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Boa tese sobre funcionalismo e Teoria do Agir Comunicativo

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    TLIO AUGUSTUS SILVA E SOUZA

    O Comunicado da Razo:

    Crtica da Razo Funcionalista na Teoria do Agir Comunicativo

    Verso da tese com correes ortogrficas e gramaticais; o exemplar original se encontra disponvel no Centro de Apoio Pesquisa Histrica (CAPH) da FFLCH

    So Paulo

    2013

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    TLIO AUGUSTUS SILVA E SOUZA

    O Comunicado da Razo:

    Crtica da Razo Funcionalista na Teoria do Agir Comunicativo

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Musse

    Verso da tese com correes ortogrficas e gramaticais; o exemplar original se encontra disponvel no Centro de Apoio Pesquisa Histrica (CAPH) da FFLCH

    So Paulo

    2013

  • 3

    Para Maria da Graa Silva Gonalves e Fleurymar de Souza,

    como no poderia deixar de ser.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    No prefcio primeira edio do monumental O Mediterrneo e o Mundo

    Mediterrnico na poca de Felipe II o clebre historiador francs Fernand Braudel diz ter

    dedicado os melhores anos de sua juventude ao objeto de estudo da sua tese de

    doutoramento, o Mar Mediterrneo. Que eu pudesse dizer o mesmo a respeito de Jrgen

    Habermas e a Teoria do Agir Comunicativo foi no passado uma pretenso inconfessvel.

    Para tanto eu poderia insistir nessa associao e contrapor o exemplo do historiador com as

    guas mornas do Mediterrneo com a minha experincia nas guas sempre glidas da raia

    olmpica da USP, onde as aulas de remo me deram a impresso de que o amanhecer em So

    Paulo tem um bucolismo que a maioria dos paulistanos desconhece. Resolvo hoje essa

    pretenso discursiva do passado afirmando sem nenhuma dvida que alguns dos melhores

    anos de minha vida passei na Universidade de So Paulo e com o livro de Habermas

    cabeceira. O privilgio desse perodo devo a um seleto grupo de pessoas.

    Meu mais sincero e afetuoso agradecimento dirigido a Maria da Graa Silva

    Gonalves e Fleurymar de Souza, meus pais, mentores e maiores entusiastas nessa e em

    outras aventuras. Ter um filho com um ttulo de doutor embaixo do brao um motivo

    certo de orgulho, muitos diro. Mas s a um filho convicto de sua pequenez perante seus

    pais cabe dimensionar o quanto essa conquista pessoal nfima diante de tudo que me foi

    proporcionado por esses dois personagens. Saber-se em dvida permanente com seus pais,

    percebo agora, o melhor dos estmulos para seguirmos adiante. Estmulo esse que, uma

    vez mais, eles no se furtaram a me conceder.

    Devo um reconhecimento especial ao professor Ricardo Musse, orientador desse

    trabalho, e a quem, ressalte-se, nunca faltou confiana na viabilidade cientfica desse

    estudo. Seus conselhos e apontamentos constituram o empecilho definitivo para que as

    pginas seguintes no fossem mais do que um amontoado de impresses generalistas e

    confusas do autor. Sou imensamente grato tambm pelo seu pronto acolhimento da minha

    proposta em 2009, meses aps meu ingresso no programa de Ps-Graduao em

    Sociologia, e no momento de maior descrdito acerca da continuidade desse trabalho.

  • 5

    As contribuies dos professores Celso Frederico e Jos Jeremias Oliveira Filho,

    por ocasio da minha banca de qualificao para o doutorado, foram o redirecionamento

    necessrio para que a pesquisa recompusesse seu foco e adquirisse flego para a etapa final.

    Agradeo ainda ao professor Leopoldo Waizbort, cuja aposta inicial no meu trabalho

    viabilizou meu ingresso no doutorado em Sociologia na Universidade de So Paulo.

    Agradeo tambm aos professores Alexandre Massella, Sylvia Garcia, Gustavo Luis

    Gutierrez e Afrnio Catani pela ateno dada ao trabalho e sobretudo pela generosa

    disposio em participar de minha banca de defesa.

    Faria pouco sentido deixar de fora dessas linhas um grupo maior de pessoas sem as

    quais a trajetria at aqui teria pouco ou nenhum valor. Orgulho-me em saber que a

    listagem desses nomes maior do que os limites desse espao. So eles meus familiares em

    diferentes nveis e graus de predileo; os colegas e professores que de alguma forma

    estiveram presentes desde o incio de minha vida acadmica, h doze anos e - por que no?

    - da minha vida escolar. Dedico ainda um lugar cativo aos meus valiosos amigos, aqui

    tratados anonimamente apenas pela convenincia do espao e pela sisudez acadmica. Dou

    graas a eles por nunca terem permitido que eu me esquecesse que o exerccio da

    Sociologia como vocao, carreira e escolha, embora nem sempre balsmico, era uma

    ddiva, mas que acima de tudo viver sempre mais importante.

    ****

    Esta pesquisa contou com o imprescindvel apoio financeiro da Coordenao de

    Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes).

  • 6

    RESUMO O objetivo desse trabalho rastrear a dimenso de influncias especficas que moldaram

    Jrgen Habermas na construo da Teoria do Agir Comunicativo. Em sua obra maior, a

    pretenso habermasiana foi harmonizar um vasto leque de autores e teorias que uma vez

    trabalhados em suas especificidades convergissem para a existncia de um projeto

    emancipador possibilitado por uma racionalidade de teor comunicativo. Com esse

    propsito, a ateno est voltada para o segundo volume dessa obra, em especial para o

    papel de Talcott Parsons e sua teoria de sistemas, a sociologia de mile Durkheim que

    faculta a interao por meio da linguagem e seu entrelaamento com Habermas por mais de

    uma via, as discusses metodolgicas com Popper e a disputa com o positivismo, bem

    como a presena da teoria crtica e seus personagens diversos.

    Palavras-Chave: Jrgen Habermas; Teoria do Agir Comunicativo; Ao Comunicativa;

    Teoria Sociolgica; Teoria Crtica

  • 7

    ABSTRACT The aim of this work is to track the size of specific influences that shaped Jrgen Habermas

    in the construction of the Theory of Communicative Action. In his major work, the

    habermasion intention was to harmonize a wide range of authors and theories that treated in

    their particularity would be able to converge to an emancipatory project made possible by a

    rationality of communicative content. For this purpose, the attention is focused on the

    second volume of this work, especially on the role of Talcott Parsons and his systems

    theory, on the sociology of mile Durkheim that provides interaction through language and

    its relationship with Habermas through several ways, on the methodological discussions

    with Popper and the dispute with positivism, and on the presence of critical theory and its

    many characters.

    Keywords: Jrgen Habermas; Theory of Communicative Action; Communicative Action;

    Sociological Theory; Critical Theory.

  • 8

    "Devemos nos lembrar, a todo momento,

    do que os intelectuais com frequencia

    esquecem: que as pessoas so mais

    importantes do que os conceitos e devem

    vir em primeiro lugar. O pior dos

    despotismos a insensvel tirania das

    ideias"

    Paul Johnson, Os Intelectuais.

    "No falemos mal dos alemes. Embora

    sejam sonhadores, havia entre eles quem

    sonhasse sonhos to belos que eu no os

    trocaria pela realidade desperta de

    nossos vizinhos. [...] Senhor, no

    deboche dos nossos sonhadores, pois de

    vez em quando dizem coisas

    maravilhosas no sonho, como

    sonmbulos, e sua palavra se torna

    semente de liberdade. Ningum pode

    prever o futuro das coisas. Se um dia,

    Deus nos livre, a liberdade desaparecer

    do mundo inteiro, um sonhador alemo

    a redescobrir em seus sonhos"

    Heinrich Heine, Prosa poltica e filosfica.

  • 9

    SUMRIO

    1. Introduo _ 10 2. Passado como presente: A Escola de Frankfurt 15

    2.1. Origem e perspectivas do Institut fr Sozialforschung 15

    2.2. Teoria crtica e Psicanlise 30

    2.3. Habermas, leitor de Freud 38

    2.4. O exemplo de Herbert Marcuse 41

    2.5. Habermas, o inventariante da teoria crtica 52

    2.6. Esfera pblica e a mudana estrutural a caminho da teoria da ao comunicativa 69

    3. Lies de moral: teoria do agir comunicativo e a sociologia de mile Durkheim 80

    3.1. O individualismo moralizante de Durkheim 99

    3.2. A conscincia moral em Habermas 120

    3.3. Antecedentes: a leitura adorniana de Durkheim 132

    4. Entre Frankfurt e Viena: Habermas, Popper e o Positivismusstreit 140

    5. Talcott Parsons e o contgio de Habermas pelo "incurvel terico" 162

    6. Consideraes Finais 188

    7. Referncias Bibliogrficas 193

  • 10

    1. Introduo

    La thorie, c'est bon, mais a n'empnche pas d'exister

    Jean-Martin Charcot em carta a Sigmund Freud

    O signo sob o qual esteve marcada essa tese foi o da tentativa de rastrear a dimenso

    de influncias especficas que moldaram Habermas na construo da Teoria do Agir

    Comunicativo 1. Dentro desse propsito, nossa ateno est sobremaneira voltada para o

    segundo volume dessa obra. Nominalmente, o papel de Talcott Parsons e sua teoria de

    sistemas, a sociologia de mile Durkheim e seu entrelaamento com Habermas por mais de

    uma via, as discusses metodolgicas com Popper e a disputa com o positivismo, bem

    como a fluida presena da teoria crtica e seus personagens diversos. A confluncia desses

    temas e autores, reprocessada pelas preferncias e interesses de Habermas, do o tom

    ecumnico da teoria social impressa em sua obra. O carter eminentemente difuso e

    embaado desse vasto cinturo de influncias por vezes dificulta que enxerguemos com

    clareza as digitais de um autor ou vertente nos escritos de Habermas. Contribuir para a

    superao dessa dificuldade foi uma das incumbncias aqui modestamente assumidas.

    Esse trabalho assume ainda como um dos seus objetivos precpuos a apresentao

    em linhas gerais do argumento habermasiano presente na teoria do agir comunicativo, qual

    seja, a existncia de um projeto emancipador possibilitado por uma racionalidade de teor

    comunicativo. Entretanto, a pretenso aqui no suplantar o que j foi dito por Habermas,

    que indubitavelmente o fez de maneira mais clara e mais bem difundida, mas recensear de

    que modo sua teoria social vai sendo construda mobilizando elementos e matrizes

    diversos.

    1 Embora a discusso sobre filigranas lingusticas seja um desvio de que tento me resguardar, vale a meno de que essa pesquisa teve incio no ano de 2009 com a inteno de estudar a ao comunicativa. Em 2012, entretanto, surge enfim a traduo brasileira da obra mxima habermasiana consagrando a terminologia agir comunicativo. Mesmo no sendo esse o termo j consagrado ao pblico brasileiro, tampouco ao latino- americano ("accin comunicativa") ou ao anglo-saxo ("communicative action"), ser adotado doravante agir estratgico,

  • 11

    Pode parecer completamente estranho a um observador externo alheio dimenso

    terica aqui abordada uma tese que se debrua sobre o segundo volume de uma nica obra,

    como ser o caso nas pginas seguintes. O inusitado dessa empreitada, contudo, vai ao

    encontro dos propsitos do autor do livro em questo, sobretudo porque Habermas

    concebeu a sua Theorie des kommunikativen Handelns como uma obra aberta, resultante de

    mais de duas dcadas de reflexo, prenhe de uma centelha investigativa, e qui como um

    projeto inacabado que orientaria um extenso debate terico subsequente. E dadas as vastas

    pretenses analticas e explicativas contidas no texto, no chega a ser impensado que um

    sem nmero de comentadores tenha feito do livro o objeto de suas preocupaes e

    interesses intelectuais - tampouco que uma diviso entre os dois tomos do texto seja de todo

    imprpria. Por sinal, se h uma acusao que nenhum crtico de Habermas jamais poder

    fazer contra o filsofo de Dsseldorf ser justamente aquela de que seus textos, em especial

    A Teoria do Agir Comunicativo, no rendem muito pano para manga em matria de debates

    tericos.

    A senha para que uma investigao centrada no segundo volume do TAC fosse no

    s possvel como vivel foi dada pelo prprio Habermas que sem pejo afirmou j na

    ocasio de lanamento de seu livro: "Gostaria de recomendar que lessem primeiro a parte

    final" 2. O conselho, que no caso era dado queles preocupados com uma abordagem

    fundamentalista-pragmtica, pode ser estendido a todos os leitores, conforme a ideia

    vendida nessa tese. Essa rejeio a uma postura fundamentalista, que mais presente no

    segundo volume de Teoria do Agir Comunicativo, tambm um ponto que distancia

    Habermas da inteno finalista kantiana de alcanar um conhecimento ltimo, infalvel, do

    mesmo modo que se tornou o cerne das suas discordncias com o positivismo pela

    tendncia desse ltimo de encarar a racionalidade cientfica apenas conforme os padres

    vigentes nas cincias exatas.

    A dimenso desmedida do escopo investigativo de Habermas, como ele mesmo

    resume no prefcio primeira edio da sua Theorie 3, foi a medida possvel de ser encontrada na disputa de espao entre dois perfis que nortearam a escrita do texto: a

    pretenso explicativa do filsofo e o interesse inquiridor do socilogo. Embora ele

    2 Habermas, Jrgen. Teoria do Agir Comunicativo - Racionalidade da Ao e Racionalizao Social, p. 12. 3 Idem, p. 10.

  • 12

    assumisse que "nas cincias sociais, a sociologia que est mais intimamente ligada, em

    seus conceitos fundamentais, problemtica da racionalidade", seu pendor para a filosofia

    foi sempre algo nada difcil de ser invocado diante da sua formao intelectual germnica,

    que por si s j traz uma bagagem filosfica atvica e de dimenses incomensurveis. O

    conflito por primazia entre os dois enfoques repercute metodologicamente na perspectiva

    ampliada com que os eventos so tratados por Habermas. A opo por um enquadramento

    que reala a perspectiva do agente e suas relaes intersubjetivas mescla as influncias de

    Freud e Mead, e complementada, na outra ponta, por uma delimitao do espao social

    talhado para o agir comunicativo, o mundo da vida, conceito de origem fenomenolgica e

    que representa a contraface do universo sistmico extrado a partir da sociologia de

    Parsons. A dupla tarefa de entender os processos de racionalizao nos sujeitos singulares e

    na sociedade em geral foi uma opo que muito j diz sobre a ateno panormica dada

    vida social por sua teoria. Testemunhando o que Habermas prope como enfoque para a

    anlise da racionalizao est o contraexemplo de Weber que ele invoca para demonstrar as

    limitaes de um estudo centrado em uma nica via. Segundo ele, o autor de A tica

    Protestante e o Esprito do Capitalismo teria primado por uma avaliao "por cima" que se

    ocupa da institucionalizao das ideias protestantes e de seu uso para dilemas e solues

    prticos. A esse vetor deveria ser contraposta uma avalio "por baixo" que desse conta de

    fatores externos a essas ideias, bem como da dinmica do seu desenvolvimento 4.

    Antes disso, a questo da racionalidade, vnculo permanente com o crculo de temas

    caros Escola de Frankfurt, j havia se tornado o mais importante motor de toda a teoria

    habermasiana. Atravs desse eixo temtico, Habermas se insere na tradio racionalista

    habitada por Descartes, Spinoza, Leibnitz, que se situa historicamente nas proximidades do

    Iluminismo e que encontrou guarida na Escola de Frankfurt. Mas foi justamente na

    racionalidade que Habermas observou as patologias que ameaam o mundo da vida, a

    dimenso prpria da ao comunicativa e que se tornou no capitalismo tardio invadida por

    imperativos que lhe so inteiramente estranhos. O esquema de Habermas ancorado em

    duas formas antagnicas de razo: a comunicativa, que preza pelo entendimento entre os

    agentes, e a instrumental, que se orienta pelos fins. O problema do agir

    instrumental/estratgico ter extrapolado a esfera sistmica e ter invadido o mundo da vida

    4 Ibidem, pp. 393-394.

  • 5 Ibidem, p. 665.

    13

    uma preocupao eminente de seu texto e um problema cuja soluo sua teoria busca

    incansavelmente encontrar.

    O tratamento que o autor deu ao tema da racionalidade foi tambm fonte de

    divergncias sobre o direcionamento da sua contribuio. Houve espao para que

    prosperasse uma viso que afirma o total distanciamento de Habermas com as

    caractersticas que marcaram a teoria crtica. Sua base a de que as crticas do autor s

    chamadas aporias diante das quais os membros da Escola de Frankfurt se viram sem sada

    foram severas demais para permitir que Habermas ainda endossasse o que seus antigos

    mestres escreveram. Nas pginas seguintes, porm, o caminho inverso seguido, e insisto

    na ideia de que o elo entre as duas geraes no foi desfeito. E se por um lado no faltam

    passagens em que as estocadas de Habermas na teoria crtica foram to pujantes a ponto de

    parecer que havia entre eles uma ruptura real, cumpre lembrar que tambm so abundantes

    os momentos em que o autor relembra sua filiao queles propsitos:

    "Gostaria de insistir em que o programa da teoria crtica em sua fase inicial

    fracassou no por este ou aquele caso, mas por causa do esgotamento do

    paradigma da filosofia da conscincia. Demonstrarei que uma mudana de

    paradigma em direo teoria da comunicao permite o retorno a um

    empreendimento que, a seu tempo, viu-se interrompido pela crtica da razo

    instrumental; essa mudana de paradigma pode consentir na retomada de tarefas

    de uma teoria social crtica que ficaram abandonadas" 5.

    No exerccio de rastreamento das ideias de Habermas, esbarrar com a teoria crtica

    algo quase to imediato quanto se deparar com o pensamento de mile Durkheim. A

    recorrncia permanente ao socilogo francs mais do que o reconhecimento obsequioso

    s inegveis contribuies do pai fundador da sociologia. Habermas vai em busca de

    Durkheim tanto para a elucidao de questes como a fora dos smbolos na vida social e

    seus pesos nas relaes entre os atores quanto para a noo de solidariedade e sua funo de

    amlgama social, que subvenciona a ideia de ligao entre os agentes em vias de prtica

    comunicativa. Teve tambm um peso central para Habermas a maneira como esse autor

  • 6 Parsons, Talcott. A Estrutura da Ao Social. 1 vol.

    14

    tratou a dinmica moral da sociedade em seus mltiplos aspectos e com todas as

    reverberaes possveis desse domnio nos indivduos.

    Boa parte da sociologia de Durkheim vem filtrada pela leitura de Parsons. Essa

    intermediao no se d apenas em razo do estudo clssico sobre o socilogo francs 6 do

    qual Habermas foi um leitor atento, mas tambm graas influncia tenaz que Parsons

    exerceu no pensamento habermasiano. No foi ao acaso que o maior captulo da TAC tenha

    sido justamente dedicado a ele. O desenho geral da teoria de sistemas de Parsons representa

    fielmente um quartil importante do que Habermas pretendeu elaborar. Toda a poro do seu

    esquema que atende pela dimenso sistmica, isto o poder administrativo, a economia, o

    direito etc., do incio ao fim devedora de Parsons e em menor medida de Luhman.

    Entender que a origem da teoria do agir comunicativo no est necessariamente na

    primeira pgina do livro em questo um passo importante para captar as origens e limites

    das influncias cruciais sobre Habermas. Nesse sentido, a tnica de suas produes nos

    anos 1960 pode ser a chave para sua obra posterior, por isso os debates com Karl Popper, a

    questo do positivismo, bem como publicaes como Conhecimento e Interesse, um

    verdadeiro divisor de guas na sua trajetria, no podem ser negligenciados como aspectos

    marcantes do seu pensamento.

    Afirmar que a Teoria do Agir Comunicativo decisiva para entender o pensamento

    de Jrgen Habermas um trusmo aqui licenciado sob a condio de que no h ponto de

    partida melhor para buscar uma compreenso mais aprofundada sobre os caminhos

    percorridos nessa obra.

  • 7 Gay, Peter. A Cultura de Weimar, p. 119.

    15

    2. Passado como presente: A Escola de Frankfurt

    No que concerne aos alemes, no

    precisam nem de liberdade, nem da igualdade.

    So um povo especulativo, idelogos, pensadores

    e devaneadores, sonhadores que vivem

    unicamente no passado e no futuro, mas que no

    tem presente. Ingleses e franceses tm presente,

    para eles todo dia tem sua luta, seu embate, sua

    histria. O alemo nada tem por que possa lutar

    e quando comeou a suspeitar que havia coisas,

    cuja posse era desejvel, seus filsofos

    previdentes lhe ensinaram a duvidar da

    existncia de semelhantes coisas.

    Heinrich Heine

    2.1. Origem e perspectivas do Institut fr Sozialforschung

    Uma figura bastante feliz sobre a Repblica de Weimar conclama as belas pernas de

    Marlene Dietrich e o filme O Gabinete do Dr. Caligari como os emblemas mais icnicos,

    entre o festivo e o sombrio, da atmosfera que envolveu a Alemanha entre os anos de 1919 e

    1933 7. O perodo, espremido entre as tragdias da Primeira e Segunda Guerras mundiais

    representa uma transio entre a sofisticao da Belle poque, ainda embevecida com os

    ares do sculo XIX, e a crueza das dcadas vindouras do sculo XX. Refm de uma poca

    que viveu sob paz, mas ainda a merc dos estilhaos e feridas do passado recente e com a

    ameaa constante da ecloso de novos conflitos, a Repblica de Weimar foi o produto de

    um caso singular na histria moderna de fuso entre uma contida euforia social e uma

    exaltao venturosa do colapso diante do qual ela sucumbiria.

  • 16

    No contexto do pensamento europeu, impossvel que se fale na Repblica de

    Weimar sem se lembrar da Escola de Frankfurt, e vice-versa. O grupo, formado por

    intelectuais de diferentes origens e propsitos razoavelmente comuns, se reuniu em torno

    da ideia de uma teoria crtica, estendendo sua influncia por pocas e temas variados de

    uma maneira que ainda hoje desperta atenes.

    No que toca a Habermas, o significado do Instituto de Pesquisas Sociais de

    Frankfurt tem mais do que o de mero centro formador de suas ideias de jovem pesquisador.

    Basta lembrar que a principal credencial com que Habermas foi apresentado ao mundo

    intelecutal foi a de herdeiro dessa Escola. Por si s o legado do grupo j apresenta um rol

    de temas, conceitos e proposies suficientes para que deles se ocupem geraes

    posteriores de pesquisadores e tericos. A agenda deixada por aquela inusitada reunio de

    intelectuais teve repercusso estrondosa nas cincias humanas, e mesmo passados noventa

    anos de sua fundao originria, os estilhaos do que foi ali concebido, bem como os

    vestgios de sua passagem so facilmente encontrados em reas diversas. Os participantes

    desse grupo so os maiores responsveis pela "posio intelectual virtualmente hegemnica

    assumida pela inteligncia judaico-alem, depois que o fascismo comprometera quase todo

    o resto" 8. Mas no sensato negligenciar que parte da herana deixada vem na forma de

    um fardo, de cujo peso Habermas muito tentou se desvencilhar. Portanto, foi sempre tnue

    a diviso entre at onde os pontos preconizados pelo Institut foram subescritos por

    Habermas ou remodelados com outras tonalidades, e os momentos quando foram

    simplesmente rechaados.

    Como fora o caso de Marx e Rousseau 9, quase todas as obras dos frankfurtianos

    foram realizadas, se no no exlio, ao menos sob o signo da vivncia forada no exterior. A

    chaga da expatriao, que ceifou geraes inteiras, tornou-se um elemento comum, e dela

    s foram poupados aqueles aos quais no cabia a alternativa de deixar o pas, como

    Habermas, obrigado a ingressar na juventude hitlerista em 1944 10. Assim, foram inmeros

    os expatriados de Weimar nas artes, nas letras, nas cincias e com os frankfurtianos no

    haveria de ser diferente. intil, portanto, tentar negligenciar os traos advindos dessa

    condio. Em se tratando da mais importante publicao do grupo, " difcil no sentir que

    8 Habermas, Jrgen. Prefcio ao Leitor Brasileiro, p. 70. 9 Johnson, Paul. Os Intelectuais. 10 Specter, Matthew G. Habermas: An Intellectual Biography, p. 04.

  • 17

    muito do mpeto por trs da Dialtica do Esclarecimento, apesar de seu flego e escopo

    terico, representa a ansiedade e o ressentimento para com as muitas indignidades do

    exlio"11. Entender que a dose cavalar de pessimismo encontrada em Adorno, Horkheimer e

    no apenas neles, profundamente tributria dessa circusntncia pode ser um passo

    promissor no estudo de seus escritos.

    Por outro lado, retratar aqueles autores exclusivamente como refns dessa condio

    uma viso rasa demais para captar as nuances em jogo. A desenvoltura e a fertilidade com

    que esses intelectuais produziram aps o perodo da expatriao um convite para que se

    veja nessa proficuidade algo a mais do que a mera condio de vtimas das adversidades.

    Conforme a tese de Ricardo Musse, Adorno teve uma clara postura de rejeio adaptao

    como estrangeiro por reconhecer nesse expediente uma forma de submisso. A inadaptao

    voluntria, acreditou ele, era uma arma contra o conformismo:

    "Emigrado nos Estados Unidos - ou melhor, desterrado, como ele preferia

    dizer - aps a ascenso dos nazistas ao poder, Adorno nunca se sentiu em casa

    no american way of life. Em parte por conta de uma recusa meditada

    integrao, assentada em um ideal que associa condio de intelectual o

    comportamento crtico e o no conformismo. Ele procurou conservar sua

    independncia recusando-se a obedecer, inclusive, s regras do mundo

    acadmico norte-americano, segundo ele inteiramente submisso exigncia de

    aplicao das leis econmicas a produtos cientficos e literrios. Desse

    isolamento intelectual voluntrio, da sensao de trabalhar sem efetividade e de

    escrever sem audincia surgiu uma imagem que se tornou clebre: a do escritor

    que, como um nufrago, envia sua mensagem em garrafas atiradas ao mar" 12.

    O desterro e a imigrao se tornaram uma condio ainda mais incortonvel para os

    intelectuais associados ao Institut por uma razo to comum e irrestrita quanto a prpria

    expatriao a que foram obrigados: a origem tnica no judasmo. Por mais que a

    identificao como judeus tenha sido um elemento ao qual os prprios frankfurtianos

    emprestavam um valor menor, no se valendo disso em momento algum para se

    associarem, o antissemitismo como ideia presente na sociedade europeia e alem antes

    11 Roberts, Julian. A Dialtica do Esclarecimento, p. 103. 12 Musse, Ricardo. Experincia Individual e Objetividade em Minima Moralia, p. 170.

  • 13

    14 Habermas, Jrgen. O Idealismo Alemo dos Filsofos Judeus, p. 77. Adorno, Theodor W.. O Fetichismo na Msica e a Regresso da Audio.

    18

    mesmo dos pncaros do nazismo os impedia de negligenciar esse fator. Habermas em um

    texto de 1961 que rastreia O Idealismo Alemo dos Filsofos Judeus situa o preconceito

    contra a macia presena dos judeus na intelectualidade germnica anunciando uma

    importncia que pode ser estendida tambm aos judeus agrupados na Escola de Frankfurt:

    "Se se quisesse analisar uma constelao intelectual como a da filosofia alem

    do sculo XX, dissec-la em seus elementos constitutivos e avali-la, seria

    necessrio destacar a hegemonia, exatamente no domnio supostamente

    reservado profundidade filosfica alem, daqueles que tal preconceito

    pretendia relegar s antecmaras do gnio, atribuindo-lhes um talento

    meramento crtico" 13.

    No seu perodo na Inglaterra Adorno escreve continuamente sobre msica, inclusive

    seus textos mais conhecidos sobre o jazz ("On Jazz"), com destaque para o famoso O

    fetichismo na msica e a regresso da audio 14, que vem a pblico no seu ltimo ano de

    vida inglesa. O Dialektik der Aufklrung, o mais reluzente trabalho do grupo, e que

    Horkheimer concebeu inclusive como uma mensagem em uma garrafa a ser passada para

    uma Europa que submergia em meio escurido, foi pensado, elaborado e escrito com seu

    parceiro intelectual em solo americano. l tambm que o exemplo de Horkheimer

    trabalhando sobre o que seria publicado como Dmmerung o estimula a escrever o que s

    anos mais tarde veio a ser tornar o clssico Minima Moralia. O envolvimento no projeto da

    Princeton Radio Research, sob o comando de Paul Lazarsfeld e que representou o motivo

    para que carimbasse seu passaporte na Amrica, exps Adorno a uma vivncia inaudita

    com a pesquisa emprica, na mesma medida em que aliou sua vocao e formao de

    msico com a verve de pesquisador e terico. O caso de Horkheimer ainda mais ditoso

    sobre a produtividade no exlio. Praticamente todos os seus livros foram escritos e

    publicados aps 1934, ano de sua partida para os Estados Unidos. A aparente maior

    naturalidade com que ele parece ter encarado o degredo talvez seja explicada por

    circunstncias da sua vida pregressa. Como um autntico representante de uma famlia

    abastada, a vida j tinha lhe proporcionado experincias prazerosas no exterior, como

  • 19

    quando passou 18 meses com Friedrich Pollock entre Paris, Bruxelas, Manchester e

    Londres, numa malfadada tentativa de seu pai de dar-lhe tempo para acalmar suas

    incertezas juvenis e faz-lo reconhecer logo que seu futuro estava na dedicao aos

    negcios da famlia 15. Em 1937 ele recebe Adorno para uma visita breve j de posse do

    texto Teoria Tradicional e Teoria Crtica, que valeria como o estatuto fundador da Escola.

    Entretanto, nenhum sinal de adaptao pode dizer mais do que os dramas conexos a essas

    mudanas abruptas. Nesse quesito, o suicdio de Walter Benjamin ante a negativa de

    ingresso na Espanha e a possvel deportao para Alemanha continua sendo o lado mais

    trgico do que a expatriao representou no s para o grupo em particular mas para toda

    uma gerao.

    At o retorno de Adorno e Horkheimer Alemanha, em 1949, imediatamente aps o

    fim da Guerra, sugere que a permanncia na "Califrnia alem" - nome dado por Thomas

    Mann regio nos arredores de Los Angeles onde ilustres imigrantes alemes moravam -

    tinha sido mesmo a contragosto. A insistncia de Adorno, Horkheimer e dos demais

    membros em continuar publicando a revista do grupo em sua lngua materna e tambm

    atravs de uma editora alem mesmo quando o grosso do pblico a que ela se destinava

    estava na Amrica onde eles prprios se encontravam teve o indisfarvel carter de manter

    acesa uma espcie de chama do germanismo que eles relutavam em ver fenecer 16. A

    tradio lingustica e ptria que eles inclusive tanto se ocuparam de elucidar foi

    simbolicamente transformada em bandeira de resistncia. Nem os ensaios escritos em

    ingls por Adorno na ocasio do Princenton Project, quando ele detinha um domnio do

    idioma nada alm do mediano, servem para registrar qualquer distanciamento do autor com

    seu pas. Eles foram, na verdade, um exerccio de aproximao cultural de que necessita um

    outsider; no mximo, serviram para algum despiste a J. Edgar Hoover, o lendrio e todo

    poderoso chefe do FBI, que investigou com suspeio Adorno e seus colegas imigrantes 17.

    Se de fato Thomas Mann, que ostentava uma condio de resolutamente bem adaptado ao

    degredo, dizia a verdade ao professar em Beverly Hills que "onde eu estou, est a

    15 Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p. 75. 16 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 80.

    17 Helmling, Steven. American Adorno?, p. 356.

  • 20

    Alemanha" 18, este dom nunca pde ser mais do que invejado por seus amigos do Instituto

    de Pesquisas Sociais. As marcas desse perodo se tornaram indelveis a ponto inclusive de

    fazer com que tudo que foi produzido por esses intelectuais no ps-guerra contivesse sinais

    da passagem no exterior. Seja pelo vnculo legal mantido atravs da cidadania norte-

    americana que Adorno, Horkheim e Marcuse portavam, seja pelos financiamentos e todas

    condies de trabalho l encontradas, ou mesmo pelos temas de pesquisa caros quele pas

    e sua rede de universidades e centros de estudo que lhes davam azo para o contato

    constante com a Amrica, o fato que nenhum deles, nem mesmo aps o retorno terra

    ptria, se desvinculou em definitivo dos Estados Unidos, o que de alguma maneira impedia

    que se virasse a pgina da condio de alemes desterrados.

    O sucesso da empreitada intelectual coletiva no podia se sacramentar sem uma

    dose pessoal de sacrifcio por parte de seus colaboradores. E mesmo com essa cota de

    renncia j sendo reclamada pelas perseguies sofridas em razo tanto da origem judia

    quanto pelo alinhamento esquerda que todos exibiam, havia um consenso velado de que a

    abnegao era inevitvel. Nas palvras de Horkheimer se extrai o sentimento de

    determinao mesmo diante dos prejuzos bastante calculveis que suas carreiras

    intelectuais sofreriam em consequncia de suas escolhas: "um grupo de homens

    interessados na teoria social e com formaes acadmicas diferentes veio a se reunir, com a

    convico de que formular o negativo, em uma poca de transio, era mais importante do

    que construir carreiras acadmicas. O que os uniu foi a abordagem crtica da sociedade

    existente" 19.

    Com todas as dificuldades culturais e polticas que uma mudana intercontinental

    poderia representar para o Instituto, nenhum desconforto inicial parece ter sido to grande

    18 Em 1938, vivendo em Los Angeles, o romancista Thomas Mann se ocupava dos temas da sua Alemanha natal em propores equivalentes quelas de seus melhores amigos no exlio, Adorno e Horkheimer. Fosse movido apenas por interesses particulares ou como busca de subsdio aos seus romances, Mann confabulou com frequncia com seus patrcios filsofos, chegando inclusive a apresentar, para crtica e apreciao, trechos de seus livros inacabados a Adorno. Ao contrrio desse ltimo, entretanto, se mostrava mais afeito vivncia em exlio, como deixa claro nessa declarao: "Mas o que estar sem lar? Nas obras que escrevo est meu lar. Ocupado com elas sinto toda a familiaridade de estar no lar. Estas obras so linguagem, lngua e pensamento alemes, meu desenvolvimento pessoal da tradio de minha terra e de meu povo. Onde eu estou, est a Alemanha" (Mann apud Miskolci, Richard. Thomas Mann - O Artista Mestio, p. 73). Falando da lngua alem, a declarao dava sentido tambm insistncia do Institut em manter sua Zeitschrift fr Sozialforschung no idioma original, ao passo que terminava por parafrasear, provavelmente revelia, o famoso "minha ptria minha lngua" do poeta portugus Fernando Pessoa.

    19 Horkheimer, Max. Prlogo, p. 25.

  • 21

    quanto a dificuldade adaptativa ao modelo de cincias socias norte-americano. Com o

    esprito pragmtico que transbordava em toda a sociedade americana e se manifestava

    tambm na produo cientfica, o estranhamento dos frankfurtianos foi com a reduzida

    vocao local para a metafsica e o carter especulativo da investigao filosfica. Como

    parte do mesmo pacote, essas caractersticas eram complementadas com um pendor natural

    para o rigorismo numrico e um apego ao manuseio estatstico em propores muito

    estranhas para aqueles alemes 20. O tratamento mais emprico requerido das pesquisas

    tornou-se subitamente uma preocupao, na mesma medida em que a dialgo permanente

    com os temas e autores alemes comeava a ser um expediente menos constante e

    obrigatrio. Confrontada com outra dinmica de produo do conhecimento, a Escola de

    Frankfurt permaneceu relutantemente fiel, no entanto, tradio hegeliana e marxista de

    incorporao da filosofia anlise social, em um esforo penoso mas no de todo

    infrutfero de incorporar novos padres no novo continente. A prova de que um novo

    modelo foi incorporado sem que a fina percepo sobre aspectos no quantificveis fosse

    deixada de lado pode ser exemplificada na opinio de Gabriel Cohn, para quem a "principal

    contribuio de Adorno pesquisa emprica consiste na valorizao dos recursos analticos

    que permitam atingir por vias indiretas os condicionantes sociais das atitudes, das aes e

    das formas de pensamento em contextos determinados" 21.

    impossvel precisar, em um vislumbre sobre os provveis rumos da teoria crtica,

    quais teriam sido os reflexos de uma permanncia estanque em seu ambiente inicial, isto ,

    sem que seus colaboradores tivessem sido confrontados com a experincia no exterior. Por

    uma hiptese bastante vivel, de se pensar que boa parte das questes que se tornaram

    20 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 80.

    21 Cohn, Gabriel. Esclarecimento e Ofuscao: Adorno & Horkheimer Hoje, p. 12. Dentre tantas outras possveis, uma boa ilustrao dessa opinio de Cohn seria a anlise feita por Adorno de aspectos racionais e sociais a partir de um instrumento primeira vista pouco adequado para essa finalidade, a coluna de astrologia do jornal Los Angeles Times. A escolha por explicaes racionais, por vias indiretas, fora dos caminhos ou meios supostamente mais comuns esteve, como justificada nesse caso, embasada na ideia de que "a irracionalidade no necessariamente uma fora que opera em uma esfera externa racionalidade: ela pode resultar do transtorno de processos racionais de autoconservao" (Adorno, Theodor W.. As Estrelas Descem Terra - A Coluna de Astrologia do Los Angeles Times: Um Estudo Sobre Superstio Secundria, p. 29). A busca por recursos analticos diversos que facultavam a elucidao de "condicionantes sociais das atitudes" buscou abordagens que tornassem possvel captar os fenmenos "como que em um tubo de ensaio, e em um momento em que sua manifestao ainda no tem uma forma to diretamente ameaadora a ponto de no permitir uma pesquisa objetiva e distanciada. Assim, pode-se evitar parcialmente o perigo de uma teoria ex post facto" (Ibidem, p. 31).

  • 22

    centrais no teriam passado de questionamentos laterais, ou que s muito ocasionalmente

    teriam chegado ao patamar adquirido. Na sociedade americana, os tericos puderam

    presenciar os pncaros de uma sociedade de consumo, ancorada no paradigma fordista, e

    cujo dinamismo capitalista estava j lguas frente do que a Alemanha, ainda sob as

    agruras fiscais de Weimar e com o descalabro financeiro de uma guerra monumental se

    avizinhando, s poderia experimentar muitos anos depois. No perodo ureo de Hollywood,

    e com o advento da gerao baby boomer, e tambm em razo deles, era que fazia sentido

    se falar em indstria cultural e na crena em um mundo social que caminhava

    racionalmente rumo ao progresso, liberdade humana, e plenitude da felicidade. A

    mudana de pas possibilitou uma imerso no ambiente do surgimento da grande cultura

    miditica que envolvia o cinema, o rdio, a msica popular, a televiso e a prpria cultura

    de massa. O desenvolvimento do conceito de "indstria cultural" por Adorno e Horkheimer

    e a prpria presena dessa ideia no centro do debate promovido pelos autores visava dar

    conta da industrializao e da comercializao da cultura sob as relaes de produo. O

    controle da produo miditica pelos grandes grupos e conglomerados econmicos dava

    aos Estados Unidos um lugar de destaque nos trabalhos e estudos de crtica cultural, alm

    de fornecer um ambiente de anlise a essas mudanas que a permanncia no Velho

    Continente no teria proporcionado 22.

    Do mesmo modo, sem a era negra do desvario nazista batendo porta, deitando fora

    quaisquer expectativas otimistas sobre o futuro da humanidade, e, principalmente

    inscrevendo cicatrizes em cada um dos frankfurtianos, certamente os resultados de seus

    trabalhos no seriam to contundentes sobre a inevitabilidadde da barbrie. A brecha para

    que se chegue a essa concluso est inclusive nas palavras do discurso com que

    Horkheimer tomou posse como diretor do Instituto em janeiro de 1931, que, para a surpresa

    de quem acompanhou o Horkheimer maduro, continham uma carga altamente esperanosa

    sobre os benefcios da razo na vida dos homens, bem como um otimismo quanto maneira

    22 Em uma passagem na Teoria do Agir Comunicativo, Habermas trata do conceito de cultura de massa e demonstra como mesmo dentro dos filiados ao Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt havia diferenas de opinio e abordagem sobre o fenmeno do deslumbramento cultural por eles vivenciado in loco nos Estados Unidos. Nesse trecho Habermas deixa entrever uma maior afinidade com Adorno do que com Benjamim, que segundo ele, foi excessivamente otimista com relao a aspectos da cultura de massa: "Adorno assumiu uma perspectiva de crtica cultural que com razo lhe conferiu um tom ctico, distinguindo-o das esperanas um tanto apressadas de Walter Benjamin em relao fora emancipadora da cultura de massa, e do cinema em particular" (Habermas, Jrgen. Teoria do Agir Comunicativo - Sobre a Crtica da Razo Funcionalista, Vol 2, p. 639).

  • 23

    pela qual aquela instituio poderia contribuir para isso. O que fez com que aquele sotaque

    celebrativo se liquefizesse em sombrios prognsticos sobre a prpria a razo e a

    humanidade 23 algo que definitivamente marca a trajetria do grupo. Da mesma forma

    que fez com o jovem Habermas, que ao tomar cincia sobre o horror nazista depois de

    acompanhar as transmisses radiofnicas dos julgamentos de Nuremberg, foi

    profundamente afetado 24.

    Por mais que pessoal e individualmente os membros do grupo tenham todos trazido

    marcas profundas de perseguies, dor e sofrimento relacionados imigrao a que se

    viram forados, para o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt em si essas mudanas de

    rumo foram proveitosas. Institucionalmente falando, a transferncia da sede da Alemanha

    para a Universidade de Columbia - com um perodo de escala em Genebra - trouxe mais

    benefcios do que desvantagens 25. Foi somente depois dessa mudana que a real influncia

    de seus escritos, discusses, proposies e at mesmo do vulto intelectual de seus partcipes

    pde ser sentida de fato, j que at ento, pouco tinham repercutido em solo natal. Algo

    semelhante a isso pode ser dito de Habermas, cuja ida para Nova Iorque em 1968 para

    lecionar na New School for Social Research abriu um canal de penetrao e repercusso dos

    seus textos no ambiente anglo-saxnico sem o qual a visibilidade sua obra seria

    inteiramente outra.

    Pela lgica predominante em Weimar, o que garantia a independncia do Institut foi

    o ingrediente principal que o impediu de atuar como um think tank de peso a que ele estava

    predestinado, tendo em vista inclusive seus congneres poca. A ausncia de negcios e

    participaes no governo pode ser lida como um sinal de autonomia e liberdade de

    pensamento intelectual ali desenvolvido, mas foi tambm o bastante para manter os

    frankfurtianos em relativa sombra at que emigrassem para longe da Alemanha. Nem o

    direcionamento prtico pensado pelo seu primeiro diretor atuante, Carl Grnberg, que

    23 Honneth, Axel. Frankfurt School, p. 285.

    24 Pensky, Max. Historical and Intellectual Contexts, p. 15. Relato semelhante pode ser encontrado tambm em Specter, Matthew G. Habermas: An Intellectual Biography, p. 6. David Ingram refora o choque e a estupefao de Habermas ao defrontar-se com o horror do nazismo, mas por sua vez diz que o autor tomou conhecimento das atrocidades atravs de um documentrio que ele teria assistido sobre os campos de concentrao e os julgamentos de Nuremberg. Cf. Ingram, David. Habermas - Introduction and Analysis, p. 3. 25 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 18.

  • 24

    pretendeu levar o Instituto para a fileira dos socialistas, nem a disposio bem mais

    pragmtica do que terica alimentada pelo dono da chave do cofre que sustentava o projeto,

    Felix Weil, foram um passo to efetivo para alinhar a pauta terica de seus colaboradores

    com a incandescente pauta poltica de Weimar.

    No seu discurso de posse na entidade, proferido na presena do prefeito de

    Frankfurt, do representante do ministro da Cincia, Arte e Educao Popular e do

    presidente federal, o novo diretor j invocava a formao de pesquisadores que se

    mantivessem atentos necessidade da crtica, assim como deixava claro a tonalidade

    intelectual - e ideolgica - que deveriam ali ser seguidas:

    "Senhores e senhoras, todos sabem, e cada um sente, a cada dia, em sua

    prpria pessoa, que estamos vivendo em uma poca de transio...

    H pessimistas que, ao verm perderem o brilho e se apagaram tantas coisas

    a que esto habituados, que lhe so cmodas e lhe trazem vantagens, e que eles

    prezam, ficam aterrozidos e estupefatos em meio aos escombros que o processo

    de transformao deixa em seu rastro. [...].

    Em contraste com os pessimistas, h tambm os otimistas. No acreditam

    nem no desaparecimento da cultura ocidental, nem no da cultura mundial em

    geral, e no se atormentam, nem a si, nem aos outros, pensando

    nisso...Baseando-se na experincia histrica, em vez de uma forma cultura

    declinante, eles vem emergir uma outra, de natureza mais alta. Tm a firme

    esperana de que Magnus ab integro saeculorum nascitur ordo (Virglio,

    Buclicas), uma nova ordem nasa da plenitude dos sculos. [...].

    Muitas pessoas, cujo nome e importncia aumentam constantemente, no

    se contentam em acreditar, desejar e esperar, mas tm a convico

    cientificamente slida de que a nova ordem que se est constituindo ser a

    ordem socialista, que ns nos encontramos em meio passagem do capitalismo

    para o socialismo e que trabalhamos com rapidez crescente. Como se sabe - pelo

    menos eu suponho - , eu me incluo tambm nessa concepo. Perteno tambm

    ao campo dos adversrios da ordem econmica, social e jurdica ultrapassada

    historicamente, ao dos adeptos do marxismo" 26.

    26 Grnberg apud Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p. 57-58 .

  • 25

    Ele se precavia, contudo, da acusao de se posicionar junto ao dogmatismo com a

    pregao de um "autocontrole incessante" a que a pesquisa deveria estar submetida a fim de

    manter seu carter cientfico acima de tudo. A conduo dada por Grnberg para um

    caminho esquerdista e prximo social-democracia alem foi breve e no se deu sem

    sobressaltos. Na terra de Weber, onde suas problematizaes sobre a objetividade do

    conhecimento em cincias sociais ainda rendiam frutos e alimentavam o debate, no foi

    sem crticas que o Instituto desfilou seu marxismo. Embora em um cenrio muito mais

    cordato com quem professava sua f partidria ou ideolgica, j que em Weimar no eram

    mais expulsos do servio pblico os funcionrios com vinculao a partidos 27, o sempre

    rigoroso sistema acadmico alemo ainda sabia ser hostil aos Kathedersozialisten. Tanto

    que a desconfiana com as credenciais excessivamente vermelhas do grupo serviram

    inclusive para que o prprio Grnberg tolhesse as vontades de Felix Weil, o maior

    financiador da empreitada, que defendia para a instituio a tarefa exclusiva de introduzir o

    marxismo nas universidades.

    Sob a batuta do aguado marxismo de Grnberg foram publicados em 1929 A Lei

    da Acumulao e do Colapso do Sistema Capitalista de Henrik Grossmann, e, de Friedrich

    Pollock, As Tentativas de Planejamento Econmico na Unio Sovitica - 1917-1927. Ainda

    mantendo um veio mais economicista, vieram em seguida um estudo sobre a China de Karl

    Wittfogel, colaborador e marido da bibliotecria do Instituto, Rose Wittfogel, e uma

    pesquisa sobre a transio do mundo feudal para a ordem burguesa, assinada por Franz

    Borkenau, respectivamente em 1931 e 1934.

    Antes mesmo do fim de sua permanncia frente do grupo, o objetivo de Grnberg

    havia sido atingido com notvel sucesso. Com uma rede de doutorandos e pesquisadores

    marxistas que se ampliava, trabalhos e publicaes peridicos, e um centro de estudos com

    vnculos comunistas e afeito a temas do operariado no corao da Universidade de

    Frankfurt, que atingia seu momento de maior prestgio na Alemanha, no haveria muitos

    27 A mudana da lgica que regia o servio pblico alemo com o advento da Repblica de Weimar foi notvel. Alm de uma maior liberdade para com as filiaes poltico-partidrias dos agentes do Estado, houve tambm a possibilidade de acesso a postos do Estado para membros da classe mdia. Norbert Elias menciona esse fato ao tratar da mudana na sociedade alem do incio do sculo XX: "No esqueamos que nos primeiros 18 anos de sculo XX, o Kaiser e sua corte ainda eram o centro das instituies alems. Os membros da classe mdia - e, com alguma hesitao, a classe trabalhadora - s tiveram acesso, realmente, pela primeira vez, aos altos cargos do Estado e ao servio pblico civil, na Repblica de Weimar" (Elias, Norbert. Os Alemes - A Luta pelo Poder e a Evoluo do Habitus nos sculos XIX e XX, p. 36).

  • 26

    elementos pra discordar de que a tarefa de assentar as bases de um Instituto voltado ao

    materialismo histrico em cincias humanas tivesse sido cumprida. Em meio

    uniformidade entre os temas ali trabalhados, Leo Lwenthal, com sua pesquisa sobre

    literatura, que seria seu nicho por excelncia dentro e fora do Institut, era a exceo que s

    confirmava a regra.

    De fato o xito de Grnberg foi celebrado nas aes do ocupante seguinte de sua

    cadeira, o interino Friedrich Pollock. Nem mesmo a assuno do comando da entidade por

    um membro estranho ao crculo mais restrito de Grnberg, Max Horkheimer, pode ser

    tratada como uma ruptura crassa com o modelo do antigo Herr Direktor. No entanto, ela

    servia, no longo prazo, para reforar uma viso que vinha dos crticos externos ao grupo,

    mas que internamente comeava a ter alguma relevncia e se cristalizava na impresso de

    que o legado da antiga direo no era a nica luz que poderia guiar o Instituto.

    A breve permanncia de Pollock frente do grupo, propiciando o terreno em que

    Horkheimer se afirmaria no um acontecimento isolado e nico na relao entre esses

    dois membros. Tampouco a chegada ao Institut pelas mos do mesmo Fritz Pollock havia

    sido a primeira vez. Coube sempre a esse amigo da juventude aplainar os caminhos do

    outro, suavizando as arestas para as quais o ambiente familiar super protetor de onde vinha

    Horkheimer no o havia preparado. Enfim, para ele tambm valia a caracterizao

    maneira de uma "planta de estufa", como Adorno tinha se pronunciado a respeito de si

    mesmo em uma passagem em Minima Moralia 28.

    Do ponto de vista prtico o maior acerto da gesto de Horkheimer foi sem dvida o

    veculo que fez as vezes de um verdadeiro dirio oficial do Instituto. Zeitschrift fr

    Sozialforschung, cuja publicao se deu majoritariamente no exlio, foi bem mais do que a

    voz por onde se expressava o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt. Pode-se

    reivindicar para a revista o status equivalente ao de um verdadeiro laboratrio sem o qual

    nenhum centro de estudos cientficos pode seguir. Por suas pginas quase todos os

    membros cativos do Instituto, assim como os colaboradores ocasionais, publicaram seus

    trabalhos, deram incio a ciclos de pesquisas resultantes em livros de peso, e,

    principalmente, emprestaram um sentido de existncia prpria entidade, que com tantos

    28 Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p. 99.

  • 27

    sobressaltos, idas e vindas de membros, expatriaes e mudanas de sede, lutava para

    manter uma coeso diante das adversidades da vida real e a lgica da continuidade

    incessante da reflexo crtica e cientfica propostas. O fato de a revista ter substitudo a

    publicao existente at 1930 na direo de Carl Grnberg um indicativo a mais a

    respeito da mudana de rumos que se podia esperar na organizao, embora em seus

    primeiros volumes o contedo da revista mantivesse exatamente o mesmo teor da sua

    verso pregressa 29. A ento Archiv fr Geschichte des Sozialismus und der

    Arbeiterbewegung (Arquivo para a histria do socialismo e do movimento trabalhista) se

    dava ao luxo de estampar em seu ttulo a linha editorial adotada, que por sua vez era uma

    adaptao dos propsitos do grupo, exercidos em todas as frentes. Mesmo que com uma

    sutil modificao no ttulo da revista, e com uma andina alterao no contedo, a diretoria

    de Horkheimer j comeava a trazer apontamentos que mais tarde se transformariam em

    mudanas efetivas 30.

    Essa experincia como diretor seria a passagem crucial para que Horkheimer

    iniciasse a trajetria que terminou por consagr-lo como a figura mais institucional de todo

    o grupo. As feies de burocrata foram sendo paulatinamente acrescentadas ao intelectual,

    em primeiro lugar por assumir a direo do Instituto, em um curioso acaso que permitiu que

    o basto fosse passado para um membro relativamente obscuro. Quando comearam a

    vingar algumas evidncias de que as diretrizes ditadas por Grnberg, o antigo diretor,

    poderiam ser alteradas, foi contra Horkheimer que as vozes se levantaram. Em seguida,

    como o cicerone de Adorno em solo americano, a recomend-lo para o projeto com

    Lazarsfeld na Princenton Radio Research, novamente as atribuies de cabea do grupo

    parecem ter entrado em ao. Era para ele que Walter Benjamim escrevia na tentativa de

    manter a bolsa de estudos que o garantia com suas parcas finanas em relativa ordem, bem

    como com quem Adorno partilhava suas hesitaes quando escrevia para a Zeitschrift, e

    tambm a quem Lwenthal recorria quando instado a responder sobre um posicionamento

    da Escola. Anos mais tarde, tendo j retornado Alemanha, sua posio como reitor por

    dois mandatos na Universidade de Frankfurt, entre 1951-1953, s coroou a silhueta de

    29 Ibidem, p. 72. 30 Ibidem, pp. 68 e ss.

  • 28

    intelectual e burocrata que a cadeira de Herr Direktor no Instituto de Pesquisas Sociais de

    Frankfurt j vira antes manifestada.

    Como o decano par excellence do Institut, nenhum dos nomes mais proeminentes na

    Escola de Frankfurt foi desde o incio to influente nos mais variados ditames da entidade,

    inclusive naqueles concernentes ao ingresso de colegas no grupo. Horkheimer foi ainda o

    portador da trajetria pessoal e intelectual mais linear e menos errante, o que, dadas as

    voltas e sobressaltos a que alguns dos partcipes do grupo estiveram sujeitos, no um

    ttulo desprezvel. Nem a insistncia de seu pai para fazer dele o condutor dos negcios

    txteis da famlia conseguiu desvirtuar Horkheimer de uma carreira acadmica bem

    sucedida 31, e que teve como marco inicial a titularidade na cadeira de "Filosofia Social"

    alcanada j em 1930. Desde o incio de sua formao, ele fora talhado para a posio de

    catedrtico com estudos de filosofia, economia poltica e psicologia, em uma sntese muito

    particular sobre as tendncias que seriam abraadas pelo quadro de pesquisadores do qual

    ele seria parte integrante anos mais tarde. Convm debitar na conta desse perfil mais

    burocrata de Max Horkheimer o motivo pelo qual foi com Adorno, o outro expoente mais

    representativo da Escola - e sobre quem nos anos seguintes tambm se depositava uma

    liderana do Instituto de Pesquisas - , e no com ele, que os laos pessoais e de amizade

    parecem ter se estabelecido com mais afinco. Isso se nota por exemplos variados, em parte

    justificados pelo temperamento pouco dcil que ele ostentava. Fora sempre Adorno o

    principal interlocutor de Benjamin, e destinatrio da ampla correspondncia que este

    mantivera com o novo continente. Tambm por isso foram sobretudo contra Horkheimer

    que se dirigiram as polmicas crticas de Hannah Arendt afirmando que Benjamin fora

    explorado e deliberadamente desassistido na Europa. No caso de Habermas, novamente, foi

    Adorno, e no Horkheimer, quem mais desempenhou a decisiva figura de mentor e

    orientador.

    Deve-se tambm a Horkheimer uma formulao mais pormenorizada dos preceitos

    do Instituto em um momento em que a identidade intelectual do grupo no era ainda uma

    caracterstica totalmente pacfica. A respeito disso, fora sintomtico que ele referisse

    teoria social de Frankfurt como "materialista", em uma nomenclatura at mais afeita aos

    antigos fundadores da instituio, passando s a partir de 1937 a design-la como "crtica".

    31 Ibidem, p. 79.

  • 29

    Em um momento em que Benjamin se encontrava completamente imerso em temas e

    propostas relativas esttica e arte, e enquanto Adorno ainda oscilava entre ser um

    musicista ou abraar de vez a filosofia, Horkheimer j se ocupava dos marcos tericos que

    comporiam alguma espcie de portflio da teoria social frankfurtiana. Do mesmo modo que

    coube antiga diretoria uma vinculao maior a Marx e s questes comuns na agenda da

    social democracia, via SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands) - ao qual Herbert

    Marcuse fora filiado na sua juventude -, e tambm dos comunistas do KPD

    (Kommunistiche Partei Deutschlands), um realinhamento com pensamento de Hegel nas

    bases da Escola foi obra de Max Horkheimer. E tal como Marx, a onipresena permanente

    no Institut, dizia no prefcio da segunda edio de O capital haver virado de ponta-cabea a

    dialtica hegeliana32, pode ser atribuvel aos frankfurtianos o exerccio de virar igualmente

    de cabea para baixo o otimismo de Hegel 33. Na gerao seguinte, essa devoo figura de

    Hegel ser tambm alimentada por Habermas, que o reconhece como o primeiro filsofo

    "para o qual a modernidade se tornou um problema. Em sua teoria, torna-se visvel pela

    primeira vez a constelao conceitual entre modernidade, conscincia do tempo e

    racionalidade" 34.

    A projeo de Horkheimer como um quase lder natural do grupo foi sendo

    conquistada ao longo do tempo de um modo que nem a tortuosidade dos caminhos

    percorridos por essa agremiao conseguiu enfraquecer. A forma legtima com que isso se

    deu pode ser exemplificada na ausncia completa de qualquer contestao de relevo a

    respeito dessa posio. E essa reunio sob o Institut em relativa calmaria e convergncia de

    propsitos um feito bastante destacvel, sobretudo se forem consideradas a diversidade de

    origens e a multiplicidade de trajetrias entre os indivduos que estiveram reunidos nesse

    grupo. Independentemente do posto ocupado como diretor do Instituto que lhe impunha tal

    liturgia, Horkheimer sempre foi o mais enfronhado em todos os assuntos referentes teoria

    crtica e seus adeptos - fossem eles pretensos ou de fato. De todos os perfis reunidos em

    Frankfurt era tambm o dele que estava mais resolutamente arquitetado para dar conduo

    aos trabalhos seguidos em vrias frentes e para costurar alguma coerncia interna

    profuso diversa de temas ali abordados. Para isso contou menos a sua formao intelectual

    32 Marx, Karl. O Capital Crtica da Economia Poltica. Livro I, p. 28. 33 Finlayson, James Gordon. Habermas - A Very Short Introduction, p. 05. 34 Habermas, Jrgen. O Discurso Filosfico da Modernidade, p. 62.

  • 30

    linear, sem sobressaltos e direcionada para a ctedra do que a sua determinao em fazer

    vicejar uma teoria de escopos amplos que conjugasse o legado de Marx com toda uma

    tradio de pensamento para a partir dali oferecer um cabedal filosfico-conceitual

    inteiramente novo. No h razes para duvidar que suas nuances e particularidades pessoais

    no tenham sido decisivas para o conjunto da Escola:

    "s em Horkheimer a indignao diante do destino dos explorados e humilhados

    constitua um verdadeiro aguilho do pensamento, ao passo que, para os outros,

    a teoria marxista s era sedutora porque parecia prometer solues para

    problemticas tericas at ento bloqueadas e, particularmente, porque parecia

    ser a nica crtica radical da sociedade burguesa capitalista alienada,

    teoricamente ambiciosa, e que no se apartava da realidade 35.

    Todavia todo o seu perfil de gestor e medalho do pensamento social pode e deve

    ser criticado no que tange aos bices por ele interpostos para que alguns dos mais ldimos

    representantes de Escola de Frankfurt estivessem vinculados ao Institut fr

    Sozialforschung. Se por fora das circunstncias Horkheimer esteve frente do grupo,

    influenciando seus rumos, e atuando diretamente no ingresso de novos membros, torna-se

    tambm digna de nota a sua desconfiana de determinados nomes. Nem que seja apenas

    para valorizar seus dotes de presidente, h de ser lembrado que como possvel recrutador de

    nomes para compor os quadros do Instituto sua atuao foi desastrosa. Movido apenas pelo

    seu faro avaliativo, Horkheimer foi displicentemente desdenhoso com o ingresso de

    Marcuse, e deliberadamente refratrio adeso de Habermas ao Instituto.

    2.2. Teoria Crtica e Psicanlise

    Tambm foi pela mo de Horkheimer que a teoria crtica se viu compelida a abraar

    Freud e sua dileta psicanlise. A naturalidade com que essa parceria hoje encarada,

    entretanto, esconde as dificuldades encontradas ao longo do caminho. Embora o Instituto de

    35 Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p. 135-136 .

  • 31

    Pesquisas Sociais desde seu incio dividisse o teto com o Instituto Psicanaltico nas

    dependncias da Universidade de Frankfurt, as proximidades entre os dois no plano terico

    ainda no passavam de vagas sugestes e tentativas desordenadas, sem muitos resultados

    prticos. Em artigo publicado no primeiro volume da Zeitschrift fr Sozialforschung

    Horkheimer j conclama para uma convergncia de propsitos entre a psicologia individual

    e o marxismo. Assumindo uma tarefa que seria incontestavelmente sua, Erich Fromm no

    mesmo nmero escreveu ber Methode und Aufgabe einer analytischen Sozialpsychologie

    (Sobre Mtodo e a Tarefa Analtica da Psicologia Social), argumentando que a psicanlise

    seria capaz de estabelecer um elo entre superestrutura e sua base socioeconmica,

    requerendo, para tanto, os devidos ajustes na obra de Freud. Com o auxlio de Fromm, cuja

    formao de psicanalista e o vnculo no apenas com um, mas com os dois Institutos lhe

    garantia trnsito fcil nos dois ambientes, se deu o desenvolvimento da primeira pesquisa

    emprica interdisciplinar que combinava psicanlise e teoria crtica. Autoridade e Famlia,

    de 1936, mesclou fenmenos psicolgicos e sociolgicos em uma experincia pioneira 36.

    Sob essa inspirao veio lume a segunda gerao de Frankfurt, com Habermas

    frente. A desenvoltura com que o legado de Freud foi defendido e apropriado pela Escola

    no se deu sem algum esforo por parte dos pesquisadores, ou sem que ao menos alguma

    manobra para que esses caminhos se cruzassem fosse necessria. Se levado em conta, por

    exemplo, o carter apoltico do Instituto Psicanaltico de Berlim, a principal instituio

    alem do gnero e que serviria de modelo para seu mulo frankfurtiano, o trabalho de

    Horkheimer, Fromm e companhia em extrair dali qualquer insumo para o uso amplamente

    politizado que imaginavam do conhecimento no foi irrelevante.

    Se antes dessa experincia pioneira a juno dessas duas teorias era um passo

    ousado, as facilidades que convidavam para essa associao entre marxismo e psicanlise,

    contudo, tambm no eram to desprezveis. Observada por uma tica histrica e cientfica,

    a contribuio de Freud no foi menos revolucionria do que a de Marx. Em muitos casos

    at, pela adeso que encontrou em crculos cientficos e acadmicos nobres, algo s

    alcanado pelo marxismo aos trancos e barrancos e com muito mais controvrsia, as

    proposies freudianas, pontilhadas pelo seu atesmo, suas aluses a temas sexuais e

    36 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 146.

  • 32

    escatolgicos conseguiram pater la bourgeoisie europeia com muito mais afinco do que a

    verborragia inflamada de Marx. E mesmo compondo um perfil que se assemelhava muito

    ao de um burgus tradicional, Freud, a partir de sua trincheira, soube tanto quanto Marx se

    portar como um inimigo mordaz da burguesia. Sua psicanlise foi desde a origem bastante

    contributiva para as vanguardas que transformavam toda a cultura europeia 37. A leitura

    feita pelo discipulado de Marx reunido sob o Institut no foi distante disso, como d prova a aproximao que pretenderam fazer da obra freudiana. A dimenso desse alinhamento de

    saberes distintos faz lembrar, alis, a prpria semelhana que Marx se esforou por mostrar

    entre os seus escritos e os trabalhos de um outro iconoclasta, o ingls Charles Darwin 38.

    Nas palavras de Engels, ditas no funeral de seu parceiro comunista, a semelhana entre

    ambos foi assim descrita: assim como Darwin descobrira a lei de evoluo na natureza

    orgnica, Marx descobrira a lei da evoluo na histria humana 39. Pode ser acrescentado

    a, como na mistura frankfurtiana, que Freud por sua vez descobriu as leis da evoluo - e

    da involuo - psquica.

    O abrao psicanlise no trouxe apenas novas vertentes para os tericos

    frankfurtianos, mas teve tambm como consequncia natural uma alterao decisiva no

    plantel do Instituto. O posterior afastamento de Erich Fromm do grupo, que curiosamente

    contrariava o desejo de reunir especialistas em reas e segmentos especficos, visto que ele

    fora, alm de Pollock, o nico a cumprir esse requisito, se deu em um processo tumultuado

    e cheio de dissabores. Pelas perseguies, intrigas e manobras que deixa revelar, o episdio

    ainda um prato cheio para que se enxergue as paixes humanas em ebulio em pleno

    37 Whitebook, Joel. A Unio de Marx e Freud: A Teoria Crtica e a Psicanlise. 38 Se a associao feita pelos frankfurtianos entre o pensamento de Freud e Marx foi inovadora, ela no pode, no entanto, ser tratada como a nica da espcie. Outro grande bastio da cincia do sculo XIX que conduzia seus trabalhos em rea completamente distinta foi listado pelo prprio Marx como algum cuja obra apontava para uma direo bastante semelhante da sua. Foi com muito entusiasmo que Marx e Engels saudaram Darwin por ter retirado a metafsica, a tica e a religio do alcance das cincias naturais. Esse entusiasmo fez com que Marx pretendesse at manifestar seu contentamento dedicando o primeiro volume de sua obra mxima, O Capital, ao autor de A Origem das Espcies. A homenagem s no se concretizou graas a um aceno negativo de Darwin, que para tanto invocara os sentimentos religiosos de sua famlia, em uma provvel sada pela tangente para no ver seu nome ascendente associado ao polmico barbudo alemo. A alegao para a convergncia de propsitos entre os dois autores era vista por Marx na maneira como Darwin dotou a natureza e a biologia de uma historicidade comparvel das sociedades humanas, j que antes dele a natureza e a biologia eram vistas como naturais e imutveis. Dado o discurso fnebre de Engels sobre a tumba do amigo, em 1883, recuperando pontos dessas semelhanas, de se pensar que Marx tenha levado essa admirao pelo naturalista ingls para o tmulo. 39 Engels, Friedrich apud Mayer, Arno J.. A Fora da Tradio - A Persistncia do Antigo Regime (1848- 1914), p. 274.

  • 33

    celeiro de intelectuais sempre to dados a ideias, teorias e razes. Depois de boicotarem

    deliberadamente parte do trabalho de Fromm, que para Horkheimer nunca foi de fato um

    membro in pectore no grupo, passos variados foram sendo ensaiados para escante-lo. As

    razes mais bem sinalizadas para esse processo estavam nas discordncias dos modelos

    seguidos por Fromm e tambm na interpretao que ele fazia de Freud, mas se misturam a

    tambm incompatibilidades de gnios e discordncias comezinhas. Em parte, o grau desse

    distanciamento medido pela guinada mais otimista que os escritos de Fromm vo

    tomando, o que o colocava naturalmente em posio contrria ao ritmo pessimista que

    modulava a teoria crtica, e que era igualmente incompatvel com a descrena de Freud com

    a civilizao ocidental.

    Antes de ser tragado pelas disputas que o impeliram a deixar a Schule, Fromm fora

    saudado como a figura ideal que poderia conduzir com alguma expertise os pesquisadores

    adeptos a diferentes matizes de marxismo para o mergulho em guas freudianas. Formado

    em psicanlise, com uma tradio familiar e um estilo de vida bastante judaicos, ele j

    reunia boa parte das caractersticas extra-intelectuais que invariavelmente marcavam os

    membros do grupo. O fato de ter se casado com uma psicanalista, tambm ela responsvel

    pela fundao do Instituto Psicanaltico de Frankfurt, s um detalhe adicional que ajuda a

    explicar o papel de Fromm e sua contribuio para o casamento entre a psicanlise e

    pesquisa social no compasso do materialismo histrico 40.

    Se sua formao prxima da psicanlise o deixava em um status ligeiramente

    diferenciado nas hostes do Instituto, foi, entretanto, naquilo que Fromm tinha de mais em

    comum com os demais membros do grupo que ele de fato se distinguiu. O seu caso

    especfico foi o nico entre os frankfurtianos em que a origem tnica no era um dado

    menor e quase aleatrio na sua caracterizao. Embora a ferocidade da perseguio nazi-

    fascista ao judasmo tenha sido irrestrita, Fromm foi, diferentemente dos seus colegas de

    instituio, o nico que podia ser apontado como praticante de sua f judaica e no como

    algum que apenas trazia a ascendncia judia sem vivenci-la tambm no plano religioso,

    por mais que no seu momento de filiao ao Institut ele j tivesse deixado de lado a maior

    parte do seu fervor. Durante sua juventude ele participou, com entusiasmo e dedicao, de

    40 Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p. 86.

  • 34

    associaes para o estudo e difuso da sua religio. Foi s com a psicanlise que seus

    horizontes se expandiram alm da Tor, o que lhe permitiu aproximar-se da cincia de

    Freud. Dela ele s se distanciaria, anos adiante, quando resolve ser ainda mais fiel a uma

    outra f, aquela que guardava com relao a Marx, e que crescia na proporo inversa do

    seu judasmo.

    Sem demrito de suas qualidades pessoais, Fromm cumpriu uma funo que j se

    esperava ver atendida. O espao para uma infuso freudiana no Institut j vinha sendo

    construdo antes mesmo que ele se juntasse ao grupo. Ter sido trazido por Leo Lwenthal

    fez dele o homem certo para a funo que j o aguardava. A comprovao dessa condio

    vinculante a que ele esteve submetido pode ser extrada do fato de que a posterior decepo

    e o consequente afastamento de Freud coincidem de maneira linear com o distanciamento

    que Fromm tambm adquiriu dos demais membros da Escola. Horkheimer desejava

    estabelecer uma conexo com a psicanlise e em parte j a encarava como uma fonte

    necessria para equilibrar alguns excessos e falhas do marxismo. Esteve claro para ele que

    o desprezo do indivduo era um ponto enfraquecedor da interpretao pelo materialismo

    dialtico, do mesmo modo que se fortalecia a convico de que a psicologia individual era

    um ingrediente para explicao da realidade histrica e social e que muito poderia

    acrescentar aos trabalhos que soubessem manejar essa ferramenta. A escolha pela teoria

    freudiana ganhava fora na medida em que seus equivalentes como vieses psicologizantes

    ento disponveis mo, em especial o utilitarismo instrumental, eram reconhecidamente

    de resultados frustrantes. Tampouco a ideia de indivduos guiados por instintos morais

    inatos, que teve sua cota de adeses poca, parecia talhada para ocupar esse espao. Antes

    disso at, seu maior interesse pela filosofia de Nietzsche, de quem fora sempre um

    admirador com reservas, se concentrava justamente na valorizao do indivduo. Ficaria

    claro com o passar do tempo que o suposto calcanhar de Aquiles do mtodo de Marx seria a

    brecha perfeita para que a psicanlise se tornasse parte indivisvel do pensamento

    frankfurtiano. Tambm Adorno j havia se deixado convencer de que uma valiosa

    contribuio "poderia ser avanada pela psiquiatria e por uma sociologia psicanaliticamente

    orientada", que em um esforo conjugado teriam competncia e meios para "revelar certos

  • 35

    mecanismos que no podem ser apreendidos de modo adequado, nem exclusivamente em

    termos do que sensato, nem em termos do que ilusrio" 41.

    Entretanto essa convocao velada da psicanlise como um elemento que poderia

    preencher lacunas do marxismo no foi declarada como uma atribuio a Fromm. Todos os

    elementos esto dados para que se pense, alis, que ele jamais a tenha enxergado assim.

    Esse uso enviesado, no obstante a possibilidade de lhe ter sido sugerido, foi muito mais

    um vislumbre que Adorno e Horkheimer compartilhavam do que propriamente uma tarefa

    delegada ao membro recm-chegado. E como seu futuro intelectual ainda iria revelar, j era

    de se esperar que Fromm estivesse muito mais propenso a abrir mo de Freud em prol de

    Marx do que o contrrio. No tardava o momento em que na mesma revista do Instituto

    onde ele havia informalmente assinado sua adeso ao grupo, ele destilaria sua ferrenha

    crtica a Freud, a quem no aspecto pessoal ele reputava como excessivamente patriarcal e

    burgus 42. Curiosamente, em uma surpreendente inverso de papis coube no fim das

    contas aos marxistas do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt defender a contribuio

    e o legado de Freud, ao passo que o psicanalista Erich Fromm se encarregou de diminuir a

    importncia do patrono da cincia que ele abraara e, com a outra mo, reforar com todo

    ardor a relevncia da figura e da obra de Marx.

    Na assimilao da psicanlise como uma poro constitutiva do teoria do Instituto

    de Pesquisas Sociais pesaram tanto razes de ordem terico-intelectuais como as questes

    pessoais. Pode-se especular que em igual medida o intelectual e o indivduo Horkheimer

    tiveram seus motivos para tanto. A necessidade de tratar uma quase fobia que tinha de

    ministrar aulas sem ter um texto escrito que o amparasse levou o cabea do grupo a

    procurar um analista. Uma vez sanada sua dificuldade, que por sinal foi tratada por um

    antigo pupilo de Freud, certo que foi reforado seu interesse pela cincia freudiana. Seria

    ingnuo acreditar que essa experincia pessoal, contempornea sua ateno ao tema, no

    tenha surtido um mnimo efeito no autor e suas expectativas quanto incorporao da

    psicanlise teoria crtica. Ainda nessa linha, no ser exagero aduzir que tambm tiveram

    um efeito benfico as cartas de agradecimento escritas pelo prprio Freud e nas quais ele

    41 Adorno, Theodor. As Estrelas Descem Terra - A Coluna de Astrologia do Los Angeles Times: Um Estudo Sobre Superstio Secundria, p. 31. 42 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 145.

  • 36

    agradecia os incentivos dados por Horkheimer para que o Instituto de Psicanlise,

    encabeado pelo seu antigo psicanalista, fosse incorporado Universidade de Frankfurt 43.

    Considerando a origem no apenas semntica mas at ideolgica do que foi o

    substrato essencial da psicanlise, a noo de inconsciente, pode-se dizer que a intuio de

    Horkheimer no falhara ao direcionar para esse sentido parte dos esforos de seus estudos.

    Ele, que se manteve sempre fiel ao seu interesse pelo legado de um filsofo nem sempre

    prontamente associado ao seu pensamento, Arthur Schopenhauer, pde notar a partir da

    uma convergncia entre suas leituras de cabeceira. A respeito dessa sua predileo

    intelectual, nada pode dar mais prova da sua admirao pelo filsofo de Danzig do que o

    retrato dele que manteve na parede de seu escritrio no Institut 44. Da mesma forma, nada

    representou mais apreo s ideias de Freud do que assimil-las teoria que ele e seus pares

    desenvolveram. A confluncia entre os pensamentos do alemo e do austraco havia sido

    esboada quando Freud saa cata de respostas para os experimentos de hipnose e termina

    por atracar na ideia de Unbewusste (inconsciente), de uso corrente nos escritos daquele 45.

    A pergunta a ser respondida com a ajuda de Schopenhauer era sobre que espcie de

    compartimento mental guardaria as informaes sugeridas em um momento de hipnose

    mesmo depois do transe e sem que, no entanto, o paciente se recordasse de t-las recebido.

    Tomada de emprstimo de Schopenhauer, mas no apenas dele, essa noo forneceu a base

    para que se solidificasse a criao de Freud e para que, uma vez nascida a psicanlise, ela

    pudesse roubar a cena das sesses de hipnose no protagonismo dos experimentos

    psicolgicos.

    Esse precedente schopenhauriano foi um estmulo a mais para que Horkheimer

    desse razo a Freud e noo de inconsciente trazida em conjunto com a sua psicanlise, a

    partir da qual se tornava possvel conceber e problematizar a ao humana com parmetros

    at ento indisponveis no repertrio cientfico e especulativo. Freud e Schopenhauer

    haviam concordado ainda na viso de que repetio e fixao so a tnica da civilizao 46.

    Alm do mais, homenagem equivalente ao do retrato do filsofo na parede do escritrio do

    43 Ibidem, p. 135. 44 Wiggershaus, Rolf. A Escola de Frankfurt - Histria, Desenvolvimento Terico, Significao Poltica, p.83.

    45 Mezan, Renato. Freud e a Psicanlise: "Um Trabalho de Civilizao", p. 51. 46 Jay, Martin. A Imaginao Dialtica - Histria da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, p. 154.

  • 37

    diretor do Instituto, Horkheimer e seus pares s puderam prestar com a reedio do

    pessimismo schopenhauriano em propores semelhantes s do mestre, mas dessa vez no

    como uma caracterstica do pensamento de um indivduo exclusivo, mas como apangio de

    uma Escola inteira.

    Todo o uso da psicanlise pela teoria crtica veio na forma de um esforo para

    compreender os processos atravs dos quais as conscincias individuais so adaptadas s

    exigncias funcionais de um sistema de economia monopolizadora e Estado autoritrio.

    Seja pela mo de Erich Fromm, que como membro passageiro do grupo esteve atribudo

    dessa funo, ou seja por uma apreenso direta de Freud, essa necessidade explicativa

    orientou a aproximao da teoria crtica com a psicanlise. A necessidade de se investigar

    esse processo adaptativo j estava dada na afirmao contida naquela que foi a certido de

    nascimento da Teoria, onde pela mo de Horkheimer se lia: "O indivduo deixou de ter um

    pensamento prprio. O contedo da crena das massas, no qual ningum acredita muito

    produto direto da burocracia que domina a economia e o Estado" 47. Grande parte desse

    esforo investigativo, entretanto, foi limitado ou pouco aproveitado, de acordo com a

    avaliao habermasiana. Isso porque os frankfurtianos sempre interpretaram esses

    processos de maneira direta, sem nenhuma intermediao subsidiria, estabelecendo uma

    ligao das conscincias individuais com os mecanismos de integrao social. Por sua vez,

    a abordagem de Habermas faz uma estudada opo pelo mundo da vida como espao de

    vivncia cotidiana e como instncia mediadora que situa os indivduos modernos em

    condies de maior competncia dialgica, alm de incorporar estruturas de racionalidade

    que conseguem captar em sintonia mais fina os processos de integrao e reificao 48.

    Os desdobramentos da abordagem do tema da psicanlise so sentidos de maneira

    importante no momento em que Habermas tomava parte nas questes relativas teoria

    crtica. Sua primeira publicao que causa impacto nas cincias humanas, Conhecimento e

    Interesse, de 1968, j traz embutida a valorizao da psicanlise como modelo para as

    cincias sociais. O fato de o livro ter sido resultado das discusses que Habermas manteve

    47 Horkheimer, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crtica, p. 151. 48 Essa abordagem de Habermas em contraponto da teoria crtica pode ser encontrada em um trecho bastante claro: "A primeira diferena importante reside no fato de que a teoria do agir comunicativo concebe o mundo da vida como um espao ou mundo em que possvel constatar processos de reificao que constituem fenmenos oriundos de uma integrao repressiva provocada por uma economia apoiada em oligoplios e por um aparelho estatal autoritrio (Habermas, Jrgen. Teoria do Agir Comunicativo - Sobre a Crtica da Razo Funcionalista, p. 705) .

  • 38

    com membros do Instituto Sigmund Freud do prova inegvel disso. Como o receiturio

    terico-crtico preconizava uma atitude menos contemplativa da cincia e assumia como

    tarefa do cientista uma interveno prtica na realidade social, a elucidao de um

    problema e a sua exposio para o indivduo ou grupo atingido eram passos fundamentais.

    Com isso ganhou fora o idealizado expediente psicanaltico que pressupe um processo de

    autoconhecimento a partir do qual o paciente reconhece o mal que o aflige e s ento elege

    uma estratgia para super-lo. Esse modelo serviu de espelho para parte das proposies

    defendidas pela teoria crtica, que sempre apontou a existncia de ideologias e distores

    que camuflam a realidade e impedem, portanto, sua elucidao. Sobressaiu em Erich

    Fromm, o nome da teoria crtica mais monoliticamente ligado psicanlise, uma

    semelhana entre suas abordagens e as de Harry Stack Sullivan, conforme ele mesmo

    admitiu. No por acaso, Sullivan foi um dos autores com quem Habermas flertou nos anos

    de 1970 e em seu perodo de incurso na psicologia social, dando prova uma vez mais da

    longevidade dessas influncias.

    Tal preferncia habermasiana sinaliza ainda a proximidade do autor com as

    solues elaboradas e praticadas em Frankfurt, assim como serve para lembrar como o

    ponto de partida de Habermas quase sempre aquele inicialmente aventado pelos seus

    antigos mestres. Assertiva que permanece vlida mesmo quando o autor usa o trampolim

    frankfurtiano para criticar as ideias ali desenvolvidas e se opor frontalmente ao Institut.

    2.3. Habermas, leitor de Freud

    escusado dizer que toda a incurso de Habermas na psicanlise, sobretudo em

    Conhecimento e Interesse, est do incio ao fim espelhada nas produes anteriores vindas

    do Institut fr Sozialforschung. O entusiasmo do autor com a psicanlise se d pela

    particularidade que essa cincia tem em razo de ter sido concebida com uma tentativa de

    superar inquietaes metodolgicas. Esse olhar enviesado um sintoma das motivaes

    intelectuais de Habermas no perodo dos anos 1960: "A psicanlise significativa para ns

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    como o nico modelo tangvel de uma cincia que utiliza metodicamente a auto-reflexo" 49

    50.

    A tica com que Habermas vai a Freud em 1968 a da epistemologia, que fora

    tambm o arete de suas contribuies na querela com Popper, mas que ele j havia deposto

    do centro das suas preocupaes quando da escrita da Teoria do Agir Comunicativo em fins

    dos anos 1970. Longe de ser uma questo ancilar, essa abordagem ad hoc d todo o tom da

    interpretao habermasiana da psicanlise, sobretudo em Conhecimento e Interesse, que

    pode ser encarado como o produto da investida mais sistematizada j feita pelo autor ao

    pensamento de Freud e que se insere, ainda mais pelo perodo em fora escrito, na esteira

    direta da tradio psicanaltica da teoria crtica. Tendo em vista ainda as circunstncias,

    poca, de Habermas como um membro ainda de expresso menor no plantel terico-crtico

    de Frankfurt, o texto deve ser lido tambm como o trabalho de um autor desejoso de

    oferecer uma contribuio em sintonia com a tradio ali abraada.

    Essa opo, em certa medida voluntariosa, est na raiz de alguns dos tropeos de

    Habermas em Conhecimento e Interesse, conforme a opinio de Bento Prado Jnior. A

    insistncia de Habermas em cavar espao para um interpretao do discurso, segundo

    Prado Jr., conduz sua leitura de Freud para debaixo de uma hermenutica que

    complementada nas suas outras duas pontas com "modelos de ao" e "expresses

    espontneas". Mas o que esse arranjo desconsidera que a originalidade da iniciativa

    freudiana foi justamente na direo contrria, desarticulando a conexo entre esses temas e

    implodindo o bom funcionamento do jogo de linguagem. O efeito indesejvel e certeiro

    dessa investigao alternativa da psicanlise implica "uma neutralizao radical da

    descoberta bsica de Freud - a ideia ou o campo do inconsciente" 51. Em outras palavras,

    como