim resume o labor dos primeiros padronizadores da lngua rabe:

    a lngua da poesia pr-islmica e do Alcoro, que os gramticos e os lexicgrafos rabes vo fixar, nos dois primeiros sculos do Isl, por meio de um trabalho de compilao, de padronizao e de teorizao lingustica de uma amplitude at ento sem precedente.

    Embora a lngua rabe tenha experimentado, por sculos, diversas influncias lingusticas, sua gramtica, cristalizada como estava, manteve-se essencialmente a

    mesma. Seu universo lexical, em vez de ser reduzido ou alterado, apenas expandiu e aprimorou-se. Isso se deve, essencialmente, a dois fatores principais: (1) concepo que os rabes tinham de sua lngua, e, (2) ao labor conjunto dos exegetas, fillogos,

    35 Refere-se aqui, especificamente, a emprstimos lingusticos nas lnguas de especialidade, tanto no

    aspecto diacrnico como no sincrnico. Muitos lingustas compartilham a opinio de que, com o fenmeno da globalizao e a realidade da tecnologia moderna, o isolamento de uma nao lingustica muito improvvel, pode-se chegar concluso que nenhuma lngua est livre de emprstimos, j que o contato entre povos, inevitavelmente, conduz a emprstimos lingusticos. Essa uma questo muito debatida nas academias de letras rabes. Muitos eruditos consideram que a lngua rabe tem em sua estrutura a habilidade de gerar os termos cientficos necessrios sem recorrer a emprstimos de lnguas estrangeiras que poderiam, hipoteticamente, gerar uma potencial ruptura em sua estrutura e integridade lingustica.

  • 23

    filsofos, gramticos, e lexicgrafos rabes que envidaram muitos esforos para preserv-la.

    Haywood e Nahmad (1965), corroborando o ponto de vista acima, asseguram que alguns usos gramaticais se tornaram obsoletos, mas a gramtica codificada entre os sculos VII e X ainda se aplica amplamente ao rabe padro moderno, como convm lngua que foi o veculo da revelao divina, fator essencial que inibe a

    alterao lingustica de maneira extensiva. Eles reconhecem a realidade da variao lingustica, mas indicam que esta alterao infinitamente menor do que as mudanas

    que ocorreram nas lnguas europias durante o mesmo perodo. Eles citam como exemplo a diferena entre o ingls de Chaucer (sculo XIV) e aquele de Kipling (sculo XIX) como os dois polos extremos. O portugus brasileiro, de formao relativamente recente, no conta com diferenas to acentuadas, mas poder-se-ia argumentar que o autor portugus Lus de Cames36 (sculo XVI) e o moderno escritor brasileiro Paulo Coelho, tambm poderiam ser considerados como polos opostos no espectro da variao lingustica. A mudana no se limita ao universo lexical, mas s estruturas de sintaxe, semntica e ortografia. O que no acontece com a lngua rabe.

    Rabin (1955) concorda com a postulao de que a mudana gramatical nfima, e aponta como argumento o fato que o conhecimento hodierno da estrutura

    lingustica e da gramtica rabe deve-se ao empenho dos fillogos muulmanos medievais que, nos trs sculos anteriores a Zamaar (1075-1143), proveram o arcabouo terico para os estudos lingusticos rabes. Ele advoga que as gramticas rabes confeccionadas pela erudio ocidental so extensamente embasadas naquelas obras iniciais: [N]s podemos dizer sem exageros que um estudante universitrio de nossos dias recebe essencialmente o mesmo curso de gramtica rabe que um estudante recebia numa madrasa abssida [do perodo tardio] (RABIN, 1955, p. 19).37

    36 Reporta-se a Cames (1524/25-1580) devido ao seu impacto sem paralelos tanto na literatura

    portuguesa quanto na brasileira, no somente atravs do pico Os Lusadas (1572), mas tambm poesia lrica de sua autoria publicada postumamente. 37

    [W]e may without exaggeration say that the university student of our days is essentially offered the same course in Arabic grammar as the student of a late Abbasid madrasa.

  • 24

    Com relao percepo que os arabfonos tm de sua lngua pode-se asseverar que toda comunidade lingustica possui um conjunto de crenas e mitos acerca de sua prpria lngua, e o rabe no exceo. Dependendo do teor dessas crenas, mudanas podem tornar-se, em muitos casos, matria de disputa. Hitti (1944, p. 21) assim descreve a inter-relao etnia lngua rabe:

    Nenhum povo no mundo evidencia tal admirao pelas expresses literrias e to comovido pela palavra, falada ou escrita, como os rabes. Audincias contemporneas em Bagd, Damasco e Cairo podem ser agitadas ao extremo ao ouvirem a declamao de poesias, vagamente compreendidas, ou as prelees em lngua clssica, ainda que somente parcialmente entendidas. O ritmo, a rima, a musicalidade, produzem neles um efeito que eles chamam de feitio permitido.38

    Essa famosa citao de Hitti, na qual colocada em evidncia a extrema

    importncia que os rabes atribuem sua lngua, confirmada por vrios estudiosos da cultura rabe-islmica. Nydell (2002, p. 115), entre outros, corrobora a postulao de Hitti ao declarar que enquanto a maioria dos ocidentais sente afeto por suas

    lnguas maternas, o orgulho e amor que os rabes sentem pelo rabe so muito mais intensos. A lngua rabe o maior tesouro cultural deles.39

    Ferguson (1968) discorre sobre alguns desses mitos em rabe, dos quais a superioridade o primeiro. razovel dizer que, pelo menos historicamente, a maioria dos rabes cr que sua lngua seja superior a todas as outras. Eles apontam vrios fatores como provas contundentes em defesa dessa crena, o mais importante

    deles sendo a revelao do Alcoro, vindo diretamente de Deus, e expresso em lngua rabe40. Tambm se valem do fato da lngua rabe ser muito complexa

    gramaticalmente, o que tido por muitos como uma importante indicao de sua

    38 No people in the world has such enthusiastic admiration for literary expression and is so moved by

    the word, spoken or written, as the Arabs. Modern audiences in Baghdad, Damascus and Cairo can be stirred to the highest degree by recital of poems only vaguely comprehended, and the delivery of orations in the classical tongue, though only partially understood. The rhythm, the rhyme, and the music produce on them the effect of what they call lawful magic. 39

    While most Westerners feel an affection for their native language, the pride and love which Arabs feel for Arabic are much more intense. The Arabic language is their greatest cultural treasure. 40

    Como j mencionado, os muulmanos crem que o Alcoro uma cpia fiel de um prottipo existente nos cus. Chejne (1969, p. 06) assim descreve a notvel relao entre os rabes e a sua lngua: Consequentemente, muulmanos em geral e rabes em particular, tm considerado o rabe como uma linguagem concedida por Deus, inigualvel em beleza e majestade, e a mais eloquente de todas as linguagens para expressar pensamentos e emoes. Tais crenas predominaram at os dias atuais, particularmente no mundo rabe onde os pietistas e os nacionalistas consideram o rabe o esteio da f, [e] a coluna do nacionalismo [...]

  • 25

    superioridade. Um terceiro argumento a riqueza de sua lngua (os inmeros sinnimos para alguns conceitos: leo, tmara, etc.), e a extenso de seu universo vocabular. Estes trs aspectos so exemplificados no famoso enunciado de Ab ussayn Amed Ibn Fris41, um dos inmeros proponentes da origem divina da lngua rabe, citou em seu famoso kitb A-ib uma posio bastante comum em seus dias:

    Alguns jurisprudentes [islmicos] disseram: A lngua dos rabes no pode ser totalmente dominada a no ser por um profeta. E este pronunciamento digno de crdito, pois at onde sabemos, ningum reivindicou a memorizao da lngua em sua totalidade.42

    Finalmente, em quarto lugar, a estrutura lingustica salientada, especialmente as caractersticas morfolgicas da lngua que permitem a fcil cunhagem de novos

    vocbulos, o que, teoricamente, diminui a quantidade de emprstimos lingusticos de outros idiomas.43 Nydell (2002, p. 115) reivindica que os rabes crem que os emprstimos de outras lnguas menos frequente em rabe do que em muitas outras lnguas.

    Se essas alegaes podem ser comprovadas empiricamente um assunto que foge ao escopo dessa dissertao. Historicamente, entretanto, a prtica sugere uma teoria diferente. Chejne (1969, p. 04) confirma esse parecer quando declara que no processo de seu desenvolvimento, a lngua rabe tornou-se devedora a inmeras lnguas antiga, medieval, e moderna das quais ela tomou emprestado uma enorme quantidade de vocabulrio44.

    41 Ibn-Fris, gramtico e profcuo escritor do sculo X, dedicou sua magnum opus ao Vizir A-ib

    Ibn-cAbbdi. Em seu kitb A-ib, Ibn-Fris focaliza sua pesquisa em duas frentes: (1) na organizao geral do rabe reconhecendo-o como instituio divina e (2) como o Criador dotou suas criaturas para articul-lo. (ROMAN, 1988) 42

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  • 26

    2.2 ESTRATIFICAO LNGUSTICA

    Ibn aldn reitera em diversas passagens de seu livro que o contato da lngua

    rabe com aquelas das naes conquistadas causou a irremedivel corrupo do rabe:

    Vede o que se passa em relao a isto nas cidades de Ifrikya [frica], Magrib [frica do Norte], Andaluzia e Oriente. Em Ifrikya e no Magrib, os rabes se misturaram com povos estrangeiros, os berberes, que formavam a massa da populao. No havia ali, por assim dizer, nem cidade, nem povoao onde no houvesse berberes. Foi a causa de a lngua estrangeira sobrepujar a lngua que falavam os rabes, e desta promiscuidade formar-se um novo idioma misto, mas, sobre o qual a lngua estrangeira teve maior influncia, pela razo que acabamos de apontar, resultando dai esta linguagem afastar-se muito do idioma primitivo. O mesmo ocorreu no Oriente, onde os rabes depois de subjugarem as naes que habitavam estas regies, como os persas e turcos, misturaram-se com eles; as linguagens destas naes se infiltraram e tiveram curso entre eles por intermdio dos cultivadores, dos trabalhadores, dos cativos de guerra empregados como domsticos, pajens de crianas, domsticas e amas de leite. Com isto, o idioma dos rabes se corrompeu, por se ter alterado a faculdade que tinham adquirido, e assim uma linguagem nova substituiu a antiga. (Traduo do rabe de KHOURY, 1960, p 337)

    Embora o conceito de corrupo lingustica postulada por Ibn-aldn possa soar categrica em demasia, o fato que sua observao tem fundamento45 quando

    de Louis Deroy, LEmprut Linguistique. Em rabe, ele um assunto extremamente polmico pela prpria natureza do relacionamento etnia lngua rabe como mencionado acima.

    O termo emprstimo lingustico pode ser definido como um vocbulo (ou outro trao lingustico qualquer) advindo de uma lngua estrangeira, ou, no interior de uma mesma lngua, como originrio de outro universo lingustico. Obviamente o termo uma metfora e no deve ser entendido literalmente, tendo sido julgado imprprio por vrios autores, j que o termo subentende a devoluo do mesmo fonte original, o que no acontece. Ademais, o emprstimo sofre mudanas de natureza fontico-fonolgicas no processo de transferncia, algo que no aconteceria com um objeto emprestado, que se mantm tal qual . Matthews (1979, p. 47) ilustra bem esse conceito quando descreveu: Quando se pede algo emprestado, existe um entendimento tcito que o mesmo ser devolvido. Entretanto, quem que j pensou em devolver uma palavra aos franceses ou aos italianos ou a quem quer que seja, de quem ns a furtamos? Primeiramente porque ns no os privamos do uso da mesma e, em segundo lugar, eles podem no quererem-na de volta depois que tivermos terminado de us-la, afinal, ns temos a tendncia de tratar nossos emprstimos com uma certa brutalidade.

    Vrios termos substitutos foram sugeridos, entre eles mots voyageurs palavras viajantes de Calvet (1987), mas, a influncia dos linguistas Sapir e Bloomfield que assim denominavam o fenmeno, acabou por consagrar o uso do termo emprstimo na comunidade acadmica. (CARVALHO, 1989). 45

    Versteegh (1997, p. 112) assim esclarece essa posio de Ibn-aldn: A lngua rabe foi utilizada na interao entre os rabes com os povos conquistados, mas como os povos tinham muitas dificuldades em aprender a complicada estrutura da lngua rabe, eles cometiam muitos erros e dessa maneira corromperam a lngua rabe. O tema central nos relatos de Ibn-aldn esta corrupo da linguagem. Traduzido em terminologia moderna seus relatos parecem descrever o processo no qual o aprendizado imperfeito de uma segunda ocorre. Neste contexto, isso significa que as formas coloquiais

  • 27

    entendida dentro do contexto correto. Diferentes estudiosos da lngua rabe afirmam que as evidncias lingusticas parecem indicar que durante os estgios iniciais da

    conquista territorial islmica, o rabe gradualmente tornou-se a lngua dominante, mas no o puro rabe beduno, mas um novo tipo de lngua rabe, uma variedade oral que coexistia lado-a-lado com a antiga lngua do Alcoro e dos rabes bedunos. Em outras palavras, esta justaposio de lnguas, de um lado o rabe e do outro as lnguas vernaculares, produziu um enriquecimento do lxico rabe, mas tambm levou estratificao do idioma, o que resultou, posteriormente, em uma diglossia.

    Nogueira (2006) explora essa noo em seu artigo a diglossia nas comunidades rabes. Ela traa a origem do conceito ao lingusta francs William

    Marais que em 1930 definiu a situao de diglossia e cunhou o termo para designar o fenmeno. Entretanto, foi Charles Ferguson que tornou-se referncia na literatura lingustica por sua definio do termo46. Em seu clssico artigo de 1959, Ferguson descreveu a diglossia como uma situao em que duas variedades da mesma lngua so usadas para diferentes funes dentro da comunidade (p. 35), que o caso da lngua falada no mundo rabe.

    Diferentes autores denominam o fenmeno experimentado pela lngua rabe

    com diferentes terminologias. Hudson (1980) tanto o chama de triglossia quanto de quadriglossia; Hary (1996), por outro lado, o chama de multiglossia. Estes autores tomam as diferentes vertentes dentro de uma mesma variedade como se tratassem de entidades separadas (vide abaixo). Entretanto, para esta dissertao, preferiu ater-se denominao, definio e organizao de Ferguson (1959), pois pode-se acrescentar inmeras vertentes dentro de uma mesma variedade, mas o princpio permanece o mesmo.47

    da linguagem que se originaram neste perodo de conquistas foram, na realidade, variedades imperfeitas do rabe. 46

    William Marais, em 1930, definiu a situao de diglossia nas comunidades rabes, mas foi Ferguson (1964), que posteriormente definiu esse fenmeno. Ferguson atribui s duas variedades as denominaes H (H[igh], como sendo a variedade elevada, identificando as vertentes clssica e padro como pertencentes essa categoria) e L (L[ow], como sendo a variedade baixa, identificando com ela os dialetos regionais). 47

    Um exemplo disso o que ocorre em Bagd, que segundo Ferguson (1959), os cristos rabes usam o rabe cristo quando esto se comunicando entre si, e o dialeto de Bagd ou rabe muulmano, quando esto interagindo com um grupo misto.

  • 28

    A vertente H (Alta) abrange antigos conceitos poticos, estadsticos, filosficos e religiosos que foram preservados e fazem parte de um universo arcaico,

    mas ainda utilizado, principalmente na arena religiosa islmica. Essa variedade conhecida como o rabe clssico (a linguagem perpetuada pelo Alcoro), e ela nunca utilizada nas conversaes do dia-a-dia, no sendo a lngua materna de nenhuma das naes rabes. Entretanto, ela aprendida formalmente e usada por estudiosos

    religiosos quando debatendo assuntos concernentes f. Essa variedade smbolo de erudio e conhecimento teolgico (HUDSON, 1980).

    Essa mesma vertente H tambm engloba a variedade rabe padro moderno (APM) que uma forma modernizada do rabe clssico e menos complexa do que a variedade clssica no que se refere sintaxe, morfologia e semntica (CORTS, 1996; NYDELL, 2002). Ela entendida, se no falada, pela maioria dos rabes. O APM usado em situaes de locues formais, tais como palestras, noticirios e

    discursos e, na forma escrita, em correspondncia oficial, literatura e jornais. Essa variedade aprendida atravs do sistema educacional formal, e serve como a lngua franca entre todos os pases rabes. A morfologia e sintaxe do rabe padro moderno so essencialmente as mesmas em todos os pases rabes, da Mauritnia ao Iraque. As

    poucas diferenas lexicais so restritas a apenas algumas reas especializadas, ajudando a manter, como no passado, a unidade lingustica do mundo rabe. Este fato d a todos os descendentes rabes um senso de identidade e uma conscincia de sua herana cultural comum. O rabe padro moderno de carter conservativo e tende a criar e agregar neologismos ao seu banco de vocabulrio partindo de combinaes j existentes no rabe clssico, embora vrios lexemas tenham sido emprestados de

    outros idiomas (CORTS, 1996).

    A outra parte nessa diglossia o rabe dialetal, ou o cdigo L. Esta vertente varia de pas a pas e de regio para regio e usada em todas as situaes no

    formais do dia-a-dia, no obedecendo s regras gramaticais do clssico ou do padro moderno, embora siga uma conveno prpria e reconhecida. Essencialmente, esses

    dialetos so utilizados somente na verso oral, mas, algumas vezes, so reduzidos escrita, particularmente na poesia, em caricaturas de peridicos e em certos dilogos includos em romances contemporneos. Entretanto, eles no tm uma ortografia estabelecida. Contrrio vertente clssica e padro moderno, os dialetos no tm

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    nenhum prestgio. Algumas pessoas vo ao extremo de dizerem que eles no tm gramtica e que no valem a pena serem estudados com seriedade (NYDELL, 2002, p. 116).48

    Outros estudiosos acrescentam a essa terceira vertente duas outras variantes: O rabe falado culto (HUDSON, 1980; ABU-MELHIM, 1992) ou rabe falado formal (NYDELL, 2002), e o rabe cairota (ABU-MELHIM, 1992). O rabe falado culto (formal) a variedade usada por pessoas instrudas quando se comunicando com outras pessoas igualmente instrudas. El-Hassan (1978) citado em Abu-Melhim (1992) acrescenta a essa definio a seguinte caracterstica: No mundo rabe, os falantes instrudos usam uma variedade de rabe que ns chamamos de rabe Falado Culto (AFC), que est baseado tanto no rabe padro moderno como no rabe dialetal [as variedades regionais do rabe falado] (ABU-MELHIM, 1992, p. 02).49

    Essa breve introduo foi no sentido de elucidar o porqu da escolha do rabe Padro Moderno, considerado uma lngua franca entre os falantes de todos os pases rabes e tambm a mais usada no ensino de rabe para estrangeiros.

    3. DECLNIO LINGUSTICO E ESTAGNAO INTELECTUAL

    impossvel estabelecer uma data precisa ou fatos determinantes que tenham levado ao declnio da lngua e cultura rabe; contudo, pequenas demonstraes de

    decadncia podem ser vistos em diversos momentos histricos. a soma de todos esses fatores que levou derrocada (ainda que temporria) do imprio rabe-islmico. Talvez, o fator preponderante tenha sido as divises internas, pois, como sabido, um reino dividido contra si mesmo no pode subsistir. Essas faces domsticas se

    intensificaram ainda no sculo X, mas as repercusses s foram sentidas a partir do sculo seguinte, quando os rabes deveriam estar unificados para enfrentar os

    inimigos comuns que avanavam em diferentes frentes. No sculo XI comearam as

    48 [Arabic dialects] have no prestige. Some people go so far as to suggest that they have no grammar

    and are not worthy of serious study. 49

    O rabe cairota, a variedade urbana falada no Cairo (Egito), a variedade mais conhecida de todos os dialetos rabes, e provavelmente o mais prestigiado entre eles (cf. Op. cit, p. 07). Isso se deve ao fato de Cairo ser a Hollywood do mundo rabe. Centenas de filmes e msicas so oriundos deste centro cultural, disseminando, naturalmente, o lxico local. Alm disso, educadores egpcios trabalham em todos os pases de fala rabe, muitas vezes enviados pelo prprio governo egpcio em parceria com outros governos rabes.

  • 30

    Cruzadas com o intuito de expulsar os sarracenos (populao rabe-muulmana) que ocupavam a Terra Santa. No mesmo sculo, o movimento da Reconquista ganhou

    fora e expresso na Espanha e recobrou o importante centro cultural de Toledo (1085), fazendo com que a lngua rabe perdesse seu incontestvel domnio. Ela continuava arraigada em solo espanhol, mas agora teria que dividir o espao com a emergente lngua espanhola.

    No sculo XIII as invases mongis alcanaram a parte asitica do imprio islmico. Em 1258 d.C. a cidade de Bagd foi pilhada e totalmente devastada, pondo fim capital abssida, e acabando com um dos pontos nevrlgicos da vida intelectual islmica. O ncleo de atividade intelectual deslocou-se para outras regies,

    notavelmente o Egito, que estava sob o domnio mameluco50, mas sem o mpeto e originalidade de outrora.

    A deteriorao lingustica chegou a tal ponto que Ibn-Bata51, visitando a

    cidade de Bara em 1327 d.C., o bero da codificao e estruturao lingustica, relata que ouviu um pregador (que supostamente deveria ser profundo conhecedor da gramtica e retrica) cometer graves erros gramaticais em sua prdica:

    Eu participei das preces numa sexta-feira na mesquita, e quando o pregador se levantou para proferir seu sermo, ele cometeu muitos srios erros gramaticais. Eu fiquei atnito com o fato e comentei isso com o q [juiz] que me respondeu: Nessa cidade no existe mais ningum que tenha qualquer noo de gramtica. Eis aqui, realmente, uma admoestao para os homens ponderarem magnificado seja Aquele que muda todas as coisas e subverte todos os assuntos humanos! Esta Bara, em cujo povo o domnio da gramtica alcanou seu apogeu, visto ser onde ela [a gramtica] teve sua origem e desenvolvimento, e que foi a moradia do lder cuja preeminncia incontestada, no tem nenhum pregador que possa proferir um sermo sem quebrar as suas regras [gramaticais].52

    50 O nome derivado da palavra rabe para escravo. Sob o Sultanato Ayyb, generais mamelucos

    usaram sua influncia para estabelecer uma dinastia que governou o Egito e a Sria entre 1250 e 1517. 51

    Navegador rabe nascido em Tangier (Marrocos atual) em 1304. O mais importante navegador rabe medieval e autor de um dos mais famosos livros de viagens, Rila (Viagens), que descreve suas extensivas viagens cobrindo mais de 120.000 quilmetros em excurses a quase todos os pases muulmanos e s regies longnquas da China e Indonsia. 52

    I attende