2013 Dissertação Gustavo Mendonça

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    MINISTRIO DA EDUCAOUNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DA CULTURA

    REGIONALMESTRADO

    GUSTAVO AUGUSTO MENDONA DOS SANTOS

    TRANSGRESSO E COTIDIANO:a vida dos clrigos do hbito de So Pedro nas freguesias do acar em Pernambuco na

    segunda metade do sculo XVIII (17501800)

    Recife, 2013

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    MINISTRIO DA EDUCAOUNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DA CULTURA

    REGIONALMESTRADO

    GUSTAVO AUGUSTO MENDONA DOS SANTOS

    TRANSGRESSO E COTIDIANO:a vida dos clrigos do hbito de So Pedro nas freguesias do acar em Pernambuco na

    segunda metade do sculo XVIII (17501800)

    Dissertao apresentada pelo aluno GustavoAugusto Mendona dos Santos ao Programa dePs-Graduao em Histria Social da CulturaRegional da UFRPE, como requisito parcial paraa obteno do grau de mestre, sob a orientao daProfa. Dra. Suely Creusa Cordeiro de Almeida.

    Recife, 2013

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    Ficha catalogrfica

    S237t Santos, Gustavo Augusto Mendona dosTransgresso e cotidiano: a vida dos clrigos do hbito

    de So Pedro nas freguesias do acar em Pernambuco nasegunda metade do sculo XVIII (1750 1800) / GustavoAugusto Mendona dos Santos. Recife, 2013.

    181 f. : il.

    Orientadora: Suely Creusa Cordeiro de Almeida.Dissertao (Mestrado em Histria Social da Cultura

    Regional) Universidade Federal Rural de Pernambuco,Departamento de Histria, Recife, 2013.

    Referncias.

    1. Histria da igreja 2. Histria do clero secular3. Histria de Pernambuco 4. Transgresso 5. Histria doCotidiano I. Almeida, Suely Creusa Cordeiro de,orientadora II. Ttulo

    CDD 981.34

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    Aos meus pais Admilton Mendona dos Santos e Maria Joselita Augusto dos Santos porterem oferecido todo o apoio necessrio para minha formao.

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    AGRADECIMENTOS

    Os agradecimentos so neste trabalho uma parte to importante quanto qualquer outra,

    pois todos os acertos presentes nele so frutos da colaborao de muitas pessoas que me

    auxiliaram durante a pesquisa. Sou profundamente grato a todos.

    professora Dra. Suely Creusa Cordeiro de Almeida, minha orientadora, que sempre

    me auxiliou em minha formao acadmica, estando ao meu lado durante toda a produo

    desta dissertao terei uma eterna divida de gratido. Uma pessoa que consegue ser criteriosa

    em suas avaliaes e rgida em suas exigncias sem deixar de ser carinhosa no trato com os

    orientandos e incentivadora de nossas vidas profissionais. Muito obrigado.

    professora Dra. Pollyanna Gouveia Mendona Muniz agradeo pela leitura

    criteriosa do texto, questionamentos e material concedido para a elaborao deste trabalho. Da

    mesma forma agradeo professora Dra. Jeannie da Silva Menezes que contribuiu para minha

    formao desde a graduao e se fez presente tambm durante minha ps-graduao. Sem o

    generoso auxlio destas duas pesquisadoras este trabalho no teria alcanado ao mesmo

    desfecho.

    Ao professor Dr. Guilherme Pereira das Neves agradeo pela gentileza de ter me

    concedido material bibliogrfico e pelas sugestes de leituras. Tambm devo meus

    agradecimentos ao professor Dr. Wellington Barbosa e ao professor Dr. Tiago de Melo

    Gomes que sempre estiveram dispostos a auxiliar todos os alunos da ps-graduao.

    Agradeo a todos os funcionrios da Biblioteca da Cria Metropolitana de Olinda e

    Recife pela colaborao, igualmente agradeo aos funcionrios do Arquivo Pblico Estadual

    Jordo Emerenciano, em especial a Hildo Leal da Rosa por sua assistncia aos pesquisadores

    e dedicao profissional ao acervo documental do estado de Pernambuco que est sofrendo

    muito com o abandono do poder pblico. Devo meus profundos agradecimentos Alexandra,secretria do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Cultura Regional da UFRPE,

    pela ajuda oferecida a todos os alunos no trato das questes burocrticas, pois sempre nos

    atendeu com carinho, pacincia e disciplina exemplar.

    minha famlia agradeo pelo apoio e incentivos fundamentais a todo aquele que

    pretende se aperfeioar em sua profisso, principalmente aos meus pais Admilton Mendona

    dos Santos e Maria Joselita Augusto dos Santos os quais com pacincia, amor e dedicao me

    acompanharam enquanto me dedicava elaborao deste trabalho. Ao meu irmo Andr

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    Augusto Mendona dos Santos agradeo por todas as vezes que veio em meu auxlio em

    momentos de dificuldade. Muito obrigado a todos!

    minha turma de mestrado devo muito do incentivo inicial para elaborao deste

    trabalho e do apoio acadmico e moral que permitiram que esta longa caminhada fosse

    realizada com sucesso, atravessando momentos de dificuldades e de alegrias. Agradeo a

    Wandoberto Francisco da Silva, um historiador que est continuamente com um sorriso no

    rosto, pelo companheirismo. Ao meu amigo Vittor Prestrelo obrigado por sempre ter estado

    disponvel nos momentos de necessidade e por no ter deixado que faltasse a alegria to

    fundamental a nossas vidas durante os encontros cotidianos na universidade. A Bruno Melo

    de Arajo agradeo pela amizade e ateno oferecidos durante momentos mais complicados,

    sendo ainda um exemplo de competncia e superao para todos. Meu muito obrigado a Josu

    Lopes e a Elba Chagas da Cunha, profissionais dedicados e companheiros presentes nas

    discusses sobre a histria colonial. Agradeo a Suzana Veiga e a Rafaela Franklin por terem

    sido minhas parceiras em debates, dividindo comigo as alegrias e aperreios da ps-

    graduao. Meus agradecimentos Emmanuelle Valeskae Gustavo Manoel da Silva Gomes

    pela colaborao nos debates em sala.

    Agradeo a um trio que fez diferena na elaborao deste trabalho, compartilhando

    comigo resultados de pesquisas, debates historiogrficos, levantamento de fontes em arquivosalm dos fundamentais momentos de descontrao to necessrios a todo ser humano. A

    Raphael Lisboa, Bruno Kawai e Luiz Domingos meu muito obrigado!

    Devo profundos agradecimentos tambm a alguns amigos que me ajudaram e

    incentivaram tornando possvel que me dedicasse de forma devida aos estudos. A minha

    amiga Elisangela Silva s tenho a agradecer por ter me ajudado quando eu mais precisava,

    para mim ela a prova de que Deus coloca as pessoas certas em nossas vidas para que

    possamos superar as dificuldades no caminho. Agradeo ao meu amigo Gabriel Navarro pelapacincia e compreenso com a qual me escutou em momentos de dvida e pelos sbios

    conselhos oferecidos, muitas vezes gestos simples podem fazer toda a diferena para a vida

    das pessoas e em sua simplicidade ele consegue fazer esta diferena. Tambm agradeo a

    Jayme Medeiros pela sua amizade e aos camaradas Carlos Andr e Gian Carlo pelos valiosos

    conselhos que me ofereceram sobre a ps-graduao.

    A Fundao de Amparo Cincia e Tecnologia de Pernambuco (FACEPE) agradeo

    pela concesso da bolsa de pesquisa, o que viabilizou a realizao deste trabalho.

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    Todos aqui citados saibam que a elaborao deste trabalho s se tronou possvel

    graas ajuda de cada um de vocs, por isso divido com todos a felicidade de conclu-lo.

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    O Vigrio Geral que for eleito, depois que entrar a servir, ter em todas as suas aes

    a Deus diante dos olhos, para que lhe suceda bem: mostrar-se-h com todos muito tratvel,

    benigno e brando, e nas repreenses que der deve temperar a severidade, e rigor com

    pacincia, (...).

    D. Sebastio Monteiro da Vide,Regimento do Auditrio Eclesistico do Arcebispado

    da Bahia.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo historicizar o comportamento cotidiano do clero secular

    nas freguesias do acar em Pernambuco na segunda metade do sculo XVIII, buscamos com

    isso entender como as transgresses praticadas pelos membros deste grupo eram tratadas na

    poca pela sociedade, Igreja e Estado. Analisaremos como o clero secular estava inserido na

    sociedade da Amrica portuguesa e como interagia com ela, sendo necessrio para isso uma

    abordagem das caractersticas socioeconmicas das freguesias do acar por ns estudadas.

    Tambm buscaremos compreender como se dava a regulamentao do clero dentro da

    legislao aplicada no Brasil e no Imprio portugus, dentro desse contexto faremos uso das

    Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, das Ordenaes Filipinas e dos

    Regimentos do Santo Ofcio da Inquisio dos reinos de Portugal de 1640 e 1774, cdigos

    que regiam a sociedade da poca nos aspectos civil e religioso. A partir dessas normas

    buscaremos analisar sua aplicao no cotidiano das freguesias do acar no perodo entre

    1750 e 1800, tentando responder as seguintes questes: quais eram as transgresses praticadas

    pelos membros do clero secular? Como a justia eclesistica e leiga agia contra elas? Qual a

    opinio da populao com relao a estes atos? Podemos notar assim que muitos foram os

    clrigos que constituram famlia ou ofenderam os sacramentos da Igreja sendo suspeitos.

    Tambm observamos que tanto a justia eclesistica quanto a leiga agiam contra clrigos em

    Pernambuco, havendo mesmo conflito entre estes dois foros, e que a populao tendia a

    tolerar as transgresses do clero, desde que elas no ultrapassem certos limites sociais.

    Palavras-chave: CLERO. TRANSGRESSO. COTIDIANO. PERNAMBUCO.

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    ABSTRACT

    The current study aims to historicize the daily behavior of the secular clergy in the freguesias

    do acar in Pernambuco in the second half of the seventeenth century, we seek, therefore, to

    understand how the transgressions committed by members of this group were treated, back

    then, by society, Church and State. We will analyze how the secular clergy was inserted in the

    Portuguese society of America and how it interacted with her, being necessary for this an

    approach of the socioeconomic characteristics of thefreguesias do acar for us studied. We

    also will seek to understand how was given the clergy regulation within the legislation of

    Brazil and Portuguese Empire, within this context we will use the Constituies Primeiras do

    Arcebispado da Bahia, the Ordenaes Filipinas and the Regimentos do Santo Ofcio da

    Inquisio dos reinos de Portugal de 1640 e 1774, codes that governed the society of that

    time in the civil and religious aspects. From these standards we will seek to analyze its

    application in everyday life of thefreguesias do acar in the period between 1750 and 1800,

    trying to answer the following questions: what were the transgressions practiced by the

    members of the secular clergy? How the secular and ecclesiastical justice acted against them?

    What is the opinion of the population about these acts? We can notice, thus, that many were

    the clergymen that constituted family or offended the sacraments of the church beingsuspects. We also observed that both the secular and ecclesiastical justice acted against

    clergymen in Pernambuco, having the same conflict between these two forums, and that the

    population tended to tolerate the transgressions of the clergy, provided that they did not

    exceed certain social limits.

    Key-words: CLERGY. TRANSGRESSION. EVERYDAY. PERNAMBUCO.

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro I: pedidos de carta de perfilhao e legitimao (1768 1784) ............................. 42

    Quadro II: freguesias estudadas ......................................................................................... 43

    Quadro III: transgresses de clrigos corespondentes ao foro inquisitorial (17501800) ... 44

    Quadro IV: total populacional das freguesias estudadas com base na informao geral

    da Capitania de Pernambucoelaborada em 1749 .............................................................. 46

    Quadro V: total populacional das freguesias estudadas no ano de 1777 ............................. 47

    Quadro VI: total populacional das freguesias estudadas no ano de 1782 ............................ 48

    Quadro VII: total populacional das freguesias estudadas no ano de 1788 ........................... 49

    Quadro VIII: crescimento total da populao nas freguesias nos anos de 1749, 1777,

    1782 e 1788 ...................................................................................................................... 50

    Quadro IX: engenhos existentes em cada freguesia no ano de 1761 ................................... 51

    Quadro X: clrigos das freguesias do acar segundo a informao geral de 1749 ............. 60

    Quadro XI: clrigos das freguesias do acar em 1777 ...................................................... 62

    Quadro XII: alvars de mantimentos solicitados (1750 1778) ......................................... 65

    Quadro XIII: perfil das sacrlegas famlias (17681804).................................................. 127

    Quadro XIV: condio das parceiras dos clrigos (17681804) ....................................... 129

    LISTA DE FIGURAS

    Figura I ............................................................................................................................. 55

    Figura II ........................................................................................................................... 57

    LISTA DE ABREVIATURAS

    AHUArquivo Histrico Ultramarino

    ANTTArquivo Nacional da Torre do Tombo

    APEJEArquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano

    BCMORBiblioteca da Cria Metropolitana de Olinda e Recife

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    SUMRIO

    INTRODUO E DISCUSSO HISTORIOGRFICA ..................................................... 12

    1 CLERO & SOCIEDADE: AS RELAES ENTRE O CLERO SECULAR E A

    POPULAO DAS FREGUESIAS DO ACAR DE PERNAMBUCO (1750-

    1800) .............................................................................................................................. 30

    1.1 As freguesias do acar em Pernambuco na segunda metade do sculo XVIII: um

    ambiente mestio ............................................................................................................ 30

    1.2 As freguesias do acar: alguns aspectos fsicos, demogrficos e econmicos ................ 39

    1.3 Pastores & Ovelhas: o cotidiano do clero secular e sua convivncia com os fregueses na

    segunda metade do sculo XVIII ................................................................................... 58

    2 A LEGISLAO SOBRE O CLERO E AS EXPECTATIVAS DE NORMATIZAO:

    AS LEIS APLICADAS AO CLERO DA AMRICA PORTUGUESA............................. 72

    2.1 As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia: a construo de um clero nos

    moldes do ideal tridentino ............................................................................................. 72

    2.2 As Ordenaes Filipinas: privilgios e restries para o clero nas leis dElrei ................. 92

    2.3 A Oliveira, a Cruz e Espada: misericrdia e punio contra o clero nos Regimentos do

    Santo Ofcio de 1640 e 1774 ......................................................................................... 1023 DIANTE DOS OLHOS DE DEUS E DA JUSTIA DELREI: O TRATAMENTO DAS

    TRANSGRESSES DO CLERO SECULAR NA PRAXIS DA JUSTIA COLONIAL E

    NO COTIDIANO DOS COLONOS ............................................................................... 121

    3.1 Tem mulheres e filhos naturais, o que provoca pouco escndalo: as famlias de padres

    nas freguesias do acar de Pernambuco nas ltimas dcadas do sculo XVIII (1768-

    1804) .......................................................................................................................... 121

    3.2 A Inquisio contra o clero secular: os processos do Santo Ofcio contra clrigos secularesem Pernambuco na segunda metade do sculo XVIII .................................................... 135

    3.3 Caindo no foro secular: as transgresses do clero e as relaes entre justia secular e

    justia eclesistica ....................................................................................................... 149

    3.4 Sabia por ser notrio e geralmente sabido: as transgresses do clero secular no cotidiano

    da populao ............................................................................................................... 157

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 166

    REFERNCIAS ................................................................................................................ 171

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    INTRODUO E DISCUSSO HISTORIOGRFICA

    A presente Dissertao de Mestrado, intitulada Transgresso e cotidiano: a vida dos

    clrigos do hbito de So Pedro nas freguesias do acar em Pernambuco na segunda metade

    do sculo XVIII (1750-1800) possui uma proposta de pesquisa histrica direcionada para uma

    Histria Social adentrando ao campo da Histria das Religies e busca em sua elaborao

    seguir referncias metodolgicas que nos ajudassem a compreender as aes dos grupos

    sociais do passado dentro de suas culturas. Assim, obras de autores como Carlo Ginzburg, o

    qual nos ajuda a refletir sobre a histria dos grupos populares e a relaes entre cultura

    popular e cultura erudita1, e Serge Gruzinski, que aborda o hibridismo cultural e a mestiagem

    como caractersticas das sociedades que se formaram com a conquista da Amrica2, oferecem-

    nos modelos metodolgicos de trabalho. Desse modo, voltamos nossa ateno para analise de

    um grupo social em particular, o clero secular, de maneira a possibilitar a construo de uma

    concepo sobre o passado desse grupo e como ele estava includo na sociedade da Amrica

    portuguesa.

    Nosso objeto de estudo so os clrigos do hbito de So Pedro os clrigos seculares

    responsveis por administrar os sacramentos da populao da Amrica portuguesa e como

    eles transgrediam as leis do Estado e da Igreja em seu cotidiano. Ao problematizar astransgresses dos clrigos seculares das freguesias do acar da capitania de Pernambuco, ns

    pretendemos estudar os tipos de transgresses praticadas pelos membros desse grupo social e

    como a sociedade e as leis da poca tratavam esse comportamento do clero. Isso porque os

    mesmo viviam em concubinato com mulheres, praticavam a solicitao durante as confisses,

    alm de ter atitudes violentas contra outros habitantes da Amrica portuguesa, entre outras

    atitudes consideradas ilcitas. Tambm pretendemos compreender neste trabalho a forma

    como as freguesias do acar funcionavam como um espao onde as transgresses cometidaspelos eclesisticos faziam parte da vida cotidiana da populao sendo, at certo ponto,

    toleradas por essa. De modo mais especfico, examinaremos porque as denncias contra

    eclesisticos do hbito de So Pedro nem sempre ocorriam, sendo possvel aos mesmos

    transgredir as leis da Igreja e construir famlias ao longo do sculo XVIII. Dentro dessa

    mesma temtica, estudaremos quando as denncias ocorriam e quais eram os mecanismo

    utilizados pela populao para isso.

    1GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio.So Paulo: Companhia das Letras, 1987.2GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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    Objetivando instrumentalizar nossa pesquisa sobre as transgresses, optamos por nos

    valer do entendimento de Michel de Certeau sobre cotidiano. Para ele, no cotidiano que

    procedimentos jogam com os mecanismos da disciplina, no se conformando com ela.

    Certeau afirma que errado supor que o consumo de produtos e ideias no cotidiano ocorra de

    forma passiva; existem maneiras de fazer que formam a contrapartida dos consumidores

    contra aquilo que lhes imposto. Essas maneiras de fazer constituem prticas pelas quais os

    usurios reapropriam-se do espao, modos de proceder e astcias de consumidores que

    compem a rede de uma antidisciplina3. Da mesma forma que Certeau, voltamos-nos para o

    cotidiano como um espao de antidisciplina, uma vez que os clrigos seculares no absolviam

    passivamente as ideias que lhes eram passadas pela Igreja; eles se reapropriavam das

    informaes por vezes dando outros sentidos.

    Para que possamos compreender as prticas cotidianas importante fazer a distino

    entre estratgias e tticas feita por Certeau. Para ele, as estratgias so o clculo das relaes

    de foras que se torna possvel a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma

    empresa, um exrcito, uma instituio cientfica, etc.) pode ser isolado. J as tticas seriam a

    ao calculada que determinada pela ausncia de um prprio; ela deve jogar com o terreno

    que lhe imposto, ela aproveita as ocasies e delas depende, astcia. Ou seja, a ttica a

    arte do fraco4

    . Para Certeau muitas prticas cotidianas so do tipo da ttica e tambm, demodo mais geral, as artes de fazer: vitrias do fraco sobre o mais forte5.

    Nossa escolha pelas freguesias do acar deve-se importncia que essas freguesias

    tinham no sculo XVIII tanto no quadro populacional, quanto poltico e econmico da

    capitania de Pernambuco da poca. Entre essas freguesias estavam a sede do bispado e

    cabea poltica da capitania, Olinda, e tambm a vila do Recife, na qual se localizava o

    principal porto da capitania; ao mesmo tempo, a regio prxima ao litoral era marcada pela

    forte presena de engenhos de cana-de-acar6

    . A historiadora Kalina Vanderlei afirmou queos cenrios urbano e rural tinham limites indefinidos na Amrica portuguesa, distinguindo-se

    o urbano principalmente pela diversidade de atividades profissionais, mas mesclando-se ao

    espao rural. A autora abordou a cidade de Olinda, a vila do Recife, a vila de Goiana entre

    outras como integrantes das vilas aucareiras. Devido incluso das freguesias por ns

    analisadas dentro do espao de influncia das vilas aucareiras estudadas por essa

    3CERTEAU, Michel de.A inveno do cotidiano1: artes de fazer. 17. ed. Petrpolis: Vozes, 2011. p. 40-41.4

    Idem. p. 93-95.5Ibidem. p. 46.6 RIBEIRO JNIOR, Jos. Colonizao e monoplio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral dePernambuco e Paraba. So Paulo: HUCITEC, 1976. p. 70-71.

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    historiadora (algumas freguesias correspondiam mesmo ao espao do prprio ncleo urbano)

    e pelo vnculo que tinham com a produo de acar, utilizamo-nos do termo freguesias do

    acar7com o intuito de facilitar nossa anlise. Alm disso, durante o sculo XVIII as vilas

    aucareiras de Pernambuco e suas anexas surgem como importantes centros urbanos com um

    considervel crescimento demogrfico 8, estando entre eles ncleos prximos ao litoral de

    Pernambuco. Destarte, optamos por abordar uma regio de relevncia no contexto econmico

    da Amrica portuguesa e de preservar durante a anlise suas caractersticas prprias que a

    diferenciam do serto da mesma capitania.

    Para realizarmos o nosso estudo sobre o clero secular definimos um recorte temporal

    com base em certos aspectos que marcaram a vida poltica e social da Amrica portuguesa na

    segunda metade do sculo XVIII. Primeiramente buscamos analisar a forma como a justia

    eclesistica e a justia real agiram contra os clrigos transgressores em Pernambuco aps a

    morte do rei de Portugal D. Joo V e a aclamao do seu filho D. Jos I em 1750. Momento

    de intensificao do controle da monarquia sobre a Igreja em Portugal e seu Imprio, sendo a

    figura de Sebastio Jos de Carvalho marcante nessa poltica. Tambm buscamos entender os

    motivos e os efeitos nas freguesias do acar de Pernambuco da proibio de ordenaes de

    clrigos por determinao do rei D. Jos I em carta de 1768 devido grande quantidade de

    padres j ordenados na capitania.9

    Essa medida estava relacionada com a chamada Guerra dosSete Anos que ocorreu entre 1756 e 1763 durante o reinado de D. Jos I e ops a Inglaterra

    Frana, na qual tambm se envolveram Portugal e Espanha. Alm disso, refletia em

    Pernambuco o momento vivido por Portugal entre as dcadas de 1750 e 1770 sob influncia

    do secretrio de Estado dos Negcios do Reino Sebastio Jos de Carvalho e Melo, o marqus

    de Pombal. Nesse perodo ocorreu um processo de secularizao do reino, reduzindo-se o

    papel da Igreja a qual foi submetida cada vez mais ao Estado10. Assim, temos na capitania de

    Pernambuco um ambiente no qual a Igreja encontra-se cada vez mais submetida ao Estado noperodo por ns estudado. Nossas anlises se estendero at o momento da fundao do

    Seminrio de Olinda no ano de 1800, pois durante o sculo XVIII acreditava-se que a falta de

    7Ao trabalharmos com o termo freguesias do acarno pretendemos criar um novo conceito, uma vez que aeconomia no o alvo central do presente estudo. Almejamos apenas tornar mais funcional a referncia ao nossorecorte especial/administrativo ao longo do trabalho, diferenciando as freguesias estudadas em nossa pesquisadaquelas que ficavam no serto da capitania.8SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Nas Solides Vastas e Assustadoras: os pobres do acar e a conquista doserto de Pernambuco nos sculo XVII e XVIII. 2003. 362 pginas. Tese Programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003. p. 40- 85.9APEJE. OR. 14 (p. 15-20)176810SCHWARCZ, Lilia Mortiz.A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa independncia doBrasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 103.

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    um seminrio episcopal era uma das razes para o desregramento do clero (mesmo no sendo

    esta a nica razo que explica as transgresses praticadas por padres).

    Ademais, pretendemos ponderar at que ponto a reforma religiosa almejada pelo

    Conclio de Trento (1545-1563), que visava a formao de um clero mais austero e obediente,

    surtiu o efeito esperado ou no no clero secular das freguesias do acar de Pernambuco. O

    estudo dos setecentos importante porque na colnia a poltica tridentina s chegaria de

    forma sistemtica no sculo XVIII, apesar de seus princpios estarem presentes desde o incio

    da colonizao 11 . O movimento em prol da aplicao das normas de Trento ocorreu

    principalmente na primeira metade dos setecentos, sendo interrompido na gesto pombalina12.

    Entretanto a permanncia da legislao tridentina (como as Constituies Primeiras do

    Arcebispado da Bahia) e o funcionamento, ainda que enfraquecido, do Tribunal do Santo

    Ofcio na segunda metade do sculo XVIII mostram-nos que essa poltica no foi

    completamente abandonada. Portanto, nosso trabalho inclui-se em uma anlise do clero

    secular ps-tridentino na Amrica portuguesa.

    Nosso estudo tem por base as sries documentais manuscritas depositadas nos fundos

    do Arquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano (APEJE), nos Avulsos de Pernambuco

    (material digitalizado pelo Projeto Resgate e oriundo do Arquivo Histrico Ultramarino), na

    Biblioteca da Cria Metropolitana de Olinda e Recife e nas fontes disponibilizadas onlinepelo Arquivo Nacional da Torre do Tombopor meio doProjeto TT Online.Entre o material

    utilizado tem grande valor para nossa pesquisa os pedidos de carta de legitimao e

    perfilhao presente na documentao do Arquivo Histrico Ultramarino (Avulsos). Esses

    pedidos feitos por clrigos seculares ou por filhos dos mesmos possibilitam-nos hoje

    identificar como esses homens construam famlias sacrlegas nas freguesias do acar de

    Pernambuco transgredindo as normas da Igreja. Os pedidos de carta de legitimao e

    perfilhao so uma fonte valiosa, pois nos ajudam a identificar o grupo social a quepertenciam as parceiras dos clrigos e como os filhos esprios nascidos dessas unies eram

    tratados no que se refere aos direitos de herana. Alm disso, tambm encontramos na

    documentao do Arquivo Histrico Ultramarino cartas com denncias contra clrigos e

    registros de prises dos mesmos por ordem de autoridades reais presentes em Pernambuco na

    segunda metade do sculo XVIII, fontes que, apesar da sua singularidade, ajudam a

    compreender melhor as relaes entre o clero e a justia real.

    11

    LAGE, L. As Constituies da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil. In: FEITLER B; SOUZA E.S. (Org.).A Igreja no Brasil:Normas e Prticas durante a vigncia das Constituies Primeiras do Arcebispadoda Bahia.So Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 147-148.12Idem. p. 176.

    http://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htm
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    Por sua vez, na Biblioteca da Cria Metropolitana de Olinda e Recife foi possvel

    encontrar alguns processos de inquirio de generee moribusque eram realizados a respeito

    daqueles que pretendiam adotar o estado clerical no imprio portugus. Nesses processos

    constava a ascendncia familiar do candidato assim como seu comportamento e vida

    pregressa candidatura, material importantssimo para a compreenso da condio social do

    clero em Pernambuco. Porm, apenas dois desses processos (os quais analisamos) so do final

    do sculo XVIII, sendo a maioria referente ao sculo XIX. Tambm no est presente nessa

    biblioteca a documentao do juzo eclesistico de Pernambuco, impossibilitando um

    levantamento mais exato das transgresses do clero na capitania. Segundo o historiador

    Evaldo Cabral de Melo,

    O arquivo da Cmara episcopal, onde se guardava esse gnero de documento

    [inquiries de genere], j no existe. Pereira da Costa ainda viu o acervo nos anos80 do sculo XIX, j ento matroca, na biblioteca do convento franciscano dovelho burgo; sua posterior transferncia para o Palcio da Soledade (Recife) o deude mo beijada voracidade do cupim13.

    Tambm o historiador Guilherme Pereira das Neves visitou a documentao guardada

    pela Arquidiocese de Olinda e Recife para elaborao de sua dissertao de mestrado,

    concluda em 1984, e pode registrar que a quase totalidade dos manuscritos datam da

    segunda metade do sculo passado [XIX] ou atual. Apenas numa modesta prateleira de

    armrio consegui encontrar alguns processos de genere et moribus de fins do sculo

    XVIII.14.

    Para compensar essa carncia documental, valemo-nos das sries documentais

    manuscritas depositadas nos fundos do Arquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano

    (APEJE), onde podemos encontrar parte das determinaes rgias tomadas em relao ao

    clero de Pernambuco no perodo colonial nos livros de Ordens Rgias. Por fim, mas de

    extrema importncia, valemo-nos dos processos de clrigos seculares de Pernambucoprocessados pelo Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio de Lisboa, documentao

    disponibilizada online pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo por meio do Projeto TT

    Online.As fontes inquisitoriais nos ajudam a mostrar como a justia eclesistica do bispado e

    a Inquisio trabalhavam em conjunto, alm disso, elas evidenciam as relaes entre

    diferentes tribunais do Imprio portugus e a existncia de troca de informaes entre as

    13 MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parbola genealgica no Pernambuco colonial. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 51.14NEVES, G. P. C. P. das. O Seminrio de Olinda: educao, cultura e poltica nos tempos modernos.1984. 602pginas, 2 volumes. DissertaoCurso de Mestrado em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri,1984.p. 3.

    http://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htm
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    inquisies de Portugal e Espanha. No que se refere populao as fontes inquisitoriais nos

    oferecem dados sobre as denncias da populao contra os presbteros.

    Sendo nosso estudo voltado para uma anlise do clero secular de Pernambuco, cabe

    destacar que textos abordando esse grupo social foram inicialmente elaborados por pessoas

    ligadas Igreja, processo que se deu desde o perodo colonial quando os cronistas incluam

    em suas obras o clero secular e as ordens religiosas dentro de seus enfoques. Ressaltamos,

    porm, que eram obras muito mais de carter de exaltao ou crtica e no analise cientficas.

    Dentro desses parmetros, escreveu, ainda no sculo XVIII, o cronista pernambucano Fr.

    Antonio de Santa Maria Jaboato a obra Novo Orbe Serfico Braslico, na qual buscou

    abordar, sobretudo, a histria dos franciscanos na Amrica portuguesa15. Apesar disso, ele

    tambm registrou as aes de alguns membros do clero secular e deixou transparecer uma

    viso de superioridade que o clero regular tinha em relao ao secular na Amrica portuguesa.

    Ainda nos setecentos, o cronista franciscano Dom Domingos do Loreto Couto escreveu

    Desagravos do Brasil e glrias de Pernambuco(obra publicada apenas em 1904). No livro o

    autor abordou diversos temas relacionados histria de Pernambuco e no s aqueles ligados

    religio. J no que se refere ao clero esse livro traz informaes preciosas sobre a

    constituio do mesmo em Pernambuco, seus membros e cotidiano desses na colnia 16.

    J no sculo XIX temos a obra Memria histrica e biogrfica do cleropernambucano, escrita pelo padre Lino do Monte Carmello Luna e impressa em 1857. Nesse

    livro o autor trata da participao do clero pernambucano em todos os acontecimentos

    histricos relevantes para Pernambuco buscando demonstrar a importncia do clero no

    desenvolvimento da sociedade tanto na Europa quanto no Brasil17.

    Adentrando o sculo XX autores ligados de alguma maneira Igreja continuaram a

    escrever sobre o clero pernambucano, entre eles podemos destacar Fernando Pio dos Santos,

    que pertenceu Ordem Terceira de So Francisco do Recife e escreveu diversas obras sobre aIgreja em Pernambuco, inclusive proporcionado a publicao de documentos. Uma de suas

    obras mais importantes para o estudo do clero s foi publicada aps seu falecimento,

    Apontamentos biogrficos do clero pernambucanoque veio a pblico em 1994. Essa obra,

    como o prprio ttulo indica, consiste em informaes concisas sobre clrigos de Pernambuco,

    15JABOATO, Fr. Antonio de Santa Maria.Novo Orbe Serfico Braslico,ou Chronica dos Frades Menores daProvincia do Brasil. Recife, Assemblia Legislativa do Estado, 1980.16

    COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e glrias de Pernambuco. Recife: Fundao da Culturada Cidade do Recife, 1981.17LUNA, Padre Lino do Monte Carmelo.Memria histrica e biogrfica do clero pernambucano. 2. ed. Recife:Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Educao e Cultura, 1976.

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    sendo colocados os nomes em ordem alfabtica atravessando as informaes desde o perodo

    colonial at o sculo XX. Apesar de no expor uma explicao sobre temas, mas apenas

    informaes, a obra mostrar exemplos de clrigos que no perodo colonial agenciavam sua

    sobrevivncia por meio do envolvimento em negcios leigos (administrao de engenhos e

    aluguis de casas). Nela, vimos tambm que os presbteros tinham fama de raa de mulatos

    e de levar m vida ou se envolveram na guerra dos mascates, sendo presos por isso. Assim,

    Fernando Pio apenas pontua alguns aspectos do clero secular pernambucano, sem caracteriz-

    los como transgressores da norma, mas oferecendo pistas para estudos posteriores18.

    J o Mons. Severino Leite Nogueira, que foi membro do clero e professor do

    seminrio de Olinda, publicou na dcada de 80 uma obra sobre o seminrio onde lecionou

    intitulada O Seminrio de Olinda e seu Fundador o Bispo Azeredo Coutinho, contribuindo

    ainda com a publicao dos estatutos do mesmo seminrio. Mesmo sendo membro do clero, o

    Mons. Nogueira no se absteve de apresentar em sua obra a forma como os clrigos seculares

    eram dados transgresso na colniacomo a de ter mulheres e filhos, mas, na sua opinio,

    as causas dessa situao eram as seguintes: a necessidade do clero de se envolver em negcios

    de leigos para manter a subsistncia; a distncia entre as freguesias e as longas vacncias da

    diocese. Alm disso, Mons. Nogueira tambm considerava rgidas as leis do perodo colonial

    aplicadas ao clero, sendo mesmo ignominiosa a figura dos aljubes19

    .Mas desde a dcada de 1970 que o livro Histria da Igreja no Brasilque fez parte

    do projeto do CEHILA de escrever uma histria geral da Igreja na Amrica Latina buscou

    apresentar de modo mais cientfico os aspectos da Igreja no Brasil durante o perodo colonial;

    essa obra contribui para os estudos sobre a Igreja apresentando uma anlise tangencial sobre

    clero secular20. Aspectos como a subordinao coroa portuguesa e como essa subordinao

    gerou dificuldades para o desenvolvimento da Igreja no Brasil foram apontados no livro. No

    que se refere ao presente trabalho, a obra apresenta o clero como envolvido em negciosseculares e dado ao relaxamento e promiscuidade sexual, uma vez que o clero de Portugal,

    que j no primava pela moral, encontrava no Brasil um clima mais propcio

    permissividade. O clero secular especificamente apontado como mestio e com informaes

    muitas vezes negativas presente na documentao, por vezes escrita por religiosos regulares.

    18 SANTOS, Fernando Pio dos. Apontamentos Biogrficos do Clero Pernambucano: 1535-1935. Recife:Arquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano, 1994. v. 2.

    19

    NOGUEIRA, Severino Leite. O Seminrio de Olinda e seu fundador o Bispo Azeredo Coutinho . Recife:FUNDARPE. Diretoria de Assuntos Culturais, 1985. p. 399.20HOORNAERT, Eduardo; AZZI, Riolando (Org.). Histria da igreja no Brasil: ensaio de interpretao a

    partir do povo: primeira poca. 3. ed. Petrpolis: Editora Vozes, 1992.

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    O livro no aprofundou as anlises sobre o clero e deveria servir de estmulo para pesquisas

    mais regionais e de carter monogrfico, servindo de base para obras futuras.

    Assim, os estudos sobre o clero pernambucano foram se inserindo cada vez mais nos

    intramuros da academia. Na dcada de 1980, Antnio Jorge de Siqueira defendeu sua tese de

    doutorado na USP sobre o clero de Pernambuco e sua relao com a teologia da ilustrao no

    final do sculo XVIII at a Revoluo de 1817. Obra que foi publicada em 2009 com o ttulo

    Os padres e a teologia da ilustrao: Pernambuco 1817 21 . A obra pretende estudar o

    movimento de ilustrao em Portugal e sua influncia na colnia, levando em considerao as

    aes dos mentores polticos e intelectuais do absolutismo ilustrado e sua produo cultural.

    No que se refere ao clero colonial, o autor mostra a ao do bispo D. Jos Joaquim de

    Azeredo Coutinho em Pernambuco, sua ligao com o movimento da ilustrao e a criao do

    Seminrio de Olinda para a formao de um clero ilustrado e de moos para servir ao reino,

    sendo, portanto, o clero tratado sob a tica da poltica da ilustrao e no como centro da

    pesquisa. A respeito do comportamento do clero no perodo colonial, Siqueira informa que o

    bispo Azeredo Coutinho considerava o isolamento dos padres do serto a razo de sua falta de

    ortodoxia e vida pouco edificante, constituindo famlia e criando seus filhos. Para Siqueira, o

    clero colonial era ignorante e moralmente pouco edificante. A anlise desse historiador foi

    direcionada para perceber a relao entre o iluminismo e a crise do sistema colonial, de

    modo que para ele os padres formados no Seminrio de Olinda sob a teologia ilustrada

    perceberam as contradies do sistema colonial, tornando-se adeptos da descolonizao,

    participando assim do movimento emancipacionista de 1817.

    Quem tambm escreveu sobre o Seminrio de Olinda, mas sob uma tica bem

    diferente daquela de Siqueira foi o historiador Guilherme Pereira das Neves. Para ele, o

    Seminrio de Olinda constituiria um dos instrumentos do programa de reformas ilustradas do

    secretrio de ultramar e presidente do Errio D. Rodrigo de Souza Coutinho. O Seminrio eradestinado a redefinir os objetivos e a composio da elite de acordo com a construo de um

    Imprio luso-brasileiro. Assim, buscava-se amenizar os atritos entre a elite colonial e a elite

    imperial e difundir um ideal que se atenua as diferenas entre sditos de diversas regies do

    Imprio. No que tange ao clero, a obra importante na medida em que mostra como seria o

    funcionamento do Seminrio de Olinda e a formao de clrigos nessa instituio desde sua

    inaugurao formal em 1800 (origem dos alunos, matrias de estudo, tempo provvel de

    formao), atendendo esse Seminrio tanto aos objetivos tridentinos quanto ao do Estado.

    21 SIQUEIRA, Antnio Jorge de. Os padres e a teologia da ilustrao: Pernambuco 1817. Recife: Ed.Universitria da UFPE, 2009.

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    Segundo Neves, pouco provvel que o Seminrio de Olinda tenha sido difusor de um iderio

    liberal, haja vista que as aes dos padres que participaram das revoltas do incio XIX foram

    resultados da insuficiente aplicao dos ideais difundidos pelo Seminriohavia contradio

    entre os ideais herdados e os recuos diante dos mesmos ideais por parte da Coroa22.

    No caso da nossa atual pesquisa acadmica voltamos nosso interesse para a anlise do

    clero secular em seu cotidiano adotando o conceito de transgresso, que para ns seriam os

    desvios da norma moral existente na colnia ou crimes do foro civil e eclesistico que

    estavam previstos na legislao ibrica e nos cdigos elaborados na Amrica portuguesa. Na

    utilizao do termo transgresso pretendemos evitar anacronismos seguindo uma definio

    presente no sculo XVIII da palavra, pois, segundo o dicionrio de Bluteau, transgredirseria

    Passar alm (...). No observar, quebrar, violar. Transgredir uma lei, um mandamento. e

    transgresso seria A ao de transgredir no sentido moral, a transgresso de uma lei 23.

    Portanto, adotamos uma terminologia que tinha sentido empregado no contexto pesquisado.

    Alm disso, a historiografia nacional tambm vem se utilizando ao longo das dcadas da

    nomenclatura transgressopara se referir a desvios de conduta moral ou crimes praticados

    pelos habitantes da Amrica portuguesa contra as regulamentaes aplicadas pelo Estado e

    pela Igreja na poca, servindo hora para caracterizar aspectos especficos da vida colonial,

    hora para demonstrar a intolerncia e as perseguies presentes na legislao luso-americana.Utilizaremos em nossa investigao como fontes bsicas para estudos da legislao da

    poca os seguintes cdigos de leis: as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia de

    1707, aprovadas em um snodo diocesano realizado na Bahia no ano de 1707 e republicadas

    pela editora do Senado Federal em 2007, pois elas trazem todas as principais orientaes para

    a vida religiosa baseadas no conclio de Trento e que deveriam ser seguidas pelos clrigos da

    Amrica portuguesa durante o sculo XVIII24; o Cdigo Filipino ou Ordenaes e Leis do

    Reino de Portugal, disponveis na internet pelo projeto Ordenaes Filipinas on-line. Essecdigo de leis surgiu no contexto da Unio Ibrica e serviu para reger o cotidiano brasileiro

    at o sculo XIX. Sua importncia para a nossa pesquisa deve-se ao fato de prever punies

    para crimes tanto de leigos como de presbteros, mostrando uma caracterstica prpria do

    direito portugus da poca que era a existncia de foros mistos 25; os Regimentos do Santo

    22NEVES, op. cit., 1984.23BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio Portugus e Latino (1712-1727). Coimbra: 1712. p. 244.24

    VIDE, Sebastio Monteiro da. Constituies primeiras do Arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas peloilustrssimo e reverendssimo D. Sebastio Monteiro da Vide. Braslia: Senado Federal, 2007.25 Cdigo Filipino ou Ordenaes e Leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro, 1870. Disponvel em:

    . Acesso em: 19 jul. 2012.

    http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/
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    Ofcio da Inquisio dos reinos de Portugal de 1640 e 1774tornam-se referncias para ns na

    medida em que tambm previam, entre outros casos, crimes e punies especficos para

    clrigos, objetivando a normatizao do clero dentro dos padres tridentinos e a preservao

    dos sacramentos dentro das normas institudas pela Igreja, como no caso do casamento e

    confisso26.

    O foco no estudo das transgresses no Brasil colonial vem sendo dado por

    pesquisadores desde a dcada de 1980. Essas pesquisas estavam sob a influncia dos estudos a

    respeito das mentalidades e da sexualidade realizados na Europa. Com, por exemplo, a grande

    repercusso do volume 1 daHistria da sexualidade: a vontade de saber, escrito por Michel

    Foucault. Para Foucault a sexualidade seria um dispositivo histrico que ordena em funo do

    saber sobre o corpo nas relaes de poder e teria a sua difuso no ocidente iniciado a partir do

    sculo XVII27. Assim, os estudiosos do Brasil colonial passaram a tentar compreender como

    era a sexualidade na colnia sob a influncia da historiografia europeia e passaram a revisitar

    autores nacionais clssicos, como Gilberto Freyre que em Casa-grande & Senzala: formao

    da famlia brasileira sob o regime da economia patriarcal j abordava a libertinagem sexual

    colonial, mostrando ligeiramente que os padres ajudaram no povoamento do Brasil. Para

    Freire, era comum os eclesisticos ter filhos com escravas negras, mulatas e tambm com

    brancas livres, filhos ilegtimos que eram criados dentro do patriarcalismo das casas-grandesem circunstncias muito favorveis ou ento expostos nas rodas e orfanatos. Os filhos de

    padres contariam com um grande talento ou cultura e excelente conduta moral, segundo o

    autor28.

    Contudo, junto com as ideias de Foucault, outras influncias, por vezes opostas,

    chegaram ao Brasil entre as dcadas de 70 e 80 impondo novos problemas e novas fontes,

    como a publicao na dcada de 1970 do livro O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de

    um moleiro perseguido pela Inquisio, do historiador Carlo Ginzburg, no livro Ginzburgabordando a vida de Menocchio, um moleiro do Friuli que viveu no sculo XVI e foi julgado

    e condenado pela Inquisio. Em sua obra, Ginzburg mostrou como, a partir de fragmentos

    sobre a vida de Menocchio, podia-se reconstruir uma frao da cultura popular; alm disso, a

    26REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro, 1996, ano 157, n. 392, p. 495-1020, jul./set. 1996.27FOUCAULT, Michel.Histria da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988.28 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da economia

    patriarcal. 51. ed. So Paulo: Globo, 2006.

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    utilizao dos documentos da Inquisio para alcanar a cultura popular despertou novo o

    interesse por essas fontes29.

    Sob influncia desses autores, surgiram no Brasil trabalhos como a clssica tese de

    doutorado de Laura de Melo e Souza O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiaria e

    religiosidade popular no Brasil colonial que abordou a feitiaria, as prticas mgicas e a

    religiosidade popular no Brasil colonial concluindo que, graas ao cruzamento de concepes

    e discursos vrios, surgiu uma feitiaria colonial fixada pela populao nas formas das bolsas

    de mandinga, nos calundus e nos catimbs. Essa historiadora chegou a se referir em suas

    anlises ao clero colonial e mostrou que os clrigos eram conhecidos pelo seu mau viver e

    tinham prticas contrrias moral e norma religiosa30. Outra publicao importante foi a obra

    Histria e sexualidade no Brasilorganizada por Ronaldo Vainfas e que reuniu estudos sobre

    ideias e comportamentos no campo sexual e familiar do passado brasileiro desde a colnia at

    a Repblica. Nessa obra, Ronaldo Vainfas utiliza-se de termos como desvio da norma e

    transgresso ao tratar das prticas perseguidas pelo Santo Ofcio na Europa e na Amrica. Na

    mesma publicao, Lana Lage da Gama Lima tratou do ato da confisso na Igreja Catlica e

    mostrou o perigo que existia no crime de solicitao, quando o confessor propunha tratos

    ilcitos ao confitente. J Mary Del Priore buscou abordar as contravenes ocorridas nas

    festas religiosas e nas igrejas de So Paulo no sculo XVIII, muitas vezes praticadas pormembros do prprio clero que tinham por hbito os deslizes da norma. Renato Pinto

    Venncio, ao explanar a temtica dos filhos ilegtimos no Rio de Janeiro e em So Paulo,

    mostrou que tanto os leigos como os clrigos tiveram filhos ilegtimos e que a Igreja tentou

    punir esses desviantes no sculo XVIII, mas no logrou acabar com a ilegitimidade31.

    Ainda na dcada de 1980 o historiador Ronaldo Vainfas publica Trpico dos Pecados:

    moral, sexualidade e inquisio no Brasil, livro que resultou de sua pesquisa de doutorado

    entre 1984 e 198832

    . Na obra, o autor estudou a ao da inquisio no Brasil entre os sculosXVI ao XVIII demonstrando o vnculo entre o discurso evangelizador e o da contrarreforma.

    A obra influenciada pela histria das mentalidades e pelos estudos realizados por Michel

    Foucault sobre discurso e sexualidade. Para Vainfas, o processo reformador na Colnia

    fracassou, pois a Colnia foi criada para ser fonte de lucro para a Europa e no modelo de

    29GINZBURG, op. cit., 1987.30 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil

    colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986.31VAINFAS, Ronaldo (Org.).Histria e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Edio Graal, 1986.32 VAINFAS, Ronaldo. Trpicos dos pecados: moral, sexualidade e inquisio no Brasil. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 2010.

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    cristandade, mas no trpico dos pecados permaneceu o sentimento de culpa incutido pela

    pastoral do medo conduzida pela inquisio. Vainfas aborda o clero no que se refere ao

    controle sobre suas prticas sexuais desviantes e que visava manter a excelncia do clero

    diante das massas pela primazia da castidade, sendo ento vigiadas as transgresses sexuais

    do clero ou as doutrinas que as justificassem.

    A inquisio tambm foi tema da tese de doutorado da historiadora Lana Lage da

    Gama Lima intitulada A confisso pelo avesso: o crime de solicitao no Brasil Colonial,

    defendida na USP em 1990. Ao dedicar-se ao estudo do crime de solicitao praticado por

    padres no Brasil no sculo XVIII, essa autora mostrou o funcionamento do Santo Ofcio na

    represso da solicitao, a forma como o tribunal passou a ter jurisdio sobre esse crime e o

    papel da confisso e dos confessores no contexto da Reforma Catlica. Alm disso, abordou o

    tratamento dado sexualidade pela teologia moral crist nos manuais de confisso, a tentativa

    de reforma do clero nos moldes tridentinos e as motivaes dos atos de solicitao. Segundo

    essa historiadora, desde que os clrigos se comportassem dentro dos padres morais exigidos

    para toda a comunidade, poderiam ter mulher e filhos, pois o concubinato era uma realidade

    da sociedade colonial33.

    Nesse vis de pesquisa sobre transgresso, o historiador e antroplogo Luiz Mott

    contribui de maneira fundamental com uma vasta produo sobre o Brasil do sculo XVI aoXIX, utilizando-se de fontes inquisitoriais at ento inexploradas. Ele estudou o

    comportamento sexual, as prticas de feitiaria e a presena de rituais indgenas e africanos na

    religiosidade da Amrica portuguesa. No livroBahia: Inquisio e Sociedade, que reuniu oito

    artigos publicados entre 1986-1995, Mott faz uma amostra do que representou a ao da

    Inquisio em Salvador e no interior da capitania34. Na obra, abordada a primeira visitao

    do Santo Ofcio Bahia em 1591 e como ela procedeu nas investigaes e punies; a

    maneira como um frei dominicano nos primrdios do sculo XVIII assimilou rituais africanosem suas prticas de exorcismos; faz um estudo da vida do Cnego e Comissrio da Inquisio

    Joo Calmom; entre outros estudos de desvios de conduta praticados tanto por membros das

    grandes famlias baianas, como a Casa da Torre, e mesmo escravos e ndios.

    Por meio desses trabalhos, os desvios da norma e as transgresses passaram a

    compor cada vez mais um campo de investigao da historiografia brasileira, sendo os

    arquivos dos Tribunais Eclesisticos presentes nos bispados e os do Tribunal do Santo Ofcio

    33

    LIMA, L.L.da G. A confisso pelo avesso: o crime de solicitao no Brasil Colonial. 1990. Tese Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo. So Paulo, 1990.

    34MOTT, Luiz.Bahia: inquisio e sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010.

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    de grande importncia para essas pesquisas. Assim, surgiram livros como o de Eliane Maria

    Rea Goldschmidt Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822),que

    teve por origem a sua tese defendida em 1993, no qual ela abordou o funcionamento do

    tribunal episcopal e a convivncia entre os colonos paulistas que transgrediram as normas

    eclesisticas35. O estudo teve por base os processos crimes do tribunal episcopal de So Paulo

    privilegiando as transgresses denunciadas. Ao tratar do amancebamento de clrigos,

    Goldschmidt concluiu que a preocupao do tribunal episcopal era mais que os clrigos no

    deixassem de cumprir suas obrigaes como pastores do que vivessem com amsias. Os

    motivos das delaes de clrigos eram principalmente os excessos pblicos, mas, mesmo

    quando julgados, os membros do clero desfrutavam de certa impunidade, segundo a autora.

    A dissertao de mestrado de Eliane Cristina Lopes deu origem na dcada de 1990 ao

    livro O revelar do pecado: os filhos ilegtimos na So Paulo do Sculo XVIII, no qual a autora

    fez um estudo sobre os bastardos e sua participao nas famlias e na sociedade paulista no

    cotidiano colonial36. Para Lopes, os bastardos participavam ativamente da sociedade e muitos

    dos preconceitos presentes nas leis eram deixados de lado, havendo uma tolerncia a posterior

    absoro desses bastardos. No que se refere aos clrigos, ela mostra que entre os filhos

    ilegtimos havia os sacrlegos, frutos de relaes carnais entre leigos e eclesisticos. A autora

    constatou que em Portugal a maioria das cartas de legitimao era solicitada por presbteros eque esses afirmavam ter havido seu filhos antes de ordenados, pois do contrrio a legitimao

    no seria possvel. Tambm constatou que em So Paulo era comum ilegtimos serem aceitos

    para ordens sacras, mesmo os filhos de padres.

    Ainda na dcada de 90 o historiador Emanuel Arajo publicou O Teatro dos Vcios:

    Transgresso e transigncia na sociedade urbana colonial. Entre vrios temas, o autor

    estudou a ousadia sexual dos homens de batina, assim como outras condutas imorais dos

    clrigos, onde no faltavam excessos de bebida ou jogos37

    .Publicada em 2011, a coletneaHistria do corpo no Brasil, organizada por Mary Del

    Priore e Marcia Amantino, veio contribuir com o debate sobre como a sociedade lidou com o

    corpo ao longo da histria, tendo captulos voltados para o Brasil colonial 38. Nessa coletnea,

    35GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822).So Paulo: Annablume, 1998.

    36LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado:os filhos ilegtimos na So Paulo do sculo XVIII. So Paulo:Annablume: FAPESP, 1998.

    37

    ARAJO, Emanuel, 1940. O teatro dos vcios: transgresso e transigncia na sociedade urbana colonial. 2.ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1997.38 PRIORE, Mary Del; AMANTINO, Marcia (Org.). Histria do corpo no Brasil. So Paulo: Editora Unesp,

    2011. p. 568.

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    Anderson Jos Machado de Oliveira mostra que o corpo na histria do cristianismo tanto

    poderia ser o caminho para a salvaoo de Cristoou para a danao, estando presente na

    Amrica portuguesa o ideal de mortificao como forma de domar a prpria carne. J Mary

    Del Priore abordou as vises sobre a esterilidade, sendo a impotncia a causa para anulao

    do casamento. Esse mau era relacionado com as aes do Diabo sobre os corpos e, quando as

    medidas da Igreja ou mdicas no funcionavam, no faltavam mandingueiros e calunduzeiros

    propondo solues distintas. Assim, era importante que os membros do clero buscassem

    controlar seus corpos e ao mesmo tempo instruir seus fiis no trato com os seus.

    Porm, devemos destacar que esses estudos anteriores abordaram o clero,

    principalmente o secular, apenas de modo superficial, sem ser o mesmo o centro das anlises.

    Desse modo, visando a incluso de nossa pesquisa nos atuais debates sobre o grupo social que

    estudamos, realizamos o levantamento de parte da produo historiogrfica nacional recente

    que vem se voltando mais diretamente para a anlise do clero secular enquanto grupo social e

    para o funcionamento do aparato administrativo eclesistico, como na obraE receber merc:

    a Mesa de Conscincia e Ordens e o clero secular no Brasil (1808-1828)39. Nessa obra o

    historiador Guilherme Pereira das Neves realiza um estudo sobre a atuao da Mesa de

    Conscincia e Ordens no Brasil e do clero secular brasileiro. Para alm do funcionamento da

    Mesa de Conscincia e Ordens no Brasil, a obra proporciona um entendimento do cotidianodo clero secular por meios de um estudo prosopogrfico, onde vemos que seus membros

    criavam gado para sua subsistncia, tinham lavouras, trabalhavam com minerao, podiam

    pertencer a famlias de donos de engenhos, mas que, mesmo assim, muitos viviam em

    situaes precrias. O autor defende a permanncia de uma mentalidade religiosa no Brasil do

    incio do XIX segundo o qual os padres continuavam a se inserir na vida cotidiana dos leigos,

    mesmo em disputas e negcios, de uma forma inimaginvel para perodos posteriores.

    Segundo Neves, os anos de 1808 a 1828 confirmam a no cristianizao do Brasil devido aosproblemas encontrados desde o perodo colonial para a manuteno desse processo.

    Outro acadmico que tambm tratou do clero, especificamente o do bispado de

    Pernambuco, como um dos focos de sua pesquisa, foi Bruno Feitler, que defendeu em 2001

    sua tese de doutorado a qual deu origem, mais recentemente, ao livro Nas malhas da

    conscincia: Igreja e Inquisio no Brasil. No livro o autor estuda os meios de ao da

    Inquisio no bispado de Pernambuco e o modo como certas instituies locais colaboravam

    39NEVES, Guilherme Pereira das. E receber merc: a Mesa de Conscincia e Ordens e o clero secular noBrasil (1808-1828). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

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    com o santo ofcio entre 1640 e 175040. No que se refere ao clero secular, essa obra colabora

    ao estudar a malha eclesistica no bispado de Pernambuco e seus mecanismos de controle

    social e realizao de misses, assim como a participao do clero secular e regular como

    agentes informais no funcionamento do Santo Ofcio.

    A temtica do clero de Pernambuco no perodo colonial tambm originou trabalhos

    acadmicos de mestrado. Um exemplo a dissertao SANTAS NORMAS: o comportamento

    do clero pernambucano sob a vigilncia das Constituies Primeiras do Arcebispado da

    Bahia (1707), defendida por Anna Laura Teixeira de Frana em 2002 no Programa de ps-

    graduao em histria da UFPE41. A autora centralizou seu estudo nos principais ncleos

    urbanos da capitania de Pernambuco no perodo entre 1650 e 1750, observando como foi a

    aplicao prtica das Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia nessa regio e sua

    relao com a reforma catlica. Para essa autora a ausncia da disciplina imposta pela reforma

    catlica foi uma das caractersticas do clero na colnia, sendo difcil a separao entre a vida

    de sacerdotes e as atividades de leigos.

    Quem tambm abordou um pouco a questo do comportamento do clero foi a

    historiadora Suely Creusa Cordeiro de Almeida no seu livro intitulado O sexo devoto:

    normatizao e resistncia feminina no imprio Portugus (XVI-XVIII),publicado em 2005

    pela editora da UFPE. Em seu texto a autora demonstra as formas como os clrigos dacapitania de Pernambuco viviam amancebados com mulheres e conseguiam deixar a sua

    herana para os filhos que nasciam dessas relaes por meio da legitimao e perfilhao 42.

    Anlises sobre o clero tambm vem sendo realizadas para outras partes do Brasil. Em

    um importante artigo intitulado A Igreja, a sociedade e o clero,presente na coleo Histria

    de Minas Gerais, o historiador Luiz Carlos Villalta fez uma anlise do processo de

    ordenaes de clrigos em Minas Gerais entre 1784 e 1801. Villalta mostrou que o sacerdcio

    era encarado pela sociedade mineira como uma profisso e por meio desse almejava-se statuse privilgios; alm disso, mostrou que, mesmo que nas inquiries para ordens se

    privilegiasse famlias legtimas e brancas, uma porcentagem razovel de habilitandos era

    constituda por filhos naturais e/ou mulatos, mostrando a ilegitimidade e mestiagem

    40FEITLER, Bruno.Nas malhas da conscincia: Igreja e Inquisio no Brasil: Nordeste 1640-1750. So Paulo:Alameda, 2007.

    41FRANA, A. L. T. de. SANTAS NORMAS: o comportamento do clero pernambucano sob a vigilncia das

    Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). 2002. 128 pginas. DissertaoPrograma de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2002.42 ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O sexo devoto: normatizao e resistncia feminina no imprio

    Portugus (XVI-XVIII). Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2005.

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    caractersticas da regio 43 . J o historiador Anderson Jos Machado de Oliveira tambm

    mostrou as dispensas de cor que recebiam os ordenandos (negros e mulatos) do bispado do

    Rio de Janeiro, tendo identificado 19 casos de homens de cor ordenados entre 1720 e 1822.

    Para ele, a mobilidade social no estava acessvel a todos e no foi a regra entre os homens de

    cor na sociedade colonial, pois tratava-se de uma mobilidade profundamente conservadora

    seguindo os traos de distino do Antigo Regime44.

    Outro trabalho que aborda a regio das minas a dissertao de Aline Beatriz Borges

    Nunes intitulada A capitania de Minas Gerais entre 1750 e 1777: o clero secular e o

    regalismo, defendida em 2010 no Programa de Ps-Graduao em Histria da UNIRIO45. Ela

    abordou a maneira como o Estado buscou aumentar sua influncia sobre a administrao

    eclesistica na capitania de Minas Gerais durante o perodo pombalino. Assim, para a autora,

    a poltica regalista exagerada nos setecentos gerou a acentuao de conflitos e tenses nas

    quais o clero secular estava envolvido, pois seus membros estavam mais interessados em

    acumular riquezas do que realizar o projeto missionrio.

    No que se refere ao Maranho colonial, encontramos a tese de doutorado Parochos

    imperfeitos: Justia Eclesistica e desvios do clero no Maranho Colonial, defendida por

    Pollyanna Gouveia de Mendona em 2011 no Programa de Ps-Graduao em Histria da

    UFF46

    . Nesse trabalho, a autora abordou tanto as prticas jurdicas do tribunal eclesistico nobispado do Maranho no sculo XVIII quanto a formao do clero secular, seu perfil e dos

    crimes que cometiam seus membros. Na obra, a autora destaca a contribuio entre o tribunal

    eclesistico e a Inquisio, mas no caso da justia civil havia uma disputa entre Igreja e

    Estado, o que no era uma confuso, mas, sim, uma multiplicao de instncias, tpicas do

    exerccio de poder no antigo Regime. Sobre o clero secular, Mendona afirma que os clrigos

    sempre estiveram em maior evidncia como alvos do tribunal eclesistico, pois eram figuras

    de destaque nas parquias. Todavia, segundo a autora, seria um erro considerar comoimperante o clima de transgresso na colnia, pois os padres ainda eram muito envolvidos

    43VILLALTA, L. C. A Igreja, a sociedade e o clero. In: As Minas Setecentistas 2. Belo Horizonte: Autntica;Companhia do Tempo, 2007.

    44OLIVEIRA, A. J. M. de. Padre Jos Maurcio: dispensa da cor, mobilidade social e recriao de hierarquiasna Amrica portuguesa. In: GUEDES R. (Org.). Dinmica imperial no antigo regime portugus: escravido,governos, fronteiras, poderes, legados: sc. XVIIXIX.Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

    45NUNES, Aline Beatriz Borges.A capitania de Minas Gerais entre 1750 e 1777: Clero secular e o regalismo.

    2010. Dissertao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro. Rio de Janeiro, 2010.46 MENDONA, P.G. Parochos imperfeitos: Justia Eclesistica e desvios do clero no Maranho colonial .

    2011. TesePrograma de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri, 2011.

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    com o mundo secular e a batina no era suficiente para separ-los dos demais habitantes da

    colnia.

    Portanto, a partir das questes levantadas e da insero da nossa pesquisa nos estudos

    recentes sobre o clero, pretendemos estudar a vida cotidiana dos sacerdotes seculares das

    freguesias do acar da capitania de Pernambuco a partir de suas atitudes contrrias s normas

    vigentes na colnia e at que ponto essas prticas eram toleradas pela populao, assim como

    a legislao que regulamentava a vida desses sacerdotes, no que se refere a aes da Igreja e

    do Estado na segunda metade do sculo XVIII (1750-1800).

    O presente trabalho estruturado em trs captulos, nos quais buscam inicialmente

    uma explanao das caractersticas sociais e econmicas das freguesias do acar de

    Pernambuco na segunda metade do sculo XVIII e do papel do clero secular nessa sociedade.

    Em seguida, fazemos uma anlise da legislao aplicada ao clero e observada na Amrica

    portuguesa. Enfim, realizaremos uma anlise dos tipos de transgresses praticadas pelos

    clrigos seculares e como a justia e populao lidavam com esses casos.

    No captulo I, intitulado Clero & sociedade: as relaes entre o clero secular e a

    populao das freguesias do acar de Pernambuco (1750-1800), abordamos as

    caractersticas socioeconmicas das freguesias do acar buscando mostrar sua dinmica e a

    incluso do clero na mesma, uma vez que essa regio era uma grande produtora de acar etinha um considervel potencial demogrfico. Utilizamos dados demogrficos para tornar

    visvel o crescimento populacional e fontes qualitativas para abordar a forte presena do

    negro, caracterizando um ambiente mestio, alm de mostrar como nesse o ambiente os

    presbteros interagiam com a populao para exercer suas obrigaes.

    O captulo II tem por ttulo A legislao sobre o clero e as expectativas de

    normatizao: as leis aplicadas ao clero da Amrica portuguesa e nele buscamos explicar

    como se deu a normatizao do clero sob a tica jurdica, pois esse grupo foi alvo dediferentes tipos de controle e com objetivos distintos. Destarte, analisamos as Constituies

    Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, cdigo de leis da Igreja aplicadas na Amrica

    portuguesa, o Cdigo Filipino ou Ordenaes e Leis do Reino de Portugal, leis laicas vlidas

    para o reino e seus domnios e, por fim, fazemos um estudo dosRegimentos do Santo ofcio

    da Inquisiodo ano de 1640 e 1774, os quais procuravam as heresias nas transgresses da

    populao.

    No terceiro e ltimo captulo, intituladoDiante dos olhos de Deus e da justia dElrei:

    o tratamento das transgresses do clero secular na Praxis da justia colonial e no cotidiano

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    dos colonos, as transgresses do clero sero abordadas por meio de uma anlise que busca

    compreender dentro dos processos jurdicos e no cotidiano da populao quais eram os tipos

    de crimes praticados e como se dava a aplicao das leis nos diferentes casos. Procuramos

    observar se os princpios jurdicos presentes no direito portugus eram praticados nas

    freguesias do acar de Pernambuco na praxi da justia e a forma como os clrigos e os

    colonos lidavam com esses princpios. Por fim, construmos um fragmento da memria sobre

    o cotidiano do clero secular e de suas transgresses por meio dos depoimentos presentes nos

    processos judiciais, mostrando como essas eram at certo ponto toleradas pela populao das

    freguesias do acar.

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    1 CLERO & SOCIEDADE: AS RELAES ENTRE O CLERO SECULAR E APOPULAO DAS FREGUESIAS DO ACAR DE PERNAMBUCO (1750-1800)

    Ao PeCapelo paga o Senhor de Engenhosessenta arrobas de acar branco,

    e se lhe faz outras conveninciaspara administrar os sacramentos aos vizinhos.

    Domingos do Loreto Couto,Desagravos do Brasil e glrias de Pernambuco

    Os historiadores em seus labores solitrios nos arquivos esto sempre buscando

    compreender as aes das personagens que se tornam alvo de seus estudos. Para evitar

    anacronismos, faz-se necessrio levar em considerao o momento e as condies nas quais

    agiram os sujeitos histricos selecionados, pois, como afirma Marc Bloch, a histria seria a

    cincia dos homens, no tempo47; no levar em estima as especificidades de cada momento,

    levar-nos-ia a cair em distores insuperveis.

    Assim, visando compreender melhor o ambiente onde os padres do hbito de So

    Pedro vivenciaram seu cotidiano, o presente captulo abordar alguns aspectos sociais e

    econmicos das freguesias do acar da capitania de Pernambuco no perodo de 1750 a 1800,

    sobretudo como a populao local se relacionava com o clero secular responsvel por

    administrar os sacramentos. Para conseguir esse objetivo, utilizaremos neste captulo os

    fundos depositados no Arquivo Histrico Ultramarino, no Arquivo Nacional da Torre do

    Tombo, documentao disponibilizada online por meio doProjeto TT Online,e do APEJE.

    1.1 As freguesias do acar em Pernambuco na segunda metade do sculo XVIII: um

    ambiente mestio

    Na segunda metade do sculo XVIII, a capitania de Pernambuco ainda tinha na

    produo de acar para o mercado externo a base da sua economia e eram nas freguesias

    prximas ao litoral onde se encontravam a maioria dos engenhos de acar, caracterizando a

    regio como de grande importncia econmica para a capitania. Por esse motivo nomeamos

    no presente trabalho as freguesias que produziam acar ou dependiam da economia fruto

    desse produto na regio prxima ao litoral de freguesias do acar. No pretendemos com

    isso criar um novo conceito, uma vez que a economia no o principal foco de nosso estudo,

    47BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou O Oficio de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.p. 55.

    http://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htmhttp://ttonline.iantt.pt/projecto.htm
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    mas apenas instrumentalizar nosso trabalho tornando prtica a referncia ao nosso recorte

    espacial e ao mesmo tempo distinguindo as freguesias prximas ao litoral daquelas do serto,

    que no so alvo desse estudo.

    Nesse mesmo perodo, a Coroa tomava medidas para estimular o comrcio entre o

    Brasil e a metrpole, visando recuperar a economia metropolitana que estava debilitada com a

    queda da produo do ouro da Amrica portuguesa. Demonstraes dessas intenes foram o

    Decreto de janeiro de 1751 e o Regimento dos direitos do tabaco e acar simplificando os

    despachos nas alfndegas de Lisboa e Porto, oferecendo vantagens a comerciantes e

    regulamentando os preos dos fretes e da venda do tabaco e do acar48.

    Ainda no mbito das prticas voltadas para o crescimento do trato entre a metrpole e

    a colnia, por meio de uma maior racionalizao da explorao colonial, foi criada a

    Companhia de Geral de Pernambuco e Paraba em setembro de 1759 e que entrou em

    atividade em abril de 1760 por um prazo de 20 anos49.

    O grupo social que controlava a produo aucareira foi designado por Evaldo Cabral

    de aucarocracia, elemento fundamental na formao e manuteno da sociedade que emergiu

    nas freguesias do acar da capitania Duartina. Esse grupo era heterogneo e formado tanto

    pela elite dos senhores de engenho, homens que possuam o equipamento manufatureiro,

    quantos pelos lavradores de cana, encarregados das fainas agrcolas50

    . Para Antonil, cronistado incio do sculo XVIII, ser lavrador de cana no era sinnimo de pobreza, pelo contrrio,

    esses senhores podiam ter grande cabedal, mas preferiam serem lavradores de grandes

    quantidades de cana a se arriscarem nos investimentos necessrios para erguer um engenho,

    querem antes ser lavradores de possantes canas, com um ou dois partidos de mil pes de

    acar, com trinta a quarenta escravos de enxada e foice, do que ser senhores de engenho por

    poucos anos51. Podemos constatar ento uma diversidade econmica entre a elite produtora

    de acar.Mas eram os grandes senhores de engenho que estavam no topo da elite e desfrutavam

    de uma ampla liberdade em suas terras. Para Freyre eles eram os verdadeiros donos da

    Colnia, mais do que os vice-reis ou bispos52. Uma das formas pelas quais esses senhores

    exerciam sua influncia no comando local era por meio da sua presena nas cmaras das vilas

    48RIBEIRO JNIOR, op. cit., 1976. p. 46.49Idem. p. 90.50MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1751. So

    Paulo: Ed. 34, 2003. p. 157.51ANTONIL, Andr Joo, 1649 ou 50-1716. Cultura e opulncia do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Ed Itatiaia;So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1982. p. 76.

    52FREYRE, op. cit., 2006. p. 38.

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    e, para demonstrar seu poder, no abriam mo da promoo de festejos que eram verdadeiras

    disputas de prestgio. Segundo Kalina Vanderlei, ao tratar do sculo XVII e incio do XVIII:

    A elite aucareira em Olinda, Igarassu e Goiana, dominava o cenrio poltico, mastambm o cultural: os membros de seu grupo que no ocupavam cargos nas cmaras,estavam nas Irmandades do Santssimo Sacramento, e na Santa Casa deMisericrdia, a mais prestigiada das confrarias, que ditava regras s irmandadesleigas53.

    Porm, no perodo por ns estudado, essa aucarocracia j perdera muito do seu antigo

    poder e prestgio. O ncleo habitacional de Olinda, o qual foi sede do poder dos senhores de

    engenho e da administrao da capitania durante todo o perodo colonial, havia decado desde

    que foi incendiado pelos holandeses em 1631. Segundo Kalina Vanderlei, Olinda surge nos

    discursos da segunda metade do sculo XVII e incio do XVIII como uma cidade onde

    predominavam pobres livres, muitos deles utilizados para o servio militar. Na segunda

    metade do XVIII, a autora percebe um gradativo declnio de sua populao, em comparao

    com as outras povoaes da rea aucareira de Pernambuco especificamente entre 1782 e

    178854.

    A decadncia da cidade de Olinda era acompanhada por uma dependncia da

    aucarocracia em relao aos mercadores do Recife. Evaldo Cabral de Mello, ao analisar o

    momento em a Fronda dos Mazombos, constatou que no sculo XVIII fora o crdito

    mercantil s havia a parentela, a Santa Casa de Misericrdia de Olinda ou alguma ordem

    religiosa ou terceira mais prspera, que sendo via de regra, as ordens recifenses, no as

    olindenses, fazia com que, (...) se tratasse tambm de outra forma de crdito mascatal55. As

    dvidas dos senhores se arrastavam por anos e antes mesmo da instalao da Companhia Geral

    de Pernambuco e Paraba sua situao j era deficitria, sendo muitas vezes executados em

    suas dvidas pelos credores56.

    As dvidas dos senhores de engenho revertiam-se em lucro para o grupo mascatal doRecife e esses se tornaram outro elemento basilar na construo social das freguesias do

    acar da capitania de Pernambuco no perodo colonial, sendo a elevao do Recife

    categoria de vila no incio do sculo XVIII o cume de um processo de ascenso social ao abrir

    um espao poltico para a categoria dos mascates. Comerciantes vindos do reino controlavam

    53 SILVA, K. V. P. da. 2006. Cerimnias pblicas de manifestao de jbilo: smbolos barrocos e ossignificados polticos das festas pblicas nas vilas aucareiras de Pernambuco nos sculos XVII e XVIII.

    Ensaios culturais sobre a Amrica aucareira, Recife: v. I, 2006.54SILVA, op. cit., 2003, p. 56-83.55MELLO, op. cit., 2003, p. 144.56RIBEIRO JNIOR, op. cit., 1976, p. 68.

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    os emprstimos que financiavam a produo aucareira dos engenhos. Para se proteger

    praticavam a endogamia e confiavam seus negcios a sobrinhos ou parentes especialmente

    vindos do reino como forma de garantir a continuidade e solidez de seus bens57. Mas como

    mostrou o historiador George Felix Cabral de Souza em seu estudo sobre as elites coloniais

    locais e a cmara do Recife, tambm havia matrimnios entre famlias de senhores rurais e

    negociantes urbanos, ainda que os de origem portuguesa preferissem casar com filhas de

    portugueses. Tambm no se pode exagerar a oposio reinol mazombo, visto que entre os

    membros cmara do Recife registrou-se uma parcela importante de nascidos no Brasil

    exercendo atividades de comerciantes58.

    Alm dos mascates, outra categoria composta por reinis que estruturava a sociedade

    das freguesias do acar era a burocracia colonial, uma vez que partes dos cargos eram

    ocupados por pessoas enviadas pelo Estado portugus, como, por exemplo, o caso do cargo de

    juiz de forafuncionrios letrados diretamente designados pelo rei para servir nos municpios

    e, desde ento, os oficiais mais importantes das cmaras 59. Stuart B. Schwartz, ao abordar o

    Tribunal da Relao da Bahia nos sculo XVII e XVIII, mostrou que havia um ideal utpico

    buscado pela Coroa para os magistrados, os quais deveriam ficar isolados da sociedade para

    que seu envolvimento no atrapalhasse seu julgamento. Assim, a posse de terras, o

    envolvimento com comrcio e o casamento com mulheres no Brasil eram alvos de controle,mas essa tentativa de isolar os magistrados no teve o resultado esperado 60. Da mesma forma

    em Pernambuco, os juzes de fora foram alvos de denncias de envolvimento em redes de

    contrabando e, como a documentao demonstra, teciam laos de amizade local61.

    Convivendo com funcionrios reinis, com a aucarocracia e com mascates, haviam

    ainda os grupos marcados pela cor e pelo defeito mecnico, formados pelos designados

    oficiais mecnicos, desprovidos de terras prprias e que habitavam as vilas aucareiras. Esses

    homens eram brancos pobres, negros e pardos nascidos livres ou forros que se dedicavam a

    57MELLO, op. cit., 2003, p. 148-149.58SOUZA, George Felix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la Cmara Municipal de

    Recife (17101822). 2007. 698 pginas. Tese Programa de Doctorado Fundamentos de la InvestigacinHisrica. Salamanca, 2007. p. 617-618.

    59 SALGADO, Graa de. (Coord.).Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986. p. 80.

    60SCHWARTZ, Stuart B.Burocracia e sociedade no Brasil colonial: A Suprema Corte da Bahia e seus juzes

    (1609-1751). So Paulo: Editora Perspectiva, 1979. p. 139-141.61ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. Os Juzes de fora: a lei e a Ordem na Capitania de Pernambuco. In:ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SILVA, Giselda Brito (Org.). Ordem & poltica: controle poltico-social e as formas de resistncia em Pernambuco nos sculos XVIII ao XX. Recife: [s.n.], 2007. p. 28-29.

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    trabalhos manuais e, mesmo que alguns tivessem capital suficiente para abrir suas prprias

    oficinas, continuavam com a marca de sua qualidade62.

    Os mecnicos, na maioria das vezes, congregavam-se em corporaes de ofcio em

    Recife e Olinda, nas quais oficiais negros e pardos, livres e libertos de uma mesma ocupao

    buscavam uma regulamentao profissional, pois, no sculo XVIII as irmandades leigas

    organizadas tambm exerciam funo de regulamentao profissional, alm das funes

    religiosas e assistencialistas, a exemplo do caso da Irmandade de So Crispin e So Crispiano,

    de sapateiros63 . Aqueles que no exerciam nenhuma funo produtiva eram considerados

    vadios, elementos margem da estrutura produtiva colonial.

    Na base dessa estrutura econmica e social encontrava-se o escravo negro oriundo da

    frica, principal mo de obra da sociedade colonial e que era empregada de diversas maneiras

    como: exercendo ofcios mecnicos ou de comrcio ambulante nos centros urbanos, trabalhos

    domsticos e, principalmente, sendo empregados no eito, promovendo a produo aucareira

    nas freguesias pernambucanas, voltada ao mercado externo.

    A escravido foi um elemento constituinte da sociedade organizada na Amrica

    portuguesa. A manuteno do sistema produtivo agroexportador era impensvel sem a

    presena do trabalho escravo. Como afirmou Antonil, Os escravos so as mos e os ps do

    senhor de engenho, porque sem eles no Brasil no possvel fazer, conservar e aumentarfazenda 64 . Como mostrou a historiadora Hebe Mattos, fundada em relaes de poder

    construdas costumeiramente na expanso portuguesa na frica, a escravido se naturalizava

    integrando-se concepo corporativa da sociedade65. Assim, aceita como um componente

    natural do Imprio a escravido foi vivenciada na Amrica portuguesa.

    Segundo Stuart Schwartz, o escravo utilizado no cultivo aucareiro era mantido em

    regime de produo mxima, baixando o custo de produo e aumentando o lucro do

    produtor. Como consequncia, um escravo adulto s precisava durar cinco anos para garantiro lucro do produtor66. Essa forma de trabalho escravo era regulado pelo sistema de tarefas,

    proporcionando aos escravos que conclussem suas funes a oportunidade de dedicar o

    62SILVA, op. cit., 2003, p. 99-100.63SILVA, op. cit., 2003, p. 112-115.64ANTONIL,op. cit., 1982, p. 89.65

    MATTOS, H. M. A escravido moderna nos quadros do Imprio portugus: o Antigo Regime em perspectivaatlntica. In: FRAGOSO, Joo. (Org.). O antigo regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa(sculos XVIXVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010. p. 146.

    66SCHWARTZ, Stuart B.Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. p. 93.

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    tempo restante ao cultivo de lotes para subsistncia e quem sabe participar do abastecimento

    do mercado local67.

    Os escravos que exerciam trabalhos urbanos eram empregados, por vezes, seguindo

    outro modelo de regulamentao. Poderiam trabalhar como escravos de ganho exercendo seus

    ofcios sem a necessidade de um controle direto, mas tendo por obrigao entregar ao seu

    senhor ao final do dia ou da semana uma quantia em dinheiro anteriormente estabelecida.

    Tratava-se de canoeiros, carregadores ou oficiais mecnicos que desfrutavam de uma maior

    mobilidade e como mostrou Marcus de Carvalho, ao abordar a escravido no sculo XIX.

    Essa mobilidade era fonte de uma srie de desdobramentos, havendo uma linha mvel entre o

    que era permitido aos escravos fazer e o que eles realmente faziam, como se fingir de

    libertos68. Os escravos de ganho conseguiam se aproveitar de sua mobilidade para reunir

    algum dinheiro. Esses negros que desfrutavam de maior mobilidade e renda por vezes

    organizavam-se nas vilas aucareiras em irmandades e confrarias de acordo com suasnaes,

    como a irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos no Recife do sculo XVIII.

    A presena de negros do continente africano, os quais foram parcialmente substituindo

    os indgenas no trabalho compulsrio em fins do sculo XVI e incio do XVII 69 , veio

    acrescentar mais componentes no choque ocorrido na Amrica colonial. Choque que foi

    biolgico e cultural, do qual surgiram os mestios, grupo que no tinha inicialmente umaposio definida na sociedade e que junto com os demais habitantes aceitaram situaes antes

    impensveis e realizaram adaptaes as mais variadas para garantir sua sobrevivncia70. E

    entre os grupos sociais que estiveram relacionados a esse processo de mestiagem e de

    insero da mo de obra compulsria negra est situado o clero secular, membros da Igreja

    diretamente subordinados aos bispos e responsveis pela administrao dos sacramentos

    populao colonial. Isso ocorria na medida em que esses clrigos administravam os

    sacramentos aos escravos, inserindo-os na sociedade crist portuguesa, e tinham relaessexuais com negras e mestias gerando descendentes mestios.

    Uma das obrigaes dos senhores de escravos era garantir que seus cativos tivessem

    acesso aos sacramentos. Pois a escravizao era uma forma de incorporao ao Imprio

    portugus e de acesso verdadeira f71, assim os membros do clero secular ou diocesano,

    67Idem. p. 99.68CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife (1822-1850). 2. ed.

    Recife: Ed Universitria UFPE, 2010. p. 257-261.69

    SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). SoPaulo: Companhia das Letras, 1988. p. 40.70GRUZINSKI, op. cit., 2001. p. 78.71MATTOS, op. cit., 2010, p. 145.

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    desempenhavam um papel fundamental dentro desta dinmica de incluso dos negros no

    sistema colonial ao oferecer-lhes os sacramentos. E medida que as diversas naesoriundas

    da frica e os crioulos eram incorporados sociedade que surgia na Amrica portuguesa, eles

    passavam a necessitar cada vez mais desse grupo de presbteros.

    Um exemplo o caso das irmandades de negros e pardos. Essas instituies, que

    exerciam funes assistencialistas como o auxlio aos irmos pobres, doentes e presos e

    realizavam enterramentos, procisses, missas e festas72, tinham em geral um padre capelo,

    clrigo secular, como integrante indispensvel para que pudesse cumprir a funo social a

    qual se propunha. Segundo a pesquisadora Janana Santos Bezerra, ao se referir irmandade

    do Livramento