(2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

46
PESSOA.tex 7894 2010-12-08 17:12:26Z oliveira -- page 1 -- Autor PESSOA Título TEATRO DO ÊXTASE

description

prefácio

Transcript of (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

Page 1: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii PESSOA.tex 7894 2010-12-08 17:12:26Z

oliveira -- page 1 -- ii

ii

ii

Autor PESSOA

Título TEATRO DO ÊXTASE

Page 2: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii PESSOA.tex 7894 2010-12-08 17:12:26Z

oliveira -- page 2 -- ii

ii

ii

2

Copyright Hedra 2013Edições consultadas Teresa Rita Lopes. Fernando

Pessoa et le drame simboliste:héritage et création. 2oed.Foundation Calouste Gulbenkian:Centre Cultural Portugais, 1985.Poemas Dramáticos. FernandoPessoa. (Notas explicativas deEduardo Freitas da Costa). Lisboa:Ática, 1952.

Agradecimento Jaime K. WadaCorpo editorial Adriano Scatolin,

Alexandre B. de Souza,Bruno Costa, Caio Gagliardi,Fábio Mantegari, Felipe C. Pedro,Iuri Pereira, Jorge Sallum,Oliver Tolle, Ricardo Musse,Ricardo Valle

DadosDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H331 Pessoa, Fernando (1888–1935)Teatro do êxtase. / Fernando Pessoa.Introdução e organização de Caio Gagliardi.– São Paulo: Hedra, 2010. 130 p.

ISBN 978-85-7715-148-6

1. Literatura Portuguesa. 2. Poesia. 3. Drama.4. Teatro. . Título. . Fernando Pessoa(1888–1935).

CDU 869CDD 869.0

Elaborado por Wanda Lucia Schmidt CRB-8-1922

Direitos reservados em línguaportuguesa somente para o Brasil

EDITORA HEDRA LTDA.Endereço

R. Fradique Coutinho, 1139 (subsolo)05416-011 São Paulo SP Brasil

Telefone/Fax +55 11 3097 8304E-mail [email protected]

Site www.hedra.com.brFoi feito o depósito legal.

Page 3: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii PESSOA.tex 7894 2010-12-08 17:12:26Z

oliveira -- page 3 -- ii

ii

ii

Autor PESSOA

Título TEATRO DO ÊXTASE

Organização CAIO GAGLIARDI

São Paulo 2013

hedra

Page 4: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

PRETAS.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 4 -- ii

ii

ii

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 1888–id., 1935) éo mais importante poeta português do século XX. Aos seteanos, muda-se com a mãe para Durban, na África do Sul, ondeé alfabetizado na língua inglesa. Em 1905, retornadefinitivamente para sua cidade natal e ingressa na Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa. Começa a publicar textosde crítica na revista A águia, em 1912, e a colaborar em jornaise revistas, sendo a principal delas a Orpheu. Cria osheterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis,o “semi-heterônimo” Bernado Soares e o ortônimo “Pessoaele-mesmo”. Durante sua vida publicou em livro apenasMensagem (1934). Trabalhou em Lisboa como tradutor e“correspondente estrangeiro” de casas comerciais. Falece emdecorrência de uma cirrose hepática aos 47 anos, nesta mesmacidade.

Teatro do êxtase reúne cinco peças de Fernando Pessoa,concebidas como poemas dramáticos e destinadas mais àleitura do que à encenação. O marinheiro (1915), único dramapublicado em vida, foi incluído no primeiro número da revistaOrpheu e figura, juntamente com Fausto, como sua peça maisimportante. Definida pelo próprio autor como um “dramaestático”, a obra de matriz simbolista apresenta o diálogo entretrês mulheres que velam o corpo de uma donzela, semnenhuma referência histórica. A morte do príncipe remonta aHamlet, de Shakespeare. Trata de um príncipe que alcança,através de sua viagem delirante pelos arcanos da própria alma,uma espécie de êxtase visionário, que o leva a afirmar que aúnica realidade reside no sonho, isto é, não na própria vida,mas no teatro da vida. Diálogo no jardim do palácio guardareferências platônicas, no que diz respeito à reflexão sobre oamor e à dicotomia entre corpo e alma. Salomé insere-se narica tradição de leituras do tema bíblico da mulher fatal, aoapresentar o delírio da executora de São João Batista diante desua cabeça decepada. Sakyamuni, por sua vez, representa aascensão de Siddhartha Gautama ao estado de iluminação, emque passa a ser reconhecido como Buda. As peças aquireunidas são provavelmente as mais acabadas dentre os muitosfragmentos deixados por seu autor, e apresentam como eixocomum a concepção pessoana de “êxtase”.

Page 5: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

PRETAS.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 5 -- ii

ii

ii

5Caio Gagliardi é professor do Departamento de Letras Clássicase Vernáculas da Universidade de São Paulo, na área deLiteratura Portuguesa; mestre e doutor em Teoria e HistóriaLiterária pela UNICAMP e pós-doutor em Teoria Literária pelaUSP. É também pesquisador da obra de Fernando Pessoa eeditor do site Crítica & Companhia.

Page 6: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

PRETAS.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 6 -- ii

ii

ii

Page 7: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

PRETAS.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 7 -- ii

ii

ii

SUMÁRIO

Introdução, por Caio Gagliardi 9

TEATRO DO ÊXTASE 47

O marinheiro 49

A morte do príncipe 73

Diálogo no jardim do palácio 87

Salomé 99

Sakyamuni 113

Page 8: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 8 -- ii

ii

ii

Page 9: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 9 -- ii

ii

ii

9INTRODUÇÃO

FERNANDO PESSOA planejou uma grande obra tea-tral, antes concebida para ser lida do que encenada.Embora tenha escrito mais de trinta peças em por-tuguês e em inglês, em prosa e em verso, a suaquase totalidade foi deixada inacabada e desconhe-cida do grande público. Em algumas anotações doautor a respeito dessa fração menos conhecida desua obra, encontramos registrada a expressão “Tea-tro d’êxtase”, que emprestamos a esta edição.

Não há uma listagem completa das peças quecomporiam esse conjunto, mas é certo que a pala-vra “êxtase” identifica uma característica comum àsque aqui estão reunidas: nelas, há sempre um mo-mento em que as personagens parecem encarnar afigura do sonhador visionário, que viaja, através deconjecturas, para além do real imediato, deixando-se absorver por um estado de consciência indepen-dente de toda e qualquer ação externa. O substan-tivo “êxtase” (do grego ekstasis) refere-se a um es-tado da alma absorta na contemplação de Deus edo mundo sobrenatural, definição que condiz, demodo mais ou menos direto, com os enredos daspeças, em que há sempre uma forma de intuição ouvidência que é atribuída a uma de suas personagens.Ainda do ponto de vista psicanalítico – que não era

Page 10: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 10 -- ii

ii

ii

10

INTRODUÇÃO

estranho a Pessoa –, “êxtase” é um estado nervosocaracterizado pela perda da consciência da própriaexistência, o que sintetiza bem, como veremos maisadiante, um dos momentos de O marinheiro, a prin-cipal peça que integra este conjunto.

DAS PEÇAS QUE INTEGRAM ESTA EDIÇÃOO marinheiro foi a única peça publicada em

vida por Pessoa. Foi com ela, aliás, que seu au-tor, até então mais conhecido pelo leitor portuguêscomo polemista e crítico literário, estreou no pri-meiro número da revista Orpheu, a publicação maisimportante do modernismo em Portugal. SegundoPessoa, a peça teve uma primeira versão em 1913(conforme a data que acrescenta ao seu final), e foirevisada até a sua publicação, em 1915. Além disso,O marinheiro antecipa com especial habilidade ar-tística aspectos marcantes da poética pessoana, den-tre os quais o processo de despersonalização dramá-tica, da qual resulta a heteronímia. Devido à suaimportância central para o conjunto da obra de Fer-nando Pessoa – embora não fosse demasiado afir-mar, para a história do teatro em língua portuguesa–, optamos por dedicar-lhe um estudo exclusivo.

Além de O marinheiro, reúnem-se aqui outrosquatro dramas, A morte do príncipe, Diálogo no jar-dim do palácio, Salomé e Sakyamuni.¹

¹Esses textos são, na sua origem, manuscritos e fragmentosdatilografados encontrados em folhas dispersas, incluindo algunsexemplares da revista A águia. Muitas dessas páginas não foram

Page 11: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 11 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

11

Frontspício do n. 1 da revista Orpheu

Page 12: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 12 -- ii

ii

ii

12

INTRODUÇÃO

A morte do príncipe recebeu encenações em Por-tugal e na Argentina, e foi adaptada para o cinemaem 1991, com o mesmo título e sob direção deMaria de Medeiros. Trata-se de um texto pratica-mente acabado, que remete aos monólogos de Ham-let, de Shakespeare, mas com fortes ecos de Mal-larmé: “Todo este universo é um livro em que cadaum de nós é uma frase”. Difícil não projetar sobre apersonagem “X” a figura de Horácio, fiel amigo deHamlet. O tom de certas passagens de teor metalin-guístico é o mesmo atingido por trechos análogosdo Livro do desassossego. A exemplo das demaispersonagens das peças aqui reunidas, o príncipe al-cança, através de sua viagem delirante pelos arca-nos da própria alma, uma espécie de êxtase visioná-rio, de crise perceptiva, que o leva a afirmar que aúnica realidade reside no sonho, isto é, não na pró-pria vida, mas no teatro da vida: “As princesas queeu sonhei é que existem. . . As da terra são apenasas bonecas com que as outras brincam, vestindo-as,corpo e alma, a seu modo. . . ” Entre os fragmentosque foram reunidos para recompor a peça, duas pá-ginas foram datilografadas no verso de um panfleto

identificadas pelo autor, e, à margem do texto, Pessoa deixouanotadas variantes para muitos termos que empregou, o que revelaseu estágio ainda inacabado. Todo esse material foi transcrito,coligido e ordenado pela crítica portuguesa Teresa Rita Lopes, sema qual a expressão “o teatro de Pessoa” teria uma dimensão bemmais restrita do que a atual. Com exceção ao Fausto, texto escritodurante toda a vida literária de seu autor, as peças aqui publicadassão aquelas que apresentam melhor acabamento formal.

Page 13: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 13 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

13em defesa de Raul Leal, atacado por uma organiza-ção de estudantes, “Sobre um Manifesto de Estudan-tes”, escrito em abril de 1923. Além disso, TeresaRita Lopes transcreveu uma folha datilografada quetraz a data de 05–10–1932. Embora dialogada, todaa cena se passa como se fosse um monólogo.

Diálogo no jardim do palácio é também umapeça aparentemente concluída, que guarda fortesecos dos diálogos platônicos, especificamente noque tange a reflexão sobre o amor e a dicotomia en-tre corpo e alma. Como acontece com as demaispeças aqui publicadas, este diálogo entre duas per-sonagens, apenas indicadas por A e B, é um inter-lúdio temporal, uma espécie de suspensão cronoló-gica em que o eu se observa cindido em dois, re-fletindo sobre a tópica do amabam amare (amar oamor), de Santo Agostinho, e antecipando a refle-xão mais sistemática que Pessoa realizaria no âm-bito “sensacionista”:Há grandes interiores de continentes dentro de nós, com mis-térios a desvendar. Quem sabe, amor, se raças diferentes dasnossas habitarão esses sítios desconhecidos (inexplorados)?Habituei-me sempre a olhar para as minhas sensações comopara uma coisa exterior.

Parte do texto foi escrita à mão em algumas pá-ginas de um dos números da revista A águia, de1913. Este diálogo foi representado em conjuntocom as outras peças aqui mencionadas, em Portu-gal e no Brasil.

Com Salomé, Pessoa insere-se na rica tradição

Page 14: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 14 -- ii

ii

ii

14

INTRODUÇÃO

Manuscrito feito sobre a edição da revista A águia

Page 15: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 15 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

15de releituras do tema bíblico da mulher fatal, quepovoa o imaginário cultural dos finais do séculoXIX. Apontada como executora de João Batista, noNovo Testamento, Salomé foi retratada na pintura deMoreau, na ópera de Strauss e na literatura de au-tores como Flaubert, Mallarmé, Wilde, Huysmanse Laforgue. A peça que Fernando Pessoa nos le-gou, e na qual alcança inaudita suspensão onírica, éuma das menos conhecidas entre as releituras queo mito bíblico inspirou. Embora fragmentada, a Sa-lomé de Pessoa já ganhou os palcos, além de ter setransformado em ópera de câmara em seu país deorigem. Uma das páginas desse drama foi manus-crita no verso de uma carta datada de 9 de março de1914.

Finalmente, Sakyamuni é uma espécie de ence-nação budista que pertenceria a um conjunto de trêspeças, das quais conhecemos somente um outro tí-tulo, Calvário, esta centrada na figura de Cristo.Sakyamuni retoma o processo de ascensão do prín-cipe do Himalaia, Siddhartha Gautama (566–468a.C.), a Sakyamuni, ou seja, o sábio do clã Shakya, eposteriormente sua iluminação, a partir da qual pas-sou a ser chamado de Buda. O termo Boddhisattvaera usado pelo Buda para se referir a si mesmo emtodo o período anterior à sua iluminação, incluindosuas vidas anteriores. “Buda” foi, inclusive, um tí-tulo cogitado por Pessoa para esse drama. Sem indi-cação de data, a peça nos sugere interessante clavede leitura para o vertiginoso processo de desperso-

Page 16: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 16 -- ii

ii

ii

16

INTRODUÇÃO

nalização poética em que resultou a heteronímia:“Tornado a Diversidade Absoluta, o Abismo Puro,morrerás de ti próprio. E tudo será o Nirvana atin-gido, e o Fim [dourado] da Estrada”.

O ESPAÇO PRIMORDIAL DO DRAMA EMO M A R I N H E I R O

Pessoa definiu O marinheiro como um dramaestático. A expressão, em voga entre autores france-ses do fim do século XIX, revela a existência de umaforte identidade entre sua peça e o teatro simbolistados anos 1890, no qual, amiúde, os diálogos não sãosenão intervalos que preparam o leitor para as pau-sas e os longos silêncios, e em que a encenação apre-senta forte apelo simbólico. Assim como sucedeucom o romance, o teatro simbolista foi responsávelpor superar as convenções naturalistas de represen-tação. Não se tratava, ao contrário do que se podepensar, de uma experiência de ruptura, pura e sim-plesmente; o “théatre statique”, tal como referidopor seus epígonos de língua francesa, antes de de-signar um gênero, teria sido uma qualidade própriadas grandes peças da Antiguidade Clássica. Parao principal nome do teatro desse período, o belgaMaurice Maeterlinck, a maior parte das tragédiasde Ésquilo são “tragédies immobiles”. Mas o protó-tipo desse tipo de drama é Hamlet, de Shakespeare.A seu respeito, não é impreciso afirmar que os mo-nólogos interiores de seu protagonista provocaram

Page 17: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 17 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

17verdadeiro fascínio no imaginário simbolista.² Emsíntese, o drama simbolista conferiu à imobilidadeo status de valor próprio das grandes peças.

Segundo Robert Bréchon, com o seu drama Oscegos (1890), Maeterlinck forneceu a O marinheiroseu “modelo formal da ação dramática”.³ TeresaRita Lopes, autora do mais importante trabalho so-bre a relação de Pessoa com o drama simbolista, re-vela que a biblioteca do poeta, hoje hospedada naCasa Fernando Pessoa, em Lisboa, contém a maisconhecida peça de Maeterlinck, Les Aveugles, pro-fusamente anotada. Para a pesquisadora, a identifi-cação de influências não deve sugerir, contudo, umarelação de dívida com o teatro simbolista, uma vezque O marinheiro supera, enquanto realização for-mal e em densidade psicológica, seus modelos ime-diatos.

Outra característica que o drama simbolista em-prestou a O marinheiro é a sublevação das persona-gens com relação às suas falas. Em outras palavras,no drama simbolista as personagens parecem sem-pre menos importantes do que as palavras que enun-ciam. Elas, por vezes, chegam mesmo a se espantarcom o que dizem. Esse traço é marcante em autorescomo Mallarmé e Hofmannsthal, que, nas palavras

²M. Maeterlinck. Le Trésor des Humbles. Apud Teresa RitaLopes. Fernando Pessoa et le drame simboliste: héritage et créa-tion. Lisboa, Paris, Foudation Calouste Gulbenkian: Centre Cultu-rel Portugais, 1985, p. 17.

³Robert Bréchon. Estranho estrangeiro. Rio de Janeiro: Re-cord, 2000. pp. 176–7.

Page 18: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 18 -- ii

ii

ii

18

INTRODUÇÃO

de Anna Balakian, cultivaram o “poder mágico dapalavra”.⁴ O que talvez seja axial nessa concepçãode teatro é sua aproximação com a poesia, gêneroem que as palavras apresentam especial densidade.Algumas peças de Yeats, por exemplo, são deriva-ções de seus poemas, o que é um dado representa-tivo da ausência de fronteiras bem demarcadas entreos gêneros. Afinal, tratava-se já de um teatro líricode ruptura com as convenções do drama, cujo tomsepulcral delegava à morte seu papel simbólico cen-tral.

Num manuscrito, provavelmente de 1914, Pes-soa formula essa sua concepção de teatro:Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático nãoconstitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem,porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem--se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir umaação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-áque isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatrotende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatroé, não a ação nem a progressão e consequência da ação –mas, mais abrangentemente, a revelação das almas atravésdas palavras trocadas e a criação de situações [. . . ]. Podehaver revelação de almas sem ação, e pode haver criaçãode situações de inércia, momentos de alma sem janelas ouportas para a realidade.⁵

O quarto, onde transcorre O marinheiro, tem o

⁴Anna Balakian. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985,p. 109.

⁵Fernando Pessoa. Páginas de estética e de teoria e críticaliterárias. 2ª. ed., org. de Georg Rudolf Lind e Jacinto do PradoCoelho. Lisboa: Ática, 1973, p. 112.

Page 19: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 19 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

19formato circular, a exemplo do palco grego, cujocentro, destinado ao plano terrestre da representa-ção, é também esférico. No centro do quarto, porsua vez, no alto de uma mesa, há um caixão ondejaz uma donzela de branco. Não sabemos quem elafoi, que relação teve com suas veladoras, tampoucoquando e em que lugar se situa esse castelo. A indi-cação isolada de que ele é antigo se apresenta comoindício de uma ancestralidade mítica, isto é, de quea cena se passe fora do tempo histórico. Estamosdiante de um drama imemorial, portanto, cujo pre-núncio já se revela em sua primeira fala, “Ainda nãodeu hora nenhuma”, e perpassa todo o texto, “Quemsabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemosa hora que é?”. A vigília das três donzelas – não poracaso identificadas como “veladoras” – assume jáum caráter alegórico no drama, por atuar como me-táfora da existência. Daí a ancestralidade que é pró-pria, afinal, do leitmotiv, do seu motivo condutor: amorte ocupa o centro do quarto e do drama, e as ve-ladoras, à sua volta, como Sherazade para escapara ela, conversam, contam histórias, suspendendo aphysis, a realidade ou seu fim natural. Exemplaré, por isso, a fala da segunda veladora: “Conte-mos contos umas às outras. . . Eu não sei contosnenhuns, mas isso não faz mal. . . Só viver é quefaz mal. . . ”. “Navegar é preciso, viver não é pre-ciso”, afirmará Pessoa mais tarde. Eis um dos frutossemeados por O marinheiro em sua poética.

Curiosamente, esse caráter mítico da peça não

Page 20: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 20 -- ii

ii

ii

20

INTRODUÇÃO

impede, ao contrário do que se poderá supor, queela respeite a lição aristotélica da unidade de espaçoe de tempo: o drama pessoano apresenta tanto dura-ção definida – transcorre no período de uma madru-gada – quanto, como se disse, espaço demarcado –a torre de um castelo. Além disso, chama a atençãoo fato de a tragédia antiga nunca apresentar mais doque três personagens contracenando, exatamente onúmero de donzelas em O marinheiro. Os trage-diógrafos antigos observavam a regra de não falaruma quarta personagem numa mesma cena, con-forme vem registrado no preceito de Horácio, naepístola aos Pisões, “nec quarta loqui persona la-boret” literalmente “e uma quarta personagem nãose empenhe em falar”.⁶ No Agamêmnon, de Sêneca,por exemplo, no último ato, Cassandra, embora otempo todo presente em cena, junto com Clitemnes-tra, Egisto e Electra, só fala depois que esta últimase retira, levada para o exílio.⁷ Em O marinheiro, aquarta personagem está morta.

Ao que parece, existe nesse drama um jogo dedefinições e indefinições que não pode ser despre-zado.

Embora tenha sido produzido em prosa, O ma-rinheiro é permeado de um lirismo sugestivo, cinze-lado por pausas e reticências. Associado a ele, a sen-

⁶Horácio. Arte poética. Ed. bilíngue. Trad. R. M. RosadoFernandes. Lisboa: Clássica, s. d. v. 193.

⁷Sêneca, Agamêmnon. Intro., trad. e org. de José EduardoLohner. São Paulo: Globo, 2009.

Page 21: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 21 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

21sação de irrealidade acompanha sua leitura, como seuma leve bruma encobrisse a cena única, toldando--a com uma atmosfera de sonho, própria da sonda-gem psicológica presente nos diálogos. Essa atmos-fera carrega também algo de sinistro. Isso porquea condução do drama é análoga à de um suspensemetafísico: em mais de um momento das falas daspersonagens, algo parece estar para ser revelado, ea previsão dessa descoberta causa-lhes espanto e te-mor.

Vem a propósito desse comentário um impor-tante trecho escrito em inglês por Pessoa, traduzidopelo crítico José Augusto Seabra, no qual o escritorsublinha o caráter trágico da peça e revela seu juízoespecialmente positivo sobre o desenlace:Começando de uma forma muito simples, o drama evoluigradualmente para um cume terrível de terror e de dúvida,até que estes absorvem em si as três almas que falam e aatmosfera da sala e a verdadeira potência do dia que está paranascer. O fim da peça contém o mais sutil terror intelectualjamais visto. Uma cortina de chumbo tomba quando elasnão têm mais nada a dizer uma às outras nem mais nenhumarazão para falar.⁸

A ausência de demarcação do tempo históricoda cena está associada à sensação de irrealidade queela produz em seu leitor e nas próprias personagens.Estas, por seu turno, não compõem um conflito; ao

⁸Apud José Augusto Seabra. Fernando Pessoa ou o poeto-drama. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 31. O trecho vem re-produzido no original segundo a edição da Obra poética da NovaAguilar.

Page 22: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 22 -- ii

ii

ii

22

INTRODUÇÃO

invés de agirem, apenas conversam, e seus diálo-gos são prolíficos em conjecturas existenciais. Asfalas das veladoras, a certa altura da peça, deixamde demarcar espaços de enunciação distintos ou deidentificar as personagens, para confundi-las umascom as outras. Ganha força a sensação no leitor deque essas vozes não se prendem a um corpo defi-nido. À medida que a leitura avança, as veladorasse evanescem, desmaterializam-se enquanto perso-nagens, e as falas, já incorpóreas, e sem referênciano espaço e no tempo, deixam transparecer o tommonocórdio do texto. O diálogo se enfraquece aponto de se remodular em uníssono, e as três vo-zes convergem, finalmente, num monólogo. A par-tir de então, a leitura já não é a de um drama que sepassa na torre de um castelo, mas dentro da mentehumana. Das veladoras, embora ainda identifica-das como enunciadoras, resta apenas o espectro, e apeça, como que nos convidando à releitura, permiteentrever sua imagem latente: de uma única perso-nagem em conversa consigo mesma. Eis o espaçoprimordial desse drama.

Uma plaquette ou o mais alto grau do sonho Em1915, Fernando Pessoa já havia escrito alguns dosseus principais poemas, incluindo parte importanteda poesia heteronímica. Dentre um conjunto notá-vel de textos, Pessoa escolhe O marinheiro para fi-gurar como seu primeiro texto publicado na Orpheu,a revista que inaugura o modernismo em Portugal, ecertamente a mais genuinamente pessoana delas. A

Page 23: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 23 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

23Orpheu veicula também, mais adiante, dois textosantológicos de Álvaro de Campos, a “Ode triunfal”e “Opiário”, embora estes poemas não façam partede um plano original de publicação, tendo sido in-cluídos na revista sob a justificativa de preencherespaço. O fato de o autor de O marinheiro tê-loescolhido, depois de submetê-lo a profunda reela-boração, para compor o primeiro número da revistaOrpheu, dá mostras, afinal, do especial apreço quenutria por seu “drama estático”. A julgar pelo fron-tispício da revista, que traz o desenho de José Pa-checo, de uma jovem nua sobre um fundo azul eentre duas grandes velas (uma veladora?), não é di-fícil imaginar o valor que a peça de Pessoa teve paraos leitores da Orpheu e, por extensão, para o moder-nismo português de modo geral.

Sua leitura, não por acaso, permite a fácil identi-ficação de alguns dos temas mais caros à poesia dePessoa: as dúvidas existenciais; a intuição de que avida é sonho; o desdobramento da voz; a clivagemdo eu num espaço aberto entre aquele que sente eaquele que pensa, ou entre aquele que pensa e quediz; o fado da autoconsciência; o adiamento pelosono.

Embora seja um drama, e como tal já tenhaocupado palcos em diferentes países, todas as en-cenações de O marinheiro ocorreram após a mortede seu autor. Na verdade, seu texto não foi es-crito para ser encenado, tanto é que Pessoa procu-

Page 24: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 24 -- ii

ii

ii

24

INTRODUÇÃO

rou publicá-lo em revista, sem cogitar a montagem,considerando-o como um “poema dramático”.

Pessoa diz tê-lo escrito na noite de 11 para 12 desetembro de 1913. Mas o texto foi publicado pelaprimeira vez dois anos depois, na Orpheu, n. 1 (Lis-boa, 1915). A esse respeito, o autor observa ainda,numa carta enviada ao poeta e companheiro de ge-ração Armando Côrtes-Rodrigues, que, entre a datada escrita e a da publicação de seu drama, submeteu--o a uma profunda revisão, deixando-o bastante di-ferente do que era em sua versão original; em suaspalavras:O meu drama estático “O marinheiro” está bastante alteradoe aperfeiçoado; a forma que v. conhece é apenas a primeira erudimentar. O final, especialmente, está muito melhor. Nãoficou, talvez, uma coisa grande, como eu entendo as coisasgrandes; mas não é coisa de que me envergonhe, nem – creio– me venha a envergonhar.⁹

Aquilo que motivou tal revisão, e que é, por-tanto, determinante na composição do texto de quedispomos, foi o fato de Álvaro Pinto, diretor da re-vista A águia, ter se recusado a publicar O mari-nheiro, em 1914, numa plaquette, ou seja, num pe-queno folheto encadernado. Após esta rejeição e adecorrente revisão do texto, a peça sairia não maisnuma publicação de teor saudosista, mas no númerode estreia da mais importante revista modernista de

⁹Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 4 de março de 1915. In:Fernando Pessoa – Correspondência 1905–1922. Org. de ManuelaParreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 159.

Page 25: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 25 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

25

Desenho reproduzido na capa da revista Orpheu, n. 1.

Page 26: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 26 -- ii

ii

ii

26

INTRODUÇÃO

seu país, o que faz pensar no quão decisiva deve tersido essa recusa na depuração da peça.

A bem dizer, a recusa de Álvaro Pinto em pu-blicar a peça numa plaquette do grupo da Renas-cença Portuguesa, do qual A águia era o órgão prin-cipal, foi o último episódio relevante de um afasta-mento progressivo do poeta com relação ao gruposaudosista. A ruptura tardaria até o fim daquele anopara acontecer, mas se observarmos com atenção,já o seu texto anterior publicado na revista, “Nafloresta do alheamento”, sai com atraso de um nú-mero, o que se documenta em carta de Pessoa aseu editor nos seguintes termos: “O ‘Na floresta doalheamento’ será ultraexcessivo, em matéria de re-quinte, para que achem prudente que A águia o in-sira? Diga-mo francamente.”¹⁰

Esse texto, que é um dos primeiros fragmentosdo Livro do desassossego, naquele momento assi-nado com o próprio nome do poeta (não existia,ainda, Bernardo Soares), apresenta uma atmosferadecadente, tematiza o tédio e a inquietude existen-cial, e representa muito pouco o projeto renascente.Pessoa procurava desfiar, a partir de uma sensaçãosua, a realidade interior, convertendo-a, através deimagens complexas, numa paisagem exterior. Em-bora ainda com ares decadentes, nesse momento sedelineia pela obra de Pessoa uma concepção que

¹⁰Carta a Álvaro Pinto, Lisboa, 29 de julho de 1913. In: Fer-nando Pessoa – Correspondência 1905–1922. Op. cit., 1999,p. 100.

Page 27: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 27 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

27permanecerá muito sólida, e que o acompanhará atéos últimos poemas: “Quem quisesse resumir numapalavra a característica principal da arte modernaencontra-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. Aarte moderna é arte de sonho.”¹¹

Esse novo modo de encarar a arte, que se afirmareiteradamente tanto na prosa teórica de Pessoaquanto na do Livro do desassossego (“Sonharé encontrarmo-nos. Vais ser o Colombo da tuaalma.”¹²), despertava no próprio poeta a consciênciado quão distante ele já se encontrava das diretri-zes saudosistas. Por esse motivo, quando Pessoaantecipa a Álvaro Pinto o envio próximo de O mari-nheiro, já tem, se observarmos com atenção, plenaconsciência de que a peça não poderia sair em Aáguia:Dentro em pouco, mandar-lhe-ei, para a Renascença, casoqueira editar, um escrito meu – uma peça em um ato, dumgênero especial a que eu chamo estático. Claro está queo meu amigo com toda a franqueza me dirá, depois de lera peça, se convém realmente editá-la. Exijo, e não meofenderei com uma recusa – uma franqueza absoluta.

A peça formará uma mera plaquette. Não lha remeto

¹¹O manuscrito em que Pessoa faz essa afirmação é, segundoos organizadores do volume, provavelmente de 1913, o mesmoano de escrita de O marinheiro. Em Fernando Pessoa. Páginas deestética e de teoria e crítica literárias, op. cit., p. 153.

¹²Bernardo Soares. Livro do desassossego, org., intro. e notasde Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 440.

Page 28: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 28 -- ii

ii

ii

28

INTRODUÇÃO

para A águia porque para esse fim é, além de extensa, vaga-mente imprópria.¹³

Ao julgar que sua peça é imprópria para o órgãosaudosista, Pessoa se mostra ciente de que seu novoescrito anuncia caminhos inauditos não apenas parao conjunto de sua obra, como para a literatura deseu país. O que parece estar no gérmen dessa des-coberta é a concepção de que a tão obstinadamenteperseguida “nova literatura” encerra a investigaçãoda própria alma do criador. É ainda em “Na florestado alheamento” que esse novo caminho vem anun-ciado, pouco depois concretizado em O marinheiro:O mais alto grau do sonho é quando, criado um quadro compersonagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo – somostodas essas almas conjunta e interativamente. É incrível ograu de despersonalização e encinzamento do espírito a queisto leva e é difícil, confesso-o, fugir a um cansaço geral detodo o ser ao fazê-lo. . . Mas o triunfo é tal!¹⁴

Pessoa passaria então a levar às últimas con-sequências a concepção de que a única realidadepara si é ele próprio, e a investigar as leis de suapersonalidade através da tomada de consciência dosprocessos mentais através dos quais se dão o conhe-cimento, as emoções e as sensações, e, sobretudo,a refletir sobre como eles são convertidos em arte.A literatura irá adquirir tal importância nesse pro-cesso, que Pessoa assumirá que não sente, senão li-

¹³Carta a Álvaro Pinto, Lisboa, 25 de maio de 1914. Op. cit.,p. 116.

¹⁴Bernardo Soares. Livro do desassossego. Op. cit., p. 444.

Page 29: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 29 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

29terariamente, que é poeta em período integral, e que,portanto, o eu individual não está em lugar algum:ele é muitos e nenhum ao mesmo tempo:Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sintoé (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sen-tiu. O que penso está logo em palavras, misturado comimagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outracoisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tantopensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei--me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não,sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claroa negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que mecontempla contemplá-lo.¹⁵

Marinheiro – Mensageiro Em O marinheiro, asveladoras dizem não poder capturar o presente – emconstante transição –, o passado – que não é maisque um sonho – e o futuro – que sumirá ao raiardo dia. Essa imaterialidade aparentemente absurdasó não resulta no nada absoluto porque há a voz,único substrato de existência, o corpo irredutível dodrama (a palavra – as veladoras não são mais doque isso), que paira numa atmosfera não exatamenteonírica ou real, mas que se situa no não-espaço entresonho e realidade:

PRIMEIRA — [. . . ] Quando virá o dia?

TERCEIRA — Que importa? Ele vem sempre da mesma ma-neira. . . sempre, sempre, sempre. . .

(uma pausa)

SEGUNDA — Contemos contos umas às outras. . . [. . . ] Neste

¹⁵Ibid., p. 201.

Page 30: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 30 -- ii

ii

ii

30

INTRODUÇÃO

momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pen-sar que o podia estar tendo. . . Mas o passado – por que nãofalamos nós dele?

PRIMEIRA — Decidimos não o fazer. . . Breve raiará o dia earrepender-nos-emos. . . Com a luz os sonhos adormecem. . .O passado não é senão um sonho. . . De resto, nem sei o quenão é sonho. . . Se olho para o presente com muita atenção,parece-me que ele já passou. . .

Por ser a voz o modo de existência no drama, asegunda veladora, que por vezes desempenha o pa-pel de corifeu, de narradora, conta seu sonho a res-peito de um marinheiro perdido numa ilha longín-qua. Impossibilitado de voltar ao seu lugar de ori-gem, ele, por sua vez, sonha ter vivido numa outrapátria, que constrói, dia a dia, pela imaginação. Aospoucos, o marinheiro se torna capaz de enxergar aspaisagens, as ruas, as cidades, pode percorrê-las, re-conhecer as pessoas que ali viveram, seu passado esuas conversas, o lugar onde nasceu, onde passouas diferentes fases da vida, e os companheiros queteve. Mas eis que, num dia de muita chuva, cansa--se de sonhar, quer se lembrar da pátria verdadeira,da meninice que teve, e então isso lhe parece impos-sível, nada lhe vem. Não pode nem ao menos suporter vivido uma outra vida, porque a única que tevepassara a ser realmente a vida que sonhara.

A introdução do sonho do marinheiro na peçaremonta à origem da tragédia, que se baseiaem antigas lendas que atravessavam os séculos,perpetuando-se pela tradição oral. O sonho do

Page 31: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 31 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

31marinheiro carrega consigo uma espécie de auramítica em torno da criação, cujo cerne reside natransposição do plano da imaginação para o da rea-lidade. Mais do que uma interpenetração de planos,trata-se aqui de se considerar o imaginário comofundador do real. Essa concepção é fulcral parao “projeto civilizacional” que Pessoa traça em suaobra: para ele, o Quinto Império português seriaum “império de poetas”, que se ergueria através doreconhecimento do valor de sua língua, cuja formade manifestação mais elevada seria a sua poesia. Afunção da heteronímia neste auspicioso plano seriaa de dar a Portugal os poetas que lhe faltavam. Àparte o interesse que esse projeto desperta a respeitoda megalomania de seu criador, saliente-se o seu as-pecto central: a fundação de uma realidade, de umapátria, pela palavra. Não é a história que cria, sãoas lendas. O sonho do marinheiro pode nos remeter,por exemplo, à lenda popular segundo a qual Lisboateria sido fundada pelo herói grego Ulisses (outromarinheiro). “Olissipona” seria já a corruptela deOlissipo, que significa “a cidade de Ulisses”. Opróprio Pessoa registra no aforismo de abertura deum de seus poemas mais célebres, “Ulisses”, a re-fundição da realidade pelo mito: “O mito é o nadaque é tudo”. O livro em que este poema se encontra,Mensagem (marco final, e portanto diametralmenteoposto a O marinheiro, do percurso poético pes-soano) é, por sua vez, a construção de um mito a

Page 32: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 32 -- ii

ii

ii

32

INTRODUÇÃO

entrar pela realidade, a exemplo do sebastianismo,que o atravessa do começo ao fim.

O que é mais real? Qual é o estatuto da reali-dade? Ainda no poema “Ulisses”, lê-se:

Este que aqui aportouFoi por não ser existindoSem existir nos bastou.

Uma vez incorporada ao folclore, a lenda setorna realidade. O sonho do marinheiro representa,portanto, um papel-chave na peça, ao se revelar aná-logo à mais larga utopia de seu autor. A pátria de so-nho substitui na peça a pátria real: “Todo este paísé muito triste. . . ”, afirma a segunda veladora. Ora,se o marinheiro sonha com uma pátria oposta à real,referida pela veladora com a expressão “este país”,o que de fato ela vela senão “este país”? A mortanão será já a pátria portuguesa?

A fala da segunda veladora prossegue: “Aquele(país) onde eu vivi outrora era menos triste”. Esse“outrora” apresenta uma densidade específica napoesia de Pessoa. Trata-se de um passado onírico,isto é, um produto presente da imaginação, algo quefoi sem nunca ter sido. O passado em Pessoa é umade suas principais máscaras; traz, em síntese, esserevestimento de realidade vivida, sobre um mioloque se compõe da mesma matéria dispersa do so-nho.

Álvaro de Campos, outro “marinheiro” célebrede Pessoa – mas, notemos bem, um marinheiro emsonho, que na sua fase mais estridente, da colos-

Page 33: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 33 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

33sal “Ode marítima”, singra os oceanos sem real-mente sair do cais – também constrói sua utopianum espaço-tempo arquetípico, resgatado de umideal “outrora”:

Ah, quem sabe, quem sabe,Se não parti outrora, antes de mim,Dum cais; se não deixei, navio ao solOblíquo da madrugada,Uma outra espécie de porto?Quem sabe se não deixei, antes da horaDo mundo exterior como eu o vejoRaiar-se para mim,Um grande cais cheio de pouca gente,Duma grande cidade meio-desperta,Duma enorme cidade comercial, crescida,

[ apopléctica,Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e

[ do Tempo?¹⁶

Na “Ode marítima”, a exemplo do que ocorreem O marinheiro, o sonho de um porto infinito, deum cais absoluto, sempre projetado para um pas-sado primordial, “antes da hora”, se delineia atravésde calafrios e arroubos da consciência de Campos,de modo similar aos rompantes das veladoras, quea todo momento questionam o estatuto da própriafala. Esse sonho do marinheiro, de uma ilha “lon-gínqua”, remete já à “Distância Absoluta”, ao “PuroLonge, liberto do peso do Atual”, que confere den-sidade arquetípica ao poema de Campos. Em am-

¹⁶Álvaro de Campos. “Ode marítima”, in: Obra poética. Riode Janeiro: Nova Aguilar, 1966, pp. 315–16. O grifo é nosso.

Page 34: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 34 -- ii

ii

ii

34

INTRODUÇÃO

bos os textos, há uma voz absoluta que atua sobreseus protagonistas como o canto das sereias, o cha-mamento das águas: em Campos, o grito surdo egutural do marinheiro Jim Barns; na peça, o própriosonho do marinheiro, que hipnotiza as veladoras. Oeu lírico Álvaro de Campos sonha-se marinheiro, epara ele, como para Pessoa, a segunda veladora pa-rece apontar quando afirma sobre o marinheiro dapeça: “Toda a sua vida tinha sido a sua vida que so-nhara. . . ”. Analogamente, no poema lemos: “A mi-nha alma está com o que vejo menos”. Essa ânsiacomum pelo ancestral confere aos textos o sentidomais vasto de uma expedição psíquica. De resto, ouniverso marítimo, tanto na peça quanto no poema,recompõe leituras da infância de Pessoa, como de Ailha do tesouro, de Robert Louis Stevenson.

Essas considerações se devem ao alto grau deconotação que o advérbio “outrora” desempenha napeça, cujo papel é, em síntese, o de compor fora doeu sua vida interior. Essa leitura não suplanta, con-tudo, uma importante referência histórica que, apro-ximada ao corpo do texto, mostra-se especialmenterelevante.

O país em que a veladora diz ter vivido “ou-trora” é já, provavelmente, um Portugal anterior àprofunda crise política que marca a infância de Pes-soa em Lisboa. Na última década do século XIX,Portugal passa por uma de suas maiores humilha-ções internacionais, o Ultimatum inglês, de 1890.A Inglaterra exige, sob pena de invadir o país, que

Page 35: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 35 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

35o rei retire suas tropas da região do Xire, na África,o que acarreta, com fortes ecos culturais, uma gravecrise de identidade e orgulho próprio em sua popula-ção. Analogamente, a volta de Pessoa à terra natal,após receber durante nove anos uma formação tradi-cionalmente inglesa, em Durban, na África do Sul,situa-se pouco antes do regicídio de 1908, isto é, dobrutal assassinato do rei D. Carlos e do príncipe her-deiro por um fanático republicano, e pela decorrenteproclamação da República, em 1910.

Além disso, vale a pena considerar que entre osepisódios de 1890 e 1910, a infância e juventude dopoeta estão longe de ser o éden, o “outrora” proje-tado em seus poemas (Pessoa diz sentir saudade da“criança feliz que nunca fui”). A passagem por esseperíodo, a bem dizer um calvário familiar, deixa-lheprofundas cicatrizes, causadas por uma sequênciatrágica de acontecimentos, ocorridos até seus trezeanos: a morte do pai, Joaquim de Seabra Pessoa, amudança de casa, com a maior parte de seus benstendo sido leiloados, a morte de seu irmão, Jorge,a morte da avó materna, a internação da outra avó,Dionísia, sob o diagnóstico de demência, devido àssuas atividades mediúnicas, a despedida da terra na-tal e a morte da irmã, Madalena, antes de completartrês anos.

Esses elementos históricos e biográficos não ex-plicam, evidentemente, a peça. Apenas podem serindiretamente referidos a ela. Sua internalização emO marinheiro, particularmente na passagem “Todo

Page 36: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 36 -- ii

ii

ii

36

INTRODUÇÃO

esse país é muito triste. . . ”, associada ao registroque lhe é próprio (segundo o qual as personagensnão são nomeadas ou caracterizadas), conduz a umaabertura de sentidos. Dessa perspectiva, a donzelamorta, mistério mudo, corpo velado até o raiar deuma nova manhã (de uma renascença, portanto),apresenta notável analogia com o cadáver de Portu-gal, especificamente a pátria da infância de Pessoa.

Essa leitura da peça, que a situa, no itineráriopoético de Pessoa, como linha de partida de Mensa-gem, confirma-se no seu desfecho, em que a terceiraveladora, com uma voz “muito lenta e apagada”,anuncia: “Ah, é agora, é agora. . . Sim, acordoualguém. . . Há gente que acorda. . . Quando entraralguém tudo isto acabará. . . ”.

O arremate em tom de anúncio é analogamentemarcante em Mensagem. Em seu poema final, “Ne-voeiro”, que identifica a atmosfera dispersa e bru-mosa da peça, a imagem de um país em decadênciaé claramente retomada:

Ninguém sabe que coisa quer.Ninguém conhece que alma tem,Nem o que é mal nem o que é bem.¹⁷

É significativo considerar que entre 1910 e 1928,a data de escrita desse poema, a sociedade portu-guesa passou por uma profunda crise de valores di-ante do forte clima de revanchismo e turbulênciapolítico-social. Após o já referido assassinato do

¹⁷Fernando Pessoa. Mensagem. Org., intro., posf. e glossáriode Caio Gagliardi. São Paulo: Hedra, 2007, p. 118.

Page 37: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 37 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

37rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Felipe, o as-sassinato do presidente Sidónio Pais, em 1918, e ogolpe militar de 1926 tornam ainda mais aguda acrise nacional. Em “Nevoeiro” lê-se:

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,Define com perfil e serEste fulgor baço da terraQue é Portugal a entristecer.¹⁸

O mesmo triste país referido pela segunda vela-dora em O marinheiro é aqui retomado.

Na peça, o raiar do dia substitui o Portugal do“hoje és Nevoeiro”¹⁹ pelo Portugal do “poder ser”.²⁰A intuição da veladora, “Ah, é agora, é agora. . . ”,continua a ser ouvida em Mensagem, como uma pa-ronomásia lançada a O marinheiro, no seu versomais profético e, muito significativamente, derra-deiro: “É a hora!”. Não acidentalmente, a chegadadesse “novo dia” põe fim ao velório e arremata apeça. O tempo arquetípico de O marinheiro é o da“Antemanhã”, título de um poema da parte final deMensagem, tempo do prenúncio, da “madrugada donovo dia”.

O marinheiro (1915) e Mensagem (1934) identi-ficam as duas pontas da linha utópica que se desen-rola pelo percurso poético pessoano.

A quinta pessoa O dia começa a raiar e tanto ailha do marinheiro quanto o quarto com as vela-doras parecem-lhes igualmente irreais. Não será

¹⁸Ibid., p. 118.¹⁹Ibid., p. 118.²⁰“Tormenta”, em Mensagem, op. cit, p. 115.

Page 38: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 38 -- ii

ii

ii

38

INTRODUÇÃO

tudo sonho? Pela fala da segunda veladora: “Tal-vez nada disto seja verdade. . . Todo este silêncioe esta morta, e este dia que começa não são tal-vez senão um sonho. . . Olhai bem para tudo isto. . .Parece-vos que pertence à vida?. . . ”. E então o ca-ráter ficcional do sonho narrado se inverte. O pavorcriado pela hipótese de não existirem, de tudo nãopassar de poeira dos sonhos, recai sobre as velado-ras: “Por que não será a única coisa real nisto tudoo marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um so-nho dele?”. Eis um dos momentos-chave para secompreender a peça.

Na medida em que o que garante a permanên-cia das veladoras no mundo é a fala, estranhar aprópria voz significa questionar a existência. Essequestionamento ganha consistência no drama comhorror crescente, como se houvesse uma mão oculta,uma “quinta pessoa” (além das três donzelas e docorpo velado) guiando suas falas. São muitos ostrechos que alimentam esse estranhamento: “Entremim e a minha voz abriu-se um abismo”; “Agoraestranho-me viva com mais horror”; “E parecia-meque vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeiseram três entes diferentes, como três criaturas quefalam e andam”; “Dói-me o intervalo que há entreo que pensais e o que dizei. . . A minha consciên-cia boia à tona da sonolência apavorada dos meussentidos pela minha pele. . . ”; “Oh, que horror, quehorror íntimo nos desata a voz da alma, e as sen-sações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e

Page 39: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 39 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

39pensar quando tudo em nós pede o silêncio e o diae a inconsciência da vida. . . ”.

É com esse arrepio da consciência que tocamoso cerne da peça – e porventura da obra de Pessoa–, assim identificado, em outro contexto, por JoséAugusto Seabra: “a desintegração da linguagemnuma pluralidade de linguagens (o poemodrama),do sujeito numa pluralidade de sujeitos (o poeto-drama)”.²¹

Pessoa traça aqui o processo de desprendimentodo eu de si mesmo, como uma consciência boiandosobre a sensação, e das sensações sentindo, por-tanto, a sós, apostasiadas, isto é, desvinculadas deuma mente e de um corpo. Em retrospectiva, o des-dobramento heteronímico parece prefigurado. EmO marinheiro esse desdobramento traduz-se aber-tamente como reflexão profunda a respeito de umtema que é obsessivamente perseguido nas diferen-tes instâncias da obra: o mistério do ser. De modosimilar, o paradoxo da escrita reside na impossibili-dade de se fixar uma unidade existencial: quando oescritor diz “eu”, quem é o eu que fala? Essa cliva-gem, que é própria da enunciação, é obsessivamenteretomada na peça.

Uma das leituras mais radicais deste drama (em-bora muito breve) é realizada pelo escritor italianoAntonio Tabucchi, que se afasta da habitual apro-ximação feita pela crítica com os dramas simbolis-

²¹José Augusto Seabra. Fernando Pessoa ou o poetodrama.Op. cit., p. 31.

Page 40: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 40 -- ii

ii

ii

40

INTRODUÇÃO

tas, e entende O marinheiro como uma charada sha-kespeariana que exibe o centro dramático,²² ou, sepreferirmos, a metalepse (a transposição de planosficcionais) da escrita pessoana: o problema de setraduzir uma ficção por outra ficção – a vida, quenão passa de um sonho, pela literatura, o teatro.

Tabucchi não desenvolve essa leitura, mas sepode considerar que toda a obra de Pessoa é vazadapor essa voz em surdina, esse coro da consciênciarefletindo os passos de seus protagonistas. Nessesentido, estaremos diante de um texto de alcancemetalinguístico, no qual, possivelmente, a quintapessoa pressentida no quarto (“Quem é a quintapessoa neste quarto que estende o braço e nos in-terrompe sempre que vamos a sentir?”) é o próprioautor – lembrando, é claro, que o autor no texto ésempre uma persona, uma criação. O tônus poéticoque Pessoa já manifesta em sua peça não é de natu-reza diversa ao do drama grego, a dizer, a interaçãocrítica entre o coro, mantenedor da voz da razão, ea personagem. O primeiro, a observar e interpre-tar a ação, atua como uma consciência intromissivasobre a sensação, como se ele fosse um espectadorideal do próprio drama.

Em O marinheiro, não estarão as veladoras pres-tes a romper a bolha que as separa do mundo não--ficcional? Não serão elas, a exemplo do espetaculardrama heteronímico, personagens em busca de um

²²Antonio Tabucchi. Pessoana mínima: escritos sobre FernandoPessoa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

Page 41: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 41 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

41autor? Isto é, em busca daquele que as conduz, quedita suas vozes. “Quem é que nos faz continuar fa-lando?”, indaga uma delas. E a consciência da outralhe insufla de uma vida que parece já não ser a deseu autor: “Que estranha que me sinto!. . . Parece--me já não ter a minha voz. . . Parte de mim adorme-ceu e ficou a ver. . . ”. Não estaremos, neste pontoexato, na iminência de desatar o nó górdio da repre-sentação: a transformação de uma personagem emautor?

Personagens, portanto, em quem a busca por umautor conduz a uma condição mais especial: a do en-contro com a própria autoria, do autor em si – autorde si.

A aproximação do drama a Seis personagens àprocura de um autor, de Pirandello, é profícua aessa leitura. À pergunta “Quem é que nos faz con-tinuar falando?”, Pirandello parece fornecer inequí-voca resposta.

O marinheiro, que é “sonho de um sonho” – queé fruto da imaginação da segunda veladora, que, porsua vez, é fruto da imaginação do poeta –, quandocomeça a sonhar, produz uma nova realidade, umaterceira dimensão, portanto, que é seu próprio pas-sado. Acrescente-se a esse tema, aqui já tratado,que essa construção do passado, que só passa aexistir no momento da lembrança (uma lembrançaimaginária, portanto), Pessoa condensou com o bri-lho característico na expressão “outrora agora”, no

Page 42: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 42 -- ii

ii

ii

42

INTRODUÇÃO

poema “Pobre velha música!”.²³ Também em “Lis-bon revisited (1923)”²⁴ lemos “Lisboa de outrora dehoje”. Em O marinheiro, cerca de uma década an-tes da escrita desses poemas, à pergunta da segundaveladora, “Éreis feliz, minha irmã?”, a primeira res-ponde: “Começo neste momento a tê-lo sido ou-trora. . . ”. Na poesia de Pessoa, conforme anteci-pado na fala da primeira veladora, “O passado nãoé senão um sonho. . . De resto, nem sei o que não ésonho”.

Essa mudança de estatuto do real na peça, de umpassado que nunca existiu, porque apenas se tornarealidade quando é lembrado no presente, decorre,em síntese, da seguinte metamorfose: o marinheiro,de sonhado torna-se sonhador; de personagem mi-gra para o lado do autor.

Enunciador similar ao marinheiro pode ser iden-tificado em Mensagem, no poema “As ilhas afortu-nadas”:

Que voz vem no som das ondasQue não é a voz do mar?É a voz de alguém que nos fala,Mas que, se escutamos, cala,Por ter havido escutar.

É agora o marinheiro, produto do sonho, quemnarra. Feito isso, Pessoa inverte papéis e polos re-ferenciais: a aparência ilusória de verdade, a “ver-dade fingida” que se encontra no plano das velado-

²³Fernando Pessoa. Obra poética. Op. cit., p. 141.²⁴Álvaro de Campos. Obra poética. Op. cit., p. 357.

Page 43: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 43 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

43ras, torna-se menos real do que aquilo que o mari-nheiro sonhou (do sonho – do marinheiro – dentrodo sonho – da segunda veladora – dentro do sonho –do próprio autor). Assim, a pátria sonhada torna-seuma ficção mais verdadeira do que a anterior.

A feliz e, de certo, insuperável síntese desse im-bricamento mútuo, Pessoa nos legou ainda muitocedo, em um trecho do seu “Na floresta do alhea-mento”: “E assim nós morremos a nossa vida, tãoatentos separadamente a morrê-la que não repara-mos que éramos um só, que cada um de nós era umailusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero ecodo seu próprio ser. . . ”.²⁵

A vida é sonho. E este problema tão pessoanoestá, afinal, e segundo Tabucchi, já explícito no te-atro de Shakespeare. Quando Pessoa declara “Allmy books are books of reference. I read Shakespe-are only in relation to the Shakespeare Problem: therest I know already”,²⁶ faz menção a um problemaque é tanto seu quanto do autor inglês – e, de resto,de toda a literatura.

Claro está, portanto, que O marinheiro apre-senta, ainda que de modo velado, uma forte refle-xividade discursiva, que se manifesta tanto no níveldo enunciado (nos momentos em que as persona-gens se questionam) como no nível da enunciação(nos momentos em que essas vozes se confundem

²⁵Bernardo Soares. Livro do desassossego. Op. cit., p. 457.²⁶Fernando Pessoa. Páginas íntimas de autointerpretação.

Op. cit, pp. 20–1. Apud. Tabucchi, Antonio. Op. cit., p. 88.

Page 44: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 44 -- ii

ii

ii

44

INTRODUÇÃO

com uma instância elocutória exterior à estrutura dapeça, isto é, a voz autoral). Ler (mas sobretudo re-ler) O marinheiro consiste, assim, na engenhosa ta-refa de se descobrir véus por trás de véus, caixasdentro de caixas (a exemplo das matrioskas, as bo-necas russas feitas de madeira oca, que englobamumas às outras), teatros espelhando teatros. Lê-lo éjá, portanto, cair num abismo (mise en abyme) exis-tencial, do qual transborda a consciência absoluta-mente ativa e lúdica de seu autor.

Em O marinheiro, o teatro assume o estatuto demetáfora mais ampla do jogo ilusório a que se des-tina o conhecimento de categorias outrora transpa-rentes, tornadas instáveis na modernidade: o autore a personagem, a identidade e a alteridade, a fic-ção e a realidade. Aqui, esses pares aparecem nãoapenas indistintos, como trocados.

No conjunto da obra de Pessoa, O marinheiroé uma primeira tentativa de traduzir, no plano doteatro, o teatro da vida.

Talvez não seja mero acaso que no ano seguinteà sua escrita esse drama notável tivesse sido suce-dido por outro ainda mais vertiginoso, o da hetero-nímia.

NOTA À EDIÇÃOOs textos aqui publicados, além de revisados,

foram adaptados para o português falado no Bra-sil, o que não alterou o texto original, a não ser

Page 45: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 45 -- ii

ii

ii

CAIO GAGLIARDI

45pela supressão do efeito de estranhamento que al-guns empregos específicos poderiam provocar. En-tre as adaptações realizadas estão a substituição de“cousa” por “coisa”, a exclusão do “c” mudo emcasos como “abstracto”, a eliminação do hífen emcasos como “há-de”, a supressão ou a substituiçãodo acento agudo em ocorrências como “amámos”e “prémio”, a eliminação do pronome em “até ao”(pouco usado no Brasil, mas padronizado em Por-tugal), e a substituição de “de mais” por “demais”,quando advérbio. Sempre que a ocorrência resultouem efeito expressivo, tal como o uso da letra mi-núscula sucedendo o ponto final, o emprego do hí-fen em casos como “pela porta todas-as-portas”, e ainexistência de vírgula antes da adversativa “mas”,manteve-se a escrita original.

A ordenação dos textos, por sua vez, não obe-dece a um critério cronológico, dada a impossibili-dade de o fazer, tampouco a algum outro critériorígido, por não se tratar aqui de uma edição crí-tica. Os trechos em que a transcrição foi impossí-vel ou duvidosa estão marcados, respectivamente,por [. . . ] e [?], e a opção por colocar o restantedo nome dos personagens entre colchetes quandono original só aparecia a primeira letra (como, porexemplo, S[alomé]) foi do primeiro editor e aquimantida. Optamos, ainda, por incluir no final daspeças os fragmentos soltos, referentes ao diálogo,mas sem arrumação do autor.

Page 46: (2013) Teatro Do Êxtase - Intro (C.gagliardi)

ii

INTRO.tex 6337 2010-04-28 17:07:57Z jorge -- page 46 -- ii

ii

ii

46

INTRODUÇÃO

BIBLIOGRAFIA

BALAKIAN, Anna. O simbolismo, São Paulo, Perspectiva, 1985.

BRÉCHON, Robert. Estranho estrangeiro, Rio de Janeiro, Record,2000.

HORÁCIO, Arte poética. Ed. Bilíngue. Trad. de R. M. RosadoFernandes. Lisboa: Clássica, s.d.

LOPES, Teresa Rita. Fernando Pessoa et le drame simboliste: héri-tage et création. 2oed. Foundation Calouste Gulbenkian: CentreCultural Portugais, 1985.

PESSOA, Fernando. Correspondência 1905–1922. Org. de ManuelaParreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

——. Mensagem, org., intro., posf. e glossário por Caio Gagliardi.São Paulo, Hedra, 2007.

——. Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1966.

——. Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, 2ª. ed.,org. de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa,Ática, 1973.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama, SãoPaulo, Perspectiva, 1974.

SÊNECA, Agamêmnon, trad., intro., posf. e notas por José EduardoLohner, São Paulo, Globo, 2009.

SOARES, Bernardo. Livro do desassossego, org., intro. e notas porRichard Zenith, São Paulo, Companhia das Letras, 2006.

TABUCCHI, Antonio. Pessoana mínima: escritos sobre FernandoPessoa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.