2013_RodrigoSilvaTrindade_VOrig

download 2013_RodrigoSilvaTrindade_VOrig

of 92

description

Esaú e Jacó

Transcript of 2013_RodrigoSilvaTrindade_VOrig

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA

    RODRIGO SILVA TRINDADE

    Bem-aventurados os que leem: formas simples em

    Esa e Jac, de Machado de Assis

    So Paulo

    2013

  • RODRIGO SILVA TRINDADE

    [email protected]

    Bem-aventurados os que leem: formas simples em

    Esa e Jac, de Machado de Assis

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Literatura Brasileira da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo, como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Letras.

    rea de Concentrao: Literatura Brasileira

    Orientador: Prof. Dr. Hlio de Seixas

    Guimares

    So Paulo

    2013

  • Nome: TRINDADE, Rodrigo Silva

    Ttulo: Bem-aventurados os que leem: formas simples em Esa e Jac, de Machado de Assis

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Literatura Brasileira da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo, como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Letras.

    rea de Concentrao: Literatura Brasileira

    Aprovado em: _____/_____/______

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ___________________________________ Instituio ___________________

    Julgamento: _______________________________ Assinatura ____________________

    Prof. Dr. ___________________________________ Instituio ___________________

    Julgamento: _______________________________ Assinatura ____________________

    Prof. Dr. ___________________________________ Instituio ___________________

    Julgamento: _______________________________ Assinatura ____________________

  • Para Juliana, Vilma, Raimundo e

    Phelipe, companheiros da vida.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, em quem creio.

    Aos meus pais, Vilma e Raimundo, pela forma dedicada e amorosa com que me conduziram

    at aqui e por incentivarem o meu gosto pela leitura desde as primeiras revistas em

    quadrinhos.

    Juliana, pelo encorajamento constante e por dividir a sua vida comigo.

    Ao meu orientador, professor Hlio de Seixas Guimares, por aceitar me conduzir nas leituras

    de Machado de Assis e seus crticos com pacincia desde os anos da graduao.

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, pela

    indelvel marca que deixou na minha vida.

    s professoras Berta Waldman e Ieda Lebensztayn, pelas preciosas observaes no exame de

    qualificao.

    Ao Colgio UNASP, por sempre disponibilizar o tempo necessrio para o desenvolvimento

    dos meus estudos.

    Aos colegas do grupo de pesquisa sobre a recepo crtica da obra de Machado de Assis, pelo

    peridico compartilhamento de suas leituras.

  • O que foi o que h de ser; e o que se

    fez, isso se tornar a fazer; nada h,

    pois, novo debaixo do sol.

    (Eclesiastes, Cap. 4)

  • RESUMO

    TRINDADE, Rodrigo S. Bem-aventurados os que leem: formas simples em Esa e Jac,

    de Machado de Assis. 2013. 92 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    O presente estudo prope-se a analisar o romance Esa e Jac, de Machado de Assis, levando

    em conta a fragmentao da narrativa em unidades menores denominadas por Andr Jolles

    como Formas Simples. Tal procedimento resulta na composio do romance como um

    mosaico faz com que o processo composicional se sobreponha histria que se conta.

    Partindo de leituras consagradas como as de Eugnio Gomes, Alexandre Eulalio, John

    Gledson, Roberto Schwarz e Hlio de Seixas Guimares, este trabalho prope como principal

    hiptese a de que o romance composto em movimento de dissoluo da narrativa em

    estruturas textuais cristalizadas e de ressignificao dessas unidades menores. Propomos que

    tal estrutura se apresenta como forma ideal para a reflexo proposta por Machado de Assis

    medida que corrobora a viso desalentadora do processo de transio do Imprio para a

    Repblica no Brasil do sculo XIX e suas implicaes no cotidiano burgus e individualista

    da sociedade carioca.

    Palavras-chave: Machado de Assis; Esa e Jac; formas simples

  • ABSTRACT

    TRINDADE, Rodrigo S. Blessed are those who read: simple forms in Esa e Jac, by

    Machado de Assis. 2013. 92 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    This work aims to study Esa e Jacs novel, written by Machado de Assis, considering the

    story fragmentation into smaller units denominated by Andr Jolles as Simple Forms. This

    proceeding results on the mosaic composition of the novel that overlaps the compositional

    process with the story. Through machadianos studies written by consecrated critics as

    Eugnio Gomes, Alexandre Elalio, John Gledson, Roberto Schwarz and Hlio Seixas

    Guimares, we raise as main hypothesis that the novel is composed of dissolution narrative

    process, through crystallized textual structures, and redefinition of these forms. We suggest

    that this structure presents itself as the ideal form for the reflection offered by Machado de

    Assis, as it confirms the disappointing vision of the transition from the Empire to Republic in

    Brazil, in 19th century, and its implication for bourgeoisie and individual life of Rio de

    Janeiros society.

    Keywords: Machado de Assis; Esa e Jac; simple forms

  • SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................... 10

    1 O ENXADRISTA E SEUS TREBELHOS: NARRADOR E PERSONAGENS EM

    CENA ....................................................................................................... 17

    2 O MITO E A ADIVINHA NA CONSTRUO DO ROMANCE ........................ 35

    3 LOCUES PROVERBIAIS E AFORISMOS ..................................................... 40

    4 SOBRE OS CASOS ................................................................................................ 51

    5 DE CERTO PAI S SE PODIA ESPERAR TAL FILHO: UMA POSSVEL

    INTERPRETAO SOBRE O PROCESSO COMPOSICIONAL DA OBRA ............. 68

    6 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 78

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 81

    APNDICE ....................................................................................................... 86

  • 10

    INTRODUO

  • 11

    Esa e Jac, penltimo romance de Machado de Assis, publicado em 1904, apresenta

    uma tcnica de construo narrativa que relembra, em muitos aspectos, procedimentos

    verificveis nas obras anteriores do mesmo escritor. Ademais, nessa obra o artista parece

    depurar e levar ao extremo alguns expedientes utilizados por ele desde a virada de 1880,

    com a publicao de Memrias Pstumas de Brs Cubas. Referimo-nos ironia,

    multiplicidade de referncias literrias, ao embate com o leitor e subverso de conceitos e

    discursos bem assentados nas camadas intelectualizadas e semiintelectualizadas do Rio de

    Janeiro do sculo 19.

    O escritor no entrega o sentido da obra de bandeja; ao contrrio, estabelece um

    enredo que desafia as expectativas do leitorado mdio. O narrador consciente da dificuldade

    de compreenso da matria que apresenta, da aparente ausncia de movimento da trama, mas

    em contrapartida recompensa o esforo intelectual de seu leitor fazendo uma exposio da

    prtica da escritura e escancarando o seu processo de composio, colocando assim o leitor

    diante de um interessante romance autorreflexivo.

    Em Esa e Jac, a dvida de Natividade sobre o futuro de seus filhos inaugura o livro.

    Os mais iguais que diferentes irmos Pedro e Paulo digladiam-se em um conflito que tem

    incio no ventre materno, segue com absoluta constncia durante o crescimento e perdura

    mesmo aps o aparecimento em cena do conselheiro Aires e da personagem Flora, que

    adensam a narrativa.

    O dilema de Flora na trama o de amar, no apenas um, mas dois homens: os

    desunidos irmos. A sua diviso entre os dois gmeos poderia produzir umas boas pginas de

    morno entretenimento; no entanto, Machado de Assis se afasta da obviedade e produz um

    romance sem grandes peripcias ou reviravoltas no enredo, mas repleto de alternativas que

    evidenciam a rebuscada tcnica da escritura. No final das contas, a incapacidade de deciso

    que leva a jovem Flora morte parece ser s o pretexto necessrio para levar as observaes

    do conselheiro Aires ao pblico.

    Trata-se de um consenso de crticos como Alexandre Eulalio que Esa e Jac o mais

    fragmentado dos romances machadianos; no entanto a descentralizao do enredo e a

    pulverizao de episdios no comprometem a unidade do romance: ao contrrio,

    estabelecem um mosaico que sugere ao leitor o todo da obra. Dessa forma, as observaes do

    conselheiro Aires, mais do que conduzir o leitor apreciao de episdios sem muita

  • 12

    importncia, revelam a perspectiva dominante no romance e que dever ser apreendida pelo

    leitor caso queira compreender o trabalho de arte elaborado por Machado de Assis.

    A composio do romance em forma de mosaico se d com tesselas maiores ou

    menores, sejam elas um caso isolado, anedota, simples adgio, mxima ou provrbio; todos

    eles com grande carga de significado individual e tambm para o conjunto do romance. O

    poder de sntese e ampliao de significado do fragmento pode estar contido tanto em uma

    micronarrativa como em uma s frase.

    Embora menos estudado pela crtica, h ensaios preciosos que lanam luz leitura de

    Esa e Jac e que parecem convergir em muitos aspectos sobre a sua natureza.

    Tomo como referncia os ensaios de Alexandre Eulalio, John Gledson e Hlio de

    Seixas Guimares, publicados respectivamente em Tempo reencontrado Ensaios sobre arte

    e literatura, Machado de Assis: Fico e Histria e Os leitores de Machado de Assis: o

    romance machadiano e o pblico de literatura no sculo 19. Esses autores se debruam sobre

    a obra verificando questes que fazem com que esse romance apresente estrutura parecida

    com a das demais obras de segunda fase do escritor, embora nele Machado carregue mais a

    pena no narrador em detrimento da matria narrada.

    Episdios de maior interesse do narrador, na sua maioria circundados por um

    significado relevante para o contexto sempre viro precedidos ou sucedidos por uma mxima,

    provrbio, adgio, caso ou anedota. O significado que normalmente se atribui a estes ou

    subvertido e se traduz dentro do romance em situaes inversas, descabidas, caricatas,

    cmicas ou grosseiras. Tal modo de construo conduz a percepes que questionam

    convenes, crenas e conceitos assentados, estabelecidos e bem aceitos na sociedade

    brasileira do perodo.

    Eugnio Gomes, em seu ensaio O testamento esttico de Machado de Assis, apresenta

    a obra Esa e Jac como unificadora dos procedimentos realizados em romances anteriores

    do escritor. Talvez aqui esteja um bom ponto de partida para o nosso entendimento. Nesse

    romance, segundo Gomes, Machado de Assis alcanaria um legtimo estado da arte.

    Nessa perspectiva, percebemos que o olhar machadiano conseguiu sintetizar

    experincias de propores histricas no simples caso de um burro que se recusa a sair do

    lugar ou ao do dilema de um pequeno empreendedor entre pintar ou no a tabuleta de sua

  • 13

    confeitaria. Da mesma forma, uma troca de partido poltico, cuja razo de ser pressupe a

    existncia de um iderio subjacente, pode no romance ser sintetizado em uma locuo

    proverbial que resume a ao em uma simples acomodao de interesses: No preciso ter

    as mesmas ideias para danar a mesma quadrilha.1

    Enquanto o leitor presumido persegue a unidade da obra e presunosamente tenta

    adivinhar o seguimento da histria que lhe contada, o narrador, precavido, o convida a

    constru-la em parceria, observando atentamente os episdios e reflexes aparentemente

    triviais que o conselheiro Aires apresenta estrategicamente pulverizados na composio do

    romance.

    De tal modo que, enquanto o leitor da obra busca uma fluida narrao, ele se depara

    com um sem nmero de episdios e ditos cristalizados que s ganham sentido se pensados

    dentro de uma perspectiva mais ampla. Em grande parte, os modelos dos quais o escritor

    lana mo so formas atualizadas dos modelos constituintes de toda estrutura ficcional; so

    elas o Mito, a Adivinha, o Caso, o Chiste, a Locuo e suas variaes como o provrbio, a

    mxima e o adgio. Nesse caso os conhecidos estudos de Andrs Jolles em seu Formas

    Simples nos serviro de ponto de partida.

    Por haver uma sistemtica ocorrncia das j mencionadas formas no romance,

    desenvolvemos a hiptese de que no se trata de apenas mais um recurso esporadicamente

    utilizado pelo narrador, mas sim de algo programaticamente explorado com o intuito de

    potencializar o efeito de sentido da obra e, atravs dos fragmentos, levar o leitor a uma

    reflexo mais aprofundada da matria em estudo e tambm do processo composicional. Isso

    tudo possvel graas peculiaridade do narrador-personagem o conselheiro Aires. Com

    esse artifcio, a figura do diplomata passa a ser elemento-chave na compreenso do romance,

    pois a histria toda marcada pelo seu olhar.

    A lgica apologal que observamos refere-se a uma estrutura narrativa na qual o

    narrador apresenta um conceito e o ilustra, no necessariamente nesta ordem. Ao longo da

    narrativa o que se observa a definio de uma tese que antes ou depois demonstrada por

    meio de uma pequena alegoria dentro da fbula principal.

    1 ASSIS, Machado de. Esa e Jac. Rio de Janeiro/Belo Horizonte. Livraria Garnier. 2005. p. 109.

    A partir deste ponto, todas as citaes do romance viro apontadas pela sigla EJ e o nmero da pgina

    correspondente.

  • 14

    Verificamos tal procedimento no captulo LV, que tem por ttulo uma reflexo de

    Aires, aquela por sua vez atribuda ao filsofo francs Proudhon: A mulher a desolao do

    homem. Temos a tese que ser ilustrada no curso do captulo:

    Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemo os

    ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e amparo, e, com

    poucas horas, Batista viu claro e ficou firme.

    Estamos porta do terceiro reinado, ponderou D. Cludia, e certamente o partido liberal no deixa to cedo o poder. Os seus homens so vlidos, a inclinao dos

    tempos para o liberalismo, e voc mesmo...

    Sim, eu...suspirou Batista.2

    Ao modo machadiano, a frase retirada do seu contexto e utilizada para estabelecer

    um ponto de vista de Aires sobre as equivocadas instrues de D. Cludia dadas ao seu

    marido Batista. Sabemos que no houve o Terceiro Reinado, e sim a Repblica; o que frustrou

    os planos polticos dos pais de Flora.

    Bem-aventurados os que ficam, porque eles sero compensados.3 Esse aforismo

    inspirado no provrbio bblico nos dado pelo narrador no captulo LI, para ilustrar a

    permanncia de Pedro no jantar em companhia de Flora jovem desejada por ele e seu

    irmo Paulo. O gmeo aparentemente levaria alguma vantagem nos planos de conquista de

    Flora em relao ao seu irmo/rival, pelo fato de estar presente.

    Bem-aventurados os que leem a obra de Machado de Assis, pois estes percebero que

    como na maioria das narrativas do escritor, as solues no se apresentam obviamente; ao

    contrrio, a atitude do irmo monarquista que poderia representar o fiel da balana na

    disputa pelo amor de Flora, converte-se em frustrao ao constatarmos que o jantar em nada

    contribui para a resoluo das dvidas da pretendida.

    Alm do ttulo do livro, a referncia bblica constantemente retomada no romance.

    o que acontece ainda nesse captulo quando, ao ilustrar uma troca de formalidades entre os

    Batista e os Santos, o narrador arremata a cena com um: Tambm se devem perdoar. Em

    suma, o perdo chega ao cu. Perdoai-vos uns aos outros, a lei do Evangelho.4 O dilogo

    realizado pelo narrador machadiano com essas formas elementares da narrativa, seja da esfera

    2 EJ, p. 132-134.

    3 EJ, p. 124.

    4 EJ, p. 122.

  • 15

    popular ou com textos consagrados, se d obviamente de maneira peculiar, posto que o autor

    reconhecidamente lana mo da pardia.

    Ademais, observa-se que frases que se cristalizam no imaginrio coletivo, no

    escapam da subverso semntica proveniente das sagazes observaes do conselheiro. O

    procedimento de desconstruo e reconstruo de sentidos bem estabelecidos recorrente na

    obra.

    Dessa forma, percebemos que perto do final da sua produo ficcional, o autor parece

    fazer uma reviso dos expedientes usados por seus narradores, sejam eles o pirotcnico Brs

    Cubas ou o melanclico Bento Santiago. Em Esa e Jac, Machado expe a sua tcnica

    atravs da figura do conselheiro Aires que integra sua histria diversos discursos ou

    fragmentos de discursos evidenciando as fissuras da trama que devem ser completadas pelo

    leitor.

    Contudo, o narrador do romance divide as interpretaes dos episdios com as suas

    personagens, estendendo tambm ao leitor a possibilidade de reflexo sobre a matria

    apresentada. Justifica-se assim no romance apresentao de muitas das Formas Simples em

    discurso direto.

    Propor ento que o narrador conduz a sua narrativa com mo frouxa, entregando a

    responsabilidade da conduo da trama s personagens e ao leitor seria um equvoco que este

    trabalho busca no cometer, ao contrrio, nossos esforos nos captulos que se seguem so os

    de valorizar a complexa construo ficcional sob a pena firme de um autor que domina a sua

    prtica e partilha com o seu pblico os bastidores do seu ofcio.

    Feitas essas observaes preliminares, o que se pretende em Bem-aventurados os que

    leem: formas simples em Esa e Jac, de Machado de Assis, analisar como o narrador

    machadiano apropria-se dos modelos das narrativas primitivas constituintes da literatura,

    denominadas por Andr Jolles como Formas Simples, inserindo-as numa obra cuja

    complexidade reside principalmente nas reflexes atribudas ao conselheiro Aires, bem como

    na extenso e repercusso que se do no plano das personagens inseridas no ao acaso no

    complexo e atribulado contexto brasileiro de transio do sculo XIX para o XX.

    Finalmente, a nosso ver, o romance programaticamente se articula em torno das

    formas simples e atravs delas sintetiza de maneira exemplar questes que transitam da fico

  • 16

    realidade e que so abordadas em toda a obra. Alicerada na figura do conselheiro Aires,

    responsvel pela problematizao da forma da escritura, a obra revela de modo muito

    particular a tcnica que Machado de Assis desenvolve na construo do romance.

  • 17

    1. O ENXADRISTA E SEUS TREBELHOS: NARRADOR E

    PERSONAGENS EM CENA

  • 18

    Ab ovo ou ltimo. Estes foram dois dos ttulos cogitados para a narrativa que ao final

    acabou se chamando Esa e Jac. Das duas possibilidades refutadas, a segunda intitulava o

    manuscrito que teria dado origem obra.5

    Emblemticas essas escolhas, levando em conta seus significados diametralmente

    opostos. Princpio e fim foram considerados para dar nome a uma obra de carter

    aparentemente distinto do das demais do escritor. Um romance que se pensa como o alpha e o

    mega de um projeto literrio de um artista pode sugerir um exerccio metaficcional que

    revele tanto suas entranhas quanto suas finalidades.

    Na Advertncia do romance, o leitor informado que, embora fizesse parte de um

    conjunto de sete cadernos do conselheiro Aires, o ltimo seria o que teria alguma relevncia;

    de todos, portanto, este seria o nico conhecido at 1908, ano em que Machado de Assis

    publica o Memorial de Aires.

    Como vimos, no podemos descartar a possibilidade de que enquanto produzia o que

    julgava ser o seu ltimo romance, Machado de Assis pretendesse dar a ele um sentido

    mximo de universalidade que pudesse sintetizar a sua produo. Dessa forma no podemos

    prescindir na anlise da presena de seu olhar.6

    Esa e Jac, conforme j observado pela crtica, principalmente a representada por

    John Gledson e Alexandre Eulalio, possui uma composio diversa da dos demais romances

    do escritor fluminense. A comear pelo dado autoral, que se apresenta logo na Advertncia

    como ambguo:

    (...) Sim, era o ltimo dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso,

    mas no fazia parte do Memorial, dirio de lembranas que o conselheiro escrevia

    desde muitos anos e era a matria dos seis. No trazia a mesma ordem de datas, com

    indicao da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure

    aqui o prprio Aires, com o seu nome e ttulo de conselho, e, por aluso, algumas

    aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha matria dos seis cadernos.

    ltimo por qu?7

    5 Informao contida em GLEDSON, John. Machado de Assis Fico e Histria. Rio de Janeiro. Paz

    e Terra. 2003. p. 245. 6 Conceito emprestado do crtico Alfredo Bosi em BOSI, Alfredo. Machado de Assis: O enigma do

    olhar. So Paulo. Martins Fontes. 2007.

    7 EJ, p. 17.

  • 19

    Toda a narrativa atribuda ao Conselheiro Aires, diplomata de carreira, observador e

    personagem relevante da trama em questo, de maneira que o que chega ao leitor no seriam

    apontamentos esparsos como os do Memorial e sim um romance com o tipo de unidade que

    supe esse gnero.

    Tal procedimento sugere uma narrativa peculiar, na qual o narrador apreende-a da

    realidade por ele testemunhada e a compartilha com seu leitor. Curiosamente, Aires no se

    apresenta como, embora seja, a grande personagem da trama. Coloca-se em segundo plano,

    pondo em evidncia o tringulo amoroso que nunca de fato se realiza e, conforme sugere o

    seu ofcio de diplomata, participa somente para mediar o conflito.

    Nesse personagem se concentram as principais peculiaridades da obra. Ele

    desempenha o papel de narrador, sendo tambm o suposto autor do caderno que origina o

    romance, confundindo-se com a figura de Machado de Assis. No entanto, esse narrador de

    difcil definio que efetua o ponto de contato entre o leitor e a obra propriamente dita. ele

    que supe diferentes tipos de leitores para o romance. Ao conversar com o leitor apressado,

    com a leitora enfadada ou com a jovem enamorada, estabelece relativa proximidade com o

    pblico.

    No temos, assim, uma simples relao bidimensional entre narrador e leitor. Ela

    perpassada por interferncias. Vejamos no esquema a seguir:

  • 20

    Esquema 1 Relaes entre autor, narrador-personagem e leitor

    Machado de Assis

    Autor emprico

    Aires

    Autor suposto e personagem da trama

    Narrador

    Mescla indissocivel entre o Autor suposto e o Autor emprico

    Leitor

    Instituio presumida

    pelo narrador

    Leitor real

  • 21

    Atribumos presena de Aires uma oniscincia peculiar do narrador de Esa e Jac8.

    Os lapsos deixados pelo conselheiro nas suas anotaes so compensados pela interferncia

    do narrador, que aproximamos do autor emprico.

    Porque nada h pior que falar de sensaes sem nome. Crede-me, amigo meu, e tu,

    no menos amiga minha, crede-me que eu preferia contar as rendas do roupo da

    moa, os castelos apanhados atrs, os fios do tapete, as tbuas do teto e por fim os

    estalinhos da lamparina que vai morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se (...)9

    Observa-se que o dilogo proposto pelo narrador transcende a simples negao de

    construir uma obra que se limite s descries, mas revela tambm uma angstia na

    constatao da insuficincia das palavras para traduzir a profundidade da alma humana, dado

    que por si s j dotaria a obra de complexidade. Este um drama do narrador, tambm do

    autor da obra, produtor de fico consciente de que a narrativa no d conta da apreenso da

    realidade, pois ela tambm fragmento.

    H na obra um interessante dilogo entre fico e a realidade historicamente situada

    no contexto do Rio de Janeiro entre a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, e os

    primeiros anos da Repblica. Parece haver na pena machadiana uma descrena no processo

    poltico-social brasileiro que se materializa nos antolhados irmos Pedro e Paulo. Emergindo

    de uma realidade de difcil compreenso, diferentes personagens em episdios fragmentados

    constroem um painel que se organiza no romance justapondo a histria do Brasil com o

    cotidiano prosaico de diversos segmentos da sociedade brasileira.

    A essa matria narrativa somada uma multiplicidade de referncias que variam desde

    a mitologia greco-romana at as histrias e crenas da tradio judaico-crist, passando por

    autores clssicos como Goethe, Cames, Victor Hugo e Dante.

    A propsito, a esse ltimo se deve a epgrafe do livro:

    (...) O que o bero d s a cova o tira, diz um velho adgio nosso. Eu posso,

    truncando um verso ao meu Dante, escrever de tais inspidos:

    8 O crtico Alfredo Bosi diferencia os narradores da obra machadiana da seguinte maneira: Se nos ativermos

    repartio convencional entre narradores oniscientes e narradores subjetivos, teremos, de um lado, os romances

    Quincas Borba e, parcialmente, Esa e Jac, e, de outro, as Memrias pstumas de Brs Cubas, Dom Casmurro

    e Memorial de Aires. BOSI, Alfredo. Figuras do narrador machadiano In Machado de Assis. So Paulo: Instituto Moreira Salles (Cadernos de Literatura Brasileira, n. 23 e 24), 2008. p. 129. 9 EJ, p. 187. Grifo nosso.

  • 22

    Dico, Che quando l anima mal nata...10

    Os versos extrados da Divina Comdia surgem no mesmo captulo em que

    apresentado o principal personagem da obra o conselheiro Aires. Observando a insipidez

    dos convidados da casa dos Santos, o diplomata traduz o seu enfado em um adgio popular

    compreensvel a qualquer leitor do romance.

    Com a citao de um clssico da literatura, Aires revela seu refinamento. Ao

    simplific-lo com um simples provrbio, o conselheiro demonstra a sua capacidade de

    mediao, prpria do ofcio de diplomata ao qual se dedicou, e tambm revela, na

    simplicidade da forma escolhida para descrever as suas impresses, a total desimportncia que

    atribua aos convidados que prestigiavam o evento organizado por Natividade.

    E continua:

    Ora, a est justamente a epgrafe do livro, se eu lhe quisesse pr alguma, e no me

    ocorresse outra. No somente um meio de completar as pessoas da narrao com

    as ideias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro

    penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.11

    A epgrafe do livro que apontada como chave de leitura da obra no se dirige apenas

    aos convidados de Natividade na noite em que Aires reproduz os versos de Dante, ou seja,

    no so as nicas almas malfadadas do romance. O enfado causado por estas a Aires

    tambm se estende maioria das personagens que compem a obra, incluindo os tambm

    inspidos irmos Pedro e Paulo, embora estes sejam tratados pelo conselheiro com maior

    interesse.

    Embora a citao de Dante seja o pontap inicial da obra, o que ajuda a compreender a

    sua existncia dentro do romance a forma simples do provrbio. Sendo assim, quando o

    narrador convida o leitor do livro a tom-la como par de lunetas para melhor compreenso da

    obra, podemos sugerir que no olho direito esteja o texto do autor italiano, mas no da esquerda,

    tangencial, porm muito importante, esteja o simples ditado popular, o adgio nosso. 10

    EJ, p.50 11

    EJ, p.50-51

  • 23

    O verso italiano aceita em seu final a traduo mal nascida, possivelmente fazendo

    referncia no texto machadiano ao nascimento da Repblica no Brasil. Dessa forma, pode

    representar uma possvel viso do contexto poltico brasileiro em Esa e Jac.

    O perodo to particular na histria do Brasil que Machado de Assis registra ainda nos

    seus primeiros passos tambm pode ser reduzido em adgio nosso, na expresso popular o

    que o bero d s a cova o tira.

    Cabe aqui observarmos a concepo de estado Republicano tal qual se desenvolveu no

    Brasil, a partir da viso do historiador Jos Murilo de Carvalho:

    (...) O Estado aparece como algo a que se recorre, como algo necessrio e til, mas

    que permanece fora do controle, externo ao cidado. Ele no visto como produto

    de concerto poltico, pelo menos no de um concerto em que se inclua a populao.

    uma viso antes de sdito que de cidado, de quem se coloca como objeto da ao

    do Estado e no de quem se julga no direito de a influenciar (...)12

    Ora, o bero da Repblica no caso brasileiro foi o Imprio, e provavelmente a

    Monarquia brasileira no tenha sido um grande modelo poltico a ser copiado; de tal forma,

    regidos pelos interesses das grandes elites, os movimentos internos da mquina administrativa

    nos primeiros anos da Repblica representaram poucos avanos em comparao com o

    regime anterior.

    Percebemos assim que o verso que inaugura o romance contm um potencial

    irradiador e insere-se como elemento fundamental para a compreenso do romance.

    Verificamos que o romance apresenta uma estrutura que sistematicamente se reafirma

    e que ordena a narrativa: o narrador da obra constri cada episdio pautado no padro de

    estrutura aforismo-ilustrao. O captulo XCII expe esse procedimento:

    12

    CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras. 1997. pp. 146-147.

  • 24

    Enfim, que segredo h que se no descubra? Sagacidade, boa vontade, curiosidade,

    chama-lhe o que quiseres, h uma fora que deita c para fora tudo o que as pessoas

    cuidam de esconder. Os prprios segredos cansam de calar calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, que serve melhor imagem. Cansam, e ajudam a

    seu modo aquilo que imputamos indiscrio alheia.13

    Temos aqui uma mxima. A preocupao do narrador no consiste na incapacidade

    humana de guardar segredos, tampouco na impossibilidade de eles serem guardados, mas no

    iminente tringulo amoroso dos irmos e Flora que j se fazia saber em Petrpolis cidade de

    repouso de onde Pedro e Paulo sempre retornavam prematuramente ou para onde deixavam de

    ir, no intuito de estarem mais prximos da jovem. No meio de toda a situao est Aires,

    detentor do segredo e responsvel por sua manuteno.

    Embora anunciada no captulo XXVIII e nos dois seguintes, Flora objeto principal

    de convergncia e de rivalidade entre os gmeos aparece no romance apenas no captulo

    XXXI, sob o rtulo de inexplicvel, atribudo a ela por Aires. No capitulo seguinte, ao leitor

    dado conhecer a histria de vida do ex-diplomata. A ligao entre os dois captulos se d

    com uma mxima extrada do Memorial: Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem,

    agrava.14

    A mxima se explica a princpio pela preferncia que Aires tinha pela companhia

    feminina. O voltarete proposto e praticado pelos homens parecia menos interessante a ele do

    que o olhar questionador de Flora, que desde o primeiro contato com o conselheiro estabelece

    com ele uma ligao irreversvel. Tambm justifica uma pretensa necessidade de aproximar a

    personagem da presumida leitora com quem o narrador conversava no captulo XXVII:

    O que a senhora deseja, amiga minha, chegar j ao captulo do amor ou dos

    amores, que o seu interesse particular nos livros. Da a habilidade da pergunta

    como se me dissesse: Olhe que o senhor ainda nos no mostrou a dama ou damas que tm de ser amadas ou pleiteadas por estes dois jovens inimigos. J estou cansada

    de saber que os rapazes no se do ou se do mal; a segunda ou terceira vez que

    assisto s blandcias da me ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, s

    duas, se no uma s a pessoa...15

    13

    EJ, p. 203. Grifo nosso. 14

    EJ, p. 82. 15

    EJ, p. 76.

  • 25

    Esse Aires que acabamos de ver responsvel pela apresentao do conflito, pelas

    intervenes realizadas no texto e pelo olhar reflexivo e esclarecido, por meio do qual o leitor

    observa e julga os caracteres da obra, realizando desde o princpio do romance uma

    convocao reflexo.

    J em 1904, em comentrio publicado no peridico O Paiz, Alcides Maya capta as

    variaes que a obra apresenta:

    (...) variaes marcam amiudamente o estylo humorstico: do enthusiasmo ao

    desdem, da f ardente suprema negao, da apotheose dos vultos heroicos ao

    excessivo rebaixamento dos inferiores a eloquencia e o sarcasmo alternam,

    imprimindo s sentenas, j breves, fulgurantes, incisivas, j longas e magestaticas,

    agora solemnes e minutos aps pungitivas e acerbas, uma feitura singular e

    antagnica (...)16

    A percepo do crtico, manifestada no calor da publicao da obra, no vazia,

    corroborando a ideia de que o romance chama a ateno pelo seu carter episdico,

    fragmentrio, que oscila entre discursos, entre um tipo de registro e outro.

    John Gledson afirma em seu livro Machado de Assis Fico e Histria ser Esa e

    Jac um romance distinto dos anteriores de Machado, a princpio, e por propiciar ao leitor um

    sentimento de estranhamento.

    (...) Enquanto todos os outros romances dependem, em grande proporo, da intriga

    amorosa, frequentemente com insinuaes, de adultrio e traio, o enredo central

    de Esa e Jac parece calculado para desapontar, logo de incio, todas as

    expectativas relacionadas com coisas desse tipo ao mesmo tempo em que se desenrola perversamente o romance, como se esses estmulos ao interesse do leitor

    ainda estivessem nele presentes (...)17

    Alm desse dado, existe a questo do modo como a obra se apresenta, trazendo um

    narrador que narra o narrado, uma vez que temos uma narrador que se debrua sobre a

    16

    MAYA, ALCIDES. MACHADO DE ASSIS. O PAIZ, Rio de Janeiro, 8.10.1904. p. 1. In GUIMARES, Hlio

    de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: O romance machadiano e o pblico de literatura no sculo 19. So

    Paulo. Nankin/Edusp. 2004. 17

    GLEDSON, John. Machado de Assis: Fico e Histria. So Paulo. Paz e terra. 2003. p. 187.

  • 26

    histria narrada nos cadernos do conselheiro, e o fato de ser o nico romance machadiano que

    mais diretamente alegoriza um perodo histrico do Brasil.

    Um dado importante que o tempo histrico no se confunde com o tempo da

    narrao, o que evidencia ainda mais a mediao arbitrria do narrador no manejo da trama.

    Verificam-se com facilidade as constantes paradas, retornos, digresses, avanos, revelaes e

    omisses nos fatos que so dados ao leitor.

    A sensao de fastio manifestada pelo conselheiro quebra a expectativa do presumido

    leitor habituado a enredos movimentados , pois o narrador no imprime tenso

    histria. Ao contrrio, muitas vezes abandona os fatos de sua narrativa para refletir.

    As referncias fase de transio entre o Imprio e a Repblica, bem como aos

    arranjos realizados pela elite carioca para adaptar-se nova situao tambm esto presentes

    na obra.

    Pelo modo aparentemente superficial como Machado de Assis tangencia questes

    sociais, histrias e polticas, dentro dessa obra, crticos como Eugnio Gomes18

    e Affonso

    Romano de SantAnna19 buscaram interpret-las como sendo elas de menor importncia para

    a anlise.

    Gledson discorda desses autores, pois nota que mesmo no levada to a srio, a

    histria no pode ser olvidada em uma anlise que se preocupe em se aproximar o mximo

    possvel da inteno autoral. O crtico realiza um estudo da alegoria criada no romance,

    sobretudo aquela manifestada nas figuras de Pedro e Natividade, respectivamente

    simpatizante e smbolo alegrico da Monarquia, e Paulo e Flora, efusivo simpatizante e

    smbolo da esperana frustrada da Repblica.

    Ao iluminar a questo histrica, o ensasta privilegia o estudo da alegoria

    estabelecendo um ponto de partida consistente para a compreenso do romance de 1904.

    Nossa hiptese dialoga de perto com a leitura de Gledson, pois notamos que Machado de

    Assis reduz a casos e aforismos questes de aparente densidade, tais como a conjuntura

    18

    GOMES, Eugnio. O testamento esttico de Machado de Assis In: MACHADO DE ASSIS. Obra completa, v.3. Rio de Janeiro. Nova Aguilar. 1992. pp. 57-79.

    19 SANTANNA, Affonso Romano de. Esa e Jac. In: Anlise estrutural de romances brasileiros. Petrpolis.

    Vozes. 1973. pp. 116-152.

  • 27

    poltica e social do Brasil, revelando assim o mais do mesmo em qualquer fato que se julgue

    novo, bem como a fragilidade das bases nas quais se assentam tranquilamente as elites.

    Contrastando com a aparente insignificncia da conjuntura social e poltica, temos

    problematizada e elevada ao inexplicvel a indeciso amorosa de uma jovem extremamente

    incomum se comparada ao crculo de veleidades em que est inserida. Temos ento a riqueza

    da humanidade de Flora contrastando com o cenrio poltico-ideolgico insosso no qual esto

    inseridos os gmeos.

    ***

    O primeiro captulo do romance apresenta Natividade, esposa do banqueiro Santos e

    tpica representante da elite carioca do sculo 19, desconfiada, subindo o Morro do Castelo na

    companhia de sua irm Perptua. Seu propsito era consultar uma cabocla a quem se atribua

    o dom de prever o futuro, para conhecer o destino de seus filhos gmeos Pedro e Paulo.

    A propsito, o primeiro captulo o que guarda a maior movimentao do livro. Uma

    grande quantidade de elementos apresentada neste momento. Temos duas mulheres que

    secretamente vo a um morro carioca pela primeira vez. Sua visita desperta a curiosidade dos

    transeuntes, suscitando especulaes.

    A multiplicidade de personagens enorme e suscita expectativa e curiosidade: a

    crioula, o sargento, a lavadeira, o lojista, o padre, o carteiro, o velho caboclo violeiro. O

    prprio narrador sugere que ali ocorria uma espcie de aventura.

    porta da casa, as duas irms do de encontro com dois homens que haviam acabado

    de consultar a cabocla. Um deles, frustrado pela predio que recebera, adverte s mulheres

    que ...ho de ouvir muito disparate.20O companheiro retruca: mentira dele, emendou

    o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.21

    20

    EJ, p. 20. 21

    Ibidem. Grifo meu.

  • 28

    Essa expresso corriqueira inaugura as Formas Simples do romance. Embora obscura,

    a mensagem transmitida pelo Provrbio popular sugere que, sendo dotada de poderes

    sobrenaturais, mais ainda de sagacidade, a cabocla sabia o que dizer aos seus visitantes.

    Ainda procurando se situar, o leitor informado que Maria o primeiro nome de

    Natividade. Interessante a relao de Natividade com o seu nome de batismo; embora

    comum, trata-se de mais um elemento da tradio judaico-crist, sobre a virgem que por obra

    do Esprito Santo deu a luz ao Redentor da humanidade.

    Mais interessante ainda perceber que o nmero da senha de espera que recebe para ser

    atendida pela cabocla do Castelo 1012 , somadas s suas dezenas, resultam no versculo

    do Gnesis em que h a luta no ventre de Rebeca entre os irmos Esa e Jac: Os filhos

    lutaram no ventre dela; ento, disse: Se assim, por que vivo eu? E consultou ao Senhor.22

    Natividade, que em vez do Senhor vai consultar a cabocla do Castelo, substituindo a

    tica judaico-crist pela religio afro-brasileira, recebe uma mensagem cifrada e pouco

    esclarecedora sobre o que reservaria o destino aos seus filhos. Brbara o orculo

    adivinha ou sugere que no ventre materno os irmos teriam lutado. Natividade reconhece

    nessa afirmao uma verdade. De fato teria sofrido com dores no perodo de gestao, o que

    confere credibilidade cabocla do Livramento.

    Contendo a primeira predio que lhe veio aos lbios, se limita a informar que os

    gmeos tero, cada um ao seu modo, um futuro grandioso. A cabocla sabe muito bem onde

    tem o nariz. Consciente da sua funo de fornecer alento e agradar queles que a consultam,

    Brbara produz um discurso que pode ser interpretado como melhor aprouver ao seu

    interlocutor.

    Se por um lado esse recurso deixa em aberto o destino dos personagens e do romance,

    para que nele o narrador manipule os seus trebelhos como queira e mantenha a expectativa do

    pblico; por outro o orculo aponta para o que est no horizonte do romance, ou seja, o nada.

    Cousas futuras.23

    O ttulo do segundo captulo extrado do canto V de Os lusadas, de Lus de Cames:

    Melhor de descer que de subir. Na obra original a frase proferida por um marinheiro ao

    22

    Livro de Gnesis, Captulo 25, versculo 22. In A Bblia Sagrada Traduzida em Portugus por Joo Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2 Edio. So Paulo: SBB. 1993. p. 26. 23

    EJ, p. 24.

  • 29

    descrever um outeiro. A frase tomada isoladamente aceita uma poro de significados e

    interpretaes que procuraremos problematizar.

    Faz-se revelante a noo topogrfica presente na cantiga do serto interpretada pelo

    pai da cabocla:

    Menina da saia branca,

    Saltadeira de riacho,

    Trepa-me neste coqueiro,

    Bota-me os cocos abaixo.24

    Os versos seriam uma espcie de mensagem codificada ilustrando o processo de busca

    do orculo pela sabedoria dos deuses, em que a menina da saia branca da cano representaria

    Brbara; o coqueiro, o canal de comunicao com a divindade.

    Retornando ao captulo II, sabe-se que os outeiros, por serem altos eram dos preferidos

    para as preces e oferecimento de sacrifcios e oferendas aos deuses. Embora obscura, a

    mensagem da cabocla do Castelo foi muito bem recebida por Natividade que paga ao orculo

    muito mais do que era usual. A referncia de Creso, no captulo II, parece de maneira indireta

    confirmar essa leitura, j que o rei da Ldia notabilizou-se pela generosidade para com Ptia,

    orculo de Delfos, que tambm falava dobrado; por conta de uma interpretao equivocada

    por parte do rei, a Ldia foi derrotada pela Prsia.

    Sintetizado no ttulo do captulo, percebemos um painel composto por no mnimo trs

    elementos distintos, porm complementares na narrativa: o outeiro de Cames, o orculo de

    Delfos e o morro do Castelo, sendo que este se caracteriza por no ter na fico, tampouco na

    realidade carioca do sculo XIX, o mesmo prestgio da epopeia portuguesa ou dos reis da

    antiguidade. Talvez por isso seja melhor desc-lo do que subi-lo.

    A respeitvel Natividade se preocupa em no ser reconhecida, pois arranharia a sua

    imagem o fato de ser associada ao universo popular das crendices; ou seja, embora fosse no

    alto do Morro do Castelo que estivesse a desejada revelao, foi mais satisfatrio deix-lo do

    que l estar, ainda que fosse sem uma resposta suficientemente compreensvel e inequvoca.

    24

    Ibidem.

  • 30

    A perspectiva dominante da obra seguir esta tendncia: a de se apropriar do elemento

    amplo e estabelecer uma sntese em frase ou narrativa curta modalizando o referencial

    apresentado com a realidade local, procurando familiarizar a matria com o leitor, no

    fazendo com isso uma literatura simples, mas de grande flego e ampla densidade.

    A promessa de futuro glorioso para os filhos d conforto a Natividade e preenche o

    seu orgulho. Tendo recebido o alento da cabocla, do lugar secreto e marginal, Natividade

    volta ao oficial e bem aceito socialmente ao conceder a esmola ao irmo das almas,

    representante da tradio catlica.

    A profecia da cabocla a acompanha como refrigrio durante o crescimento dos irmos

    que vivem em total desarmonia e nutrem opinies aparentemente opostas sobre os mais

    variados temas, sobretudo em seus posicionamentos polticos.

    Natividade, a quem interessavam questes superficiais como a obteno de um ttulo

    de baronesa, testemunha a constante m relao dos filhos. Busca amparo menos na figura do

    seu marido, capitalista preocupado em adaptar-se s alteraes na transio Imprio-

    Repblica, do que na sabedoria avessa discrdia e no esprito agregador do Conselheiro

    Aires.

    Pedro e Paulo, embora idnticos em feies, so muito diferentes entre si.

    Aparentemente. Verificaremos que as diferenas de posicionamento poltico entre os irmos

    refletem apenas o seu mesmo gosto pelo usufruto do poder, seja ele a ateno dos que os

    cercam ou as regalias do cargo de deputado.

    Repelem-se, mas so parecidos. Pedro calculado e monarquista. Paulo explosivo e

    republicano. Veremos que essa classificao no estanque: pelo contrrio, possvel

    verificar uma complexidade subjacente ao entediante e infindvel conflito entre os irmos.

    O diplomata nomeado por Natividade rbitro das desavenas e conselheiro oficial

    dos irmos e da jovem Flora, que v seu universo dividido entre o amor aos dois irmos e a

    sua incapacidade de optar por um deles. O conselheiro exerce um papel de leitor privilegiado,

    que interfere e infere coisas do que observa e vive. Um tom irnico e muitas vezes pouco

    preocupado com os fatos que descreve caracteriza as suas opinies e impresses de autor. J

    como personagem, as relaes que desenvolve com os seus interlocutores de intensa

    amabilidade e cheia de meias-palavras. Podemos relacionar o conselheiro Aires com a cabocla

  • 31

    do Castelo; tambm ele uma espcie de orculo que fala dobrado. Se h algum dentro da

    narrativa que se acerca de uma verdade, este sujeito Aires, posto que do alto da sua

    experincia e capacidade de observao, consegue se distanciar emocionalmente do conflito

    fraterno.

    Natividade de fato sabe a quem recorrer: primeiro Cabocla e depois ao conselheiro;

    no entanto no recebe respostas e solues de nenhum deles. Brbara, caso tenha sabido do

    destino dos gmeos, optou por no comunicar-lhe, enquanto que Aires prefere pairar sobre a

    questo da discrdia entre Pedro e Paulo e aprofundar-se efetivamente na questo de Flora,

    que para ele essencialmente mais importante.

    Pairando sobre esse universo, temos ainda os tragicmicos Batista e D. Cludia,

    respectivamente caracterizados pelo aspecto governamental e paixo 25 pela poltica,

    qual servem e da qual tambm se servem. o casal que protagoniza a cena mais cmica do

    romance, em que a esposa tenta convencer o marido da sua condio de liberal, diante da

    perda de influncia do partido conservador, ao qual pertencia.

    Voc estava com eles, como a gente est em num baile, onde no preciso ter as mesmas ideias para danar a mesma quadrilha.

    Batista sorriu leve e rpido; amava as imagens graciosas e aquela pareceu-lhe

    graciosssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela inspirou-lhe uma

    refutao pronta.

    Sim, mas a gente no dana com ideias, dana com pernas. Dance com o que for, a verdade que todas as suas ideias iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na provncia acusavam a voc de apoiar os

    liberais (...)26

    O dado histrico que a narrativa sugere, ou seja, a relao direta entre o romance e o

    processo histrico brasileiro, insere um elemento novo no conjunto de romances

    machadianos. At a publicao de Esa e Jac, a ao se concentrava em experincias mais

    ou menos relevantes na vida das personagens. Em Esa e Jac, h um ritmo muito peculiar, o

    que provoca o fastio do leitor, e inclusive do narrador da obra.

    O aparecimento de Flora potencializa a desunio entre os irmos. Esse dado

    trabalhado maneira romntica poderia dotar o romance de maior interesse, pois poderia

    25

    EJ, p. 81. 26

    EJ, pp.109-110.

  • 32

    sugerir uma srie de conflitos mais efetivos entre as personagens. Afinal um tringulo

    amoroso seria o suficiente para ativar o interesse do leitor; no entanto a jovem no consegue

    optar entre um ou outro irmo e deve sua morte nos moldes romnticos a essa

    indeciso.

    Salta aos olhos a ausncia de fluidez na narrativa. Observamos que no lugar dela h

    um intencional refreamento da histria conferindo-lhe um carter lacunar, fragmentrio.

    Temos no captulo XXIX, A pessoa mais moa, um exemplo de interrupo

    intencional que, aparentemente, muito pouco ou quase nada acrescenta narrativa:

    A pessoa mais moa no entra j neste captulo por uma razo valiosa, que a

    convenincia de apresentar primeiro os pais. No que se no possa v-la bem sem

    eles; pode-se, os trs so diversos, acaso contrrios, e, por mais especial que a

    acheis, no preciso que os pais estejam presentes. Nem sempre os filhos

    reproduzem os pais. Cames afirmou que de certo pai s se podia esperar tal filho, e

    a Cincia confirma esta regra potica.27

    Machado traz sob a mscara da banalidade questionamentos tpicos do ficcionista,

    como a apresentao da ordem dos fatos e a perspectiva que deve ser adotada ao narrar. Feito

    isso, o narrador atribui a Cames uma locuo que muito provavelmente j fora utilizada

    antes do escritor portugus, sem marca autoral, pertencente cultura.

    Alis, essa expresso j havia sido parodiada em Memrias Pstumas de Brs Cubas,

    no captulo XI: O menino pai do homem. Neste, o defunto Brs Cubas rememora a sua

    infncia de maldades e traquinagens, qual atribui a sua amoralidade e o seu carter

    questionvel.

    Aqui, nada dado ao leitor sem que haja uma interrupo que prove ou demonstre

    alguma tese do narrador; no existe neutralidade por parte dele, tampouco interesse na

    simples narrao dos fatos. Nas duas narrativas, tanto a de Brs Cubas como a de Aires, existe

    a necessidade por parte dos narradores de legitimar o seu ponto de vista com elementos

    externos e de indubitvel credibilidade. Nos dois casos, esses elementos vm

    preferencialmente dos discursos da cincia e da arte.

    27

    EJ, p. 77. Grifo nosso.

  • 33

    No entanto, a personagem Flora desmente tanto a viso determinista da cincia quanto

    a potica de Cames, afinal a jovem altamente complexa e inexplicvel, conforme

    anuncia Aires prpria moa, diferentemente de seus pais, que representam no romance a

    empobrecida luta pela sobrevivncia no jogo de poder. Flora est alheia s contingncias da

    vida, parece passar ao largo das convenes sociais.

    Dessa forma vemos quem em Esa e Jac parece haver um casamento interessante

    entre o como se diz e o que se diz, de tal maneira que a progresso da trama, submetida ao

    ritmo do narrador, interrompida pela sua reflexo sintetizada na curta locuo proverbial,

    pde definir o perfil de uma personagem central na trama.

    Alexandre Eulalio prope em seu O Esa e Jac na obra de Machado de Assis: as

    personagens e o autor diante do espelho28, que o romance gira em falso, pois falta

    complexidade s questes dos gmeos. Apenas os personagens Flora e Aires aproximam-se

    mais da perseguida profundidade humana, existindo entre eles uma atrao determinante para

    a compreenso da obra. Aires tem por propsito decifrar a jovem moa, que por sua vez se

    sente impelida a compreender os motivos de tanto interesse em si.

    No que diz respeito forma, o crtico aponta que a narrativa se d em um sistema

    organizado de aforismos e aplogos. O aforismo seria a enunciao de uma situao: citao,

    frase ou provrbio. O aplogo traria a dramatizao ou representao imediata da frase.

    (...) A narrao do Esa e Jac, conforme vimos, sustentada logo e logo por um narrador onisciente, prope, desse modo, o emprego de elementos comuns aos

    outros romances do escritor a pardia, o tom heri-cmico, o enfoque picaresco embora de modo mais discreto do que acontece naquelas obras. Agora diretamente

    interessa a Machado uma discusso cmico-retrica do entrecho, que seja ao mesmo

    tempo descrio do processo narrativo e anlise do prprio texto que, ele autor, est

    compondo. E esse identificar de planos justifica de novo a glosa das figuras de

    retrica, das variaes do discurso, da tcnica de tudo aquilo que lhe permite talhar em fatias seja a mesma realidade fenomnica, seja a representao narrativa dessa

    mesma realidade (...)29

    O crtico amplia a interpretao da obra sugerindo que o romance machadiano seria

    uma construo sistemtica de aplogos entrecortada por episdios significativos. A verdade

    28

    EULALIO, Alexandre. Esa e Jac: narrador e personagens diante do espelho In: Tempo reencontrado: Ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro. IMS/Editora 34. 2012. pp. 109-138. 29

    Ibidem, p. 115.

  • 34

    que emerge desses fragmentos seria o produto final do trabalho irnico ao qual Machado de

    Assis submete a sua matria ficcional.

    Aproveitando o alcance dessa leitura, sugerimos que Machado prope uma discusso

    do seu texto, de modo que descreve e analisa o processo narrativo medida que o produz.

    Ora, do que estamos falando afinal? Da ironia machadiana? Das digresses que

    constantemente atravancam o processo narrativo? Do aparente refinamento do autor? Sim,

    mas no apenas.

    O autor estaria em Esa e Jac colocando-se na posio de crtico da prpria obra,

    submetendo tambm o seu fazer artstico a uma discusso. Ao focalizar a sua ateno mais

    nos entrechos do que na trama, chama a ateno do leitor para o processo composicional, para

    a estrutura da fico e no apenas para a obra acabada. Dessa maneira, trata tambm do

    processo histrico que a obra obviamente sugere e nele se insere na condio de produtor de

    arte numa sociedade em transio.

  • 35

    2. O MITO E A ADIVINHA NA CONSTRUO DO

    ROMANCE

  • 36

    Pensamos existir no romance em estudo a recorrncia intencional a procedimentos

    narrativos anteriores ao prprio conceito de literatura, porm dela constituintes, situados no

    plano da oralidade. Resqucios da sabedoria popular e das narrativas primitivas, textos

    advindos da tradio oral, da cultura popular, a que Andrs Jolles nomeou Formas Simples

    que embora no sejam literatura, servem como base s Formas Atualizadas, e por fim s

    Artsticas, lugar dos gneros literrios.

    Em Esa e Jac, em cada pausa no texto, em cada reflexo realizada pelo narrador e

    em cada reflexo que convida o leitor a realizar, verificamos haver um sistema bem ordenado

    de micronarrativas que, alm de estruturar o texto ficcional, o constri revelando as bases nas

    quais ele se estabelece.

    O estudioso Andr Jolles, em Formas Simples30

    , aponta as trs principais correntes

    crticas que nortearam o estudo da literatura no decorrer da histria. Seriam elas a corrente

    esttica, que apreende o Belo; a histrica, cujo foco est no sentido do texto; e por fim, a

    morfolgica, que, diferente das demais, dedica-se a estudar as formas que precedem a fixao

    definitiva do texto, procurando apreender a poesia no como produto final, mas onde ela

    ganha razes, isto , na linguagem31.

    Esta ltima privilegia os elementos que, ainda que presentes na obra de arte, no a

    constituem em sua totalidade. Dessa forma, a partir de cada realizao artstica, o estudioso

    pode analisar quais foram as formas que se combinaram de maneira a constituir um sistema.

    Em suma, o mtodo morfolgico busca determinar e interpretar as Formas que se agregam

    num estgio anterior Forma artstica, intituladas Formas Simples.

    O estudioso enfatiza a condio criadora do homem que, diante dos elementos

    pertencentes natureza, substancia seus fenmenos em objetos de pensamento e os converte

    em Formas.

    As Formas Simples seriam, segundo a viso do estudioso, anteriores aos gneros

    literrios e independentes de um gnio criador ou, principalmente, de uma marca autoral, pois

    emanam do prprio coletivo. Jolles prope tambm que elas constituem a base da teoria

    literria, entendendo que a Forma Artstica estudada pela crtica o produto final possvel e

    acabado de uma dada disposio mental consciente do artista.

    30

    JOLLES, Andr. Formas Simples. So Paulo. Cultrix. 1976. 31

    Idem. p. 18.

  • 37

    A Forma emerge da disposio mental do indivduo defrontado com uma situao

    especfica, que atravs do gesto verbal remodela-a atravs de um dado esquema lingustico

    que diz e significa o ser e o acontecimento.

    A estrutura narrativa que busca encontrar respostas para a cultura de muitas

    sociedades, prope significados e reflexes de longo alcance a forma simples chamada

    Mito. Consagrada e indispensvel tradio literria, est notadamente presente no romance.

    A tradio da Bblia Sagrada uma das muitas referncias presentes em Esa e Jac -

    est pontuada pelos vnculos de sangue e de herana que existem desde o Mito do pecado

    original de Ado e Eva que submeteu o homem herana da maldio, ao passo que o filia

    linhagem de Abrao como recebedor das promessas do Deus dos israelitas.

    No captulo VI, temos:

    Leitor, no muito que percebas a causa daquela expresso e desses dedos

    abotoados. J l ficou dita atrs, quando era melhor deixar que a adivinhasses; mas

    provavelmente no a adivinharias, no que tenhas o entendimento curto ou escuro,

    mas porque o homem varia do homem, e tu talvez ficasses com igual expresso,

    simplesmente por saber que ias danar sbado. Santos no danava; preferia o

    voltarete, como distrao. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava

    grvida, acabava de o dizer ao marido.

    Aos trinta anos no era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu mais que ela o

    prazer da vida nova. Eis a vinha a realidade do sonho de dez anos, uma criatura

    tirada da coxa de Abrao, como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou

    mais tarde, e agora emprestam generosamente o seu dinheiro s companhias e s

    naes (...)32

    O vnculo que o narrador estabelece entre a notcia da gravidez de Natividade e a Saga

    do povo hebreu, representado por seu patriarca Abrao, refora no romance a sua perspectiva

    histrica. Machado usa de ironia ao aludir perseguio ao povo judeu durante o perodo da

    Inquisio promovida pela Igreja de Roma nos pases europeus e suas colnias, contrastando

    com o papel relevante exercido pelos judeus encabeando as instituies financeiras que

    ditam as regras no mundo capitalista.

    O escritor parece sugerir que a tica e a crena inerentes aos descendentes dos hebreus

    no ferem os princpios das demais civilizaes desde que continuem sustentando as relaes

    estabelecidas atravs do capital.

    32

    EJ, p. 33.

  • 38

    O registro bblico serve de princpio para a compreenso da Forma Simples chamada

    Mito. Faz-se importante salientar que o termo Mito, segundo adotamos em nosso estudo, no

    significa o oposto de verdade, como se observa em algumas acepes dessa palavra.

    Exemplificado atravs de um exemplo do Gnesis, no qual Deus cria todas as coisas

    segundo a Sua vontade, a Forma Mito responde a uma pergunta realizada pelo homem ao

    universo: Quando o universo se cria assim para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar

    a Forma a que chamamos Mito.33

    Do outro lado do Mito, na combinao pergunta-resposta, est a Adivinha. Atualizada

    com o passar dos tempos, est presente no entretenimento; na seo de passatempos dos

    jornais e revistas no formato de palavras cruzadas, bem como na construo de enigmas em

    romances policiais.

    A Adivinha tem o seu foco totalmente voltado para a forma da pergunta, sendo ela

    menos uma tentativa de produo de conhecimento do que o atestado de uma resposta

    previamente sabida; logo o resultado da pergunta no uma soluo, mas uma resoluo.

    Brbara, a cabocla, no encerra a questo de Natividade quando d uma resposta

    evasiva sobre o futuro dos gmeos, mas a resolve. Cede simpatia da me e reproduz com

    parcial sucesso a resposta que estava formulada j no ntimo de quem a veio consultar.

    A disposio mental que move a adivinha o sentimento de fechamento, a

    necessidade de cifrar um conhecimento que possui um determinado valor a fim de abrir as

    possibilidades para mltiplas interpretaes.

    At aqui verificamos que o saber, necessidade do homem, est representado de

    diferentes maneiras nas duas Formas Simples verificadas. O saber produzido que est

    diretamente relacionado ao conhecimento oferece dois caminhos: o saber determinado e

    concretizado faz parte do mbito do Mito, enquanto que o saber cifrado pertence Adivinha.

    O ttulo do livro pautado no Mito hebraico. O livro de Gnesis apresenta os netos de

    Abrao e filhos de Isaac e Rebeca: Esa e Jac. Os gmeos teriam lutado no ventre de sua

    me e voltariam a lutar pelo direito primogenitura na idade adulta. Jac foge de seu irmo

    33

    JOLLES, Andr. Formas Simples. So Paulo. Cultrix. 1976. p. 88.

  • 39

    para as terras de Labo34

    , seu parente, e retorna anos mais tarde dando nome ao povo de

    Israel.

    Tendo como ttulo do livro os nomes dos irmos bblicos, dois dos patriarcas do povo

    de Israel e como nome dos protagonistas Pedro e Paulo, os difusores do cristianismo, o

    romance de Machado de Assis incorpora o universo do Mito, prprio das formas simples,

    sugerindo que Antigo e o Novo Testamento da Bblia Sagrada podem ser sintetizados nos

    gmeos Pedro e Paulo.

    Com forte referncia no universo judaico-cristo, que tem por princpio dar conta de

    todos os questionamentos do universo, inclusive os da vida e da morte, Machado de Assis

    inaugura o romance. Com a figura de uma Adivinha em um morro carioca, o autor situa no

    plano da realidade a recusa a dar respostas diretas para perguntas mal formuladas do universo

    burgus, propondo-se a tratar de mais assuntos do que normalmente se espera de uma obra de

    fico que ... apenas daria (e talvez d) para matar o tempo da barca de Petrpolis.35

    34

    O episdio bblico foi motivo para um soneto de Lus de Cames sobre o amor de Jac por Raquel, filha de seu protetor. 35

    EJ, Advertncia, p. 17.

  • 40

    3. LOCUES PROVERBIAIS E AFORISMOS

  • 41

    Embora j as tenhamos mencionado anteriormente neste estudo, dedicaremos

    particular ateno anlise dos provrbios, adgios e mximas, por estes constiturem a maior

    parcela das formas presentes no romance.

    Andr Jolles apresenta a forma simples chamada locuo como matriz das formas

    atualizadas que j mencionamos no pargrafo acima. Alm delas existem outras atualizaes

    como as sentenas, pensamentos, ditos e aforismos que tambm esto fortemente presentes no

    romance em estudo. Embora este trabalho analise as Formas Simples, no caso da forma

    chamada Locuo, faz-se importante observar as nuances que diferenciam as Formas

    Atualizadas que dela partem.

    Conforme o estudioso:

    (...) falamos de um universo da experincia, mas evidente que tal universo, pelo prprio fato de ser emprico, divide-se de acordo com os interesses, as ocupaes e a

    experincia de cada classe e de cada meio experincias que se conjugam e se encerram em universos distintos.

    36

    Conclui-se que as Locues sintetizam a experincia de um segmento especfico,

    identificando um conhecimento prprio de cada mbito. Essa condensao de pensamento

    parece agradar muito ao narrador machadiano, que no poupar o uso dessas Formas no

    romance:

    Quando um no quer, dois no brigam, tal o velho provrbio que ouvi em rapaz, a melhor idade para ouvir provrbios. Na idade madura eles devem j fazer parte da

    bagagem da vida, frutos da experincia antiga e comum. Eu cria neste; mas no foi

    ele que me deu a resoluo de no brigar nunca. Foi por ach-lo em mim que lhe dei

    crdito. Ainda que no existisse era a mesma cousa (...)37

    Evidencia-se no excerto, para alm do reforo do j conhecido carter conciliador do

    conselheiro, uma conscincia do valor da experincia do sujeito que antecede os modos de

    represent-la, como o caso desse segmento ao qual chamaremos simplesmente Provrbio.

    36

    JOLLES, Andr. op cit. p. 134. 37

    EJ, pp. 233-234.

  • 42

    Continuemos com os provrbios. Nbrega, o pedinte, ao receber a esmola para a missa

    das almas, reflete de si para si: Aquelas duas viram passarinho verde, com certeza...38

    Nem o passarinho nem coisa alguma, a expectativa criada pelas duas irms ao

    encontrar a cabocla paradoxalmente frustrada e bem sucedida ao mesmo tempo. A rigor, as

    senhoras se do por satisfeitas simplesmente por no obterem nenhuma resposta negativa

    acerca do destino dos gmeos.

    Mais adiante, ao chegar em casa, Natividade deixa escapar em francs uma mxima ao

    marido: On ne prete quaux riches39

    Aires, no captulo XIII, confidencia em seus cadernos, e em segunda mo ao leitor:

    O que o bero d s a cova o tira, diz um velho adgio nosso.40

    Esse adgio dialoga com a epgrafe do livro, explicada no final do captulo que trata da

    descrio do conselheiro Aires:

    Dico, che quando lanima mal nata...41.

    O narrador machadiano, conforme j vimos mais acima, utiliza um adgio para tentar

    dar conta de explicar qual a leitura que faz do verso de Dante, e como este pode iluminar o

    entendimento da obra.

    Mas afinal, o que caracteriza o adgio? Segundo Srgio Roberto Costa, essa forma

    consiste em uma ... sentena moral de origem popular, curta, rimada ou no...42. Nesse

    sentido, diferencia-se da Mxima, porque esta no produzida obrigatoriamente com um

    sentido moral, pode expressar tambm ... uma observao de valor geral (...) ou mesmo

    pensamento dito sem qualquer conotao de valor.43

    O prprio narrador nos indica o valor de cada uma de suas Locues. No episdio em

    que o confeiteiro Custdio lhe anuncia a transio de poder do Imprio para a Repblica, o

    38

    EJ, p. 26. 39

    EJ, p. 40. No se empresta seno aos ricos. Fala de Natividade ao marido, aps contar sobre a visita cabocla do Castelo. 40

    EJ, p. 50 41Digo, que quando a alma () mal nascida Verso de Dante Alighieri, extrado da Divina comdia, canto V do Inferno. Com esse verso, o poeta italiano quer significar aquela alma que transforma em mal o bem da vida doado por Deus. In ASSIS, Machado de. Esa e Jac. tica. So Paulo. 2005. p. 15.(N.E.) 42

    COSTA, Srgio Roberto. Dicionrio de gneros textuais. Belo Horizonte. Autntica. 2009. p. 28. 43

    Ibidem, p. 146.

  • 43

    narrador descrente do processo histrico atravessado pelo Brasil atribui ao conselheiro o

    seguinte pensamento: (...) Uma de suas mximas que o homem vive para espalhar a

    primeira inveno de rua, e que tudo se far crer a cem pessoas juntas ou separadas. S s

    duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do imprio. 44

    De tal forma, as mximas revelam uma viso aparentemente mais superficial do

    mundo, e no uma caracterizao profunda. Ainda assim podemos desconfiar do que em

    Machado de Assis possa parecer desimportante, pois sabemos que no h inocncia na pena

    do escritor. Nesse caso, podemos identificar a inteno de se colocar em xeque a unanimidade

    e a falsa credibilidade que advm da falta de esclarecimento ou das armadilhas da retrica, ou

    ainda, da mentira bem contada.

    Retomando o verso da Divina Comdia, tanto ele quanto o popularesco adgio

    extrado das anotaes do diplomata transmitem a ideia de falncia e de desesperana que

    permeiam todo o romance, desde a fragilidade do enredo at o carter rasteiro das

    personagens. Aires enxerga a superficialidade de quase todos com quem convive no crculo

    da famlia Santos, atribuindo-lhes o adjetivo inspidos, exceo feita a Natividade e ao

    padre que pelo seu ofcio tende a manifestar diplomacia similar a do conselheiro.

    Embora partcipe do ncleo insosso da trama, consegue manter dele um

    distanciamento crtico e parece transferir esse posicionamento ao seu narrador que, por sua

    vez, o repassa como um par de lunetas ao leitor da obra.

    A disposio mental da Locuo tem a capacidade de traduzir tais experincias em

    uma construo verbal acessvel a todos os pblicos. Machado de Assis, ao desenvolver

    diversos tipos de concepes de leitor, far bastante uso dessa forma no curso do romance

    Esa e Jac.

    De maneira geral, o Provrbio forma atualizada mais popular da Locuo tem

    origem em esferas sociais especficas. Podemos exemplificar No se deve cantar vitria

    antes da batalha., vem do meio militar, No faas a outrem o que no queres que faa para

    ti, provm do universo judaico-cristo. Alis, um procedimento que se faz recorrente no

    romance o tratamento dispensado aos provrbios provenientes da Bblia Sagrada ou em

    dilogo com esta, cuidando sempre de modificar os seus sentidos originais.

    44

    EJ, p. 153.

  • 44

    Faz-se necessrio observar que o provrbio, embora filiado Forma Simples chamada

    Locuo, se faz notvel por ser mais complexo do que as demais atualizaes, como o adgio.

    Somadas as caractersticas que a este so atribudas, temos na forma do provrbio: ... [frase]

    rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou

    moral...45.

    Da podemos observar a especial ateno que Machado de Assis dedica s escrituras

    bblicas. Os livros de Salmos, Provrbios e Eclesiastes so extremamente ricos nessas

    construes e intensamente aludidos pelo narrador do romance.

    Ainda assim, indiretamente parece haver um alerta sobre a liberdade com a qual o

    narrador tratar o texto sagrado. Ele incorpora ao romance frases que pela sua estrutura e

    repetio se cristalizaram ou foram incorporadas ao repertrio coletivo, ou seja, passaram

    pelo processo de aforizao46

    . Caso semelhante decorre na subverso de um aforismo.que

    prenuncia a apresentao da personagem Flora: O que se deve crer sem erro que Deus

    Deus; e, se alguma rapariga rabe me estiver lendo, ponha-lhe Al. Todas as lnguas vo dar

    ao cu. 47

    O que se pode notar que Al, para o narrador, s mais uma das muitas formas de

    chamar a Deus. No final das contas o efeito ser o mesmo. No entanto, podemos e devemos

    desconfiar desse aviso, j que uma alterao no nome ou na frase pode resultar em uma

    completa modificao no sentido. Por ora, vejamos os captulos XXXII e XXXIII.

    Neles, narra-se a volta do conselheiro Aires ao Brasil aps uma longa ausncia no

    cumprimento do ofcio de diplomata. Ele resolve recolher-se solido no intuito de repousar

    do convvio das pessoas:

    Como era dado a letras clssicas, achou no Padre Bernardes esta traduo daquele

    salmo: Alonguei-me fugindo e morei na soedade. Foi a sua divisa. Santos, se lhe dessem, f-la-ia esculpir, entrada do salo, para regalo dos seus numerosos amigos.

    45

    Ibidem, p. 171. 46

    Para um melhor aprofundamento no conceito de aforizao, consultar MAINGUENEAU, Dominique. Doze

    conceitos em anlise do discurso. MAINGUENEAU, Dominique. Aforizao enunciados sem texto? In: POSSENTI, Srio; SOUZA-E-SILVA, Maria Ceclia Perez de. (Orgs.). Doze conceitos em anlise do discurso.

    So Paulo. Parbola Editorial. 2010. 47

    EJ, p. 77.

  • 45

    Aires deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a recitar calado, parte pelo

    sentido, parte pela linguagem velha: Alonguei-me fugindo e morei na soedade. 48

    O apreo de Aires pela traduo do salmo 55 se d no apenas pelo que o trecho diz,

    mas pela antiguidade da linguagem que a produz, ou seja, a interveno do padre Bernardes

    no texto se mostra indispensvel para o seu uso e repetio, porque a autoridade eclesistica,

    logo, um dos intrpretes oficiais das escrituras sagradas confere credibilidade apario no

    romance da passagem bblica.

    O conselheiro era avesso controvrsia, o que provocou de certa maneira o seu

    recolhimento, que mais tarde lhe produziria tdio e o desejo de estar novamente entre as

    pessoas.

    (...) A pouco e pouco sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a

    saudade do riso, e no tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no

    emprego da recreao. A solido, tanto no texto bblico como na traduo do padre,

    era arcaica. Aires trocou-lhe uma palavra e o sentido; Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente.49

    A variao de sentido nessa segunda passagem revela um interesse pelo

    comportamento humano que no final das contas o objeto de maior preocupao do

    conselheiro. Se no perodo em que esteve recolhido Aires escrevia sobre o mar, o mato e as

    igrejas, nas observaes presentes em Esa e Jac Aires se dedica a tratar sobre as pessoas,

    suas relaes, vcios e virtudes.

    Morar entre a gente para o conselheiro significou observar as caractersticas que

    compem as relaes humanas, talvez na tentativa de achar nela algo passvel de anlise e

    distrao. No entanto, roda de Aires havia pessoas que no faziam jus sua capacidade

    analtica; quem de fato o desafia a menina Flora.

    Parece haver entre a experincia do auto-isolamento e o retorno para o meio da gente

    uma reflexo sobre a prpria prtica da escritura, que materialmente se d quase sempre no

    refgio solitrio do escritor, ao mesmo tempo em que carece da sua presena no lugar em que

    48

    EJ, pp. 85-86. Grifo nosso. 49

    EJ, p. 87.

  • 46

    as relaes humanas acontecem para que haja material para o seu ofcio. Ao mesmo tempo,

    Aires parecia sentir ainda em meio grande multido a sensao da solido, do tdio que a

    coletividade carente de profundidade causa ao homem esclarecido e intelectualizado.

    Mais uma vez h a noo de vazio nas relaes coletivas, embora haja muito que

    observar no indivduo. Se as relaes humanas esvaziadas de sentido e significado no

    fornecem material suficiente para o escritor, ento por que e como escrever? A soluo que

    parece ser encontrada pelo narrador de Esa e Jac investir na reflexo profunda e na

    tentativa de traduzi-la em experincia para o seu leitor. Frases so dadas como plulas, que

    possibilitam aos leitores irem pouco a pouco absorvendo o que se espera transmitir com a

    obra.

    H no captulo 4 do livro de Mateus a seguinte passagem: No s de po viver o

    homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. O narrador de Esa e Jac

    reconstri o verso da seguinte maneira: No s de f vive o homem, mas tambm de po e

    seus compostos e similares.50

    O contexto da inverso de sentido do verso bblico no romance uma reflexo feita

    acerca do destino da congregao religiosa do ento falecido sacerdote Plcido. Em meio a

    questes de dissidncia de seus membros, o narrador pondera sobre a necessidade de Santos

    consultar atravs de atividade medinica o sbio doutor, ao que estava impossibilitado devido

    ao seu envolvimento em urgentes transaes financeiras.

    Faz-se necessrio perceber a multiplicidade de significados que podem ser atribudos a

    essa referncia bblica. Jesus Cristo fora tentado no deserto por Satans, submetido a jejum

    durante quarenta dias. Quando o tentador que oferecia o domnio sobre o mundo ao filho de

    Deus sugeriu a este que transformasse pedras em pes, Cristo profere a conhecida fala.

    Observando a importncia e a relevncia que tinha a religio na rotina do banqueiro, o

    narrador sugere que as atividades econmicas estariam em primeiro plano, relegando as

    verdades espirituais e as questes doutrinrias da crena a um papel secundrio. Afinal, na

    lgica capitalista que visa o lucro contnuo, ainda mais sendo o pai de Pedro e Paulo um dos

    grandes representantes desse sistema, no caberia entre as suas prioridades a deliberao com

    os espritos.

    50

    EJ, p. 184.

  • 47

    Santos parece ser nesse momento o alvo da ironia do narrador. O anseio que este tem

    em encontrar algum que valha a pena explorar, descrever, desvendar, parece esbarrar nas

    necessidades elementares que a realidade dos personagens apresenta, sendo estes movidos

    apenas pelas demandas da vida, o que, de certa maneira, produz no narrador uma espcie de

    decepo, um desalento.

    Observando mais atentamente, Aires parece fazer um interessante jogo no s com

    provrbios conhecidos, mas com qualquer espcie de frase cristalizada. O exemplo do texto

    bblico tpico para a observao desse processo, pois trata-se talvez do maior exemplo de

    cristalizao possvel de ser realizado em um texto. Machado parece dissolver o sentido

    inicial do texto preservando a sua estrutura, mas transformando o seu sentido.

    Com isso, o narrador parece no ter limites. A preservao do sentido de qualquer

    frase ou narrativa cai por terra diante da implacvel pena machadiana e sob a perspectiva do

    afiado conselheiro.

    Podemos entender mais acerca do conselheiro Aires em uma considerao que faz

    sobre a enseada, durante conversa com a famlia Santos:

    -- Aqui est uma obra, que mais velha que o tinteiro do Evaristo e a tabuleta do

    Custdio, e, no obstante, parece mais moa, no verdade, D. Perptua? A noite

    clara e quente; podia ser escura e fria, e o efeito seria o mesmo. A enseada no difere

    de si. Talvez os homens venham algum dia a atulh-la de terra e pedras para levantar

    casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida de cavalos.

    Tudo possvel debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, baro, que

    morreremos antes.51

    D. Perptua e o velho Custdio so dois sujeitos presos ao passado, apegando-se a

    antigos smbolos que os ajudam a viver. O apego s lembranas de outros tempos

    consubstanciadas em um objeto o tinteiro e a tabuleta o motivo principal dos dois Casos.

    Nesse contexto, a forma refreia a narrativa e inegavelmente sugere questes: O que h

    de original nas transformaes que se apresentam para os personagens da obra? Qual o real

    valor do novo?

    51

    EJ, p. 121. Grifo nosso.

  • 48

    Aires parece ponderar sobre a volubilidade das coisas do mundo, sobre as quais podem

    sobrevir as maiores transformaes e, no final das contas, nada mudar. O que remete a mais

    uma referncia da Bblia Sagrada que parece ter sido parafraseada em toda a passagem.

    Lembremo-nos do livro de Eclesiastes, cuja escritura atribuda ao rei Salomo, de

    Israel, que depois de todas as experincias vividas faz consideraes sobre a existncia e

    aconselha s novas geraes sobre o modo adequado de se viver:

    (...) Gerao vai e gerao vem; mas a terra permanece para sempre.

    Levanta-se o sol, e pe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo.

    O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte, volve-se, e revolve-se, na sua

    carreira, e retorna aos seus circuitos.

    Todos os rios correm para o mar, e o mar no se enche; ao lugar para onde correm os

    rios, para l tornam eles a correr.

    Todas as coisas so canseiras tais, que ningum as pode exprimir; os olhos no se

    fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.

    O que foi o que h de ser; e o que se fez, isso se tornar a fazer; nada h, pois,

    novo debaixo do sol.52

    As consideraes de Aires muito se assemelham s de Salomo. Este, por ser

    reconhecidamente um sbio, pode ter servido de inspirao ao narrador que considera que

    tudo pode acontecer no mundo e no ser novidade. Obviamente, como estamos

    acompanhando, nenhuma passagem ser reproduzida pelo narrador do romance com as suas

    intenes originais sem que passe pelo seu crivo e sistemtica alterao.

    O narrador sistematicamente se esquece das fontes s quais recorre para reproduzir

    pequenas plulas de sabedoria popular. No episdio em que os irmos temem pela partida de

    Flora, o narrador despretensiosamente reflete:

    Paulo soube ento tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo

    o resto. Ambos naturalmente sentiram a separao prxima. A dor os fez amigos por

    instantes; uma das vantagens dessa grande e nobre sensao. J me no lembra

    quem afirmava, ao contrrio, que um dio comum o que mais liga duas pessoas.

    Creio que sim, mas no descreio do meu postulado, por esta razo que uma cousa

    no tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.53

    52

    Eclesiastes, cap. 4, p. 677. 53

    EJ, pp. 139, 140.

  • 49

    Enquanto Salomo declara a ausncia de novidades no ciclo da vida, pois tudo que

    ocorreu no passado volta a se repetir no presente, o conselheiro lembra que qualquer coisa

    pode ser modificada, ainda que seja para se repetir, desde que atenda s necessidades da

    sociedade que detenha os meios para realiz-la. Com bastante pessimismo, o conselheiro se

    satisfaz com o fato de no estar vivo para ver em que se transformaro algumas coisas.

    Diferentemente do rei de Israel, no assume qualquer compromisso ou posicionamento,

    apenas se isenta de qualquer espcie de considerao sobre tudo o que vir depois de si.

    O sbio conselheiro parece ter esse mesmo tipo de inteno com os provrbios que

    elege. Os provrbios que se seguem uns aos outros no final das contas parecem dizer a mesma

    coisa de formas diferentes.

    Da mesma forma que observamos a inteno da epgrafe do livro, extrada do verso de

    Dante, podemos notar que as demais formas parecem reafirmar o mesmo princpio. Vejamos

    uma pequena sequncia:

    O que o bero d s a cova o tira.54

    tudo a mesma farinha (...)55

    (...) de certo pai s se podia esperar tal filho (...)56

    Temos nesses exemplos a noo de origem e projeo para um futuro desanimador,

    almas mal-nascidas que se proliferam no romance, atravessadas pela perspectiva de Aires que

    contamina no s a narrao, mas inclusive as falas das personagens e todas as suas aes.

    Estando os aforismos presentes em todo o texto, neles se encontram a principal noo do

    romance que a conscincia do todo, da relativizao de tudo, a partir da perspectiva de Aires

    para quem nada mais era novidade, nada havia no mundo que lhe pudesse produzir euforia.

    Ao contrrio do irmo, D. Rita que abriga Flora no princpio da sua molstia no intuito

    de possibilitar a ela novos ares, cr nos arranjos felizes que a Providncia pode produzir e

    sugere uma terceira via indeciso da jovem. Para ela, o casamento com o capitalista

    Nbrega poderia ser a soluo efetiva para os problemas sentimentais da enferma. O antigo

    irmo das almas entrega senhora uma carta com o pedido de casamento:

    54

    EJ, p. 50. 55

    EJ, p. 70. 56

    EJ, p. 77.

  • 50

    (...) D. Rita ficou contentssima. Justamente o que ela queria. Tinha o plano feito de

    concluir, por ato seu, uma histria melanclica, a que daria, por derradeira pgina,

    concluso deslumbrante. No pensou em diz-lo primeiro ao irmo, pela razo de

    querer que ele recebesse a notcia completa, tudo feito e acabado. Releu a carta;

    disps-se a ir logo, mas h pessoas para quem o adgio que diz que o melhor da festa esperar por ela, resume todo o prazer da vida. D. Rita tinha essa opinio(...)

    57

    Mas, como o romance revela repetidamente, nada plenamente resolvido, e Flora

    rechaa o pedido do casamento, seu estado de sade piora quase que imediatamente. Ela no

    seria feliz casada com Nbrega na mesma medida em que no seria feliz ao optar por um dos

    irmos, pois isso representaria mutilar-se, perder uma parte vital.

    O adgio O melhor da festa esperar por ela pode se aplicar muito bem queles que

    no se constituem como sujeitos ntegros e profundos como Flora e Aires. Este nada espera e

    em nada se surpreende; ao contrrio, contenta-se em analisar na mincia as rasteiras

    motivaes dos homens, enquanto aquela sofre com a inadequao do estar no mundo, para

    quem a realidade se desfaz em devaneio, alcanando a paz somente ao deixar de existir. Sobra

    apenas s almas mal-nascidas o sentido do adgio.

    57

    EJ, p. 221. Grifo nosso.

  • 51

    4. SOBRE OS CASOS

  • 52

    No exemplo do qual trataremos a seguir, daremos nfase s observaes de John

    Gledson sobre os procedimentos narrativos que refletem sobre seu processo de construo.

    Trata-se do episdio da tabuleta velha do confeiteiro, cena emblemtica do livro.

    Custdio resolve atender aos conselhos de seus prximos e decide ordenar que lhe

    pintem a tabuleta na qual trazia o nome d