2013_A Dimensão Parodica No Verso Oswaldiano Tese USP
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA
EDUARDO BORGES CIABOTTI
S me interessa o que no meu:
a dimenso pardica do verso oswaldiano em Pau Brasil
So Paulo
2013
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA
EDUARDO BORGES CIABOTTI
S me interessa o que no meu:
a dimenso pardica do verso oswaldiano em Pau Brasil
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Literatura Brasileira. rea de Concentrao: Literatura Brasileira Orientadora: Profa. Dra. Therezinha A. P. Ancona Lopez
So Paulo
2013
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Deferncias e agradecimentos
Para a concretizao da presente dissertao de mestrado, deve-se fazer uma justa
meno s duas edies de Pau Brasil utilizadas: a primeira delas trata-se da tese de
doutoramento em Literatura Brasileira de Dila Zanotto Manfio, Poesias Reunidas de Oswald
de Andrade: edio crtica, apresentada, em 1992, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Roberto de Oliveira
Brando. Nela, a autora perfaz trabalho minucioso, merecedor do apreo de qualquer
estudante da obra de Oswald de Andrade e no qual se expurgam quaisquer elementos que
porventura tenham alterado os textos poticos do autor, recuperando-os, integralmente, em
sua forma original. A outra tambm digna da expresso de toda considerao e respeito, foi
implementada com pesquisa, estabelecimento de texto e reviso de Gnese Andrade e
superviso editorial de Jorge Schwartz consiste na edio de Pau Brasil elaborada pela
Editora Globo, abrilhantada com a incluso dos artigos Uma potica da radicalidade, de
Haroldo de Campos, e Oswald de Andrade: Pau Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925, de Mrio
de Andrade. Se esses dois artigos se antagonizam, revelando ticas distintas sobre o livro de
poesias de Oswald de Andrade, contribuem para enriquecer a perspectiva sobre a obra de
Oswald de Andrade bem como a fortuna crtica do legado modernista para com a literatura e a
cultura brasileira.
Ademais, igualmente foroso mencionar aqueles autores cujas obras, alm de
integrarem a bibliografia constante da parte final do trabalho, foram mais significativas e
nortearam criticamente o presente trabalho, por isso -lhes, assim, confessadamente tributrio
(como se no bastassem as inmeras aspas a eles concedidas, que, no corpo da dissertao,
contam-se pela grande quantidade de notas de rodap a eles dedicadas!). So eles: Linda
Hutcheon, Srgio Buarque de Holanda, Umberto Eco, Lucia Helena, Maria Augusta Fonseca,
Affonso Romano de SantAnna. Bakhtin? J est no ar.
Agradeo, inicialmente, a todos integrantes do Departamento de Letras Clssicas
e Vernculas da FFLCH/USP, notadamente aos funcionrios da Secretaria de Ps-Graduao
que, por e-mail ou pessoalmente, sempre educada e profissionalmente informavam sobre
documentos, prazos e demais expedientes administrativos. Tambm dignos de nota foram o
suporte e a pacincia dos integrantes da Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH/USP.
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Agradeo, igualmente, aos Profs. Drs. Annie Gisele Fernandes e Jos Horcio
Almeida Nascimento Costa que, no primeiro semestre de 2010, ministraram a disciplina O
poema moderno: leitura e intersees, em cujas leituras, anlises e discusses foram
fundamentais para o aprofundamento intelectual do presente trabalho. No segundo semestre
daquele mesmo ano, os tambm Profs. Drs. Eliane G. Lousada e Manoel Luiz Gonalves
Corra ministraram, respectivamente, as disciplinas Reflexes e prticas sobre o ensino-
aprendizagem de gneros textuais em lngua estrangeira e sobre a produo escrita
universitria e Portugus como lngua materna que renderam dois trabalhos que
fomentaram interessantes subsdios para esta dissertao. Em decorrncia da escassez de
oferecimento de disciplinas no mbito da crtica e da histria literria atinentes ao presente
projeto de pesquisa, optou-se, quando da deciso de se cursar as duas ltimas disciplinas, pelo
aprofundamento terico ainda que por um vis lingustico sobre os conceitos de
intertextualidade, polifonia e dialogismo, caractersticos da obra de Mikhail Bakhtin,
contemplados nas referidas disciplinas e afeitos ao presente trabalho.
Sou tambm grato s Profas. Dras. Ana Paula Andrade e Maria Augusta Fonseca
pelas importantes orientaes dadas por ocasio do exame de qualificao. Profa. Dra. Ana
Paula, agradeo pelas riqussimas sugestes bibliogrficas e Profa. Dra. Maria Augusta
alm da importante e notria contribuio para a fortuna crtica de Oswald de Andrade, j
mencionadas aqui e na bibliografia da dissertao pelo esprito encorajador, determinante
para a concretizao desta dissertao.
Por fim, agradeo eternamente orientao da Profa. Dra. Therezinha A. P.
Ancona Lopez que, licenciando-se do universo de Mrio de Andrade, no apenas aceitou
orientar o desenvolvimento do projeto de pesquisa que resultou no presente trabalho, mas
tambm, paciente e sabiamente, durante nossos encontros e nossa farta troca de e-mails,
ofereceu suporte de toda ordem e suavizou algumas das angstias do seu orientando
oswaldiano.
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S me interessa o que no meu1:
a dimenso pardica do verso oswaldiano em Pau Brasil
Sumrio
Resumo, p. 5
Abstract, p. 6
1 Diagnstico e teraputica, p. 7
2 Oswald de Andrade, autor da Histria do Brasil, p. 35
3 Pardia ready made, p. 63
4 Paradoxalmente moderno, p. 78
Bibliografia, p. 90
1 Trecho de um aforismo do Manifesto Antropfago. In: FONSECA, Maria Augusta. Por que ler Oswald de Andrade. So Paulo: Globo, 2008, p. 67.
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Resumo
O presente trabalho analisa as motivaes, os alcances e os efeitos da pardia em alguns
poemas de Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade. Inicio a dissertao com um painel
constitudo de reflexes acerca de algumas formas de arte contemporneas a Pau Brasil,
responsveis por uma radical reestruturao no modo de conceber o texto literrio, para, a
seguir, situar a pardia entre essas prticas artsticas. Busco, assim, caracterizar a insero de
Oswald de Andrade e do modernismo brasileiro no vis pardico das vanguardas artstico-
literrias europeias do incio do sculo XX. no contexto moderno da autorreferncia e
autolegitimao que a pardia se estabelece enquanto eficaz efeito metalingustico e se mostra
como profcuo mecanismo de investigao crtica acerca do processo de produo, recepo e
(re)interpretao de textos (e de obras de arte em geral). Radical provocadora de mudanas de
expectativas e de perspectivas, a pardia se articula com o projeto artstico moderno,
possibilitando o questionamento de (pre)conceitos e uma (re)viso de determinados elementos
artsticos e, consequentemente, dos papis desempenhados por eles. A pardia serve de
articulao entre arte e histria e no se faz adequar a posturas idealizantes e/ou classizantes.
A partir dessa conjuntura, a potica do movimento modernista brasileiro incluiu tambm,
entre os preceitos da nova esttica, uma aproximao crtica de obras do passado por meio do
emprego da pardia. Ciente do seu passado e do seu presente, o projeto literrio de Oswald de
Andrade priorizou e incorporou parodicamente os discursos literrio, histrico, poltico,
religioso etc, atravs de uma aguda e conscienciosa reelaborao lingustico-literria. A
pardia na obra de Oswald de Andrade, por um lado, faz jus revoluo esttica que o
movimento modernista trouxe cultura brasileira e, por outro, torna possveis ponderaes
acerca de inovaes radicais no cdigo literrio brasileiro da primeira metade do sculo XX.
Por meio da utilizao pardica de textos histricos e literrios em Pau Brasil e do uso de
diferentes discursos e registros da lngua portuguesa, Oswald de Andrade restaura a histria e
a literatura brasileira, da carta de Pero Vaz de Caminha contemporaneidade do poeta. E
ainda assinala, com saborosa argcia, a diversidade e a disparidade socioeconmica do
habitante nacional.
Palavras-chave: pardia; Oswald de Andrade; Pau Brasil; modernismo; autorreferncia;
autolegitimao
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Abstract
The present work examines the motivations, reaches, and effects of the parody of some poems
from Oswald de Andrades Pau Brasil (1925). I start this dissertation with a panel composed
of reflections about some art forms, contemporary to Pau Brasil, responsible for a radical
restructuring in the way literary text is conceived, and I then place parody inside these artistic
practices. I try, in this way, to characterize the insertion of Oswald de Andrade and of the
Brazilian Modernism in the parodic bias of European artistic avant-gardes of the early 20th
century. It is in the modern context of self-referencing and self-legitimation that parody
establishes itself as an efficient metalinguistic effect, and that it shows itself as an useful
mechanism of critical investigation about the process of production, reception and
(re)interpretation of texts (and works of art in general). As a radical that provokes expectation
and perspective changes, parody articulates itself with modern artistic project, allowing the
questioning of concepts (and prejudices) and a (re)view of certain artistic elements and,
consequently, of the roles played by them. Parody is used as an articulation between art and
history, and it does not adjust itself to idealistic and/or classist positions. From this
conjuncture, the poetics of the Modernist Brazilian movement also included, among other
precepts of the new aesthetics, a critical approach to the works of the past through the use of
parody. Aware of his past and of his present, Oswald de Andrades literary project prioritized
and incorporated, parodically, the literary, historical, political, and religious speeches, among
others, through an acute and conscientious linguistic and literary re-elaboration. Parody, in
Oswald de Andrades work, both does justice to the aesthetic revolution brought to the
Brazilian culture by the Modernist movement, and enables considerations about radical
innovations in the early-20th-century Brazilian literary code. Through the parodic utilization
of historical and literary texts in Pau Brasil, and through the use of different discourses and
registers of the Portuguese language, Oswald de Andrade restores the Brazilian history and
literature, from Pero Vaz de Caminhas letter to the poets contemporaneity. He also notes,
with pleasant subtlety, the diversity and socio-economic disparity of the national inhabitant.
Key-words: parody; Oswald de Andrade; Pau Brasil; Brazilian modernism; self-referencing;
self-legitimation
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1 Diagnstico e teraputica
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Na contemporaneidade, a onipresena do metadiscurso e da autorreferncia,
decorreria, segundo Linda Hutcheon2, do carter reflexivo de diferentes searas modernas de
representao do conhecimento, externando o que a crtica canadense caracteriza como um
fascnio pela capacidade desses sistemas de expresso cientfico-culturais aludirem a si
mesmos ao se darem a conhecer por meio de um discurso intrnseco acerca dos prprios
fundamentos.
Assim que, na Lingustica, no incio do sculo XX, Ferdinand de Saussure3
props um conceito de estudo e anlise da lngua no qual ela seria estruturada em um sistema
de relaes no consciente para os falantes, mas cuja expresso, uma vez observada e
generalizada, poderia levar identificao dessa mesma estrutura.
Na Lgica Matemtica, por sua vez, o Teorema de Incompletude, de Kurt Gdel,
sugere, em 1931, que as formulaes axiomticas da Teoria dos Nmeros incluem
proposies que no podem ser avaliadas como falsas ou verdadeiras dentro do prprio
sistema. A ideia de Gdel, portanto, foi valer-se do raciocnio matemtico para explorar o
prprio raciocnio matemtico4.
Em meio a esses sistemas que se pretendem autoestruturados, diversidade de
manifestaes artsticas produzidas no transcorrer de todo o sculo XX, deve-se incluir,
tambm, obras como a de pintores como Maurits Escher e Ren Magritte.
Nos desenhos do pintor holands, figuras entrelaadas e repetidas, formadoras de
padres geomtricos, permitem ver a si prprias e, de certa forma, pensar a si mesmas,
instituindo, deste modo, a possibilidade de se tornarem autoconscientes:
2 HUTCHEON, Linda. Uma teoria da pardia: ensinamentos das formas de arte do sculo XX. Traduo de Teresa Louro Prez. Lisboa: Edies 70, 1985, pp. 11-12. 3 In: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingustica geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaborao de Albert Riedlinger. Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 5.ed. So Paulo: Cultrix, 2005. 4 HOFSTADTER, Douglas. Gdel, Escher, Bach: um entrelaamento de gnios brilhantes. Traduo de Jos Viegas Filho. Braslia: Editora Universidade de Braslia; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 18.
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Escher: Waterfall 5 Escher: Mosaic II6
O pintor surrealista belga Magritte, de seu turno, em La trahison des images
hoje tornado um cone pop , ao escrever Ceci nest pas une pipe embaixo da figura de um
cachimbo, perverte ironicamente a forma medievo-barroca imagem, ttulo e mote.
Magritte: La trahison des images (Ceci nest pas une pipe)7, 1928-29, de Ren Magritte.
Uma proposio que contrape uma reproduo visual ao seu respectivo signo
verbal e de cuja contraposio deriva, ainda de acordo com Linda Hutcheon8, entre s
implicaes tericas das formas de arte modernas, a crescente desconfiana de uma avaliao
5 Extrada de HOFSTADTER, Douglas. Op. cit., p. 12. 6 Extrada de HOFSTADTER, Douglas. Ibidem, p. 69. 7 Extrada de MEURIS, Jacques. Ren Magritte 1898-1967. Colnia: Taschen, 1999, p. 120. 8 HUTCHEON, Linda. Op. cit., p. 11.
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exterior a elas mesmas, razo pela qual teriam procurado incorporar um comentrio analtico
s suas prprias estruturas.
Uma desconfiana que teria recrudescido de tal maneira a ponto de impor a
destruio da prpria representao artstica que a constitui: por um vis oposto ao do
deslumbramento contemporneo pela autorreferncia levantado por Hutcheon, Davi Arrigucci
Jr., no livro O escorpio encalacrado: a potica da destruio em Julio Cortzar, comparou
o estgio da criao literria ocidental do incio do sculo XX at aqueles dias ao
comportamento do aracndeo que, uma vez encurralado, ferroa mortalmente a si prprio.
Nesse livro em que o autor avalia, especialmente, a questo dos limites de uma
estirpe da literatura moderna que radicalizou a autoconscincia da linguagem e de seus meios
expressivos na anlise dos contos El perseguidor e Las babas del diablo e do romance
Rayuela, o crtico brasileiro destaca o mpeto escorpinico do escritor argentino para com a
destruio da literatura como forma e condio primeira para a prpria escrita da literatura.
No captulo A destruio anunciada", em que Arrigucci examina "El
perseguidor", conto fundamentado na figura e na biografia do msico de jazz Charlie Parker,
obtm-se elementos para a discusso do processo de destruio do artista mergulhado em sua
lgica autofgica e, concomitantemente, do jazz como paradigma de criao. Por conseguinte,
torna-se modelo para a linguagem literria: Linguagem com mpetos de morder a realidade, a
msica aqui uma linguagem do desejo, do desejo que no se satisfaz nunca, que persegue
sempre, que se arrisca na busca incessante at a beira da desintegrao.9
Em "A destruio visada", captulo dedicado anlise de "Las babas del diablo"
(conto em que Michelangelo Antonioni se baseou para fazer o filme Blow up), leva-se a
questo da destruio da narrativa a um impasse, colocando em xeque a prpria capacidade de
expresso da linguagem:
[...] no plano da enunciao, ainda o fotgrafo, desdobrado em narrador ou narradores busca a forma adequada de contar a histria que, paradoxalmente parece impedi-lo de contar; no plano da interpretao, o leitor, desnorteado e envolvido no duplo sentido, deslinde que lhe prope a leitura dessa narrativa problemtica, busca refazer os itinerrios do sentido. Assim, o que aqui se enreda diante dos olhos do leitor e acaba, de certo modo, por enred-lo tambm, ao exigir a participao dele nas dificuldades da prpria narrao, a narrativa de uma busca e, ao mesmo tempo, uma busca de uma narrativa.10
9 ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpio encalacrado: a potica da destruio em Julio Cortzar. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.196. 10 IDEM, ibidem, p. 228.
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Finalmente, em "A destruio arriscada", Arrigucci avalia a potica implcita no
romance Rayuela. Nesse captulo, Cortzar, segundo o crtico, desmonta irnico-criticamente
a linguagem, conduzindo ao extremo o processo dialtico de destruio e construo sinttica
do discurso narrativo e, com isso, faz evidenciar que [...] a obra , declaradamente, a potica
de si mesma11.
Na verdade, a quebra da sucesso linear da narrao, no apenas por inverses ou interseces temporais, j corriqueiras na fico contempornea, mas por uma atomizao caleidoscpica do relato em partculas recombinveis segundo diferentes direes de leitura, constitui uma desmontagem concreta da forma tradicional de narrar e o aspecto mais evidente da inovao estrutural da obra.12
O que teria contribudo, ento, para que essa vertente literria, da qual Cortzar
faz parte, optasse por se expandir internamente e se tornasse um terreno mais frtil para
avanos formais e, no caso do autor argentino, to drsticos e contundentes?
Affonso Romano de SantAnna13 assinala que a especializao da arte levou os
artistas a dialogarem no com a realidade aparente das coisas, mas com a realidade da prpria
linguagem, ressaltando que entre jornalismo e literatura teria ocorrido um deslocamento
equivalente quele assinalado por Walter Benjamin sucedido entre pintura e fotografia: a
popularizao e o desenvolvimento tcnico desta liberaram aquela para avanos formais.
Pode-se aventar, assim, no que tange literatura, que, esse dilogo (monlogo?)
com as suas prprias formas de expresso seria efeito da concorrncia com o jornal e,
posteriormente, com o cinema e com a televiso. Dessa disputa decorreria uma
desqualificao da linguagem literria para com a prospeco ontolgica da representao da
realidade e da adequao entre a subjetividade do conhecimento e os fatos ou eventos
objetivos que deflagraram esse conhecimento.
No se ignora que, na transformao de um acontecimento em notcia, a prtica
jornalstica possa registrar formas literrio-narrativas e que a realidade em uma notcia pode
ser construda e adquirir tal condio a de verdade como consequncia do prprio
trabalho jornalstico.
Com apoio na abordagem sociolgico-interpretativa da notcia que pressupe
no haver regras sociais claras delineadoras dos fatos que meream ser publicados e, por isso,
11 ARRIGUCCI JR., Davi Op. cit., p. 262. 12 IDEM, ibidem, p. 269. 13 SANTANNA, Afonso Romano de. Pardia, parfrase & Cia. 4.ed. So Paulo: tica, 1991, p. 8.
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enfatiza o papel dos informadores e das organizaes informativas no desenvolvimento da
conscincia social acerca daquilo que deva ser noticiado , a sociloga americana Gaye
Tuchman afirma que os atributos que um acontecimento possui para ser suficientemente
interessante a ponto de se converter em notcia variam de um momento para o outro.
Ela cita como exemplo a contingencial deciso dos editores estabelecerem os itens
que integraro ou no as primeiras pginas dos jornais. A pesquisadora americana salienta que
a notcia no funciona como um espelho da sociedade, mas, sim, contribui para comp-lo
como um fenmeno social compartilhado, definindo e moldando esse acontecimento, de
modo anlogo forma como notcias das manifestaes feministas modernas tinham tachado
a fase heroica do movimento de atos de ridculas bra burners14.
Ideologia, discurso, interpretao e representao so, portanto, alguns dos
importantes conceitos interpostos entre os acontecimentos e a prtica jornalstica e que
modulam o conceito de expresso da realidade.
O que se pretende, aqui, , ento, confrontar o subjetivismo inerente criao e
hermenutica literria com o carter informativo do jornalismo, considerando-se, pois,
informar na acepo de deixar algum ciente de fatos e acontecimentos, no caso, atravs
de notcias, artigos, reportagens de interesse pblico etc em que se procede ao levantamento e
apurao de dados com, supostamente, desejveis nveis de iseno e imparcialidade. A
partir disso, poder-se-ia dizer que o jornalismo seria, ento, uma prtica social mediadora
entre os eventos e o pblico e que se articularia em torno da ideia de verdade.
A prtica jornalstica a escolha lexical do reprter, por exemplo trata-se de um
conjunto de procedimentos que almeja a objetividade tendo como resultado pleiteado a
recepo da notcia como identificador da realidade. Ao mesmo tempo, o leitor colabora para
a formao de uma conscincia social, atribuindo aos produtos das instituies noticiosas o
pendor para a representao fiel de um fato ou fenmeno qualquer.
No jornalismo, portanto, convergem um conjunto de procedimentos textuais e
uma perspectiva do pblico leitor que tornam possvel assumir a notcia como ndice do real.
H uma espcie de pacto prvio entre o jornalista e seu pblico.
Na expresso literria da realidade executada, portanto, por meio de uma
estilizao formal , no h um acordo semelhante entre autor e leitor. Pelo contrrio,
segundo Antonio Candido, entre ambos deveria haver, sim, uma dupla atitude de
14 TUCHMAN, Gaye. Making news. Nova Iorque: The Free Press, 1980, p. 184.
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gratuidade15: do escritor, na concepo e na execuo da obra, e do leitor, ao apreciar o texto
que combina a realidade natural ou social com a manipulao tcnica indispensvel sua
configurao.
Ainda de acordo com o crtico, a ampla tessitura semntica do texto literrio
permitiria a ele ajustar-se a diferentes contextos e despertaria no leitor a conscincia da
relao arbitrria e deformante que o trabalho artstico estabelece com a realidade, mesmo
quando pretende observ-la e transp-la rigorosamente, pois a mimese sempre uma forma
de poiese.16
Sob esse prisma, a literatura, ento, perde em credibilidade como representao da
verdade, o que teria posto em xeque a sua prpria capacidade de expresso e induzido a uma
certa vertente da produo literria um impulso de autoproblematizao de sua forma.
Acrescente-se a esse panorama, um tipo de cinema e, posteriormente, de
televiso do qual se obtm no apenas uma simples fixao do acontecimento, mas uma
forma peculiar de representao desse evento em que
(...) o estilo define-se pela maneira como ele trabalha o material plstico, conferindo unidade aos planos separados e agindo de modo claro sobre a conscincia do espectador: emocionalmente, pelo ritmo controlado das imagens e pela pulsao dos prprios episdios mostrados; ideologicamente, pela fora conotativa de seus enquadramentos e pelo poder de inferncia contido na sua montagem17.
Embaralha-se a traduo de imagens com uma representao de mundo que, ali,
se manifesta, por exemplo, pela posio da cmera, que pode mostrar acontecimentos e
personagens do alto ou de baixo, prximos ou distncia.
Ilustrativo o caso de Mat (A Me18), filme de 1926 do cineasta russo Vsevolod I.
Pudovkin (1893-1953). ntida a nfase do diretor em evidenciar a realidade social russa de
1905 e a grave crise econmica que atingia o pas, perodo em que se deflagraram greves e
protestos de operrios e camponeses contra o regime absolutista do Czar Nicolau II.
Pudovkin aborda, quase didaticamente, nessa crise, a tentativa de organizao dos
trabalhadores revoltosos, a desarticulao deles promovida por uma aristocracia pr-czarismo
15 ANTONIO CANDIDO. Literatura e sociedade. 8 ed. So Paulo: T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000, p. 47. 16 IDEM, ibidem, p. 13. 17 XAVIER, Ismail. Do naturalismo ao realismo crtico. In: O discurso cinematogrfico: a opacidade e a transparncia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 43. 18 PUDOVKIN, Vsevolod Illarionovich. A me. [vdeo]. Unio Sovitica: Mezhrabpom-Russ (produo), 1926; Continental DVD Home Vdeo (distribuio), 2000.
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e por um sistema judicial insensvel, destacando, por fim, a represso do governo russo e o
desmantelamento do processo revolucionrio.
Quer seja atravs do efeito de luz e sombra, que acentua o carter dramtico dos
traos fisionmicos das personagens (notadamente, de Vlasov, o pai, cujo rosto
praticamente uma mscara por trs da qual se escondem alcoolismo e cooptao), quer atravs
da focalizao, em primeiro plano, de objetos de cena (ferro, garrafas, peixes etc), ou, ainda,
por meio da hiprbole gestual empregada pelos atores, deixa-se perceber a subordinao de
todos os elementos de representao cnica viso histrica da realidade engendrada pelo
diretor.
Diante, assim, dessa expressividade do recurso imagtico contido e popularizado
pelo cinema e pela televiso, certa estirpe da literatura moderna teria optado por radicalizar a
autoconscincia da sua linguagem e de seus meios expressivos.
Do seu encaixe no encantamento contemporneo com a autorreferncia
(Hutcheon) ao estgio de suicida (Arrigucci), passando pela inpcia em relao
representao moderna da realidade (SantAnna), pode-se, ainda, ponderar que a literatura
chegou a esse(s) patamar(es) como reao ao sentido tradicional da mimesis, caracterstica do
realismo convencional oitocentista.
Baseado na continuidade, no ritmo, no equilbrio de composio e na sucesso
lgica, o realismo do sculo XIX apresenta uma ideia de perfeio e organicidade,
nitidamente aristotlica em sua formao, reproduzida no critrio fundamental de composio
do poema do parnasiano Alberto de Oliveira:
Vaso grego
Esta, de ureos relevos, trabalhada De divas mos, brilhante copa, um dia, J de aos deuses servir como cansada, Vinda do Olimpo, a um novo deus servia. Era o poeta de Teos que a suspendia Ento e, ora repleta ora esvazada, A taa amiga aos dedos seus tinia Toda de roxas ptalas colmada. Depois... Mas o lavor da taa admira, Toca-a, e, do ouvido aproximando-a, s bordas Finas hs de lhe ouvir, canora e doce,
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Ignota voz, qual se da antiga lira Fosse a encantada msica das cordas, Qual se essa a voz de Anacreonte fosse.19
Focaliza-se uma imagem funcional (no caso, o vaso), esttica, limpa, sem
espaos suprfluos e sem ambiguidades. No por acaso remetente cultura clssica (vaso
grego, Olimpo, Anacreonte). H, portanto, a ideia de um mundo representado como um todo
contnuo, em desenvolvimento, equilibrado, consistente em si mesmo, motivador dos
procedimentos utilizados pelo poeta. O que fornece unidade , ento, a presena de uma tese
que no s impregna como comanda todos os detalhes da realizao artstica. Neste sentido,
sua funo ser estender a todo o poema a manifestao discursiva existente em cada palavra,
verso ou estrofe. A ideia de totalidade orgnica dominante. A relao entre o todo e as
partes de interdependncia.
Questionando este tipo de relao, a arte do incio do sculo XX, forjada na face
prosaica da experincia desintegradora da sociedade industrial contempornea, teria
contradito, tambm, o conceito aprioristicamente idealizado de Belo e de Bem, assim
como a transcrio de uma natureza imune a abstraes. Todas essas caractersticas,
distintivas da literatura e das artes plsticas do Oitocentos. Assim sendo, Lucia Helena
afiana: A ideia de que caberia arte retratar um mundo extraliterrio, muito prximo e
semelhante quele em que vive o seu fruidor, transcrito o mais naturalisticamente possvel,
sofre profunda alterao de rumos.20
Remontando-se histria literria europeia da segunda metade do sculo XIX
portanto, a Baudelaire, Mallarm, Verlaine, Rimbaud, entre outros , localiza-se a instituio
de alguns dos recursos estilsticos e formais que resultariam nos questionamentos aos
processos tradicionais da expresso artstica e na consequente renovao da poesia, como o
nivelamento do ato de poetar com a reflexo sobre a composio potica, com predomnio
nesta de mdulos de substncia negativa e, com isso, ao natural privilgio ao indefinido, ao
vago e ao incerto. Expedientes a partir dali implementados e responsveis por todo um
delineamento da lrica moderna.
No Un coup de ds jamais nabolira le hasard, seu ltimo e mais famoso poema,
publicado em 1897, Stphane Mallarm avizinha a estrutura do poema a de uma sinfonia: as
19 OLIVEIRA, Alberto de. Poesia. Seleo de Geir Campos. Coleo Nossos Clssicos, vol. 32. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1959, p. 22. 20 HELENA, Lucia. Totens e tabus na modernidade brasileira: smbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Niteri: Universidade Federal Fluminense, 1985, p. 18.
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palavras no so organizadas em sua sintaxe tradicional, mas, sim, como as notas que
formam um acorde musical e no qual o poeta relaciona
[...] o visual com o tonal como se estivesse antecipando uma execuo oral das notaes verbais da pgina: o tamanho da impresso correspondendo ao valor-tempo das notas; a separao entre as palavras correspondendo s pausas musicais; e a visualizao simultnea das palavras em uma pgina sugerindo os acordes os efeitos deles seriam imitados pela leitura coral, como se fosse uma cantata musical [...].21
A trama, em vez de ser historiada descrevendo um fato dramtico qualquer
aduz uma situao psicolgica em que de subdivisions prismatiques de lIde22
desenvolvem-se atravs de uma composio polifnica, em estilo contrapontstico e sobre um
tema exposto sucessivamente numa ordem tonal nos diversos graus da escala musical:
Mallarm: Reproduo de pgina de Un coup de ds jamais nabolira le hasard23
21 BALAKIAN, Anna. O simbolismo. Traduo de Jos Bonifcio A. Caldas. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1985, pp. 78-80. 22 MALLARM, Stphane. Un coup de ds jamais nabolira le hasard. Prface. In: MALLARM, Stphane. Mallarm. 3. ed. Traduo de Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Haroldo de Campos. So Paulo: Perspectiva, 2006. (Separata sem numerao nas pginas) 23 Extrada de MALLARM, Stphane. Un coup de ds jamais nabolira le hasard. In: MALLARM, Stphane. Mallarm. 3. ed. Traduo de Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Haroldo de Campos. So Paulo: Perspectiva, 2006. (Separata sem numerao nas pginas)
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Holisticamente, o excessivo ennui da existncia refletido no lance de dados. A
disposio e a forma dos componentes da obra so projetadas sobre a preocupao da ao
do impondervel e, consequentemente, da sensao de impossibilidade de fuga da
temporalidade e da tendncia de reduo da vida ao sonho determinando a natureza, as
caractersticas e a organizao musical do poema, dando-lhe, portanto, forma e sustentao.
A experincia esttica passa, pois, a ser indissociavelmente relacionada s
estruturas bsicas e indivisveis da obra, manifestando uma solidariedade interna e possuindo
leis prprias: o modo de ser de cada elemento condicionado, assim, estrutura do conjunto.
Logo, o liame de Mallarm com a modernidade potica converge, tambm, para
um novo conceito de composio e, consequentemente, para uma nova identidade para a
literatura, no qual as noes tradicionais de incio-meio-fim tenderiam a desaparecer diante da
ideia potico-gestaltiana, potico-musical, potico-ideogrmica de ESTRUTURA24.
A ideia de totalidade orgnica aristotlico-parnasiana reinventada, combinando-
a com a tica simbolista e com a experimentao tipogrfica.
Esses conceitos e essas experincias tipogrficas funcionais, levadas a cabo por
Mallarm em Un coup de ds jamais nabolira le hasard ecoaram, pois, na obra de inmeros
poetas.
Entre outras, na reproduo figurativa do contedo do poema mediante o arranjo
imagtico dos caracteres de forma a obter uma sugesto representativa do tema tratado, como
so compostos os caligramas (caligrafia + ideogramas) de Apollinaire, abaixo
exemplificados pela Torre Eiffel como cone cultura francesa.
Apollinaire: Caligrama Salut monde dont je suis la langue loquente que sa bouche o Paris tire
et tirera toujours aux allemands25, de Apollinaire
24 CAMPOS, Augusto de. Poema, Ideograma. In: MALLARM, Stphane. Op. cit., p. 186. 25 APPOLINAIRE, Guillaume. Pomes de la paix et de guerre (1913-1916). Paris: Gallimard, 1966, p. 76.
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Ou, mesmo, na sugesto de movimento da mmica verbal26 de e.e. cummings,
em que a enunciao do pensamento do poeta vem acompanhada de preciosos gestos sua
ideia ou sentimentos expressos por uma idiossincrtica sintaxe. Uma renovao da linguagem
demonstrada, abaixo, pela disposio vertical das letras que simula a folha de uma rvore que
cai sobre a solido ou a esta interrompe anunciando a nova estao:
1(a
le af fa ll
s) one l
iness27
Mas, se Mallarm, cummings, Apollinaire, entre tantos outros, sentiram a
necessidade de uma sintaxe visual em lugar da linguagem discursiva, o fenmeno literrio
moderno no se restringiu a essa utilizao funcional dos recursos tipogrficos.
Desfigurada a autoridade do realismo convencional oitocentista como
simbolizao nica e coerente da captao do sentido totalizante da existncia atravs da
qual as coisas, as foras naturais e as instituies sociais tornavam-se destitudas de contedo
se no representassem as relaes orgnicas entre os homens e o mundo exterior vai emergir
no processo artstico-criativo, desde fins do sculo XIX, o estatuto da ambivalncia enquanto
exerccio oblquo de expresso da relatividade das coisas do mundo.
A compreenso da obra literria como representao simblica da vida e
representao de sua totalidade caracterstica da potica realista v a inscrio da
ambiguidade no fenmeno literrio na instncia de seu prprio texto, desfazendo o sentido
tradicional da mimesis, como reestruturao da realidade.
Por exemplo, na justaposio no silogstica de fragmentos do mtodo
ideogrmico dos Cantos, de Ezra Pound:
26 CAMPOS, Augusto de. Mallarm: o poeta em greve. In: MALLARM, Stphane. Op. cit., p. 23. 27 CUMMINGS, E.E. 95 poems (1958). In: ______. Complete poems, 1904-1962. Nova Iorque: Liveright, 1994, p. 673.
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Canto XIV
Io venni in luogo d'ogni luce muto; The stench of wet coal, politicians . . . . . . . . . e and. . . . . n, their wrists bound to their ankles, Standing bare bum, [] And behind them. . . . . . f and the financiers lashing them with steel wires. And the betrayers of language . . . . . . n and the press gang And those who had lied for hire; the perverts, the perverters of language, the perverts, who have set money-lust Before the pleasures of the senses; [] The petrified turd that was Verres, bigots, Calvin and St. Clement of Alexandria! [] And Invidia, the corruptio, foetor, fungus, liquid animals, melted ossifications, slow rot, foetid combustion, chewed cigar-butts, without dignity, without tragedy . . . . .m Episcopus, waving a condom full of black-beetles, monopolists, obstructors of knowledge. obstructors of distribution.28
(v.1-5;22-29;51-52;82-89)
No exemplo acima, trechos do Canto XIV, revelam um caleidoscpio moderno,
iniciado, entretanto, por uma citao de um texto clssico, o Inferno, de Dante.
Uma inverso irnica do mundo esttico e moral da Divina Comdia que anuncia
sucessivas imagens de polticos, financistas, donos da imprensa, lderes religiosos etc
(de)compostas com furor potico. Um mosaico em que o primeiro fragmento colado
estabelece um vnculo com a tradio e ao qual se justapem outros, contemporneos. Um
impulso de escrita nascido de uma experincia literria prvia, retomada de forma no esttica
e no reverente.
Sobre T. S. Eliot, outro poeta em cuja obra tambm eminente o lastro matricial
de culturas filosfico-literrias pretritas unidas modernidade potica, Malcolm Bradbury
reconheceu que ele soube explorar um mtodo complexo de entremear cadncias poticas
28 POUND, Ezra. The cantos of Ezra Pound. Nova Iorque: New Directions Book, 1996, pp. 61-63.
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antigas e modernas29 e Northrop Frye, ainda sobre o autor de Waste Land, afirma que a
originalidade em literatura seria uma meia-verdade, porque cada poeta herda um continuum
literrio que vem desde Homero30.
Portanto, a autoconscincia da linguagem artstica moderna tambm aponta para o
passado, com o qual se lana em um jogo intertextual, recuperando-o no presente. Evidencia-
se uma dinmica de realocao acionada pela memria cultural e que alcana a modernidade
com potencial para a (re)criao do novo:
O estatuto citacional o lugar simultaneamente central e problemtico em que se joga a escrita desde o fim do sculo XIX. De fato, cada vez mais o texto literrio se inscreve numa relao com a multido dos outros textos que nele circulam. Ao tornar-se o receptculo mvel, o lugar geomtrico dum fora-do-texto que o percorre e informa, deixou de ser um bloco fechado por fronteiras estveis e instncias de enunciao claras. Aparece ento como uma configurao aberta, percorrida e balizada por redes de referncias, reminiscncias, conotaes, ecos, citaes, pseudocitaes, paralelos, reativaes.31
No alvorecer do sculo XX, a iconoclastia das vanguardas torna a expresso
artstico-lingustica eminentemente plural, tomando o sentido no como um dado em si, mas
como um valor, concebendo a prpria linguagem, ela mesma, como um meio de produo de
realidades: A prtica intertextual toma um sentido mais amplo para as vanguardas
contemporneas, que se esforam por edificar uma teoria mais totalizante do texto,
englobando as suas relaes com o sujeito, o inconsciente, a ideologia.32
Com perspectivas j abertas, portanto, em fins do Oitocentos, pelo Simbolismo e
pelo Impressionismo e fomentadas, no sculo seguinte, pela Lingustica e pela Psicanlise, as
vanguardas abalaram essa simetria entre arte e realidade e induziram novas concepes de
representao para alm do realismo artstico.
Por um vis metalingustico, combinou-se o efeito da linguagem potica dobrada
sob si mesma com solues estilstico-formais que se coadunavam com a recusa simbolista
limitao da arte ao objeto, tcnica de produzi-lo e a seu aspecto palpvel. Isso resultou em
um alargamento do espao interno da poesia, levando-a a dialogar no com a realidade
aparente das coisas, mas com a realidade da prpria linguagem. 29 BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. T. S. Eliot. Traduo de Paulo Henriques Britto. So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 159. 30 FRYE, Northrop. T. S. Eliot. Traduo de Elide-lela Valarini. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 114. 31 TOPIA, Andr. Contrapontos joycianos. In: JENNY, Laurent [et al.]. Intertextualidades. Traduo de Clara Crabb Rocha. Coimbra: Livraria Almedina, 1979, p. 171. 32 JENNY, Laurent. A estratgia da forma. Ibidem, p. 46 (nota de rodap 23).
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Por conseguinte, a partir de um contexto no qual a arte toma para si prpria a
tematizao da sua forma que se torna possvel identificar entre tantos ismos Futurismo,
Cubismo, Dadasmo etc a constante do experimentalismo com a qual a modernidade potica
encaminha para novos conceitos de composio e, consequentemente, para novas dimenses
na literatura. Uma concepo artstica menos totalizante e menos idealizante de texto e que
atende a uma nova sensibilidade do homem ps-romntico exposto ao impacto da sociedade
urbana e industrial, transformada pela produo em srie e pela cadeia de montagem, como
era o caso de parte da Europa (e, em menor escala, aqui, do municpio de So Paulo do incio
do sculo XX).
Na sua rotina cotidiana, esse homem, marcado pela sensao do anonimato, teria
automatizadas suas percepes e reaes ante a realidade que o cerca. A literatura,
deparando-se, a, com um fecundo filo para a abertura de novos caminhos, passa a se
constituir como um efeito desestabilizador das expectativas de seu pblico.
Impondo ao indivduo uma conscincia dramtica da linguagem, a literatura
renovaria essas percepes e reaes habituais por meio de elementos que tornariam os
objetos mais perceptveis por meio de um efeito de desfamiliarizao da linguagem.
E, para tanto, no bastassem a utilizao funcional dos recursos tipogrficos, a
inscrio da ambiguidade no prprio texto potico e o jogo intertextual com obras do passado,
expande-se, ainda mais, a substncia literria, contrapondo-a a um pano de fundo oficial(esco)
e normativo.
Dessa forma, organizando-se, portanto, na conscincia de sua prpria disperso, a
obra literria da modernidade consolida como texto a percepo fragmentria do universo.
ngela Dias e Pedro Lyra, escudados em Walter Benjamin, afirmam:
Da a convivncia estrutural, na fisionomia da produo moderna, do seu comprometimento inevitvel com as leis de mercado, e, ao mesmo tempo, da sua incurvel e utpica irreverncia diante dos comportamentos e convenes estereotipadas. Da o exerccio de uma escrita que, no prprio processo de constituio, desvela-se como leitura plural e divergente da infinidade de textos, ideologias e emblemas do mundo moderno. Da o desmascaramento da transcendncia, da aura do objeto literrio, de acordo com Benjamin, despido do carter nico e ritual de sua origem mtica, e forjado na impureza, no esprio, no prosaico da experincia desintegradora inerente sociedade industrial contempornea. [...] Se o texto literrio da modernidade constri-se no exerccio pleno de sua ambiguidade estrutural, como coro de falas e contrastes, ele explicitamente assimila o procedimento formal tpico da prxis pardica .33 (grifei)
33 DIAS, ngela e LYRA, Pedro. Pardia: introduo in Selma Calazans Rodrigues (org.). Sobre a pardia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 62, jul-set de 1980, p. 4.
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A pardia no , de modo algum, um fenmeno literrio contemporneo. Nesse
sentido, Laurent Jenny34 lembra que, no Satiricon, aproximadamente no ano 60 d.C., quando
Petrnio pe na boca do poeta Eumolpo um longo poema pico intitulado A guerra civil,
tratar-se-ia de uma pardia da Farslia, de Lucano. Posteriormente, continua Jenny, Rabelais,
no incio do sculo XVI, aproveitaria em Gargntua e Pantagruel, brases, avisos de arautos,
discursos etc, enfim, formas da escolstica, dos romances de cavalaria e da parodia sacra.
possvel, assim, remeter-se intertextualidade pardica de diversas pocas.
Linda Hutcheon35 chega a ressaltar que muitas delas teriam competido pelo ttulo de Idade
da Pardia, citando como exemplo o entusiasmo demonstrado, no sculo XIX, por uma
pardia especfica de poemas e novelas do Romantismo tardio. Dado que neste perodo existia
um pblico leitor e literato da classe mdia, os parodistas podiam utilizar-se de textos
contemporneos, alm de clssicos e obras conhecidas, como a Bblia.
Linda Hutcheon, ainda, aduz raiz etimolgica do termo pardia ao substantivo
grego parodia (contracanto), salientando que o prefixo par(a)-, alm de remontar a ideia de
contra ou oposio, presumivelmente, o ponto de partida formal para a componente de
ridculo pragmtica habitual da definio36, tambm pode significar ao longo de e,
exatamente neste segundo sentido, encontrar-se-ia uma sugesto de um acordo ou
intimidade, em vez de contraste [...] que alarga o escopo pragmtico da pardia de modo
muito til para as discusses das formas de arte modernas37.
Haroldo de Campos, igualmente, salienta que a pardia no deve ser
necessariamente entendida no sentido de imitao burlesca, mas inclusive na sua acepo
etimolgica de canto paralelo38. Paul Zumthor, seguindo na mesma direo, ape: A
pardia no , em primeira instncia, troa: se o , por acrscimo e por via de
consequncia39. Assim como Hutcheon, Campos e Zumthor, Gerard Genette40 tambm
afirma que a pardia no deve ser tomada unicamente pela sua funo burlesca, porque isso
impediria a considerao de obras como o Hamlet, de Jules Laforgue, a Electra, de Jean
Giraudoux, o Doutor Fausto, de Thomas Mann, e o Ulisses, de James Joyce, na relao que
mantm com o seus textos matrizes. E, da mesma forma que Hutcheon, Genette tambm 34 JENNY, Laurent. Op. cit., pp. 10-11. 35 HUTCHEON, Linda. Op. cit., p. 12. 36 IDEM, ibidem, p. 48. 37 IDEM, ibidem, p. 48. 38 CAMPOS, Haroldo de. In: ANDRADE, Oswald de. Oswald de Andrade: trechos escolhidos por Haroldo de Campos. Rio de Janeiro: Agir, 1967, p. 16. 39 ZUMTHOR, Paul. A encruzilhada dos rhtoriqueurs: intertextualidade e retrica. In: JENNY, Laurent [et al.]. Op. cit, p. 123. 40 GENETTE, Gerard. Palimpsestes: La littrature au second degr. Paris: ditions du Seuil, 1982, p. 35.
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ressalta a onipresena histrica da pardia, asseverando que essas obras modernas citadas
anteriormente conservam com seus textos de referncia o mesmo tipo de ligao que Virgile
Travesti escrito em 1648 por Paul Scarron cultiva com a Eneida, de Virglio.
Portanto, da prpria etimologia da palavra pardia (contracanto ou canto
paralelo) magnitude conceitual que a modernidade emprestaria ao termo, reflete-se a
duplicidade do seu carter escritural: afirma-negando a existncia de uma referncia e, ao
faz-lo, ela a recria. Decorre da, por conseguinte, a intrnseca irreverncia desta espcie
oblqua de fazer potico41 diante de condutas estabelecidas e convenes estereotipadas, o
que, de pronto, identifica a pardia com o coro de falas e contrastes42 da polifonia estrutural
da produo artstica moderna.
Uma prxis artstica que, no seu prprio processo de constituio, j mostra sua
abertura infinidade de signos e ideologias da modernidade. Forjando-se no lado ordinrio da
sociedade industrial contempornea, a pardia contribui para inscrever, na essncia da
produo textual moderna, um dissonante dialogismo que deriva de uma proveitosa
aproximao-coliso de discursos e sujeitos por vezes dspares e, at ento, inconciliveis.
De inegvel natureza especular, o reflexo por ela gerado pode se apresentar
invertido, reduzido ou, at mesmo, ampliado. Uma vez que, com os movimentos renovadores
da arte ocidental na segunda metade do sculo XIX e as experimentaes das vanguardas
artsticas do sculo XX, ampliou-se o campo artstico para novas e diferentes utilizaes da
pardia enquanto modo de expresso da evoluo literria e, graas a seu carter fragmentrio
e indicativo, ela pode apresentar implicaes hermenuticas no s no mbito da literatura,
mas tambm no campo da lingustica e nas esferas filosfica e ideolgica.
Assim, a autorreflexividade das formas de arte contemporneas, quando toma a
forma de pardia, fornece um novo modelo para os processos artsticos. Nele, o poema
construdo a partir de um feixe de relaes mltiplas, refletindo e questionando outros textos,
discursos e influncias por ele incorporados e nele reestruturados.
, pois, nesse contexto moderno de autorreferncia e autolegitimao que a
pardia se estabelece enquanto eficaz efeito metalingustico e se mostra profcuo mecanismo
de investigao crtica acerca do processo de produo, de recepo e de (re)interpretao de
textos (e de obras de arte em geral).
Radical provocadora de mudanas de expectativas e de perspectivas, a pardia se
articula com o projeto artstico moderno possibilitando o questionamento de todo um alicerce 41 DIAS, ngela e LYRA, Pedro. Op. cit., p. 5. 42 IDEM, ibidem, p. 5.
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de (pre)conceitos e uma (re)viso de determinados elementos artsticos e, consequentemente,
dos papis desempenhados por eles. Representa uma articulao entre arte e histria e no se
faz adequar a posturas idealizantes e/ou classizantes. Opera em intimidade com a
contingncia, valendo-se de resduos, fragmentos, fontes e materiais outrora desprezados.
Apresenta, pois, um complexo e polissmico sistema de significao, recebendo e assimilando
a interferncia de sujeitos e questes com as quais interage social e contextualmente.
Pode-se verificar, ento, a partir da construo pardica, a constatao do
distanciamento e, eventualmente, oposio existente entre significante e significado.
Desautomatiza-se a linguagem, opondo-a a formas alienadas de expresso. Por um
lado, promove-se o deslocamento do sentido do texto parodiado e, por outro, dessacralizam-se
as noes de autoria e originalidade do produto artstico e de seu estatuto de objeto de arte
intocvel e inerte, avesso, por conseguinte, a interpretaes pluralistas. O que pode resultar,
tambm, em uma consequente relativizao do conceito de texto e do estabelecimento dos
seus limites incio / fim.
Desessencializando, assim, a literatura, transformando e expandindo, pois, a sua
substncia, a obra pardica capaz de questionar o cnone sobre o qual se impe da mesma
maneira como questiona o discurso ideolgico que contribuiu para o estabelecimento desse
cnone, apontando para a conscientizao do (ultra)passado e para a possibilidade de
(trans)formao do presente.
Conforme anteriormente mencionado, o Futurismo (1909), o Expressionismo
(1910), o Cubismo (1913), o Dadasmo (1916) e o Surrealismo (1924) foram os principais
resultados de uma atitude artstica e cultural de contestao de um mundo em crise e
intensificaram, a limites extremos, um processo em curso desde o sculo XIX, em correntes
revolucionrias do Romantismo, nos experimentos simbolistas ou, at mesmo, no amlgama
de estilos da belle poque.
Apesar de suas grandes diferenas, todos esses movimentos tiveram em comum o
questionamento de conservadores moldes acadmicos cristalizados em uma arte envelhecida e
a consequente tentativa de renovao de manifestaes artsticas e culturais que interagissem
com um ambiente social que desencadeou alm de duas guerras mundiais profundas
transformaes na vida poltica e econmica das sociedades.
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Conforme Lcia Helena:
Com as vanguardas histricas chega ao primeiro plano a vigncia do que Mrio de Andrade, numa expresso feliz, chamou de direito permanente pesquisa esttica. Ou seja: tanto a valorizao da linguagem enquanto tema e objeto da prpria arte, quanto a insatisfao do criador em face dos procedimentos j sedimentados, e a busca de penetrar nos domnios do inconsciente.43
Esses movimentos de vanguarda propagaram-se rapidamente para alm das
fronteiras de sua origem europeia e chegaram a terras brasileiras, tomando uma feio
adaptada s condies culturais, econmicas e polticas nacionais.
Se na Europa as vanguardas conviviam com uma sociedade de tradio racionalista, em estgio de industrializao avanada, com poderosa burguesia e em meio convulso blica, os ecos que penetram no Brasil interagem com um pas de tradio colonialista, largas faixas latifundirias, de incipiente industrializao, desenvolvimento desigual e alto hibridismo cultural. Sero, pois, diversas as suas correlaes e os seus efeitos.44
Inicialmente, So Paulo e Rio de Janeiro formaram a ponta de lana do
movimento modernista, locais em que o contato com o estrangeiro se estabelecia de forma
mais direta e, tambm, onde se davam mais significativamente as relaes entre a sociedade
latifundiria e a burguesia industrial. Depois, a eles somaram-se Minas Gerais e alguns
estados do Nordeste, tendo o modernismo se generalizado apenas nos anos 30, com as
narrativas sobre as condies de vida do brasileiro.
Na sua fase heroica (dcada de 20), prevaleceu um comportamento de
implantao45: agressividade, experimentao arrojada de novas formas artsticas e
lanamento das bases de uma discusso da dependncia cultural e do nacionalismo.
Um clima de efervescncia cultural alimentado por uma sociedade refratria aos
conceitos preconizados pela vanguarda europeia e assimilados pelos modernistas brasileiros.
Acaloradas discusses sobre os novos procedimentos artsticos que acabariam por desaguar
em diferentes vertentes dentro do movimento. Cada qual, por meio de seus manifestos,
revistas etc, a dar sua interpretao do significado de modernismo.
43 HELENA, Lucia. Modernismo brasileiro e vanguarda. So Paulo: tica, 1986, p. 6. 44 IDEM, ibidem, p. 41. 45 IDEM, ibidem, p. 43.
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Nesse contexto, em 1922, em So Paulo, acontece a Semana da Arte Moderna, na
qual, atingido o limite de saturao do sistema literrio-ideolgico da tradio parnaso-
simbolista (insuficiente para abrigar as ento novas demandas culturais), foi proposto um
novo conceito artstico que, simultaneamente, atualizasse o pas em relao s vanguardas
europeias e deixasse a arte brasileira mais voltada para a realidade nacional.
Vista em seu tempo, a Semana de 22 se oferecia como rito de passagem, fora de destruio do velho mundo. Quando se inaugura a Semana de Arte Moderna em 1922, um itinerrio j havia sido percorrido pelos jovens modernistas, mas num eixo eminentemente paulista. Desta prvia, destacam- se, como aspectos mais relevantes, o choque entre os padres acadmicos oficiais e a tentativa de se colocar a arte brasileira em compasso com o relgio artstico mundial, sob os auspcios da vanguarda europeia.46
Ao mesmo tempo em que procurava o original e o polmico, a potica do
movimento modernista, alm de se manifestar atravs da pesquisa de fontes quinhentistas, da
valorizao do ndio cuja imagem no fosse aquela idealizada pelo movimento romntico, da
busca por uma lngua brasileira (valorizao do falar cotidiano, da lngua falada pelo povo
nas ruas), privilegiou, tambm, a utilizao da pardia como tentativa de se estabelecer novos
parmetros para a histria e para a literatura do Brasil.
Segundo Alfredo Bosi, quando o poeta mostra no levar a srio as relaes entre
forma e contedo47 que dominam uma certa cultura, essa seria a hora da pardia. Paul
Zumthor, de seu turno, afirma que quanto mais manifesta e estvel a tradio (mais bem
conhecidas, e admitidas como uma natureza, as figuras que lhe so prprias), mais eficaz o
efeito pardico48. Frmulas e lugares-comuns sujeitariam, assim, a linguagem literria
trivialidade e estagnao. Nesse sentido, acerca da obra de Lautramont, Laurent Jenny49
afirma que poder-se-ia facilmente caracterizar a poesia romntica e o romance noir como
presas fceis para os Cantos de Maldoror e que esta mesma saturao de normas, regras e
princpios estagnantes fizeram introduzir parodicamente no Ulisses, de James Joyce,
linguagens to diversas como a da imprensa sensacionalista, da saga irlandesa ou dos textos
bblicos.
46 HELENA, Lucia. Op. cit., 1986, p. 43. 47 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 194. 48 ZUMTHOR, Paul. Op. cit., 1979, p. 123. 49 JENNY, Laurent. Op. cit., p. 11.
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O modelo literrio brasileiro ento vigente necessitava de um esvaziamento que
lhe possibilitasse uma interpelao. E por esvaziamento, evidentemente, no se tome
comear do zero, apagar, mas, sim, aproveitar pela pardia o que j existia:
Sendo o esquecimento, a neutralizao dum discurso impossveis, mais vale trocar-lhe os polos ideolgicos. Ou ento reific-lo, torn-lo objeto de metalinguagem. Abre-se ento o campo duma palavra, nova, nascida das brechas do velho discurso, e solidria daquele. Quer queiram quer no, esses velhos discursos injetam toda a sua fora de esteretipos na palavra que os contradiz, dinamizam-na. A intertextualidade f-los assim financiar a sua prpria subverso.50
Utilizando a ironia como principal estratgia retrica para despertar a conscincia
do leitor, o mecanismo do discurso pardico permitia ao poeta modernista (re)interpretar e
(re)avaliar todo o sistema no qual a tradio se escorava. Mas ele o fazia paradoxalmente,
assumindo-repelindo a prpria cultura. Tomava o modelo original, recusava-o, esvaziava-o,
recriava-o e, por fim, estabelecia, a partir dele, uma sntese contrastante.
A memria cultural nutre todo e qualquer texto, mas ela tambm pode constranger
a escritura enquanto potencial fonte de esteretipos. O redirecionamento pardico, por seu
valor antifrstico, capaz, ento, de incrementar os significantes retomados, os quais, em um
novo contexto, com significaes opostas, relativizam sua trivialidade semntica anterior.
Por um lado, a pardia ciente do objeto sobre o qual trabalha, mas, por outro,
tambm o das reminiscncias culturais que sobrepujam esse objeto. A sua especificidade
tornar a enunciar certos discursos cujo peso se tornou tirnico51 para infl-los
semanticamente, evitando, por meio de uma inverso irnica, o triunfo do clich52.
Acentuando o carter polissmico de uma estrutura pr-estabelecida, opera-se
uma nova significao a partir de uma nova contextualizao. Explora-se a potencialidade dos
alicerces semnticos de um texto ou discurso em prol de uma nova articulao discursiva:
Trata-se de no deixar o sentido em sossego53.
Por isso, os motivos e os temas que caracterizavam a expresso do sujeito
romntico alado evaso decorrente da incapacidade de dirimir seus conflitos com a
sociedade que o rodeava e o engolia passaram a ser alvos quase constantes de pardias
modernistas.
50 JENNY, Laurent. Op. cit., pp. 44-45. 51 IDEM, ibidem, p. 44. 52 IDEM, ibidem, p. 45. 53 IDEM, ibidem, p. 45.
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Carlos Drummond de Andrade, em Sentimental, partiria de As letras, de
Fagundes Varella. Ele conjuga a intertextualidade temtica no caso, a escrita do nome da
amada com a inverso irnica proporcionada pela contraposio da perspectiva romntica
tica modernista.
O autor romntico, como tal, grava o nome da amada em um arbusto que, com o
passar do tempo, cresce, tornando o entalhe inacessvel ao poeta ainda apaixonado:
As Lettras Na tenue casca de verde arbusto
Gravei teu nome, depois parti; Foro-se os annos, foro-se os mezes,
Foro-se os dias, acho-me aqui. Mas a! o arbusto se fez alto,
Teu nome erguendo, que no mais vi! E nessas letras que aos cos subio
Meus belos sonhos de amor perdi.54
Drummond, ao contrrio, em meio a uma usual refeio, ao tentar escrever o
nome da amada com as letrinhas de uma sopa, despertado do seu intento por algum dos
demais presentes mesa:
Sentimental
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarro. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruados na mesa todos contemplam esse romntico trabalho. Desgraadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! Est sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E h em todas as conscincias um cartaz amarelo: Neste pas proibido sonhar.55
54 VARELLA, Luiz N. Fagundes. Cantos do ermo e da cidade. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1880, p. 121. 55 ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In: Poesia Completa. Fixao de textos e notas de Gilberto Mendona Teles. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar S.A., 2003, p. 16.
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Embora o estado dalma do eu lrico dos dois autores confluam para a
exteriorizao de um sentimento equivalente, os diferentes registros por eles utilizados
decorrem das conjunturas esttico-ideolgicas a que ambos se enquadram: enquanto Varella o
faz romanticamente, em uma rvore (metfora para a expresso da perenidade e da
inatingibilidade do seu amor), Drummond, apelando a uma modern(ist)a deriva de afetos,
vale-se de uma habitual refeio, na qual so consumidos, alm do amor do poeta,
transitoriedade e irreverncia.
O poeta mineiro d azo inverso irnica da metfora do amor inexaurvel (a
fixao do nome da mulher amada) em outra construo temtica. No h, de poema para
poema, relaes enquanto conjuntos estruturados. A reminiscncia romntica posta a
ridculo unicamente pela nfase geral do discurso, resultando, pois, em uma pardia
discursiva.
Manuel Bandeira, por sua vez, em Teresa subverte O Adeus de Teresa, de
Castro Alves.
O amor primeira vista, despertado por Teresa no autor baiano, estendido por
anos a fio at um e inslito e derradeiro adeus:
O Adeus de Teresa A primeira vez que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus... E amamos juntos... E depois na sala Adeus eu disse-lhe a tremer coa fala... E ela, corando, murmurou-me: adeus. Uma noite... entreabriu-se um reposteiro... E da alcova saa um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem vus... Era eu... Era a plida Teresa! Adeus lhe disse conservando-a presa... E ela entre beijos murmurou-me: adeus! Passaram-se tempos... seclos de delrio Prazeres divinais... gozos do Empreo... ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse Voltarei!... descansa!... Ela, chorando mais que uma criana, Ela em soluos murmurou-me: adeus!
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Quando voltei... era o palcio em festa!... E a voz dEla e de um homem l na orquestra Preenchiam de amor o azul dos cus. Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa! Foi a ltima vez que eu vi Teresa!... E ela arquejando murmurou-me: adeus!
S. Paulo, 28 de agosto de 1868.56
Escarnecidos por Bandeira, esses encontros e desencontros, despertares e
despedidas so convertidos em vises de uma aberrao fsica que, sucessivas e crescentes,
acabam cegando-o. S assim, ante a falta de percepo ou de apreenso da dura realidade
que o poeta outrora enxergava, vem a se restabelecer a paz csmica:
Teresa A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estpidas Achei tambm que a cara parecia uma perna Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo
[nascesse) Da terceira vez no vi mais nada Os cus se misturaram com a terra E o esprito de Deus voltou a se mover sobre a face das guas. 57
A contradio discursiva, aqui tambm presente, interliga os dois textos, mas
diferentemente da relao dos poemas de Varella e Drummond, a releitura de Manuel
Bandeira do poema de Castro Alves no se limita inverso de um conceito, estendendo-se,
sim, a toda uma conjuntura. So tecidas duas redes conflitantes de correlaes entre o carter
dos seus protagonistas, os respectivos discursos entabulados e as situaes. O cerne do poema
de Castro Alves (os sucessivos encontros com Teresa) transportado para o discurso potico
de Manuel Bandeira e, l, recuperado, adaptado, pervertido e, por fim, contradito pelo
trabalho intertextual empreendido pelo autor modernista. De um texto para o outro, o tom, a
56 ALVES, Castro. Espumas flutuantes. In: Obra completa. Edio comemorativa do Sesquicentenrio. Organizao, fixao de texto e notas de Eugnio Gomes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar S.A., 1997, p. 107. 57 BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. In: Poesia Completa e Prosa. Volume nico. Organizao de Andr Seffrin. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 2009, p. 110.
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ideologia, o prprio andamento das cenas mudam no ao acaso, mas por uma srie de
remodelaes das contradies e das simetrias do poema parodiado.
Logo, entre os preceitos da nova esttica, alm do interesse pelo folclore
brasileiro, pela (re)criao do cotidiano das diversas realidades do pas, pela desmusicalizao
dos versos, pela descoberta do lado prosaico da vida e pelo discurso a favor da lngua
brasileira, inclua-se, tambm, uma aproximao crtica a obras do passado por meio do
emprego da pardia. Mas, em se tratando de pardia e do Modernismo brasileiro, impossvel
no associ-los quase que imediatamente a Oswald de Andrade.
Nesse sentido, Affonso Romano de SantAnna assinala que os poetas modernistas
conheceram a pardia, mas enquanto muitos teriam retornado parfrase, procurando abrigo
numa tradio alongada58, Oswald de Andrade seria o exemplo do autor quase que
exclusivamente pardico.
Jorge Schwartz59, por sua vez, comparando os componentes satricos dos poemas
do argentino Olivrio Girondo e de Oswald de Andrade, salienta que uma das grandes
diferenas entre os dois seria a eminncia da pardia na obra do brasileiro.
De seu turno, Haroldo de Campos60 destaca a admirao de Oswald de Andrade
por James Joyce e Thomas Mann e evidencia a utilizao da pardia como um dos principais
recursos de composio do romance Memrias sentimentais de Joo Miramar.
Polmico, irnico, militante poltico, produziu obras-primas como o os dois
(no)romances Miramar (1924) citando anteriormente e Serafim Ponte Grande (1933), o
livro de poesias Pau Brasil (1925), a pea de teatro O rei da vela (1937) e a autobiografia Um
homem sem profisso Sob as ordens da mame (1954), alm de ser o idealizador de dois
dos principais manifestos modernistas, Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e Manifesto
Antropfago (1928), Oswald de Andrade conhecido por sua personalidade exuberante e
indmita, [...] sempre manteve em alerta o esprito barulhento e combativo. Veemente nas
intervenes pblicas, [...] enfrentou desafios e vaias, rebatendo com sua irreverncia
desconcertante [...]61 foi o artista do perodo que melhor instrumentalizou a pardia no
intuito de repensar a literatura e a histria nacional.
58 SANTANNA, Afonso Romano de. Msica popular e moderna poesia brasileira. 4. ed. So Paulo: Landmark, 2004, p. 103. 59 SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo na dcada de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade. Traduo de Mary Amazonas Leite de Barros e Jorge Schwartz. So Paulo: Perspectiva, 1983, p. 201. 60 CAMPOS, Haroldo de. In: ANDRADE, Oswald de. Op. cit., 1967, p.16. 61 FONSECA, Maria Augusta. Op. cit., p. 11.
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Sobretudo na sua obra, a pardia acabou por se converter em um eficaz
mecanismo formal e temtico da escrita de textos, com implicaes hermenuticas,
ideolgicas e culturais. De acordo com as necessidades de sua criao artstica, ele jogou com
as tenses criadas pela tradio, reconheceu a mudana na continuidade e props novas
bases para um rearranjo do passado cultural do Brasil.
Utilizando a literatura como veculo de crtica social em que a ironia engendrada
pela pardia configurou-se no trao estilstico dominante, ele restaurou poeticamente a
histria brasileira e burlou a gramtica normativa da lngua portuguesa.
A interferncia, em Oswald de Andrade, do ambiente econmico paulista, acrescida de suas constantes viagens Europa e contatos com as conquistas da vanguarda, alm de sua sensibilidade pessoal para aderir s conquistas modernas, tudo isso faz dele um representante extremamente sensvel em relao atitude de ruptura dos vnculos da arte com a aura.62
Atravs do humor e da pardia, a poesia de Oswald de Andrade, enquanto atitude
esttica, no que teve de mais renovador, exprimiu uma conduta mpar no cenrio da literatura
brasileira dos anos 20. Ela recontou o passado nacional e capturou metonimicamente a
realidade que a circundava. Por um lado, refletiu uma concepo de poesia que visava a
dirimir o elemento discursivo, o eloquente e o lirismo romntico. Por outro, deixou
transparecer a assimilao da visualidade presente na diagramao dos jornais, na publicidade
e no cinema.
Ciente do seu passado e do seu presente, o projeto literrio de Oswald de Andrade
priorizou e incorporou parodicamente o discurso literrio, histrico, poltico, religioso etc
atravs de uma aguda e conscienciosa reelaborao lingustico-literria. A pardia, em
Oswald de Andrade, acabou por comungar o propsito intencional e deliberado do prprio
autor e do modernismo.
Assim, neste estudo, aps um painel, constitudo por breves reflexes acerca de
algumas das aventuras que se inserem na complexa histria das invenes formais da
literatura europeia [...] responsveis por uma reestruturao radical no modo de conceber o
texto literrio63, foi possvel situar entre essas "aventuras o vis pardico, por meio do qual
caracterizou-se, a seguir, a insero do modernismo brasileiro e de Oswald de Andrade no
esprito das vanguardas artstico-literrias europeias do incio do sculo XX.
62 HELENA, Lucia. Op. cit., 1985, p. 65. 63 BOSI, Alfredo. Histria concisa da literatura brasileira. 43.ed. So Paulo: Cultrix, 2006, p. 346.
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Sob essa tica, a pardia na obra de Oswald de Andrade, por um lado, faz jus
revoluo esttica que o movimento modernista trouxe cultura brasileira e, por outro, torna
possveis ponderaes acerca de inovaes radicais no cdigo literrio brasileiro da primeira
metade do sculo XX.
No livro de poesias Pau Brasil, de 1925, publicado originariamente em Paris pela
editora francesa Au Sans Pareil, com ilustraes de Tarsila do Amaral e prefcio de Paulo
Prado, Oswald de Andrade, por meio da utilizao pardica de textos histricos e literrios, de
diferentes discursos e registros da lngua portuguesa e, ainda, de um visado efeito de
oralidade, quase sempre em poemas breves e em verso livre, restaura a histria e a literatura
nacional da carta de Caminha contemporaneidade do poeta bem como assinala, com
saborosa argcia, a diversidade e a disparidade socioeconmica do habitante nacional.
No presente trabalho, as motivaes, os alcances e os efeitos da dimenso
pardica desse livro sero analisados nos captulos seguintes.
Em Oswald de Andrade, autor da Histria do Brasil, partindo da estratgia de
composio da srie de poemas Histria do Brasil, primeiramente, ressaltam-se
determinados elementos caracterizantes da colonizao brasileira e da mentalidade dos
colonizadores, evidenciando a possibilidade e a pertinncia de se reinterpretar e reavaliar o
texto matriz na relao que (r)estabelece com a pardia. A seguir, introduz-se uma anlise da
relao dinmica entre autor, obra e pblico, tornando possvel analisar a obra oswaldiana,
sob a tica da recepo dos textos pardicos. Por meio do poema escapulrio, perfaz-se um
exame mais eficaz da contribuio do leitor da pardia para o estabelecimento do sentido do
texto enquanto atitude cooperativa com a obra, exacerbando, assim, o lugar fundante da
alteridade na sua constituio. Por fim, ressalta-se o papel primordial desempenhado pelas
relaes humanas entre os fatores de efetividade e sucesso da construo do sentido do texto.
J em Pardia ready made, trata-se da capacidade da poesia pardica de Oswald
de Andrade fazer aflorar facetas reprimidas da formao e do desenvolvimento da identidade
nacional que contriburam para um apagamento das contradies das razes nacionais.
Partindo-se tambm aqui da srie de poemas Histria do Brasil, chega-se aos poemas o
capoeira, bonde e pronominais da srie Poemas da colonizao. Oswald de Andrade
agrega dimenso popular, etnogrfica e folclrica brasileira a indistino entre cultura de
elite e cultura popular, na qual o livre trnsito entre tais nveis de criao possibilita uma
literatura como processo intercomunicativo em que influncias dspares originam
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confluncias profcuas e, ainda, tornam explcito um modo heterogneo de constituio do
texto.
Por fim, no captulo Paradoxalmente moderno, tematizada a contraposio
modernista ao conceito de literatura brasileira forjado durante os perodos rcade e
romntico, evidenciando um projeto de construo de uma nova identidade nacional e de um
novo sentido de brasilidade lastreados no fazer potico-pardico da modernidade e que
implicam a dessacralizao formal e ideolgica do elemento nacional e a destituio do
emocionalismo ufanista como basilares da literatura brasileira. A Cano do exlio, de
Gonalves Dias, contraposta ao canto de regresso ptria, de Oswald de Andrade. A
oposio gonalvina marcadamente entre um c banal e o l maravilhoso apresenta
uma terra natal do poeta divina e extraordinria, porm distante e genrica, puramente
convencional e padronizada. Em resposta, o canto oswaldiano exprime um movimento
aproximativo de retorno terra natal que permite que o mago do pas seja mostrado
dinamicamente pelo poeta, isto , que ele seja visto no curso de seu desenvolvimento com as
contradies e os paradoxos que abarca.
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2 Oswald de Andrade, autor da Histria do Brasil
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Nos poemas da srie Histria do Brasil, em uma construo literria
extremamente condizente com a agudeza do esprito cmico-crtico que o caracteriza, Oswald
de Andrade retoma a histria brasileira do sculo XVI ao incio do XIX por meio de
fragmentos de obras de Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhes Gndavo, Claude
dAbbeville, Frei Vicente do Salvador, Ferno Dias Paes, Frei Manoel Calado, J.M.P.S. e do
Prncipe Dom Pedro.
Obras que, de forma panormica, poder-se-ia dizer, embaralhavam informaes
sobre a terra e os indgenas, aspectos da vida moral e espiritual da sociedade colonial e
acontecimentos histricos que envolveram os autores, traduzindo, por um lado, a seduo
provocada pela exuberante paisagem americana e, por outro vis, a viabilidade do
expansionismo geogrfico e da propagao da f crist.
Oswald de Andrade desconstri esses textos, repetindo-os em forma de poema e
aproximando realidades temporalmente dspares64. Por meio de uma transcontextualizao
pardica do informativo histrico para o literrio moderno, ele conjuga o olhar para o passado
com a poesia de vanguarda. Oswald de Andrade retoma nomes, formas e valores. A exemplo
do ocorrido no conto Pierre Menard, autor do Quixote, do argentino Jorge Luis Borges, o
poeta instituiu, concomitantemente, mudana e distanciamento crtico.
Nesse conto, includo no livro Fices, de 1944, o narrador comenta por sinal,
em forma de pardia de uma resenha literria a empreitada de um autor fictcio do incio do
sculo XX, Pierre Menard, que resolveu reescrever Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de
Cervantes. No seria uma adaptao e muito menos uma transcrio mecnica. A sua ambio
seria produzir uma obra que coincidisse integralmente com a do autor espanhol, porm,
defende o narrador, seria em tudo diferente, porque no teria sido escrita por Cervantes, mas
por Menard, ou seja, a identidade de contedos no resistiria a diferentes contextos de
produo e recepo.
Uma coincidncia anloga se verifica na mencionada srie de poemas. Nela, a
estratgia de composio o trabalho de assimilao e de transformao acaba por ressaltar
determinados elementos caracterizantes no s da colonizao brasileira, mas tambm da
mentalidade dos colonizadores, demonstrando a possibilidade e a pertinncia de se
reinterpretar e reavaliar o texto matriz na sua relao com a pardia. Uma conexo
equivalente quela ressaltada por Umberto Eco:
64 HELENA, Lucia. Op. cit., 1985, p. 66.
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[...] al escribir este otro texto (o este texto como Alteridad) se llega a criticar al texto original o a descubrirle posibilidades y valores ocultos; cosa, por lo dems, obvia: nada resulta ms revelador que una caricatura, precisamente porque parece el objeto caricaturizado, sin serlo [...].65
Eles texto matriz e pardia no se destroem mutuamente. O texto ou mesmo
o discurso citado permanece presente. No mero pr-texto. portador de sentido,
mantido como sinalizao estilstica dotada de valor potico e, nem de longe, subjaz
esvaziado de funcionalidade.
Iderio e vocabulrio pardicos, dialgicos por excelncia, no calam seu(s)
texto(s) ou discurso(s) de origem. Estes, tornados materiais constituintes e, como tais, no
significando por conta prpria, no renunciam, entretanto, sua transitividade. Eles, que
outrora representaram e ora so representados, no deixaro, pois, de tornar a representar.
Redimensionados, todavia, pelo seu reflexo pardico so, ento, desnudados por um processo
de assimilao infinitamente superior ao do texto ou discurso monolgico corrente. Promove-
se uma fluncia quase didtica em cada conjunto ideolgico, cada histria, cada representao
ou, mesmo, cada aluso parodiada.
Em versos como esses da Histria do Brasil, a pardia apropria-se da Histria e,
por conseguinte, do tempo, jogando com a prpria vocao significante dos smbolos: se o
sentido dependente do contexto que rodeia a elocuo, uma vez situado fora do cenrio de
onde emergiu, o texto incorporado parodicamente , ento, guindado renovao atravs da
sua sntese. Transcontextualizado, ele acaba desnudado filosfica, social e, claro,
literariamente.
Motivos ednicos tais como a plena harmonia entre os seres, o desconhecimento
do Bem e do Mal, a inexistncia da morte etc seduziram cronistas e historiadores
quinhentistas que aqui aportaram.
O alemo Hans Staden, em Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner
Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt
America (1557), e os franceses Andr Thevet, em Les singularitez de la France
antarctique, autrement nomme Amrique; & de plusieurs terres et isles dcouvertes de
nostre temps (1558), e Jean de Lry, em Histoire dun voyage fait en la terre du Bresil,
autrement dite Amerique (1578), escreveram seus relatos autobiogrficos e suas narrativas de
aventuras do ponto de vista do exotismo e do extraordinrio. Entretanto, descries e
65 ECO, Umberto. Lector in fabula: la cooperation interpretativa en el texto narrativo. Traduo de Ricardo Pochtar. 3.ed. Barcelona: Editorial Lumen, 1993, p. 86.
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reflexes contidas nas obras de escritores portugueses revestiram-se de um carter pragmtico
e funcional.
Segundo Srgio Buarque de Holanda, a ateno dos autores lusos daquele perodo
voltou-se, sobretudo, para o episdico e para o pormenor, restando alguma vaga sugesto de
mistrio66 para a explicao de fatos, objetos ou seres que se encontravam alm de seu
conhecimento emprico e que, em princpio, desafiavam a ordem natural das coisas.
Um deles, o navegador e cosmgrafo Duarte Pacheco Pereira, na aurora do
Quinhentos, chega a declarar que a experincia, que madre das coisas, nos desengana e de
toda dvida nos tira67. Testemunho esse em consonncia com o Rei Duarte I quando
desaconselha a ao sem fundamento certo, nem cure de signos, sonhos ou topos de
vontade68. Ou, ainda, com o prprio Cames, quando, na estrofe 153 do Canto X dOs
Lusadas, dirigindo-se a Dom Sebastio, acerca do aprendizado da disciplina militar, ele
assevera:
De Formio, filsofo elegante, Vereis como Anibal escarnecia, Quando das artes blicas, diante Dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante No se aprende, Senhor, na fantasia, Sonhando, imaginando ou estudando, Seno vendo, tratando e pelejando.69
Da decorre uma viso relativamente sbria das terras descobertas que se faz notar
nas descries dos viajantes portugueses que aqui aportaram.
No Captulo 9 da sua Histria da provncia de Santa Cruz a que vulgarmente
chamamos Brasil, ao pretender narrar a histria de um monstro marinho morto na capitania de
So Vicente em 1564, Pero de Magalhes Gndavo descreve a criatura como tendo quinze
palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui
grandes como bigodes70. Muito assemelhado a um leo-marinho e bastante distinta daquela
66 HOLANDA, Srgio Buarque de. Viso do paraso. 6.ed. So Paulo: Brasiliense, 2007, p. 5. 67 PEREIRA, Duarte Pacheco. Apud HOLANDA, Srgio Buarque de. Ibidem, p.5. 68 Duarte I. Apud HOLANDA, Srgio Buarque de. Ibidem, p.11. 69 CAMES, Lus Vaz de. Os lusadas de Lus de Cames. Anotados e parafraseados por Campos Monteiro. 4.ed. Revista por Joaquim Ferreira. Porto: Editorial Domingos Barreira, s/d, p. 672. 70 GNDAVO, Pero de Magalhes. A primeira Histria do Brasil: histria da provncia Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Modernizao do texto original de 1576 e notas, Sheila Moura Hue, Ronaldo Menegaz; reviso das notas botnicas e zoolgicas, ngelo Augusto dos Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 130.
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contida em um texto que acompanha a gravura de uma edio italiana de 1565, segundo a
qual o monstro teria 17 ps, (...) cor verde e pastosa como veludo mole, as pernas e os ps
amarelos, o membro de carne humana, e os olhos e a lngua como fogo71.
Outro exemplo de tentativa de conciliao de fantasia e realidade, to cara aos
cronistas portugueses do perodo, verificado na obra de Gndavo, est no Captulo 3 do
Tratado da terra do Brasil. Acerca da longevidade dos seus habitantes, esta terra seria
muito salutfera e de bons ares, onde as pessoas se acham bem-dispostas e vivem muitos anos; principalmente os velhos tm boa disposio e parecem que tornam a renovar, e por isso alguns se no querem tornar s suas ptrias, temendo que nelas se lhes oferea a morte mais cedo72.
Gndavo abstm-se de mencionar cifras, reduzindo a tese da longevidade a
termos, em princpio, aceitveis.
Entretanto, o gegrafo italiano Antnio Pigafetta73, acompanhando a armada de
Ferno de Magalhes na viagem ao redor do mundo, em 1519, atesta que indgenas brasileiros
poderiam viver de cento e vinte e cinco a cento e quarenta anos. O missionrio francs Jean
de Lry74, por sua vez, tendo passado dez meses na colnia francesa estabelecida na Baa da
Guanabara, aonde chegara em 1557, admitia que muitos ndios alcanavam de cem a cento e
vinte anos de idade. J o capuchinho francs Claude DAbbeville75, que participou da
expedio francesa ao Maranho em 1612, assegurava ter lidado pessoalmente com
indivduos de cento e sessenta e at de cento e oitenta anos.
A precoce centralizao da monarquia portuguesa, que permitiu a pioneira
expanso ultramarina lusitana e um modo acima ilustrado pelas passagens da obra de
Gndavo mais pretensamente prximo de um olhar cientfico de lidar com o desconhecido
e de agir diante do maravilhoso pode sugerir uma errnea conotao de modernidade s
atitudes dos escritores e viajantes portugueses. Na verdade, serve mais para expor caracteres
da sociedade lusa ainda arraigada mentalidade medieval e alheia ao Renascimento.
71 NELLI, Nicolo. Nel Bresil di San Vicenzo nella Citta di Santos. Veneza, 1565. Apud GNDAVO, Pero de Magalhes. Op. cit., 2004, p. 127 (nota de rodap n. 1) 72 GNDAVO, Pero de Magalhes. Tratado de terra do Brasil In: CAMINHA, Pero Vaz; GNDAVO, Pero de Magalhes; SOUSA, Gabriel Soares de. A carta de Pero Vaz de Caminha e outras narrativas de viajantes. Campinas, SP: Komedi, 2009, p. 67. 73 PIGAFETA, Antnio. Apud HOLANDA, Srgio Buarque de. Op. cit., p. 250. 74 LRY, Jean de. Apud HOLANDA, Srgio Buarque de. Ibidem, p. 250. 75 DABBEVILLE, Claude. Apud HOLANDA, Srgio Buarque de. Ibidem, p. 256.
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Srgio Buarque de Holanda, em Viso do paraso, afirma que:
nada far melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episdico, avessos, quase sempre, a indues audaciosas e delirantes imaginaes, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e com o senso de unidade dos renascentistas, o pedestre realismo e o particularismo, prprios da arte medieval, principalmente de fins da Idade Mdia. Arte em que at as figuras de anjos parecem renunciar ao voo, contentando-se com gestos mais plausveis e tmidos (o caminhar, por exemplo, sobre pequenas nuvens, que lhes serviriam de sustentculo, como se fossem formas corpreas), e onde o milagroso se exprime atravs de recursos mais convincentes que as aurolas e nimbos, to familiares a pintores de outras pocas.76
A partir do sculo XVI, a capacidade de apreenso do real foi decisivamente
estimulada pelo desenvolvimento das Cincias Exatas e da observao da Natureza, contudo
essa noo de realidade s viria a ser obtida, em muitos casos, por vias tortuosas77.
Nesse sentido, Pico Della Mirandola78 assinala o desenvolvimento de crenas
mitolgicas da Antiguidade, experimentado na primavera da Idade Moderna. Adema