2011 Praca Castro Alves IGHBA CAPITULO - Copia

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1 A PRAÇA CASTRO ALVES: DO LAMENTO DOS “CANTOS” À MUNDANIDADE DESLAVADA. SALVADOR, 1850-1930 1 Odete Dourado A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor. É o antro onde a liberdade Cria asas em seu calor. O Povo no Poder, Castro Alves. RESUMO O texto que ora se apresenta constitui parte integrante de um trabalho mais amplo, ainda em desenvolvimento, aonde se estuda a Freguesia da Sé em Salvador enquanto cenário privilegiado da vida social, política e econômica da cidade durante a Primeira República, quando a antiga urbe vem a se tornar o centro efetivo da Salvador moderna. Assistem-se então nesse período a uma rápida e intensa metamorfose dessa área da cidade - ruas, praças e edifícios – em sincronia com os novos hábitos propiciados pelos modos de vida e serviços essencialmente modernos. Aqui se expõe as transformações culturais anunciadoras dos chamados “tempos modernos” que vão ocorrer em Salvador entre meados do século XIX até o final da primeira República (1889-1930) quando de fato essas transformações se aceleram e se efetivam tendo como cenário privilegiado o antigo Largo da Quitanda, depois Largo do Teatro que nesse mesmo período recebe a denominação de Praça Castro Alves. A PRAÇA CASTRO ALVES: O LAMENTO DOS “CANTOS”. 1850 – 1888. Em meados do século XIX o Largo do Teatro, depois Praça Castro Alves, situado no extremo sul da Freguesia da Sé, se apresentava como uma espécie de “nó viário”, 1 Texto originalmente publicado em: DOURADO, Odete. Do lamento dos “cantos” à mundanidade deslavada. Salvador, 1850-1930. In: GAMA, Hugo; NASCIMENTO, Jaime (Org.). A urbanização de Salvador em três tempos: Colônia, Império e República. Textos Críticos de História Urbana. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2011, v.II, p. 197-238.

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A PRAÇA CASTRO ALVES: DO LAMENTO DOS “CANTOS” À MUNDANIDADE

DESLAVADA. SALVADOR, 1850-19301

Odete Dourado

A praça! A praça é do povo

Como o céu é do condor.

É o antro onde a liberdade

Cria asas em seu calor.

O Povo no Poder, Castro Alves.

RESUMO

O texto que ora se apresenta constitui parte integrante de um trabalho mais amplo, ainda em

desenvolvimento, aonde se estuda a Freguesia da Sé em Salvador enquanto cenário privilegiado da vida

social, política e econômica da cidade durante a Primeira República, quando a antiga urbe vem a se

tornar o centro efetivo da Salvador moderna. Assistem-se então nesse período a uma rápida e intensa

metamorfose dessa área da cidade - ruas, praças e edifícios – em sincronia com os novos hábitos

propiciados pelos modos de vida e serviços essencialmente modernos.

Aqui se expõe as transformações culturais anunciadoras dos chamados “tempos modernos” que vão

ocorrer em Salvador entre meados do século XIX até o final da primeira República (1889-1930) quando

de fato essas transformações se aceleram e se efetivam tendo como cenário privilegiado o antigo Largo

da Quitanda, depois Largo do Teatro que nesse mesmo período recebe a denominação de Praça Castro

Alves.

A PRAÇA CASTRO ALVES: O LAMENTO DOS “CANTOS”. 1850 – 1888.

Em meados do século XIX o Largo do Teatro, depois Praça Castro Alves, situado no

extremo sul da Freguesia da Sé, se apresentava como uma espécie de “nó viário”,

1 Texto originalmente publicado em: DOURADO, Odete. Do lamento dos “cantos” à mundanidade deslavada. Salvador, 1850-1930. In: GAMA, Hugo; NASCIMENTO, Jaime (Org.). A urbanização de Salvador em três tempos: Colônia, Império e República. Textos Críticos de História Urbana. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2011, v.II, p. 197-238.

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ponto de articulação do núcleo inicial da urbi ao norte e a sua expansão ao sul; era

também aonde desembocava na parte alta da cidade a íngreme Ladeira da

Conceição, então principal via de conexão entre a cidade alta e cidade baixa. Ao

leste, na parte mais baixa da praça, a Ladeira da Barroquinha, dava acesso a uma

área alagadiça que abraçava a inteira cidade ao nascente e que mais tarde veio a se

constituir na animada Rua da Vala, atual Baixa dos Sapateiros, primeira avenida de

vale da Cidade do Salvador.

À maneira de um belvedere, o Largo está implantado ao fim da antiga Rua Direita,

atual Rua Chile antes da depressão que dá início à Ladeira de São Bento. Assim o

descreveu, em 1860, o príncipe Maximiliano de Habsburgo:

Embaixo e ao redor, espalha-se a cidade, graciosamente. Em frente, encontra-se uma

enseada transformada em ancoradouro, com os inúmeros navios mercantes agrupando-se

em direção à margem e rodeado de embarcações de todo o tipo. [...] Embaixo concentra-

se a vida do porto, entre o interessante forte construído em meio às ondas, da enseada e o

Arsenal, com a Casa da Alfândega, situada ao lado. [...]. (HABSBURGO, 1982, p. 88)

Do lado norte, a sobranceiro da praça, a mole amarelo-laranja do Teatro São João

com seus 60 camarotes, 340 cadeiras dominava toda a paisagem. Segundo

WERHERELL, vice-cônsul inglês que aqui viveu no período compreendido entre 1842 e

1857,

A ópera é um belo edifício; com suas filas de camarotes perfeitamente distribuídas e tendo

cada um uma pequena grade na frente. A totalidade dos espectadores pode assim ser vista

de qualquer parte o que muito contribui para, aumentar a beleza e a aparência do teatro.

As salas de espera como as de intervalo são muito boas, bem iluminadas e ricamente

mobiliadas. O maior luxo prevalece ali e não se permite fumar em nenhuma parte do

edifício. As famílias encontram-se e visitam-se nos camarotes. (WERHERELL, s/d, p. 79.

Grifo nosso)

Inaugurado no dia 13 de maio de 1812 o teatro logo se tornaria o “centro

convergente e de encontro da aristocracia e da riqueza baiana” (RUY, 1955, p.35),

ainda que essa convergência se limitasse às noites nas épocas das temporadas líricas,

quando então suas cocheiras ficavam repletas.

Aí puderam ser assistidos espetáculos de canto lírico e óperas contratadas de

companhias estrangeiras, cujas temporadas eram subvencionadas pelos cofres da

província; aí, em 7 de setembro de 1867, Castro Alves foi ovacionado quando da

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apresentação do seu Gonzaga; aí, em 1879, a elite baiana pode assistir, pela primeira

na Bahia, a ópera O Guarany de Carlos Gomes, encenada pela Companhia Lírica

Italiana.(AMARAL, 1922, p.166).

No centro da praça, em frente ao teatro, entre algumas árvores que lhe proporcionava

ensombramento, estava o elegante chafariz de mármore de Carrara encimado pela

estátua de Cristóvão Colombo, construído em função da Lei n° 451 de 17 de julho de

1852 que criou o serviço de água potável na cidade.2 (BOCCANERA JUNIOR, 1921.

155 p.)

Ao lado do Teatro de frente para a praça, esquina com a antiga Rua Direita, hoje Rua

Chile, encontrava-se “um enorme prédio com cafés, hospedarias e lojas”. Nesse

edifício funcionou o Hotel Figueiredo, onde o príncipe Maximiliano pode desfrutar em

1860 de um serviço de restaurante nos “moldes europeus”. (HABSBURGO, 1982). Em

1872, o proprietário deste “antigo e acreditado estabelecimento, já tão conhecido

quer no Brasil, quer na Europa”, voltando de viagem à Europa anunciava uma

completa reforma do hotel, aumentado a casa e colocando campainha elétrica em

todos os quartos. Nessa época já funcionava no mesmo edifício o estúdio do fotógrafo

Gaensly, mais tarde associado à Lindmann, ambos muito ativos em Salvador no

período. (PIMENTA, 1872).

Ocupando uma grande área do lado oriental da praça e “instalada em magnífico

prédio”, ficava a sociedade A Recreativa, “agremiação formada dos mais luzentes

elementos do escol baiano. Seus aristocráticos bailes, frequentados pela gema da

nossa sociedade, tinham o brilho e a grandeza de nobres salões ducais”.

(BOCCANERA JUNIOR, 1921, p. 154).

Na noite de 9 de janeiro de 1872 entretanto, um “terrível incêndio” veio a destruir

totalmente esse “elegante e espaçoso edifício” então pertencente à Casa Pia dos

Órfãos da Cidade do Porto e que abrigava para além da sociedade recreativa,

restaurante e várias famílias nos pavimentos superiores. (HENRIQUES, 1872, p. 13)

Nessa mesma ocasião, já então decadente em função do abandono pelo poder

público, o estado geral de conservação do Teatro São João já se tornara preocupante,

2 Parte do antigo chafariz incluindo a estátua de Colombo encontra-se hoje na Praça Colombo no Rio Vermelho.

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beirando à ruína, como relata o governador João Antônio de Araújo Freitas Henriques

em 1872.

A pintura externa e interna, os aparelhos da iluminação, as decorações do cenário, o

tablado e o telhado exigem pronta reforma, não de luxo, mas de simples asseio e de

necessidade material indeclinável para a conservação da casa.

O tablado pelo lado direito está se abatendo sensivelmente e o telhado mais estragado

ficou com o incêndio da casa da – Recreativa – pela necessidade que houve de colocar

vigas para evitar a transmissão do fogo, consequência infalível das faíscas que formavam

quase uma chuva e das chamas medonhas que se lançavam das janelas e portas como

para abranger os edifícios circunvizinhos.

O administrador insta principalmente pelos reparos do telhado e pelo asseio externo do

edifício, lembrando que as obras internas se podem realizar sem ônus para os cofres

públicos pelo rendimento de uma companhia dramática que é necessário manter para

distração da população da capital, uma vez que a assembleia provincial resolva

subvencioná-la com metade ou três quartos do que atualmente está consignado para a

companhia lírica. (HENRIQUES, 1872, p. 54)

Alguns meses após o incêndio da sociedade A Recreativa, em 1° de dezembro de

1872, o Largo do Teatro perdeu definitivamente o último resquício de ocupação

residencial aristocrática herdada do período colonial: o palacete construído por

Antônio da Rocha Pita Argolo, o Visconde do Passé, próximo à descida da Conceição

foi adquirido pelo prestigioso jornal Diário da Bahia onde passou então a funcionar.

(CARVALHO, 2007, p. 81)

Político importante, o Visconde abria com frequência os seus salões para glamorosas

festas e bailes, que se apresentavam não só como grandes acontecimentos sociais,

mas também como ocasiões para importantes “conchavos” políticos como aquela

festa por ele oferecida no dia 13 de Julho de 1856 em que se buscou a conciliação

entre o então presidente da província, Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima, com o

Senador e ex-ministro Francisco Gonçalves Martins, depois Visconde de São Lourenço

e futuro presidente da Província. Segundo Pinho, citando José de Alencar em folhetim

de 1854, “[...] no salão recebem-se todas as visitas de cerimônia ou de intimidade;

dão-se bailes, reuniões dançantes e concertos. Conversa-se ao som da musica,

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conferencia-se a dois no meio de muita gente, - de maneira que nem se fala em

segredo, nem em publico.” 3 (PINHO, 1970, p. 47)

Assim, até os primeiríssimos anos de 1870 é possível afirmar que a Praça do Teatro

acolheu, ainda que restrita a espaços fechados, uma intensa vida social por parte das

classes dominantes, cujo espaço público, não era propriamente apropriado,

funcionando apenas como meio e não fim, mero local de passagem.

Do lado sudeste, nas proximidades do antigo palacete, existiam na época vários

pequenos hotéis além de cafés e casas de repasto. O próprio Maximiliano, em seu

périplo pela cidade em 1860 seguindo informações recebidas ainda a bordo estivera

em “algo semelhante a um restaurante”, estabelecimento situado no Largo do Teatro

onde ainda segundo o príncipe o “atendimento e a comida eram desastrosos”.

Em 1878, o terreno onde antes fora A Recreativa foi adquirida pelo governo da

província quando então a municipalidade mandou fazer dois grandes parques

protegidos por gradis, separados por uma nova rua que conduzia ao popular mercado

do Curriachito4, nas imediações da Barroquinha. (BOCCANERA JUNIOR, 1921, p.

154)

Por outro lado, pela sua posição estratégica o Largo do Teatro veio a abrigar também

no mesmo período um dos “cantos” 5 mais movimentados da cidade onde se reuniam

escravos e negros libertos que se encarregavam de transportar através da encosta não

só grandes volumes de mercadorias de toda a espécie oriundas do porto para a

3 Segundo Wanderlay Pinho, estas festas muitas vezes obedeciam a um calendário estabelecido

tacitamente: “Pedro Moniz, futuro Terceiro Barão do Rio de Contas, às segundas-feiras; Dantas às

sextas-feiras, com o encanto de sua inexcedível arte de agradar, ajudado por D. Amália, que uma

testemunha desse tempo dizia reunir “à beleza ótimas maneiras, amabilidade e gravidade no

tratamento”. O Conselheiro Pereira Franco tinha na senhora e nas cunhadas, filhas do desembargador

Accioli, e boas pianistas, gentis elementos para tornar as suas recepções dos domingos mais

encantadoras, enquanto as terças-feiras eram reservadas para soirées do Comendador Rocha

Menezes”. (PINHO, 1970, p. 47).

4 Os açougues da cidade, que antes funcionavam no térreo do prédio da Câmara, quando das obras de “aformoseamento do Paço”, em 1885, foram transferidos para o mercado do Curriachito. (RUY, 1996, p. 35)

5 Chamavam–se “cantos” os ajuntamentos de negros, escravos ou libertos, em geral da mesma etnia, organizados por ofícios – aguadeiros, carregadores etc. - para mercarem seus serviços. Segundo Manoel Querino, o “canto” da Praça Castro Alves existiu até pelo menos 1904.

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cidade alta e vice-versa, como também pessoas aboletadas nas chamadas cadeiras de

arruar, à época, o meio de transporte usual dos ricos. (Figura 1)

Figura 1 – Fotografia de Gaensly mostra o Largo do Teatro entre 1870 e 1880. Podem-se ver à esquerda, no início da Ladeira da Montanha o antigo Palacete Passé com a presença de carroças estacionadas e “ganhadores” sentados à espera de contratante. Notar o bonde à tração animal à direita. A foto provavelmente foi feita de uma das janelas do Hotel Paris, cujo gradil de vê em primeiríssimo plano. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

Eram também os “cantos” locais de produção e venda de pequenos utensílios e como

tal atrelados a um mercado ativo. Negros escravos e/ou libertos aí estacionados não

se limitavam, portanto a espera pacífica do aparecimento de um eventual contratante,

o que fazia com que esses locais se mostrassem plenos de movimentação e alarido

durante todo o dia.

Preparavam rosários de coquilhos com borla de retroz de cores; pulseiras de couro,

enfeitadas de búzios e outras de marroquim oleado; fabricavam correntes de arame para

prender papagaios, esteiras e chapéus de palha de ouricori e bem assim vassouras de

piaçava. (QUERINO, 1938, p. 94)

Os viajantes que aqui estiveram, sobretudo na segunda metade do século XIX, pasmos,

não se cansaram de se referir ao imenso contingente de negros e mulatos que

ocupavam as ruas da cidade.

Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos

bairros altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e carrega, é negro.

[...] a mim pelo menos pareceu que o inevitável meio de condução da Bahia, as

cadeirinhas, eram como cabriolés nos quais os negros faziam às vezes de cavalos. (AVÉ-

LALLEMANT, 1961. v. 1 p. 20).

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Em uma cidade cuja população na sua maioria esmagadora era constituída de negros

e mestiços, o Largo do Teatro refletia essa condição como provavelmente nenhuma

outra parte da cidade, ainda que a construção do Elevador da Conceição, o

“Parafuso” como ficou conhecida a extraordinária obra de engenharia, inaugurada em

8 de dezembro de 1873, capaz de utilizando força mecânica fazer a articulação entre

a Praça de Palácio na cidade alta e a Rua da Alfândega na cidade baixa em “um

minuto”, e a conclusão da não menos admirável Ladeira da Montanha, menos

íngreme que a antiga Ladeira da Conceição ocorrida em 1880, viessem a arrefecer,

mas não eliminar, a aglutinação de negros e mestiços naquele canto da praça.

Se o “Parafuso” veio então a se tornar o meio de transporte preferencial dos

passageiros ricos e remediados que galgavam a encosta em detrimento das cadeiras

de arruar, agora a Ladeira da Montanha, construída em uma época de escravidão

declinante, se oferecia enquanto acesso mais rápido para os meios à tração animal,

fazendo com que o transporte de cargas deixasse gradativamente de ser feito através

da força humana.

Em contra partida, a contiguidade ao leste com a Barroquinha, verdadeiro “reduto

cultural africano na cidade da Bahia” (SILVEIRA, 2006, p. 279), viria a garantir ao

Largo do Teatro no mesmo período, movimentação diária e constante, movimentação

essa, constituída certamente pela população que habitava e/ou frequentava

intensamente aquela área desvalorizada da cidade com suas casas modestas,

habitada por uma população pobre em geral constituída de negros e mestiços, a

presença do mercado do Curriachito e seu “vai e vem” constante, e a sempre

possibilidade de algum ganho com o transporte de cargas através da Ladeira a

Montanha ali próxima. 6

A articulação dessa área à Praça do Teatro era feita, como ainda hoje o é, através de

um pequeno declive – Ladeira da Barroquinha - cuja parte frontal é ocupada pela

pequena Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, construída no século XVIII. Na sua

parte mais baixa, possivelmente atrás da igreja, existiu nesse período o importante

6 Em 1903, morava no Curriachito, a filha de escravos Eugênia Anna dos Santos, a Obá Biyi, que viria a fundar (1909) no S. Gonçalo o Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro de candomblé dos mais importantes da Bahia, hoje tombado pelo IPHAN.

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terreiro de candomblé denominado Iyá Omi Airá Ontile.7 Trata-se do atual Ilê Axé Iyá

Nassô Oká, ou Terreiro da Casa Branca, “terreiro mãe” dos candomblés nagô do

Brasil, hoje em funcionamento no Engenho Velho da Federação e tombado pelo

IPHAN. Aí também existiu nessa época, ainda segundo Silveira, uma pequena

mesquita e um clube malê. (SILVEIRA, 2006, p. 279). 8

No dia 15 agosto de cada ano, durante os festejos dedicados a Nossa Senhora da

Boa Morte, eram realizadas procissões em várias igrejas de Salvador. “Mas a mais

concorrida, de mais extenso percurso e a mais aparatosa das procissões, que já se

fizeram na Bahia, veio a ser a da capela da Barroquinha”. (Campos, 2001, p. 359) 9

O Largo do Teatro se tornava na ocasião o grande cenário para a magnífica

manifestação religiosa.

Saindo a procissão, as crioulas da Devoção carregavam o esquife da Senhora até o alto

da ladeira [Ladeira da Barroquinha, ou seja, o Largo do Teatro]. Eram aquelas criaturas,

negras do partido-alto, endinheiradas, pimponas, as mais moças cheias de dengues e

momices. Estonteava a indumentária custosa que exibiam a ourama profusa que traziam.

Da entrada do Teatro em diante substituíam-nas os Irmãos do Senhor dos Martírios.

Encabeçavam o cortejo estes, e outras Irmandades de homens de cor, seguindo-se em fila

dupla, as citadas crioulas, e mais antigamente, africanas também, umas cinquenta ou

sessenta, de tochas acessas. (Campos, 2001, p. 361)

Recolhido o préstito, a festa continuava noite à dentro, agora no interior da igreja,

onde em meio a “algazarras eram servidas fartamente bebidas e comidas”. No adro,

“Vendedeiras mercadejavam doces e comidas. [...] Sambava-se e batucava-se. Ao som

7 Segundo Ordep Serra é praticamente impossível precisar a data de fundação desse terreiro de candomblé, “mas os cálculos baseados na etnohistória e nos documentos disponíveis fazem-na remontar, no mínimo, à década de1830 (COSTA LIMA, 1977; VERGER, 1992. BASTIDE, 1986), ou mesmo a inícios do século XIX, senão um pouco antes (SILVEIRA, 2006)”. (SERRA, 2008)

8 Grande era o contingente de escravos denominados “malês” em Salvador nesta época. Alfabetizados, praticavam o islamismo.

9 É relevante salientar que para além da Procissão de Nossa Senhora da Boa Morte aqui referida, havia no período outra procissão, igualmente impressionante e não menos importante para o nosso trabalho, promovida pela “Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios dos crioulos naturais da cidade da Bahia” - esse era de fato o nome oficial dessa irmandade – que na quinta feira da Ascensão do Senhor, partindo da Igreja da Barroquinha, reunia todas as Irmandades de homens de cor, transportando seus andores para a procissão do Senhor dos Martírios. Essa procissão foi extinta em 1935. (CAMPOS, 2001, p. 145-50.).

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do berimbau, capoeiras ciscavam, dançavam de velho e davam aús e rasteiras”.

(Campos, 2001, p. 362)10

Eram pessoas humildes, negros e mulatos que durante todo o ano mal suportando as

fadigas diárias, amealhavam os vinténs arduamente economizados, para as festas de

sua Irmandade, Confraria ou Devoção.

Provavelmente, muitos desses “festeiros” carregavam diariamente nas suas próprias

costas ou nas costas de mulas, para distribuição domiciliar, barricas de água colhida

do elegante chafariz do meio da praça. Outros tantos eram aqueles mesmos “negros

ganhadores” que garantiam o transporte de mercadorias entre a cidade alta e baixa

através da Ladeira da Montanha.

Era também no Largo do Teatro aonde os “cucumbis ensaiavam as suas diversões, sob

as frondosas cajazeiras que ali existiam.”

O cucumbi não passava de uma recordação das festas africanas. [...].

Compunha-se de numeroso agrupamento: uns armados de arco e flecha, capacete,

braços, pernas e cintura enfeitados de penas, saiote e camisa encarnados, corais,

miçangas e dentes de animais no pescoço, à feição indígena.

Outros, porém, trajavam corpete de fazenda de cor, saieta de cetim ou cambraia, com

enfeites de velbutina azul e listas brancas, num estilo bizarro, acomodado ao divertimento.

Os instrumentos consistiam em pandeiros, ganzás, checherés ou chocalhos, tamborins,

marimbas e piano de cuia (cabaça enfeitada de contas). (QUERINO, 1938, 266-7)

Os cucumbis percorriam as ruas da cidade em dias de festa, sobretudo por ocasião do

entrudo associando-se aos jogos carnavalescos praticados pela população em geral.

Nesse período, o entrudo, pouco “civilizado”, apesar da forte repressão policial ainda

resistia, embora já se fizesse sentir cada vez com mais frequência, a promoção de

bailes de máscaras ou bailes carnavalescos, à maneira daqueles realizados em Veneza

e Nice, realizados no Teatro São João e organizados pela aristocracia dominante.

Assim, o tradicional, popular, e anárquico entrudo, antiga reminiscência do período

10 Não seria descabido perceber nas festas que aconteciam no interior da igreja manifestações de ascendência tipicamente africanas ligadas ao candomblé, aliás, alvo de insistentes reclamações por parte do vigário da paróquia de São Pedro à qual era filiada a igreja, como relata Campos. (CAMPOS, 2001, p. 359). Por outro lado, impossível não notar na descrição das festas no adro, o gérmen das tradicionais festas de largo baianas.

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colonial, convivia e rivalizava com o “civilizado” carnaval, fazendo do Largo do Teatro

o lugar por excelência das manifestações conflitantes.

Quando da proibição oficial do entrudo ocorrida em 27 de fevereiro de 1878 um fato

vem demonstrar de forma cabal as dificuldades para efetivação da nova ordem: nesse

ano, o Barão Homem de Mello, então governador da província, “resolvendo extinguir

o entrudo, estabelecendo o carnaval, determinou ao Conselheiro Antônio Carneiro da

Rocha, seu chefe de polícia, emprestar a quem quisesse o que existisse no teatro de

adereços e fantasias para os festejos de momo”. (RUY, 1955, p. 38) Foi-se assim, o

rico guarda roupas do teatro em nome dos bons costumes e da modernidade.

Só com a República, o carnaval, burguês, “controlado” e, portanto, “civilizado” se

tornaria finalmente hegemônico em relação ao entrudo que de fato, então inicia um

processo de banimento.

Enquanto isso, negros e mulatos, em razão da forte repressão policial e para gáudio

da sociedade em geral, passaram a “aderir” à nova ordem. Não mais os

“incompreensíveis” cucumbis ou mesmo os “mela-melas” anárquicos dos entrudos

com suas laranjinhas e bisnagas.11 Agora, reunidos em animados blocos, os negros

percorriam a cidade com suas charangas, compostas “de todos os instrumentos

usados pelo feiticismo”, concorrendo entre si na disputa pelas palmas da festa.

Amparada nas cada vez mais amplas ofertas de diversão mundana, o interesse da

população se desloca e as procissões vão perdendo gradativamente o interesse e o

esplendor da época do Império. Já desde 1865 a Irmandade do Senhor dos Martírios

vinha sofrendo enérgicas e seguidas admoestações por parte do vigário da paróquia

de S. Pedro da qual a Igreja da Barroquinha era filial, em função “dos excessos por

demais deploráveis” a que se entregavam as mulheres da citada devoção, após a

procissão, conforme comentamos acima. (CAMPOS, 2001, p. 359).

Pouco a pouco, a magnífica Procissão de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da

Barroquinha perde o fausto de outrora, até ser extinta em 1930, enquanto que no final

do século XIX o Iyá Omi Airá Ontile já havia sido obrigado a transferir-se para o

Engenho Velho da Federação onde hoje funciona.

11 Durante os festejos do entrudo, a confecção de “laranjinhas” e bisnagas e sua comercialização eram fonte de rendimentos da população pobre.

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A forte repressão policial às suas manifestações culturais, aliada a conclusão da Rua

da Vala abrindo espaço para uma ocupação comercial formal, vieram a “expulsar” da

Barroquinha os seus antigos habitantes, levando em consequência a uma mudança

radical dos usuários da Praça do Teatro, mudança essa que se faz sentir com clareza

já nos primeiros anos da República.

Pouco antes da proclamação da República no dia 10 de julho de 1881, por ocasião

do decênio da morte do “poeta dos escravos”, o Largo do Teatro tomou o nome que

lhe convém e mantém até hoje: Praça Castro Alves (BOCCANERA JUNIOR, 1921, p.

145).

A PRAÇA CASTRO ALVES NO ALVORECER DA REPÚBLICA: 1889/1910.

Em função da grave crise econômica e financeira que atravessava a província, os

primeiros anos da República não serão marcados pela realização de obras de vulto,

mas por apropriações de antigas estruturas herdadas do Império por parte de uma

elite empresarial ligada ao emergente setor de serviços e que ensaiava então os seus

primeiros passos, anunciando as grandes transformações que virão a seguir, sobretudo

nos anos 10 e 20. Afinal, os “tempos modernos” apresentam aos baianos as suas

primícias e a Praça Castro Alves será o seu cenário privilegiado.

O Teatro São João que já demonstrava desde os idos 1870 sinais de anacronismo,

apesar dos esforços dos seus sucessivos arrendatários, vem a sofrer um duro golpe

com a inauguração em 23 de maio de 1886 do Teatro Politeama Baiano, edifício

reformado e adaptado para o gênero teatral, com estreia marcada pela prestigiosa

Companhia Lírica Italiana. Daí por diante “o Politeama torna-se o preferido por todas

as companhias visitantes, dado o conforto da sua caixa, e as possibilidades financeiras

da sua lotação” (RUY, 1959, p. 48)12.

Para manter o velho teatro em funcionamento, o então arrendatário passou a oferecer

espetáculos de teatro de revista, nem sempre de qualidade recomendável. Em 1898 ali

foi instalado, em caráter experimental, um cinematógrafo com “vistas móveis em duas

sessões, sendo uma de quadros móveis, sacros e históricos, e outra de quadros

12 O enorme teatro, com ótimas instalações dispunha de 1900 lugares.

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curiosos e engraçados” (CORREIO DE NOTÍCIAS, 3 jan. 1898). Apesar dos esforços,

o antigo teatro continuava em curva declinante afastando-se cada vez mais dos dias

de glória das temporadas líricas de outrora, atendendo agora a um público mais

popular.

No entanto em meados dos anos 1880, o Largo do Teatro já abrigava o mais

prestigioso hotel da cidade: na esquina da Ladeira da Barroquinha com a Ladeira de

São Bento, “no centro de todos os passeios e bonds” tendo uma das suas fachadas

voltadas para o largo, ficava o Grande Hotel de Paris13, com seus salões e quartos

mobiliados para família, dispondo de seis bilhares para o entretenimento de hóspedes

e visitantes. (ALMANACH, 1885). (Figuras 2 e 3)

Figura 2 – LOS RIOS, Adolfo Morales. Planta da Cidade de São Salvador Capital do Estado Federado da Bahia, 1894 (detalhe). A primeira planta de Salvador do período republicano mostra uma cidade bem articulada. Vêm-se a Rua da Vala e a Ladeira da Montanha, já nomeadas, o Teatro São João, os hotéis Paris e Sul Americano, o mercado do Curriachito e a Igreja da Barroquinha. A denominação “Praça Castro Alves”, pela primeira vez registrada em planta, aparece no pequeno largo ao lado do teatro e não à sua frente.

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

Em 1892, aí se hospedou o tcheco naturalizado americano Frederico Figner trazendo

para a praça de Salvador o “estupendamente assombroso”, “esse prodigioso aparelho

denominado fonógrafo” como informa o Jornal de Notícias de 20 de janeiro daquele

ano.

13 Não nos foi possível determinar até o momento a época da inauguração do Hotel Paris. Trata-se, no entanto da adaptação de um edifício residencial para uma nova função, no caso um hotel.

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13

“Por mais que se diga ou se escreva, nunca se conseguirá dar uma ideia exata do que

é realmente aquele colossal invento, uma das ultimas maravilhas do século”,

prossegue o jornal, passando a comentar o alvoroço causado pelo invento entre os

soteropolitanos: “Não há quem não tenha ido ao Hotel Paris ou ao Chalet Parisien14

ouvir tão surpreendente aparelho que não tenha saído estupefato”. (JORNAL DE

NOTÍCIAS, 20 jan. 1892). Durante as apresentações e junto com as audições da

musica produzida mecanicamente se convidava o distinto público a apreciar o “bom

sorvete”, outra novidade da época.

Em 1894, apenas dois anos após esse notável acontecimento, no local hoje ocupado

pelo edifício Sulacap, onde antes existiu o Hotel Francês, será inaugurado o moderno

Hotel Sul Americano, capaz de rivalizar com “os melhores da América” 15. (JORNAL DE

NOTÍCIAS, 15 jan. 1895). Visando ampliar a sua clientela inclusive externa, após a

inauguração, o hotel passou a oferecer um completo serviço de sorvetes e gelados.

(JORNAL DE NOTÍCIAS, 2 abr. 1895) Em 1900 seus proprietários abriram ao público

o seu “luxuoso salão-restaurante”, servindo jantares completos oferecidos ao som de

músicas executadas ao piano.(JORNAL DE NOTÍCIAS, 11 jan. 1900)

Do outro lado da rua, em frente ao Hotel Sul Americano, esquina com a Rua de São

Bento de Baixo, ficava o casarão com trapeira onde funcionava a Pastelaria Luso

Brasileiro16 em cujo salão do 1° andar em dezembro de 1897, o público baiano, após

a não bem sucedida estreia da “fenomenal criação da inteligência humana” ocorrida

no Teatro Politeama em 4 de dezembro do mesmo ano, pode enfim assistir durante os

próximos três meses, em três funções diárias - 19, 20 e 21 horas - às maravilhas

proporcionadas pelo cinematógrafo. (JORNAL DE NOTÍCIAS, 20 dez. 1897). (Figura

3)

“O aparelho de Lumière apanha e reproduz a vida, os movimentos em todas as suas

fases”, informa então o importante jornal Diário da Bahia. (DIÁRIO DA BAHIA, 6

dez.1897). Apesar da entusiástica repercussão por parte da imprensa e do público em

14 Elegante café concerto situado em São Pedro nas imediações do atual Campo Grande. 15 O Sul Americano é o primeiro edifício construído em Salvador especificamente para abrigar um hotel.

16 Não nos foi possível até o momento determinar a época do início do funcionamento dessa pastelaria, já em atividade em 1881 conforme o Almanak da Provincia da Bahia 1881 (FREIRE, 1881) atividade essa mantida, incluindo o seu salão com bilhares, até pelo menos 1925 de acordo com o Alamanack Commercial do Estado da Bahia (NOVA RAMOS & Cia, 1925).

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14

geral as sessões apresentadas na sala improvisada com 200 cadeiras e que recebeu o

nome de Cinema Edson tiveram curta duração, encerrando as suas atividades três

meses após a inauguração.17 (BOCCANERA JUNIOR, 1918, p. 81)

O que não invalidaria a adesão no ano seguinte pelo Teatro São João à nova forma

de entretenimento, e de negócio, evidentemente. O Correio de Notícias de 20 de abril

de 1898 informa que, “em caráter experimental”, foi instalado naquele teatro um

cinematógrafo, “com vistas móveis em duas sessões, sendo uma de quadros notáveis,

sacros e históricos, e outra de quadros curiosos e engraçados”. Segundo o jornal,

tratava-se de um aparelho dos mais interessantes que tem vindo a essa capital.

(CORREIO DE NOTÍCIAS, 20 abr. 1898).

Vizinho, ocupando um enorme sobrado com torreão funcionava o Café Suíço 18, ao

lado do qual tinha a sua sede o jornal Diário da Bahia desde 1872. (Figura 3)

LEGENDA

1 – Teatro São João.

2 – Hotel Figueiredo.

3 – Igreja da Barroquinha.

4 – Cassino Castro Alves.

5 – Hotel Paris.

6 – Hotel Sul Americano.

7 – Pastelaria Luso Brasileiro.

8 – Café Suiço.

9 – Diário da Bahia.

10 – Chafariz.

Figura 3. Croquis mostra a Praça Castro Alves nos primeiros anos da República (1903-1904) mostra a concentração e distribuição dos equipamentos de serviços à sua volta. No lado oriental da praça notar os dois parques cortados pelo Curriachito e a arborização em gameleiras de toda a praça.

Desenho da autora. 2011

17 Na verdade, na sua primeira fase o designativo “cinema” não se referia propriamente a uma casa de espetáculo estabelecida, mas a um aparelho, ficando, portanto, o usufruto dos espetáculos que proporcionava ao público ao sabor da estadia do seu proprietário em determinada praça, à maneira dos circos.

18 O Café Suíço aí funcionou até pelo menos 1925 como informa o Alamanack Commercial do Estado da Bahia (NOVA RAMOS & Cia, 1925).

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15

Em 1903 os dois parques construídos pela municipalidade em 1878 no local onde

antes fora a Sociedade Recreativa, foram arrendados pelo Sr. Carlos López, com a

finalidade de exploração comercial. Aí foi construída uma pequena edificação em

madeira, ao ar livre, em forma de teatrinho – o Cassino Castro Alves - que servia

inclusive para exibições de “chanteuses de cafés-cantantes”. (BOCCANERA JUNIOR,

1919 p.20) (Figuras 3)

Figura 4 – Imagem da Praça Castro entre 1903 e 1904. No edifício em frente ao teatro funcionava o Hotel Figueiredo e a Photographie Gaensly & Lindemann. À direita, os dois parques gradeados construídos em 1878 e a pequena construção em madeira do Cassino Castro Alves. Notar ainda o bonde à tração animal, as mulas e carroças para o transporte de mercadorias e ainda a presença de “negros de ganho”, à direita.

Fonte: SAMPAIO, 2005. Capa.

Por trás das fachadas dos casarões coloniais do antigo Largo do Teatro já Praça

Castro Alves, viviam os soteropolitanos nos primeiros anos da República uma vida

buliçosa e mundana prenhe de iniciativas enquanto o espaço urbano era pouco a

pouco apropriado por uma população já cosmopolita em busca de entretenimento e

novidades. Os chamados “tempos modernos” já estavam em moto e a Praça Castro

Alves já ocupava nesse processo lugar de protagonista.

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16

Figura 5 – Interessante imagem complementar à figura anterior aqui apresentada e que “conclui” a praça pelo lado oriental, mostrando a Ladeira da Barroquinha – onde estão dois bondes estacionados - e sua Igreja. À esquerda em meio ao parque o Cassino Castro Alves; à direita o Hotel Paris.

Fonte: Arquivo Público Municipal.

Figura 6 - Ladeira de São Bento por volta de 1905. Marcando o início da ladeira estão: à esquerda o Hotel Paris, à direita o luxuoso Hotel Sul Americano, recém-inaugurado. No primeiro plano à direita o casarão com trapeira aonde viria a funcionar a Pastelaria Luso-Brasileiro. Bondes à tração animal, carroças e mulas povoam o ainda pacato cenário urbano.

Fonte: Arquivo Público Municipal.

A PRAÇA CASTRO ALVES, CENÁRIO DA BELLE ÉPOQUE BAIANA: 1911/1930.

Percebido enquanto negócio rentável o cinematografo veio para ficar. “Não sabemos

qual será o espetáculo do futuro, mas o do presente é sem dúvida nenhuma o

cinematógrafo. Em toda a parte a sua exploração é um negócio rápido e seguro”,

vaticina o Diário de Notícias de 17 de abril de 1914.

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17

Nos primeiros anos da década de 1910, já sofrendo forte concorrência do vizinho

Hotel Sul Americano, o Hotel Paris inicia uma curva decadente. No sentido de estancar

essa tendência, seus proprietários investem no “novo negócio”. Assim, no dia 15 de

março de 1910, com grande estardalhaço e ampla cobertura da imprensa, é

inaugurado no térreo deste hotel o Cinema Central.19 Segundo o Diário de Notícias, a

casa de espetáculos, que possuía “um vasto salão de exibições” e lotação de 200

cadeiras, era a única na Bahia a contar com contra-regras. (LEAL; LEAL FILHO, 1997,

p. 106).

Já em 17 de março de 1911, um ano após a inauguração, a direção do Cinema

Central, avisava ao público, através da imprensa, que o mesmo havia passado por

uma “radical reforma”, trazendo as “necessárias condições de conforto e higiene”.

Seria reaberto no dia seguinte com preços majorados. A vertigem dos “tempos

modernos” fazia com que esses equipamentos e serviços se tornassem rapidamente

obsoletos, exigindo sem cessar novas e contínuas reformas.

Entretanto os primeiros anos dessa década se anunciam aos soteropolitanos com a

proposta de radicais transformações físicas no tecido da antiga urbe. Apoiado pela

classe empresarial, alojado em capitais nacionais e internacionais e contando com a

adesão do então prefeito Júlio Brandão, assumiu em 1912 o governo do Estado J. J.

Seabra tendo como plano prioritário a drástica remodelação da cidade. Em

29/9/1912, através da Resolução n°344 foi aprovado o plano de Melhoramentos do

Distrito da Sé. (figura 7) O projeto previa o alargamento da Rua Chile até a Rua da

Misericórdia pelo lado oposto ao mar, das suas ruas paralelas e transversais com o

arrasamento da Igreja da Ajuda, primeira Sé do país, o corte da antiga Catedral e a

criação de uma promenade com a destruição de dois quarteirões ali existentes,

incluído aí o Palácio Arquiepiscopal. Na extremidade sul, estava prevista a destruição

do Teatro São João com vista à ampliação da Praça Castro Alves. Por falta de

recursos, o projeto só foi atuado no seu troço central permanecendo intactas as áreas

circunvizinhas à antiga Sé na banda do norte e Praça Castro Alves ao sul da cidade, o

que veio a poupar o Teatro São João apesar das fortes pressões, sobretudo da

19 O primeiro cinema de Salvador, o luxuoso Cinema Bahia, foi inaugurado em 1909 na Rua Chile, 1, instalado em um casarão especialmente adaptado para esse fim.

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imprensa no sentido da destruição daquele “pardieiro de pulgas” como era então

adjetivado.

Figura 7. Projeto para os “Melhoramentos Municipais. Distrito da Sé. Ruas Chile e Ajuda”, aprovado em 29/8/1912 pelo prefeito Júlio V. Brandão. Nele é prevista a demolição do Teatro São João.

Fonte: Arquivo CEAB.

Ainda em 1912, o velho sobrado da Ladeira de São Bento, vizinho ao Hotel Sul

Americano foi arrendado pelo empresário Thomaz Antenor Borges da Motta, para ali

instalar o mais chic e elegante cinema da cidade e que viria a se tornar o “rendez –

vous da elite baiana”, o Cinema Ideal. Para as obras de adaptação foi contratado o

renomado arquiteto Rossi Baptista e adquiridos na capital da República todo o

material elétrico, mobiliário, marquise e demais adornos necessários, bem como os

serviços do pintor italiano Aurelio Nocchio e do eletricista também italiano Carlo

Fiango (BOCCANERA, 1919, p. 59).

O magnífico cinema, com 266 cadeiras, 64 frisas e 31 lugares no balcão foi

inaugurado com grande pompa e alarido em 22/1/1913. No intuito de atrair uma

clientela, sobretudo feminina o Cinema Ideal promovia as quintas feira as suas

matinées da moda, assim denominadas por seu proprietário, a que se sucederam as

matinées blanches, matinées chics, etc. quando então se apresentava a laureada

pianista Luísa Leonardo, acompanhada de conjunto orquestral.

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19

O frenesi da novidade sempre renovada a cada filme exibido própria desse tipo de

entretenimento, os inventivos apelos promocionais dos empresários em disputa pelo

florescente mercado, faziam afluir à Praça Castro Alves um contingente feminino e

infantil das classes alta e média, antes segregado aos salões imperiais ou às procissões

religiosas, agora em busca de prazeres mundanos. O cinema era e fazia a moda

refletida no vestuário dos seus frequentadores.

Em 13/3/1914 a Gazeta do Povo refere-se a uma matinée chic realizada no Ideal em

honra da vencedora do elegante concurso de beleza promovido pela Gazeta de

Notícias. “No passeio do cinema, uma banda de música animava os presentes. A

senhorinha Yayá Vianna [de tradicional família baiana] foi a vencedora do concurso,

que além das esperadas felicitações, também recebeu um artístico espelho” (LEAL,

1997, p.118).

Enquanto isso o anacrônico Teatro São João se mantinha sob o fogo cruzado da

imprensa e de consequência da opinião pública em geral. Naquele mesmo ano de

1914, na esteira de um acordo entre o Estado, proprietário do teatro e o Município

proprietário do parque ao poente onde funcionou até 1906 o Cassino Castro Alves foi

proposto pelo arquiteto italiano radicado no Rio de Janeiro Antonio Virsi um visionário

projeto para um Teatro Municipal em substituição ao Teatro São João a ser demolido

em benefício da ampliação e aformoseamento da praça. (Figura 8) O projeto não foi

atuado; a velha ópera resistiu e persistiu de pé enquanto que a Praça Castro Alves

mantinha o seu aspecto físico antiquado pouco condizente com os novos tempos.

Figura 8. Maquete executada em argila para o Teatro Municipal apresentada em 1914, pelo arquiteto italiano Antonio Virsi. Notar a extraordinária semelhança entre o edifício representado ao fundo à esquerda e o prédio do Hotel Meridional, inaugurado em 1915.

Fonte: Arquivo Público Municipal

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Pouco depois, em 23/1/1915, do lado norte da praça, esquina entre as ruas Rui

Barbosa e Padre Vieira foi inaugurado o moderníssimo Hotel Meridional, projeto

segundo Boccanera, do arquiteto italiano Julio Conti, propriedade do desembargador

Bráulio Xavier da Silva Pereira. Preparado para recepções e banquetes, o edifício, em

concreto armado podendo acomodar concomitantemente cerca de 100 hóspedes

dispunha de “ascensor elétrico dos mais aperfeiçoados”. Da sua cúpula, a cinco

pavimentos do chão “goza-se o espetáculo mais surpreendente do ponto de vista das

belezas naturais da nossa urbis”. (BOCCANERA, 1921, p. 156). Dali podia-se apreciar

a inteira Praça Castro Alves: o edifício onde funcionava o Diário de Notícias e no lado

oriental os hotéis Paris e Sul Americano, tendo como pano de fundo a Baía de Todos

os Santos.

Finalmente em 1916 a tão almejada modernização da Praça Castro Alves foi

alcançada, pelo menos temporariamente. Fruto de um contrato celebrado entre a

municipalidade e o empreendedor e engenheiro italiano Filinto Santoro 20 os antigos e

“inestéticos” gradis que circundavam a praça são substituídos por uma balaustrada

entremeada por sete figuras alegóricas em ferro fundido antes destinadas ao

malogrado projeto do Teatro Municipal. Tratava-se de uma ambiciosa iniciativa de

transformação da Praça Castro Alves, com suas esculturas que se debruçavam sobre o

mar, em um magnífico cenário para o espetáculo da burguesia. 21 (Figura 9)

20 Filinto Santoro, engenheiro napolitano, emigrou para o Brasil em 1890, se estabelecendo inicialmente no Rio de Janeiro onde foi diretor- chefe da Companhia Evoneas Fluminense recebendo mais tarde a proposta de estudo para vários projetos entre os quais a Estação Central do Rio de Janeiro. Em seguida é nomeado Diretor das Obras Públicas no Espírito Santo, onde sob sua direção foram iniciadas as obras da Santa Casa da Misericórdia em Vitória. Nessa cidade projetou e construiu o Teatro Melpômene. Transferiu-se para Manaus, onde projetou o Palácio do Governo, cujas obras não foram concluídas em função de forte crise econômica. Foram atuadas, no entanto, os trabalhos da nova Catedral e da ampliação e modernização do Mercado Público. Em 1903, o engenheiro Santoro encontra-se em Belém, onde projetou a casa do então governador Augusto Montenegro, dos senadores Virgílio Sampaio e Marques Braga e o edifício sede do jornal A Província do Pará. Em Salvador, foi o autor do projeto da reforma e ampliação do Mercado Modelo (1915), do Quartel dos Bombeiros (1916), do interior do Palácio dos Governadores (1916) e da reforma e ampliação do Palácio da Aclamação bem como do projeto e construção do complexo para entretenimento denominado Kursaal Baiano inaugurado em 1919 aqui referido.( L‟ARCHITETTURA ITALIANA, lug / ago, 1920) 21 Quatro dessas figuras encontram-se hoje na Praça Colombo no Rio Vermelho compondo um arranjo em que a estátua do descobridor da América que antes encimava o chafariz da então Praça do Teatro ocupa a posição central.

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Figura 9. Praça Castro Alves em 1916 após a construção da balaustrada “arquitetural” projeto de engenheiro Filinto Santoro. À esquerda o Teatro São João, ao centro o monumento a Cristóvão Colombo.

Fonte: Arquivo CEAB.

Para além da construção da balaustrada “arquitetural” inaugurada em 7 de setembro

daquele mesmo ano o contrato previa a construção de uma casa de espetáculos

“confortável e com todos os requisitos higiênicos” no terreno de propriedade da

municipalidade onde se pretendeu construir o Teatro Municipal para além de dois

pequenos pavilhões ou quiosques para fins de entretenimento, com ajardinamento da

inteira área 22 (BOCCANERA, 1921, p. 150). O conjunto teve projeto e execução do

mesmo engenheiro Filinto Santoro.

Segundo informação provavelmente o próprio Santoro em texto publicado na sessão

“Gli italiani all‟Estero” da revista l‟Architettura Italiana de 1920, “Não existia em

Salvador, capital do Estado da Bahia, uma sala de espetáculos para cinema e

números de arte com todos os requisitos da higiene e da estética” (L‟ARCHITETTURA

ITALIANA, lug. / ago, 1920; tradução nossa)

Projetado “na mais bela e central praça da capital, ponto de passagem de todos os

bondes da cidade”, o Kursaal Bahiano, como foi denominado o conjunto integrado

pelo cineteatro e os dois pavilhões ou quiosques laterais, foi inaugurado em

24/12/1919 com a presença de autoridades e ampla repercussão na imprensa.

(Figuras 10 e 11)

O esfuziante edifício em “estilo moderno” vale dizer eclético, apresentava a fachada

principal tripartida por pilastras decoradas; a parte central por sua vez também 22 Na verdade a construção de fez à expensas do Curriachito, transformado então em uma viela, como ainda é hoje. Comparar com a Figura 3.

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tripartida por dois robustos pilares era encimada por uma enorme arcada fechada por

vitral.

O colorido de um pavão que vai de um azul intenso ao amarelo ouro, servem, na arcada

central de fundo a duas dançarinas que o escultor francês Guerin, soube interpretar

obtendo um efeito extraordinário.

Uma alegoria da música na chave do arco e as máscaras da comédia e da tragédia do

mesmo escultor, como as palmas dos pilares se fundem com as linhas modernas do

edifício, dando-nos um conjunto estético e harmônico. (L‟ARCHITETTURA ITALIANA,

lug./ago, 1920; tradução nossa)

Figura 10. Projeto para o Kursaal Baiano. As duas alas laterais não foram executadas em virtude da falta de espaço do lado do Curriachito com notáveis prejuízos para os frequentadores – correspondiam às saídas laterais – e para estética geral do prédio.

Fonte: BOCCANERA, 1921.

Figura 11. Flagrante do quiosque lateral direito, onde funcionava a sorveteria, no dia da inauguração. Notar a elegância dos garçons.

Fonte: L‟ARCHITETTURA ITALIANA, lug./ago, 1920

A sala de espetáculos, com capacidade para 1.200 espectadores, apresentava

decoração cuja “entonação geral é cinza pérola e ouro. Todas as balaustradas são em

esmalte branco e ouro.” Dotado de todos os requisitos propiciado pelas tecnologias

mais modernas, o edifício possuía “iluminação elétrica, rica e brilhante e a ventilação

natural é auxiliada por quatro exaustores capazes de renovar o ar viciado do ambiente

em três minutos”. (L‟ARCHITETTURA ITALIANA, lug./ago, 1920. Tradução nossa)

A Renascença, revista mensal de variedades, alias uma das novidades da época,

saudou com entusiasmo a feliz iniciativa de Filinto Santoro de transformar o

abandonado logradouro público em um centro magnífico, como poucos existem no

país, a lembrar sem exageros alguns do Velho Mundo.

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Os jardins, os terraços, os lindos quiosques, o elegante Kursaal, feericamente iluminado,

tudo concorre para atrair a elite baiana àquele trecho da zona urbana, fazendo-a fruir

horas agradáveis por essas noites sugestivas da estação que passa. (RENASCENÇA, jan.

1920)

Imediatamente após a concorrida e elegante inauguração, o Kursaal deu início às suas

matinées das quintas feira, buscando atrair um público jovem, senhorinhas e rapazes,

o melhor do nosso “escol social”, quando era então oferecido um serviço de gelados

aos seus habituées. Um ano após, já agora denominado Guarani (13/5/1920), as

vespertinas promovidas juntamente com o Diário de Notícias se tornam mais

diversificadas contando com apresentações no palco e na tela, distribuição de lindos

ramalhetes de violetas e rosas às senhorinhas e sacolas de bombons às crianças

(FONSECA, 2002, p.118). A população feminina rica e mediana, cultora da moda

exibida pelas estrelas cinematográficas, se apropriava da Praça enquanto que o

“escurinho do cinema” favorecia o flirt e a novas formas de sociabilidade, repercutidas

pela revista Artes & Artistas de maneira jocosa.

Foi no Guarani. A loirita senhorinha, muito friorenta, envolta em peles, sentou-se junto à

coluna... Todos encalorados agitavam chapéus e lenços... Ele, muito dedicado e serviçal,

braço sobre a cadeira, baixava de quando em vez a cabeça e segredava-lhe coisinhas,

que Mlle. baixando os olhos sorria, angelicalmente.

Depois veio “William Farum” e Mlle. entusiasmada, suspirosa, bradava: que beleza!... que

beleza!... Mas, em dado momento, sem o aviso salvador da companhia, a luz inundou a

sala, e o espectador lateral pode verificar que a beleza que Mlle, tão entusiasmada e

nervosa admirava, não era bem a do célebre cowboy americano... (ARTES & ARTISTAS,

Bahia, nov. 1920)

A Praça Castro Alves se afirmava então como palco privilegiado para o espetáculo da

belle époque soteropolitana. A revista Renascença, sempre a postos, flagrava e

divulgava nas suas colunas o vai-e-vem do público, sobretudo aquele feminino que

entre o desejo de “ver e ser visto” mantém ainda o “conveniente” e suposto recato dos

“velhos tempos”. Era a época dos primeiros paparazzi, de “mundanismo ... e

esquivança”. (Figuras 12 e 13)

Para tal retraimento não se nos depara justificativa e, pois, de costas, encobrindo o rosto

com as mãos ou com as abas dos chapéus, as gentis urbanistas hão de figurar na

“Renascença”, cabendo-lhes, depois, o direito de indagar, ou não: “Você me conhece?”.

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Figura 12. “Mundanismo e... esquivança. Irrompe vitoriosa a alegria da vida civilizada e as „vespertinas chics‟ vão se afirmando como uma necessidade. Todavia, o mundo elegante feminino ainda se esquiva à nossa Auschutz. Receios?”

Fonte: RENASCENÇA, Bahia, ago. 1920.

Figura 13. “Indiscrições. Instantâneos à saída do Kursaal após matinée.” Notar o apuro e elegância dos frequentadores. À esquerda, o distinto cavalheiro saúda três frequentadores.

Fonte: RENASCENÇA, abr. 1920.

Apesar da crise do momento, da “tétrica" carestia reinante, da greve deflagrada pelos

operários e artífices da construção, dos serviços de bondes com sua “lentidão

celômica”, “modas e fausto hão de existir e ditar leis, enquanto o mundo existir”, visto

que,

Entramos no ano da fartura [referência ao signo do ano que se iniciava]: fartura de sol, de

festas, de bares, que se multiplicam por toda a parte, de jogos, de água, de luz, de

viaturas, de autos em fúria. [...]

O tom faceto da crônica provirá, talvez, da aproximação do Carnaval, que é uma das

instituições mais profundamente alicerçadas na alma do povo brasileiro e a cuja influição

poderosa ninguém sabe resistir. (Renascença, jan. 1920)

Os cinemas Guarani e Ideal juntamente com o Hotel Sul Americano irão disputar a

primazia da animação e da elegância entre os bailes carnavalescos frequentados pelo

“escol baiano” enquanto que o velho Teatro São João e Hotel Paris irão se oferecer

aos bailes mais populares. Confeitarias e cafés se aliavam no atendimento à pândega

geral.

Era a Praça Castro Alves o trecho mais concorrido e disputado durante o corso

carnavalesco, o ponto de encontro obrigatório dos foliões. Automóveis devidamente

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paramentados para a ocasião, repletos da melhor sociedade local, pranchas

temáticas23 disputavam a primazia da originalidade e animação; batalhas de confetes

e serpentinas, o entrecruzar-se dos raios dos lança-perfumes, tudo era então

espetáculo, vibração e mundanismo. (Figuras 14 e 15)

Figura 14. “O engenhossisimo auto-relógio do Sr. Henrique Lanat marcando em seu quatruplo mostrador o tempo exato em que foi apanhada a fotografia.” À direita um dos quiosques do Guarani; ao fundo o Hotel Meridional.

Fonte: RENASCENÇA, fev. 1922.

Figura 15. “A linda prancha – Rosas de todo o ano –

cujas decorativas e trajes dos alegres tripulantes tinham

o colorido das flores de que tomou o nome.”

Fonte: RENASCENÇA, fev. 1921.

Entretanto o antigo projeto de aformoseamento da Praça Castro Alves prosseguia. O

velho e decadente Teatro São João se mantinha como memória imponente dos “velhos

tempos” e obstáculo visivo à ideia de decoro, então vigente.

De fato, [...] o nosso teatro público arruinava-se no abandono a que o votaram e, agora

por sua inexpressiva arquitetura colonial destoava do aspecto da artéria principal da

cidade para a qual parece olhar, desconfiado, num retraimento de quem se sente

deslocado do meio, pelos numerosos óculos do seu oitão desgracioso. (RENASCENÇA,

fev. 1921)

Em 19/7/1920 havia sido lançado por edital da Secretaria de Agricultura, Viação e

Obras Públicas, o concurso para apresentação de propostas para reforma e

remodelação do teatro. O concurso foi vencido mais uma vez pelo engenheiro italiano

Filinto Santoro 24 cujo projeto previa uma radical transformação da casa de

23 Chamavam-se pranchas aos carros alegóricos montados sobre bondes destinados ao transporte de cargas e que conduziam grupos de foliões durante os festejos carnavalescos. 24 O resultado final obedeceu à seguinte classificação: 1° lugar, Filinto Santoro; 2° lugar Antônio Navarro de Andrade e finalmente o 3° lugar foi obtido por Rossi Baptista. (BOCCANERA, 1921, p. 147)

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espetáculos agora com capacidade prevista para 1.200 espectadores. Em benefício da

acústica e estética do edifício, a cávea seria tornada elítica com a diminuição da

extensão do palco, as três pequenas salas superpostas nos dois pavimentos

transformadas em foyer, todas as escadas seriam substituídas e tornadas retas, e o

terraço a cavaleiro da Montanha anexado à sala contígua, transformada em bar.

Sobretudo, a grande transformação proposta pelo engenheiro era estética: moderno,

isto é, eclético com inspiração no chamado estilo da Renascença. (RENASCENÇA, fev.

1921). Provavelmente por falta de recursos a obra não foi executada. (Figura 16)

Figura 16. Prospecto do projeto de Filinto Santoro para o Teatro São João. Para assinalar a radical modernização ele propõe-lhe o nome de Teatro da Independência.

Fonte: RENASCENÇA, fev. 1921.

Em uma noite chuvosa de 1922 diante de uma praça deserta, um brutal e inexplicado

incêndio destruiu o velho Teatro São João. Nada restou da imponente ópera

inaugurada solenemente por D. Marcos de Noronha e Brito, 8° Conde dos Arcos, em

13 de maio de 1812.

Enquanto os escombros do velho teatro permaneciam se oferecendo à população

como uma ferida exposta, a cidade era tomada pela festejada inauguração da

imponente estátua do poeta Castro Alves ocorrida em 6 de julho de 1923, passando a

ocupar o lugar do antigo chafariz de 1852. O monumento, justamente um dos

símbolos da cidade, cujo contrato de execução foi celebrado em 13 de dezembro de

1919 com o escultor italiano Pasquale de Chirico, está assentado sobre seis degraus,

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perfazendo no total, 11 metros de altura, medindo o plinto 6,80 e a estátua em

bronze, 2,90 metros.

Em 1926, durante a gestão de Góes Calmon, agora já sem o teatro, buscava-se mais

uma vez o aformoseamento e a ampliação da praça com a anexação da área dos

escombros do Teatro São João. É interessante que em comunicado ao Governador do

Estado, o então Secretario da Viação e Obras Públicas se refere a um “estranho”

contrato pelo qual um particular estaria ali construindo “há algum tempo, um enorme

edifício” com fins de abrigar “diversões e residências”. Assim, para a ampliação da

praça, o Estado “adquiriu” formalmente mediante indenização os direitos sobre o

referido terreno. (Figura 17)

Figura 17. A imagem mostra a Praça Castro Alves ampliada do lado norte após a intervenção de 1926. Notar a presença das estatuas sobre a balaustrada, reminiscência da intervenção de 1916, a estátua de Castro Alves de 1923. Em primeiro plano o edifício do hotel Paris.

Fonte: CEAB

Dois anos depois, em 1928 foi concedida licença para a construção do moderníssimo

Palace Hotel, na esquina da Rua Chile com a Rua Padre Vieira, antiga Rua do

Tesouro, na vizinhança imediata do Hotel Meridional. O magnífico edifício em

concreto armado, com sete pavimentos mais um mirante – o edifício mais alto da

cidade até então -, dotado de dois elevadores para passageiros, quartos com

sanitários privativos com água quente e fria, elegante restaurante, salão de festas e

cassino, irá corroborar a tendência já observada da Rua Chile enquanto centro de

interesse da vida mundana, social e de serviços da cidade em detrimento da Praça

Castro Alves. (Figura 18)

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Já em 1924, no local do “imenso edifício” onde funcionou o hotel frequentado pelo

príncipe Maximiliano de Habsburgo em 1860, foram iniciadas as obras do imponente

edifício do jornal A Tarde, inaugurado em 1930. Aí funcionarão além do importante

jornal, o Hotel Wagner, de pequenas proporções, pronto a servir aos homens de

negócios medianos em viagem à capital, mas, e sobretudo ai serão instalados

consultórios de médicos e dentistas, para além de escritórios de serviços em geral.

(Figura 18)

Figura 18. Praça Castro Alves (lado norte) em 1930. Vêm-se o Guarani, A Tarde, o Meridional e o Palace; à esquerda, o vazio deixado com o incêndio do Teatro São João, tendo à frente automóveis estacionados.

Fonte: Arquivo Público Municipal

Figura 19. Praça Castro Alves (lado sul) em 1930. Permanência dos edifícios herdados do Imperio, com poucas alterações como algumas platibandas. À direita a estátua do poeta; notar a quantidade de aumomóveis estacionados à volta.

Fonte: Arquivo Público Municipal

O edifício art déco de A Tarde anuncia o fim de uma época para a Praça Castro Alves

e para a cidade, passando ela gradativamente a abandonar o mundo das

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mundanidades – incluindo aí a decadência do agora já “velho” Cinema Guarani, que

cedeu seu posto aos mais novos cinemas - para abrigar agora um mundo feito de

burocratas e homens de negócios. (Figura 18). Essa tendência virá se consolidar com a

inauguração em 1935 do também art déco Edifício da Secretaria da Agricultura, hoje

Palácio dos Esportes, onde antes existiu o Teatro São João, do moderno Edifício do

Saneamento em 1936, no local onde um dia funcionou o Hotel Paris e bem mais tarde

do SULACAP, edifício de escritórios cujas obras foram iniciadas após a demolição do

edifício do Hotel Sul Americano em 1942 e concluídas em 1946 e que vêm, esses dois

últimos, finalmente a alterar o aspecto formal antiquado da praça pelo lado sul.

(Figura 19)

“A PRAÇA! A PRAÇA É DO POVO”./ Não, meu valente Castro Alves, engano seu. / A praça é dos

automóveis. / Com parquímetro.” (Carlos Drumond de Andrade).

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