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ELISANDRA TOMASCHESKI DOS LUGARES DEIXADOS, AOS LUGARES CHEGADOSHISTÓRIA DE MULHERES BRASIGUAIAS DO ASSENTAMENTO ITAMARATI - MS DOURADOS 2018

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ELISANDRA TOMASCHESKI

“DOS LUGARES DEIXADOS, AOS LUGARES CHEGADOS” HISTÓRIA DE

MULHERES BRASIGUAIAS DO ASSENTAMENTO ITAMARATI - MS

DOURADOS – 2018

ELISANDRA TOMASCHESKI

“DOS LUGARES DEIXADOS, AOS LUGARES CHEGADOS” HISTÓRIA DE

MULHERES BRASIGUAIAS DO ASSENTAMENTO ITAMARATI - MS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como requisito final para a obtenção do título de Mestre em História.

Área de concentração: Fronteiras, Identidades e Representações.

Orientador: Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi.

DOURADOS - 2018

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFGD.

©Todos os direitos reservados. Permitido a publicação parcial desde que citada a fonte.

Tomascheski, Elisandra

“Dos lugares deixados, aos lugares chegados” histórias de mulheres

brasiguaias do Assentamento Itamarati-MS / Elisandra Tomascheski. –

Dourados, MS : UFGD, 2018.

175f.

Orientador: Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi.

Dissertação (Mestrado em História)- Faculdade de Ciências

Humanas. Universidade Federal da Grande Dourados.

1. Mulheres – Relações de gênero. 2. Migração – Aspectos

históricos. 3. Assentamento rural - Posse. I. Título.

ELISANDRA TOMASCHESKI

“DOS LUGARES DEIXADOS, AOS LUGARES CHEGADOS” HISTÓRIA DE

MULHERES BRASIGUAIAS DO ASSENTAMENTO ITAMARATI – MS

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em 06 de Julho de 2018.

BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador:

Losandro Antonio Tedeschi (Dr. UFGD) ____________________________________

1º Examinador:

Leandro Baller (Dr. UFGD) ______________________________________________

2 º Examinadora:

Marisa Fátima Lomba de Farias (Dra. UFGD) ________________________________

À minha mãe Maria Leni Tomascheski, ao meu pai

Clóvis Tomascheski e ao meu esposo Luis Fernando

Teixeira Nobre.

AGRADECIMENTOS

Agradecer é reconhecer que a caminhada não se faz só, que nossas

conquistas são resultados de numerosas mãos. Hoje sou a soma de muitas pessoas

que compõem a minha história. Agradeço:

Ao Criador pela perfeição da natureza da vida que mesmo em momentos

difíceis temos forças para prosseguir.

A minha mãe, mulher brasiguaia batalhadora que inspirou meu trabalho e ao

meu pai homem companheiro e exemplar. Sinto muito orgulho da caminhada linda

que fazem neste mundo e pelo apoio e dedicação que sempre tiveram conosco, sem

o incentivo de vocês eu não teria chegado até aqui.

Ao meu esposo Luís Fernando, por compreender minhas ausências e

incentivar minha vida acadêmica, você é um presente maravilhoso que o universo me

enviou para completar minha caminhada e fazer meus dias mais doces.

Ao meu orientador Losandro Antonio Tedeschi pelo profissionalismo,

paciência, tranquilidade e críticas importantes e imprescindíveis para o

desenvolvimento do meu trabalho.

A todos professores e professoras do PPGH/UFGD, em especial, aos

professores/as: Adriana Aparecida Pinto, Anibal Herib Caballero Campos, Eudes

Fernando Leite, Jiani Fernando Langaro, Linderval Augusto Monteiro, Losandro

Antonio Tedeschi e Protasio Paulo Langer, pelos conhecimentos ministrados durante

as disciplinas cursadas no Programa.

Às contribuições da professora Marisa Fátima Lomba de Farias e do professor

Leandro Baller que participaram da banca de qualificação e também da defesa.

À minha família que mesmo durante crises, desacertos e momentos de dor

souberam com afeto me reconfortar, dando-me ânimo para prosseguir, deste modo

agradeço:

Aos meus irmãos Arlei e Antonio, que são em minha vida exemplos de

superação e de luta. Vocês ao longo de suas caminhadas, souberam com sabedoria

demonstrar que não devemos parar com os obstáculos durante a construção dos

nossos sonhos. Tenho muito orgulho de ambos.

As minha irmãs Sandra e Veronica, mulheres que sempre batalharam desde

a tenra idade para conseguir levar uma vida digna e que me ensinaram com muito

amor a trabalhar, persistir e dar o meu melhor sempre.

A minha irmã Denise, presente do Criador em nossas vidas, que sendo

especial, sempre foi minha companheira de estudos desde o primeiro ano do ensino

fundamental, sem saber o que era ler ou escrever, adorava pegar minhas coisas,

morder meus lápis e amassar meus cadernos. A mim sempre me tocou a linda tarefa

de zelar por ti, mas hoje vejo que o contrário também ocorreu, tu cuidou de mim, tanto

quanto eu de ti.

Recebi dos meus irmãos e de minhas irmãs os mais lindos presentes

possíveis, minhas seis sobrinhas e meu sobrinho e todos/as foram essenciais nessa

jornada, assim agradeço:

A Samanta, minha sobrinha, amiga e agora comadre, por ser minha parceira

desde que me reconheço por gente, sou grata pelas noites em claro brincando de

escolinha, penso que minha carreira já havia começado, mesmo que ainda não

soubéssemos. Gratidão imensa por cada momento de tua vida partilhado comigo e

principalmente pelas minhas afilhadas Maria Victória e Maria Candela, que são meus

mais novos amores.

À Daiane, amiga e sobrinha, que prova que a mera distância de 1500 km não

é páreo para separar quem se ama. Sou grata a ti por se fazer presente em todos os

momentos da minha vida (mesmo de longe), por cada confidência partilhada, pelos

sábios conselhos e também por algumas broncas (merecidas é claro). Gratidão ainda

ao Ismael, que tem o dom de transformar qualquer assunto em boas risadas.

À Tchaila, que compartilhou momentos desde os estudos para a seleção de

ingresso ao mestrado, que me acompanhou no dia da prova, tornando um dia tão

tenso, mais divertido e leve, as jujubas compradas nesse dia foram as mais azedas,

mas sem dúvida as que nos proporcionaram as mais gostosas gargalhadas.

À Daiana, best friend (como ela diz) de todas as datas, que simplesmente

deixa de lado qualquer outra atividade, para me fazer companhia, que chorou junto

comigo quando eu não conseguia escrever, que brigou comigo quando eu disse que

não ia dar conta e que fez os mais deliciosos doces, bolos e também o melhor

chimarrão possível para acalmar meus nervos, facilitando e tornando mais leve a

caminhada. Não é à toa que ganhei uns quilos...

À Aline, minha sobrinha atleta, que nas suas visitas me fazia sair de casa para

praticar exercícios físicos. As caminhadas e corridas que fizemos, mesmo doloridas e

com todas as reclamações que fiz durante elas, foram essenciais para mim. Tu é a

melhor personal trainer do mundo.

À Andreia, pelas horas de conversas sobre séries, filmes e prints (risos).

Gratidão a ti por sempre querer estar em minha companhia, por compartilhar comigo

teus segredos, e principalmente por haver me escolhido para ser tua madrinha, sinto-

me extremamente honrada.

Ao Lucas (o bendito fruto), que além de sobrinho é meu afilhado, gratidão a ti,

pelo mais belo sorriso em todos os momentos, mesmo quando eu fazia as maiores

reclamações sobre todas as coisas. Tua alegria é alento para a família.

Na família também chegaram os/as agregados/as (risos), sem dúvidas os/as

melhores, as cunhadas e o cunhado:

À Marilene e Nancy, pois além de cunhadas são comadres e principalmente

amigas. Obrigada por todas as mensagens, conselhos e por toda preocupação e

auxilio nessa caminha e sobretudo por sempre acreditarem em mim, até mesmo

quando eu estava duvidando.

Ao meu cunhado José, um dos homens mais pacientes que conheço. Gratidão

a ti por todo carinho, por sempre me dar atenção desde que eu era criança e também

por me ensinar a compreender como o relógio de ponteiro marca as horas.

Agradecimentos também ao Frank, meu filho pet, pela companhia e pelo

carinho em todas os momentos de estudos, inclusive nas madrugadas.

Junto com meu esposo, como supramencionado meu presente divino, vieram

o melhor sogro e a melhor sogra do mundo, Heleno e Neide, sou imensamente grata

aos dois pelo apoio e incentivo de sempre.

Gratidão ainda...

Às mulheres brasiguaias que me concederam um tempo de partilha de suas

vidas e histórias para que assim este trabalho fosse possível.

As minhas amigas e amigos pelo apoio, compreensão, palavras de incentivos,

com certeza vocês são dádivas recebidas, às quais guardo com muito amor.

Ao diretor da Escola Estadual Nova Itamarati José Carlos de Brito e a vice-

diretora Rosemeire da Silva, que me deram todo suporte necessário para conciliar

trabalho e estudos.

As minhas colegas de trabalho Adriane Pereira, Cristiane Almeida e ao meu

colega João Henrique Moura Neves por frequentemente trocarem os horários comigo

para que eu pudesse assistir às aulas e comparecer às reuniões de orientação.

Todos/as são importantes e imprescindíveis.

No había reparado en el hecho esencial de que casi

todas las anécdotas individuales y colectivas que

acaban configurando la Historia están protagonizadas

por varones.

Mar Langa Pizarro

RESUMO

A luta pela terra no Brasil foi marcada por constantes disputas e desavenças relacionadas ao interesse por sua posse, luta esta, a qual beneficiou, frequentemente, uma camada social específica, qual seja, aquela detentora do poder econômico. Com as transformações ocorridas na agricultura a partir de meados do século XX, e com as novas tecnologias que incentivavam a monocultura, muitos brasileiros/as, pequenos/as produtores/as, perderam espaço no campo brasileiro em decorrência do fato de que não possuíam condições econômicas para se adequarem aos novos métodos de produção vigentes. Incentivados, pois, pela política de colonização de “áreas vazias” que o Paraguai apresentava nesse período, pequenos/as agricultores/as decidiram migrar, com o objetivo de encontrar naquele país terras férteis e de cultivo barato, e, consequentemente, encontrar uma vida melhor. Por algum tempo a vida no país vizinho transcorreu normalmente, mas problemas como a falta de documentação (tanto em relação às terras como às pessoas), bem como os conflitos de interesses entre brasileiros/as e paraguaios/as, foram fatores que impulsionaram o retorno desses/as migrantes, os quais ficaram, então, conhecidos/as como brasiguaios/as. Considerando esse contexto dos processos migratórios (de ida e de retorno) de brasileiros/as ao Paraguai, parte-se da premissa de discutir como a história das mulheres não é reconhecida e notada pela história tradicional. Assela-se, portanto, a partir desta pesquisa, a construção de uma nova história acerca de sujeitos excluídos, não vistos, subalternizados. Sendo assim, neste trabalho são ouvidas as vozes femininas desse processo, a fim de quebrar paradigmas e estereótipos construídos socialmente, segundos os quais migrar é constantemente representado, marcado, enfim, descrito como uma prática masculina. Para que se alcançasse os objetivos propostos nesta pesquisa, foram entrevistadas, com o suporte da metodologia da História Oral, mulheres brasiguaias que atualmente residem no Assentamento Itamarati, localizado no município de Ponta Porã, no estado de Mato Grosso do Sul – MS. A partir das narrativas das histórias de vida dessas mulheres, e tendo os estudos de gênero como categoria de análise, demonstra-se, assim, os caminhos cotidianamente traçados por elas desde a decisão de migrar para o Paraguai até o retorno e permanência no Brasil. Tais mulheres resistiram e alimentaram esperanças como protagonistas em uma sociedade patriarcal e androcêntrica, que relega às mulheres as sombras da história. Palavras-chave: mulheres; terra; migração; gênero.

RESUMEN

La lucha por la tierra en Brasil fue marcada por constantes disputas y desavenencias relacionadas al interés por su posesión, lucha ésta, la cual benefició a menudo una capa social específica, cual sea, aquella poseedora del poder económico. Con las transformaciones ocurridas en la agricultura a partir de mediados del siglo XX, y con las nuevas tecnologías que incentivaban el monocultivo, muchos brasileños/as, pequeños/as productores/as, perdieron espacio en el campo brasileño como consecuencia del hecho de que no poseían condiciones económicas para adecuarse a los nuevos métodos de producción vigentes. Incentivados, pues, por la política de colonización de "áreas vacías" que Paraguay presentaba en ese período, pequeños/as agricultores/as decidieron migrar, con el objetivo de encontrar en aquel país tierras fértiles y de cultivo barato, y, consecuentemente, encontrar una vida mejor. Por algún tiempo la vida en el país vecino transcurrió normalmente, pero problemas como la falta de documentación (tanto en relación a las tierras como a las personas), así como los conflictos de intereses entre brasileños/as y paraguayos/as, fueron factores que impulsaron el retorno de los migrantes, los cuales quedaron, entonces, conocidos como los brasiguayos/as. En este contexto de los procesos migratorios (de ida y vuelta) de los brasileños/as al Paraguay, se parte de la premisa de discutir cómo la historia de las mujeres no es reconocida y notada por la historia tradicional. Se asocia, pues, a partir de esta investigación, la construcción de una nueva historia acerca de sujetos excluidos, no vistos, subalternados. Siendo así, en este trabajo se escuchan las voces femeninas de ese proceso, a fin de romper paradigmas y estereotipos construidos socialmente, segundo los cuales migrar es constantemente representado, marcado, en fin, descrito como una práctica masculina. Para que se alcanzara los objetivos propuestos en esta investigación, fueron entrevistadas, con el soporte de la metodología de la Historia Oral, mujeres brasileñas que actualmente residen en el Asentamiento Itamarati, ubicado en el municipio de Ponta Porã, en el estado de Mato Grosso do Sul - MS. A partir de las narrativas de las historias de vida de esas mujeres, y teniendo los estudios de género como categoría de análisis, se demuestran así los caminos cotidianamente trazados por ellas desde la decisión de migrar hacia Paraguay hasta el retorno y permanencia en Brasil. Tales mujeres resistieron y alimentaron esperanzas como protagonistas en una sociedad patriarcal y androcéntrica, que relega a las mujeres las sombras de la historia. Palabras clave: mujeres; la tierra; la migración; género.

ABSTRACT

The strugle for land owning in Brazil has always been marked by constant feuds and dissenssion, which, frequently, benefited a specific social stratum, namely the one with the economic power. As a result of, both, the transformations in agriculture occured in mid 20th century and the uprising of new tecnologies related to the monoculture, a lot of small producers in Brazil lost their place in the brazilian fields, since they didin´t have the economic power required to adapt themselves to the new production methods in force. Encoureged by Paraguay’s colonization policy of its « empty areas », the small brazilian producers decided to migrate, hoping to find a better life within the other country’s fertile lands, which presented a cheaper culture. For a while life in the neighbour country went by normally, but the problems related to the lack of documentation (personal and land documentation), as well as the conflict of interests between brazilians and paraguayans, stimulated the return of these migrants, whom became known as brasiguayans. Considering the migration context of brazilians towards Paraguay, the present reaserch intends to discuss the unrecognized women’s history, once it is most frequently unnoticed by the traditional history. Hence, this reaserch seeks to build a new history, which is about subjects who used to be excluded, subordinated and unseen. Therefore, the female voices of this process were heard so the paradigms and stereotypes that assert the migration process as a male practice could be broken. In order to reach the main purposes placed through this reaserch, the brasiguayan women who live in the Itamarati setlement, located in the city of Ponta Porã, in the state of Mato Grosso do Sul, were interviewed with the suport of the Oral History methodology. The paths daily taken by the brasiguayn women, from the moment they decided to migrate towards Paraguay to the moment of their return, were demonstrated through the life Stories narrated by these women, Stories which were analized based on the gender as a category. These women resisted as the leading characters of a patriachal and androcentric society that has relegated them to the shadows of History. Key words: women; land; migration; gender.

ÍNDICE DE MAPAS

MAPA 1: Origem do fluxo migratório brasileiro para o Paraguai ........................ 58

MAPA 2: Território paraguaio povoado por brasileiros/as .................................. 62

12

ÍNDICE DE FOTOS

Foto 1: Ana Samariva Daniel. Fonte: acervo da pesquisadora. 12/03/2018. ........... 26

Foto 2: Fátima de Lourdes Fincatto. Fonte: acervo da pesquisadora 21/03/2018..... 27

Foto 3: Maria Leni Tomascheski. Fonte: acervo da pesquisadora. 10/04/2018. ....... 28

Foto 4: Maria Celina Azarias David. Fonte: acervo da pesquisadora. 10/04/2018. ... 29

Foto 5: Maria Inês Alves Nunes. Fonte: acervo da pesquisadora. 09/04/2018. ........ 31

Foto 6: Luzia Mauro. Fonte: acervo da pesquisadora 14/03/2018. ........................... 32

Foto 7: Dona Ana posa ao lado de seu armário. Fonte: acervo da pesquisadora.

12/03/2018. ............................................................................................................... 98

Foto 8: Festa de casamento realizada na Colônia Mbarete – debaixo da árvore onde

foi rezado o primeiro terço, organizado pelas mulheres. Fonte: acervo pessoal de

Maria Leni Tomascheski, 1980. ............................................................................... 109

Foto 9: Acampamento no qual viveram Dona Maria Leni, Maria Celina e Maria Inês.

Fonte: Acervo pessoal de Maria Celina Azarias David, 2004. ................................. 141

13

SUMÁRIO

ÍNDICE DE MAPAS .................................................................................................. 11

ÍNDICE DE FOTOS ................................................................................................... 12

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................... 15

CAPÍTULO I .............................................................................................................. 36

A MIGRAÇÃO E SEUS MOVIMENTOS: SUJEITOS QUE VÃO E QUE VEM ......... 36

1.1 Introdução ....................................................................................... 37

1.2 Migração para o Paraguai: terras brasileiras nas mãos de poucos . 37

1.3 Identidades em construção: ser brasiguaio/a .................................. 63

1.4 O feminino que migra: uma “minoria” esquecida na História........... 66

1.5 Olhares e experiências femininas sobre a migração para o Paraguai

71

CAPÍTULO II ............................................................................................................. 85

LUTAS, CONQUISTAS, TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS: A VIDA DE MULHERES BRASILEIRAS NO PARAGUAI .......................................................... 85

2.1 Introdução ....................................................................................... 86

2.2 Representações sobre os paraguaios/as no imaginário das mulheres

brasileiras 86

2.3 Lembranças de um lugar: a vida de mulheres brasileiras no Paraguai

89

2.4 “Naquele sertão as nossas crianças estavam crescendo sem

religião”: o feminino na formação de comunidades religiosas no Paraguai ......... 106

2.5 A luta por terra continua: o retorno ................................................ 112

CAPÍTULO III .......................................................................................................... 122

UMA NOVA HISTÓRIA: CHEGADA E PERMANÊNCIA DAS MULHERES NO ASSENTAMENTO ITAMARATI.............................................................................. 122

3.1 Introdução ..................................................................................... 123

3.2 O valor social da terra: de latifúndio a assentamento ................... 123

3.3 Um acampamento, muitas histórias .............................................. 131

3.4 A vida e a terra conquistada.......................................................... 144

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 158

14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 167

FONTES ORAIS ..................................................................................................... 175

FONTES DA IMPRENSA ........................................................................................ 176

FONTES DIPLOMÁTICAS ..................................................................................... 177

15

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao historiar os processos migratórios é muito comum se notar a invisibilidade

ou inexistência de registros sobre as mulheres nessas análises. Isso se deve ao fato

de que historicamente a migração foi representada por homens, pautada em uma

sociedade androcêntrica e patriarcal que relegava o feminino a uma segunda

instância, sem muita relevância. Perrot, ao fazer uma análise sobre a escrita da

história, afirma que: “As mulheres ficaram por muito tempo fora desse relato, como se

destinadas à obscuridade de uma inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo,

ou pelo menos, fora do acontecimento. Confinadas no silêncio de um mar abissal”.1

Deste modo, ao analisar a história de brasileiros/as que migraram para o

Paraguai a partir da década de cinquenta do século XX, percebe-se que as mulheres

são pouco mencionadas ou descritas. Quando a mulher é apresentada, isso ocorre,

majoritariamente, em poucos parágrafos ou páginas no interior dos quais elas são

perpetuadas em seus tradicionais papéis de mãe, esposa e ajudante. Nessa

perspectiva, de acordo com Soihet e Pedro: “Falar de mulher na história, significava,

então, tentar reparar em parte essa exclusão, uma vez que procurar traços da

presença feminina em um domínio sempre reservado aos homens era tarefa difícil”.2

Contudo, antes de ampliar-se as análises sobre a exclusão das mulheres na

escrita da história, será realizado um esboço do que foi esse movimento de mulheres

e homens com destino ao Paraguai, salientando as particularidades brasileiras e as

paraguaias no desencadear da migração, desvelando as motivações que levaram

incontáveis brasileiros/as a cruzarem a fronteira para habitá-la.

É importante ressaltar que são tomadas as duas categorias, quais sejam, as

de lugares deixados e lugares chegados, da perspectiva de Jones Dari Goettert

(2008), especificadamente da sua tese de doutoramento, intitulada “O espaço e o

vento: olhares da migração gaúcha para Mato Grosso de quem partiu e de quem

ficou”. O uso de tais categorias justifica-se uma vez que ele ilustra o fato de que a

migração deixa marcas tanto nos lugares deixados pelos migrantes, como naqueles

aos quais eles chegaram.

1 PERROT, 2017, p. 16. 2 SOIHET & PEDRO, 2007, p. 282.

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Para tanto, é necessário discorrer sobre o conceito de fronteira, visto que este

é um termo que pode ser definido e interpretado de formas diferentes, levando em

consideração a proposta de cada pessoa ao pensá-lo e utilizá-lo. Neste trabalho, o

conceito de fronteira vai para além dos limites territoriais e nacionais3, pois de acordo

com Albuquerque:

As fronteiras não são somente marcos de delimitação fixados no território físico. Elas representam o fim e o início da jurisdição estatal, os limites da cidadania e dos símbolos oficiais da pátria. Muitas vezes significam zonas de hibridismo entre línguas nacionais, meios de comunicação e outros símbolos culturais. As fronteiras nacionais são lugares de controle de travessia, lugares de movimento de pessoas que cruzam os limites territoriais e configuram outras fronteiras.4

Considerando a definição, acima, de Albuquerque, observa-se que fronteira é

um termo dinâmico e particular de cada grupo que vai se constituindo, sendo, dessa

maneira, um fruto de processos migratórios. Os sujeitos que cruzam as fronteiras

nacionais constroem, pois, outras fronteiras, conforme assinalado pelo autor. Martins,

por sua vez, ao descrever a fronteira, destaca que:

À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os ditos civilizados do outro; como os grandes proprietários de terras de um lado, e os camponeses pobres, do outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro.5

Brasileiros/as que passam a viver no Paraguai, edificam novas fronteiras a

partir do contato com o novo, uma vez que, como apontado por Baller: “A fronteira não

é mais apenas a paisagem petrificada, são os objetos que servem para cerceá-la com

novas significações, criando com isso as diversidades de fronteira”.6

As mulheres e os homens que partiram para aquele país passaram a ter

contato com uma nova forma de vida. Entretanto, eles/as carregaram consigo a carga

cultural ensinada no seu país de origem. Cabe perceber, ainda, que a cultura na

fronteira paraguaia também foi transformada, já que passou a ser habitada por

3 As fronteiras nacionais são criações humanas, delimitadas e demarcadas sucessivamente de acordo com os processos de ocupação militar, demográfica, econômica, política e cultural que ocorrem nos territórios fronteiriços. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 37). 4 ALBUQUERQUE, 2010, p. 34. 5 MARTINS, 2016, p. 133 6 BALLER, 2014, p. 43.

17

brasileiros/as. Como afirma Woodwart: “A migração tem impactos tanto no país de

origem quanto sobre o país de destino”.7

Desta forma, os/as migrantes não só transformam seu local de origem com

sua saída, como também causam mudanças no local chegado. Assim, constrói-se um

novo território8 baseado em construções ideológicas que os sujeitos vão assimilando.

Como aponta Goettert: “A cultura é construída em lugares onde os sujeitos vivem e

experienciem relações”.9

É importante, porém, destacar – como se vai perceber no decorrer da

pesquisa – que tanto os brasileiros/as constroem estereótipos com relação aos

paraguaios/as como estes últimos o fazem para os primeiros. A relação construída

entre ambos algumas vezes não é amistosa, ou sinônimo de conexão, como destaca

Albuquerque: “Os espaços de intercâmbio cultural não significam espaços de

integração social. Hibridismo não é sinônimo de integração”.10

Sujeitos brasileiros/as e paraguaios/as passam, então, por um processo de

reterritorialização, uma vez que ambos começam a se construir de maneira diferente

a partir do contato com o outro. Como definido por Saquet e Mondardo: “A

reterritorialização é marcada pelo movimento de apropriação e reprodução de

relações sociais que podem ser produzidas por uma conexão em rede”.11

Deste modo, os/as migrantes que saíram do Brasil com destino ao Paraguai

foram motivados principalmente por questões ligadas à terra, já que ambos os países

passavam por transformações relacionadas aos seus modos de produção agrícola. O

Brasil buscava a implantação do plantio em larga escala com o uso de novas

tecnologias, as quais criavam, agora, uma situação propícia ao monocultivo e

incentivavam a preponderância de minifúndios e latifúndios. No interior desse novo

modo de produção as famílias de pequenos/as produtores/as braçais perderam a

possibilidade de permanecerem na terra, uma vez que não conseguiram mais

acompanhar o novo modelo de agricultura baseado na aquisição de maquinários,

adubos e sementes que encarecem a produção. Em consonância com Baller: “A mão

7 WOODWARD, 2014, p. 22. 8 Se faz importante ressaltar o conceito de território do qual estamos tratando, postulado por Mondardo: O território compõe um conjunto indissociável de substrato físico ou artificial, ou seja, sua base material, natural e ou reproduzida e seu uso, que se construiria através da base técnica e das práticas sociais. (MONDARDO, 2012, p. 39). 9 GOETTERT, 2008, p. 51. 10 ALBUQUERQUE, 2010, p. 51. 11 SAQUET & MONDARDO, 2008, p. 122.

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de obra braçal perdia postos de trabalho com o advento das máquinas, com a

agricultura de característica monocultora que exigia grandes extensões de terras e

maquinário moderno”.12

O trabalho braçal perde espaço para as máquinas e a opção pela migração

para o Paraguai é considerada como solução para continuar trabalhando com a terra.

Todavia, a escolha de partir não foi unicamente das famílias que, acostumadas com

a pequena produção, não conseguiam se adequar ao novo sistema que estava sendo

implantado. Alguns migrantes possuíam capital financeiro e viam naquele país a

chance de multiplicar seus bens.

Opta-se, entretanto, tratar nesta dissertação sobre aquelas mulheres que

partiram em busca de progresso econômico para sobrevivência e que, ao chegarem

no país vizinho, trabalharam, inicialmente, com o arrendamento de terras e a criação

de animais domésticos, com objetivo posterior de comprar um pedaço de terra.

Nesse mesmo período em que os/as brasileiros/as buscavam outros meios

para continuar trabalhando com a terra – uma vez que a cidade não era uma opção e

o Paraguai parecia uma boa escolha – aquele país também implementava uma

política de colonização da zona leste, processo que ficou conhecido como “Marcha al

Este”. De acordo com Albuquerque:

A Marcha al Este visava reassentar os camponeses que viviam na área central e mais populosa do Paraguai. Para isso foram criados o Instituto de Bienestar Rural (IBR) – atualmente Instituto Nacional de Desarollo Rural y de la Tierra (INDERT) -, responsável pela reforma agrária naquele país, e várias colônias oficiais. O governo paraguaio reformulou o Estatuto Agrário em 1963, o qual permitia a venda de terras aos estrangeiros na zona de fronteira. Até aquele período, a região tinha uma ampla floresta tropical e era ocupada principalmente por grupos indígenas, traficantes de madeiras e por empresa de extração de erva-mate, como a Mate Laranjeira. Com o interesse de ocupar os “espaços vazios” e diminuir as tensões sociais da região central, o governo implementou o plano de colonização e facilitou a participação de brasileiros na derrubada da mata e do plantio agrícola.13

O Código Rural paraguaio de 1963 suprime o conceito de Reforma Agrária,

transformando a luta pela terra em Bienestar Rural com a Lei no 854, que em seu Art.

2 afirmava: “El Instituto de Bienestar Rural tiene por objeto transformar la estructura

agraria del país y la incorporación efectiva de la población campesina al desarrollo

12 BALLER, 2014, p. 105. 13 ALBUQUERQUE, 2010, p. 65.

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económico’’.14 Deste modo, Bienestar Rural não quer dizer distribuição de terras. Esse

movimento de transferência do conceito funciona de modo a criar um desestímulo à

ideia de luta.

A Lei no 854, em seu Artigo 10, discorre, da letra A à letra Z, sobre as

atribuições do IBR; no entanto, as questões relacionadas à reordenação do território

e à permissão da venda de terras a estrangeiros aparecem com maior destaque no

interior das letras A, B e P:

Art. 10º.- las atribuciones y deberes del Consejo del Instituto de Bienestar Rural serán las siguientes:

a) Administrar los bienes del Instituto;

b) Autorizar la venta, permuta o arrendamiento de los bienes inmuebles y muebles pertenecientes al Instituto, de acuerdo con las prescripciones de las leyes vigentes;

p) Fomentar la redistribución de la población conforme a las necesidades económicas y sociales del país.15

À medida em que a população paraguaia foi reordenada, abriram-se alguns

espaços no território do país; espaços para os quais, consequentemente, os/as

brasileiros/as passaram a migrar, ansiando pelo progresso econômico e pelo trabalho

com a agricultura, que já desenvolviam no Brasil. Esse processo somente foi possível

graças a uma aproximação política entre ambos os países.

Deste modo, para explorar a história de mulheres que migraram ao Paraguai,

será utilizado como método de pesquisa a História Oral, uma vez que ele aproxima a

pesquisadora do cotidiano das vozes femininas para que se possa, então, registrá-

las, buscando um rompimento de padrões que historicamente tem emudecido o

protagonismo das mulheres, conforme destacam Faria, Ferreira e Paula:

[...] tornando necessária uma reflexão mais profunda sobre as especificidades da migração feminina, abordando fatores de vulnerabilidade e desigualdade, quanto a abertura de possibilidades e transformações na estrutura social, familiar e do trabalho.16

Passa-se então a conceber a história de outra maneira, já que a História Oral

como metodologia de pesquisa está baseada na prática de conhecer os fatos a partir

14 Estatuto Agrário, 26/03/1963. Disponível em : <http://www.bacn.gov.py/leyes-paraguayas/2375/crea-el-instituto-de-bienestar-rural> Acessado em 08/05/2018, às 05 :17 h. 15 Estatuto Agrário, 26/03/1963. 16 FARIA, FERREIRA & PAULA, 2016, p. 07.

20

da ótica de quem vivenciou o processo. Parafraseando Tedeschi (2014), a memória

oral das mulheres rema contra a maré, já que muitas vezes estas não estão sendo

valorizadas.

De maneira recorrente a história hierarquizava quem deveria ou não ser

descrito ao narrar um fato ou acontecimento, e, costumeiramente, às mulheres não

cabia nenhum lugar, à medida em que eram invisibilizadas dentro de uma escala de

valor. Segundo Silveira: “O trabalho com fontes orais possibilitou trazer à História,

como sujeitos e/ou testemunhos aqueles que, de certa forma, foram excluídos e

colocados no anonimato, sem direito à memória”.17

Desse modo, neste trabalho as vozes femininas migrantes são protagonistas.

O nosso intuito é mostrar que as mulheres também migram e que elas têm uma função

preponderante para que o processo aconteça, buscando romper, assim, com

estereótipos sociais construídos ao longo do tempo em discursos patriarcais os quais

reduziam-nas ao mundo privado, visão esta, refutada no caso do presente objeto de

estudo: as mulheres brasiguaias. De acordo com Alves: “A História Oral caracteriza-

se como uma metodologia de pesquisa que busca ouvir e registrar as vozes dos

sujeitos excluídos da história oficial e inseri-los dentro dela”.18

Para tanto, escrever sobre as mulheres não pode ser uma ação isolada,

analisando-se unicamente a fala, sem construir um olhar cuidadoso com os gestos,

emoções e oscilações, como afirma Meihy:

Convém lembrar que a palavra dita e gravada não existe como fenômeno ou ação isolada. Muito do que é verbalizado ou integrado à oralidade, como gesto, lágrima, riso, silêncios, pausas, interjeições ou mesmo as expressões faciais - que na maioria das vezes não tem registros verbais garantidos em gravações -, pode integrar os discursos que devem ser trabalhados para dar dimensão física ao que foi expresso em uma entrevista de história oral.19

Nessa perspectiva, trabalhar com História oral vai muito além de gravar e

transcrever. É preciso analisar como as frases são construídas, a mudança do

movimento das mãos ou do corpo ao narrar situações marcantes, como, por exemplo,

as diferenças na voz ao contar sobre um fato muito feliz ou extremamente triste. Como

aponta Tedeschi: “Trabalhar com as fontes orais implica a compreensão dos silêncios,

das pausas dos risos, e também uma mistura de razão e emoção”.20

17 SILVEIRA, 2007, p.39. 18 ALVES, 2016, p. 03. 19 MEIHY, 2017, p. 14. 20 TEDESCHI, 2009, p. 176.

21

Os preâmbulos deste método de pesquisa nos proporcionam novos olhares e

novas descobertas a cada diálogo com as entrevistadas, sendo profícuo para

conhecer episódios que fizeram parte da vida das mulheres migrantes, escapando do

esquecimento que frequentemente assombra a experiência feminina. De acordo com

Santos:

A história oral deve ser entendida como um método capaz de produzir interpretações sobre processos históricos referidos a um passado recente, o qual, muitas vezes, só é dado a conhecer por intermédio de pessoas que participaram ou testemunharam algum tipo de acontecimento. Quando uma pessoa passa a relatar suas lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas, transformando-as em experiência, para fugirem do esquecimento. No momento em que uma entrevista é realizada, o entrevistado encontra um interlocutor com quem pode trocar impressões sobre a vida que transcorre ao seu redor; é um momento no qual lembranças são ordenadas com o intuito de conferir, com a ajuda da imaginação, ou da saudade, um sentido à vivência do sujeito que narra a sua história.21

A história oral conta, portanto, com a memória das pessoas como suporte para

a produção historiográfica. As narrativas são compostas por fatos ordenados que

compõem a identidade do interlocutor, porquanto ele seleciona os momentos que

farão parte de sua história de vida e aqueles que ficarão de fora, situação a qual pode

ocorrer de modo consciente ou não, dependendo do grau de relevância do

acontecimento. Segundo Delgado: “A memória por sua vez, como forma de

conhecimento e como experiência, é um caminho possível para que sujeitos

percorram a temporalidade de suas vidas”.22

Utiliza-se, ainda, como fonte de pesquisa notícias levantadas a partir da leitura

de jornais brasileiros, os quais, em um primeiro momento, reportavam a vida de

sucesso de migrantes no Paraguai, enfatizando o quanto eram bem vindos/as naquele

país. Tais reportagens coincidem com a época em que os processos migratórios

estavam aflorando, o que leva a compreender que esses anúncios provocavam de

alguma forma as mulheres e os homens a buscarem naquele país o sucesso relatado

nos jornais. De acordo com Bezerril:

Devido ostentarem a tarefa de representar a sociedade na qual estão inseridos, os periódicos se tornaram fontes fundamentais para os estudos de temáticas diversas, que tiveram grande visibilidade histórica graças à permanência de suas memórias nas páginas dos jornais. 23

21 SANTOS, 2005, p. 03. 22 DELGADO, 2003, p. 16. 23 BEZERRIL, 2011, p. 2.

22

São analisados, também, periódicos paraguaios com a finalidade de

demonstrar como as notícias por eles reportadas auxiliaram na construção da

representação que os/as nativos/as daquele país faziam em relação as/aos migrantes

brasileiras/os, fato que pode ser observado através de análise de matérias que

denunciavam a entrega do país nas mãos dos estrangeiros/as.

É importante ressaltar que o uso do jornal como fonte de pesquisa será feito

de maneira analítica, tomando cuidado para não fazer análises simplificadoras do

processo, como destacam Silva e Franco:

Tomar o jornal como fonte não significa pensá-lo como receptáculo de verdades; ao contrário, o que se propõe é pensá-lo a partir de suas parcialidades, a começar pela observação do grupo que o edita, das sociabilidades que este grupo exercita nas diferentes conjunturas políticas, das intenções explícitas ou sutis em exaltar ou execrar atores políticos.24

Apesar de o jornal configurar-se como uma ferramenta relevante na pesquisa,

deve-se levar em conta que ele é escrito de um lugar e com objetivos definidos, assim

como o afirmam Leite e Neto: “[...] a imprensa, não é o espelho da realidade, mas uma

representação do real, de momentos particulares da realidade”.25

Segundo Martins e Luca, muitas pessoas que antes viviam isoladas, a partir

do momento que tiveram contato com a imprensa, passaram a fazer parte da

economia e a assimilar fatos citados e trabalhados de maneira ideológica pelos

autores das matérias:

Milhares de indivíduos foram arrancados de seu isolamento e lançados num mundo no qual os meios de comunicação de massa desempenhavam o papel essencial de difundir novas formas de convivência social, hábitos e necessidades, além de informações e ideologias.26

A imprensa passou a exercer um poder de dominação significativo sobre as

pessoas, uma vez que muitas passaram a nela verem-se representados/as. É o caso

dos paraguaios/as que, à época, não simpatizavam com a presença migrante em seu

país. Num mesmo movimento, a imprensa serviu, também, como meio de coerção e

incentivo para as famílias brasileiras, as quais ainda tinham alguma dúvida em relação

à mudança de país.

24 SILVA & FRANCO, 2010, p. 05. 25 LEITE & NETO, 2015, p. 5. 26 MARTINS & LUCA, 2006, p. 70.

23

Posteriormente o cenário mudou, e a imprensa começou a noticiar as

situações de horror e desespero sofridas pelas famílias brasileiras que residiam no

Paraguai. Ela passa a discorrer, por exemplo, acerca dos problemas com a

documentação referente à posse da terra, bem como a documentação pessoal, e

ainda sobre a rivalidade entre os agricultores/as das duas nações. De acordo com

Luca:

As ambiguidades e hesitações que marcaram os órgãos da grande imprensa, suas ligações cotidianas com diferentes poderes, a venalidade sempre denunciada, o peso dos interesses publicitários e dos poderosos do momento também podem ser apreendidos a partir de determinadas conjunturas.27

A imprensa passa então a ser um dos principais veículos de transmissão de

notícias que, apesar de descritas como reais, carregam uma carga identitária e os

motivos de quem a escreve. Fatores estes, que não permitem uma análise simplista

do processo migratório por meio dos jornais.

Considerando os fatos até aqui elencados, pode-se afirmar que o intuito deste

trabalho é construir, por intermédio da oralidade e suas histórias de deslocamentos,

uma história de mulheres trabalhadoras rurais brasileiras que migraram para o

Paraguai, ficando posteriormente conhecidas como brasiguaias. Para tanto, as fontes

jornalísticas, orais e as referências bibliográficas são fundamentais para a

compreensão desse processo.

Para a concretização deste trabalho foram realizadas entrevistas com

mulheres que atualmente residem no Assentamento Itamarati, localizado no município

de Ponta Porã, no estado de Mato Grosso do Sul. O Assentamento é produto da luta

pela reforma agrária. As terras que hoje o compõem primeiramente fizeram parte da

Companhia Mate Larangeira, empresa colonizadora da região no pós-Guerra da

Tríplice Aliança. Posteriormente, na década de 70 do século XX, Olacyr de Moraes

adquire uma fração dessa propriedade e implanta a Fazenda Itamarati, a qual foi

reconhecida nacionalmente pela produção de commodities em larga escala. De

Acordo com Pavão e Nobre:

A formação da Fazenda Itamarati ocorreu num momento em que o Brasil passava por transformações gigantescas no setor econômico. Os anos 70

27 LUCA, 2010, p.130.

24

foram marcados pela mecanização no campo, a cultura do café, em particular, foi substituída pela cultura da soja.28

A Fazenda começa a ruir na década de 90, quando os negócios de Olacyr de

Moraes decaem. Ele então entrega metade da fazenda para cobrir dívidas com

bancos credores, enquanto a outra metade é negociada com o Governo Federal, o

qual tinha, por sua vez, como objetivo a destinação das terras para a reforma agrária.

O banco que recebeu as terras como pagamento de dívidas procura uma

negociação com o Governo Federal, uma vez que as ocupações de propriedades para

a reforma agrária estavam em voga no estado durante o período referido. Deste modo,

na primeira década do século XXI, o Governo Federal distribui 51.107 hectares de

terras para famílias acampadas pertencentes a diversos movimentos sociais rurais.

Dentre essas famílias assentadas estavam aquelas que ficaram conhecidas

como brasiguaias, e das quais fazem parte as nossas entrevistadas: Ana Samariva

Daniel, Fátima de Lourdes Fincatto, Luzia Mauro, Maria Celina Azarias David, Maria

Inês Alves Nunes e Maria Leni Tomascheski.

Apesar de outras entrevistas terem sido realizadas, optou-se por trabalhar

com as citadas logo acima; escolha que se justifica tanto pelo fato de que as

entrevistadas apresentam uma faixa etária parecida como pelo fato de que se tratam

de mulheres que nasceram no Brasil e, posteriormente, se deslocaram ao Paraguai.

Nos outros diálogos deparou-se com filhas de brasileiras/os que nasceram no

Paraguai e depois migraram para o Brasil. Esta escolha foi feita para delimitar a

pesquisa, uma vez que a representação e a identidade são distintas para quem

nasceu no Brasil e quem nasceu no Paraguai. Como destaca Gonçalves:

Ainda que os primeiros migrantes acabem reproduzindo a cultura nacional em território paraguaio, a construção identitária de seus filhos e netos acabou incorporando novos valores e costumes do país de destino, principalmente pelas novas gerações nas relações estabelecidas, bem como nos choques culturais.29

As entrevistadas apresentam histórias de luta, persistência e trabalho árduo

em busca de uma melhoria de vida. Narrativas que partem de momentos decisivos,

como o ato de mudar, a chegada no Paraguai, as relações estabelecidas, os motivos

para retornarem ao Brasil. Enfim, todas narrativas que possuem como base de ação

a família e o cuidado com o outro.

28 PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 15. 29 GONÇALVES, 2012, P.174.

25

Os protagonismos femininos serão analisados a partir da categoria gênero,

que explicita como a construção da diferença sexual é legitimada e vai referindo

papéis diferentes a mulheres e homens. De acordo com Scott:

El género es la organización social de la diferencia sexual. Pero esto no significa que el género refleje o instaure las diferencias físicas, naturales y establecidas, entre mujeres y hombres; más bien es el conocimiento el que establece los significados de las diferencias corporales.30

Assim, esta categoria de análise desmistifica a hierarquia imposta ao feminino

nas relações sociais construídas ao longo da história, asselando para as edificações

que majoritariamente deixaram a mulher em segunda instância. Segundo a mesma

autora (Ibidem), os estudos de gênero rejeitam justificativas biológicas para

desigualdades entre mulheres e homens.

Para apresentar as mulheres protagonistas deste trabalho far-se-á um breve

relato das datas em que saíram do Brasil, migrando para o Paraguai, e também do

retorno. Foi solicitado, também, das entrevistadas uma foto, tirada em algum lugar do

lote31 sugerido por elas, para, assim, ficarem registradas de maneira imagética nas

laudas que contam suas histórias.

Dona Ana Samariva Daniel escolheu posar em meio as suas flores, afirmando

que queria mostrar as mudanças que ela havia feito em uma terra que era só

braquiária32 antigamente:

30 SCOTT, 2008, p. 20. 31 De acordo com o dicionário online de língua portuguesa a definição de lote é: Porção que cabe a alguém em uma partilha; parte de um todo que se divide: distribuir lotes, dividir um terreno em vários lotes. Disponível em: https://www.dicio.com.br/lote/. Acessado em 16/05/2018 às 16:50h. Para tanto utilizaremos este termo para descrever a fração de terras adquiridas, arrendadas ou recebidas pelos/as migrantes, pois é o que se faz presente na narrativa das mulheres entrevistadas.

32 De acordo com o dicionário informal de Língua Portuguesa a definição de braquiária é: Capim rasteiro usado em pastagens. Disponível em https://www.dicionarioinformal.com.br/significado/brachiaria/7416/. Acessado em 10/06/2018 às 22:10 h.

26

Foto 1: Ana Samariva Daniel. Fonte: acervo da pesquisadora. 12/03/2018.

Ela nasceu no município de Campo Erê, em Santa Catarina, mudou-se para

o Paraná após o casamento, de onde decidiram migrar ao Paraguai, na região próxima

ao município de Naranjal, departamento (estado) de Alto Paraná, no dia 19 de

setembro de 1989, retornando de lá em 26 de julho de 2007, totalizando quase 18

anos de vida migrante.33

Dona Fátima de Lourdes Fincatto ao escolher o local para ser fotografada

também optou pelo jardim, onde conta orgulhosa que está trabalhando muito para

deixá-lo do jeito que sempre sonhou:

33 O termo “Donas” foi utilizado ao longo do trabalho em decorrência das entrevistadas serem conhecidas como “Donas” no assentamento.

27

Foto 2: Fátima de Lourdes Fincatto. Fonte: acervo da pesquisadora 21/03/2018.

Ela também nasceu em Santa Catarina e mudou-se para o Paraná no

município de São Lourenço, de onde partiu rumo ao Paraguai, para a região próxima

ao município de Santa Rita, localizado no departamento (estado) do Alto Paraná. Ela

não se recorda muito bem da data que migrou, sabe que foi no ano de 1981, tampouco

se lembra do dia do retorno apenas o ano, 2001, somando-se, portanto, 20 anos em

terras paraguaias.

O local escolhido por dona Maria Leni Tomascheski para a foto também foi

junto as flores:

28

Foto 3: Maria Leni Tomascheski. Fonte: acervo da pesquisadora. 10/04/2018.

Dona Maria Leni, nasceu no Rio Grande do Sul, mudou-se para o Paraná,

casou-se, e de onde acabou decidindo migrar para o Paraguai, na região do município

de Santa Rosa del Monday, no Alto Paraná. Ela não se recorda a data de ida, afirmou

apenas que foi no ano de 1978, mas retornou definitivamente ao Brasil no ano de

2004, totalizando por volta de 26 anos de vida como migrante.

Em ambas as fotos o local escolhido é nos arredores da casa, espaço de

poder feminino, uma vez que as atividades do quintal também sempre foram tidas

como obrigações das mulheres. Assim, as flores que embelezam o quintal são parte

da identidade da mulher do campo, quem nelas (as flores) transparecem o capricho e

o cuidado com a terra. Trata-se, no entanto, de uma atividade invisibilizada como

29

tantas outras, como destaca Rago: “[...] reflete representações sexistas e patriarcais

dos papéis de gênero na sociedade”34.

Dona Maria Celina Azarias David ao posar para a foto, escolhe ficar sentada

no local onde foi realizada a entrevista, afirmou que é ali naquele lugar que passa

grande parte de seu tempo, espaço este onde ela e o marido, agora já falecido,

tomavam chimarrão:

Foto 4: Maria Celina Azarias David. Fonte: acervo da pesquisadora. 10/04/2018.

Ela, nasceu e cresceu no Paraná, estado de onde partiu rumo ao Paraguai,

mudando-se para a região próxima ao município de Formosa, também no

34 RAGO, 2013, p. 83.

30

departamento de Alto Paraná, no dia 7 de julho de 1983, e retornou ao Brasil no dia 7

de janeiro de 2003, completando-se quase 20 anos de vida em terras paraguaias.

Tirar a foto de dona Maria Celina foi um momento onde as emoções afloraram.

O silêncio foi protagonista por um instante, quando a lembrança do marido se fez muito

presente e as lágrimas não deixaram de cair. A partir da recordação ela revive aquele

que já não está. Candau afirma: “A memória nos dará esta ilusão: o que passou não

está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças a lembrança”.35

Trabalhar com a História Oral como metodologia de pesquisa significa por

vezes tocar em feridas, momentos nos quais o falar causa dor, como aponta Silveira:

“[...]nem sempre o ato de rememorar é uma ação saudável e positiva para o sujeito,

pois pode trazer dores e sofrimentos”.36

Maria Inês Alves Nunes escolheu tirar a foto dentro de seu carro, afirmando

ser seu orgulho e a concretização de mais um sonho:

35 CANDAU, 2016, p. 15. 36 SILVEIRA, 2007, p. 41.

31

Dona Maria Inês nasceu na cidade de Cacique Doble no Rio Grande do Sul,

depois de se casar mudou-se para o Paraná, no município de Nova Prata do Iguaçu,

de onde saiu rumo ao Paraguai, para uma região próxima ao município de

Hernandarias, no departamento do Alto Paraná, em março de 1986, voltando ao Brasil

em 17 de novembro de 2002, tendo vivido, portanto, aproximadamente 16 anos fora

de seu país.

O veículo representa a liberdade de ir e vir, além de ser um fator de segurança

financeira, porquanto ela enfatiza várias vezes a propriedade do mesmo, fazendo

questão de que o documento ficasse em seu nome, em razão do esposo ser o primeiro

titular do lote. A titulação conjunta da terra é definida na legislação, mas a ela coube

o a função de segundo titular, confirmando assim a dominação masculina na área

rural, como destacam Deere e León (2002): “Os mecanismos de exclusão da mulher

dos direitos de propriedade têm sido culturais, estruturais e institucionais”.37

37 DEERE & LEÓN, 2002, p. 30.

Foto 5: Maria Inês Alves Nunes. Fonte: acervo da pesquisadora. 09/04/2018.

32

Dona Luzia Mauro escolhe posar para a foto próximo ao pomar do lote, local

este onde afirma se sentir na própria casa:

Foto 6: Luzia Mauro. Fonte: acervo da pesquisadora 14/03/2018.

Ela nasceu em São Paulo, migrou para o município de Caarapó, no então

estado de Mato Grosso, local de onde partiu para o Paraguai, para uma região próxima

ao município de Yby Ya’u, departamento de Concepción, no mês de setembro de

1971, quando ela tinha apenas 10 anos de idade. Ela retornou ao Brasil no dia 10 de

fevereiro de 2017, vivendo aproximadamente 46 anos como migrante. Por conta dos

muitos anos vividos fora do Brasil, dona Luzia apresenta um vocabulário bastante

mesclado do português com o espanhol.

Diferentemente das mulheres supracitadas, dona Luzia não é assentada, ela

reside em um sitio onde trabalha como empregada doméstica. Isso demonstra a

33

heterogeneidade das histórias de mulheres brasiguaias que hoje residem no

Assentamento.

Dona Luzia saiu do Paraguai após a separação do marido, relacionamento de

35 anos, do qual ela relata os maus tratos e a violência sofrida. O rompimento do

matrimônio trouxe a ela a liberdade e paz almejados ao longo da vida, conquistadas

por ela aos 56 anos de idade. Durante a vida de casada ela trabalhou lado a lado com

o esposo, mas ao escolher separar-se ela saiu do casamento sem nenhum recurso

financeiro, apenas com as poucas roupas que possuía, não podendo lutar por seus

direitos, pois não tinha documentos paraguaios para ampará-la legalmente.

Isso demonstra como o patriarcado presente na vida das mulheres não

reconhece o trabalho e a participação feminina na geração de renda para a família.

De acordo com Tedeschi: “O poder simbólico do patriarcalismo de dizer ou fazer crer

sobre o mundo feminino teve o controle da vida social e expressou sua supremacia,

estabelecendo valores e normas aos papéis sociais das mulheres”.38

Deste modo, o primeiro capítulo apresenta uma análise sobre a questão

agrária do Brasil a partir de meados do século XX, a qual, com o desenvolvimento da

monocultura e do plantio em larga escala, bem como com o uso das tecnologias,

acabou transformando os padrões agrícolas, desencadeando, assim, a migração de

agricultores/as brasileiros/as ao Paraguai.

A necessidade de discorrer sobre as mudanças ocorridas com a posse e o

uso das terras está pautada na formação de um embasamento teórico, para posterior

discussão sobre a migração e as mudanças por ela acarretadas. Nesse sentido,

abordam-se os motivos que levaram mulheres e homens a escolherem sair do Brasil,

apontando também para as políticas de atração desenvolvidas pelo governo

paraguaio, o qual convidava e incentivava, à época, os/as agricultores/as

brasileiros/as a povoarem suas terras.

No segundo momento do capítulo, discorre-se sobre o termo brasiguaio/a,

apresentando como este foi cunhado e representado por autores que discutem o

tema. Nesse aspecto, também se perscruta sobre a formação da identidade do sujeito

que migra a partir do contato com o “outro”.

Posteriormente, serão abordadas questões referentes às mulheres e ao seu

histórico de invisibilidade nos processos migratórios, buscando mostrar como estas

38 TEDESCHI, 2016, p. 77.

34

se constituíram como sujeitos na história e pontuando, ao mesmo tempo, como as

relações de gênero e o patriarcado se arquitetaram nesse processo. E, por fim, serão

apresentadas as experiências das mulheres no ato de migrar, como foi a mudança e

o chegar a um país desconhecido, a partir de suas narrativas sobre os sonhos e as

angústias carregados por elas ao descreverem a viagem, o lugar chegado, as

primeiras impressões e o novo lar.

No segundo capítulo serão apresentadas as histórias de vida das mulheres

trabalhadoras rurais brasileiras no Paraguai, com o intuito de visibilizar como as

relações entre brasileiros/as e paraguaios/as foram construídas, tentando demonstrar

como alguns estigmas em relação ao outro/a foram sendo solidificados no decorrer

da história.

As mulheres migrantes no cotidiano das lutas feministas serão protagonistas,

já que de maneira recorrente tem sido deixado às margens da historiografia. Ponderar-

se-á, ainda, sobre a influência religiosa no ideário das mulheres brasiguaias,

afunilando-se, por fim, as discussões em direção à tomada de decisão pelo retorno ao

Brasil – como foi construído esse retorno – de modo a demonstrar o papel fundamental

da luta pela terra.

No terceiro capítulo são discutidas questões relacionadas às terras que hoje

compõem o Assentamento Itamarati, local escolhido pelas mulheres entrevistadas

para retornar ao Brasil. A colonização do espaço, realizada pela Companhia Mate

Larangeira, é, então, apresentada, à medida em que este tratou-se do primeiro grande

empreendimento privado instalado nesta porção do território brasileiro. Após tal

discussão, passa-se à história da Fazenda Itamarati.

De maneira sucinta, são descritos os motivos pelos quais a Fazenda começou

a ruir e os caminhos que a levaram a ser transformada, posteriormente, em um dos

maiores assentamentos rurais do Brasil, o Assentamento Itamarati. A Fazenda

Itamarati, em decorrência da luta pela reforma agrária, teve suas terras, que antes

eram utilizadas para a exploração a serviço do sistema capitalista, divididas, passando

a atender a 2.835 famílias que investiram na agricultura familiar, sendo 1.143 no

Assentamento Itamarati I e 1.692 no Assentamento Itamarati II.

No segundo momento do terceiro capítulo o enfoque é dirigido à chegada e

às vivências das mulheres no acampamento de reforma agrária, onde os movimentos

sociais lutavam pela ocupação e distribuição das terras da antiga Fazenda Itamarati.

35

Aqui, a luta travada por cada uma delas é descrita, seja na militância ou nas

ocupações diárias do cuidado com o barraco e com a família.

O terceiro e último momento do terceiro capítulo trata da chegada e

permanência das mulheres na terra. A partir das narrativas dessas mulheres, são

retratadas as emoções sentidas a partir da concretização de um sonho, depois de

muitas andanças. É delineada, também, a nova luta travada no trabalho com a terra,

uma vez que esta foi entregue as/aos assentadas/os coberta por diversos tipos de

ervas daninhas, fato este que tornou as tarefas manuais, realizadas, então, com

poucas ferramentas, em uma nova história de batalha e sofrimento. Hoje, entretanto,

todas afirmam estar felizes e realizadas no Assentamento Itamarati, lugar de onde não

sentem nenhuma vontade de sair.

36

CAPÍTULO I

A MIGRAÇÃO E SEUS MOVIMENTOS: SUJEITOS QUE VÃO E QUE VEM

Em muitas mulheres trabalhadoras rurais,

A vida começa correndo na frente do corpo.

Antes mesmo da fêmea se revelar nele,

elas desempenham as funções de mães,

mão de obra, costureiras,

esteio da casa, professora da família.

No campo a mulher faz-se adulta antes mesmo de ser

criança.

Cria filhos sem ter peito,

embala irmão em lugar de boneca,

brinca de casinha em fogão de verdade.

Vigorosas como broto depois da chuva,

crescem como rebento, abrindo passagem.

Gislene Silva.

37

1.1 Introdução

Este capítulo apresenta inicialmente um panorama sobre a questão agrária do

Brasil a partir de meados do século XX, expondo como o advento das novas

tecnologias e a implantação dos monocultivos transformaram o modo de vida de

famílias agricultoras brasileiras, que perderam espaço no campo por não conseguirem

acompanhar um novo padrão de produção, desencadeando-se assim processos

migratórios, tanto nacionais como internacionais.

Na sequência aborda-se o termo brasiguaio, de modo a discorrer sobre o seu

surgimento e sobre a maneira como ele foi apresentado como uma nova identidade

das mulheres e dos homens que migram. A formação da identidade dos/as migrantes

é ponderada com base no diálogo com diferentes referenciais teóricos.

Em seguida, a história das mulheres e sua invisibilidade nos processos

migratórios é abordada. Consolida-se, aqui, a reflexão acerca das resistências

construídas por elas para romperem com padrões de gênero estigmatizantes que as

subalternizaram.

E por fim, são apresentadas as experiências das mulheres na migração, os

sentimentos narrados por elas a partir da decisão da mudança até o momento da

chegada no novo lugar. Reflete-se, nesse momento do texto, sobre o modo como elas

descreveram os sonhos, os medos, bem como sobre a esperança e a angústia com

relação ao Paraguai, fazendo a convergência das fontes com referenciais teóricos da

história das mulheres e analisando numa perspectiva de gênero.

1.2 Migração para o Paraguai: terras brasileiras nas mãos de poucos

Os processos migratórios são recorrentes em nosso país. Historicamente

mulheres e homens se deslocam, tanto em âmbito nacional como internacional. O

caso dos/as migrantes brasileiros/as que migraram para o Paraguai a partir da

segunda metade do século XX é um exemplo significativo desses eventos de

mudança.

Entender o porquê de os sujeitos migrarem se faz necessário para perceber

os motivos pelos quais as mulheres e os homens deixaram sua terra natal para se

aventurar em novos horizontes, nesse caso o Paraguai. Sabe-se que os processos

migratórios não são fruto do acaso, em algumas ocorrências são escolhas feitas pelos

38

indivíduos, em outras, ocorrem situações que forçam as pessoas a migrarem. De

acordo com Ferreira: “A mobilidade é geralmente assimilada à ideia de conquistas,

transformações e progresso. Isto se dá ao nível tanto das representações individuais

quanto coletivas”.39

Com os/as brasileiros/as que migraram para o Paraguai não foi diferente,

eles/as levaram na bagagem a vontade de mudar de vida e de conquistar novas terras

nas quais poderiam produzir: “Eu fui com muito medo, não queria ir de jeito nenhum,

fui bem contrariada, mas como estava dando certo para o meu sogro que estava lá,

ai nós fomos”.40

Quando a entrevistada diz que estava com “medo de migrar”, optando mesmo

assim por enfrentá-lo, com o objetivo da melhora de vida, percebe-se nitidamente a

situação vivida pelos/as migrantes diante da necessidade do trabalho e do desejo de

permanecer trabalhando com a terra. Essa situação foi gerada a partir de mudanças

estruturais na posse e utilização das terras em território brasileiro, como assinala

Oliveira:

[...] ao mesmo tempo que aumenta a concentração das terras nas mãos dos latifundiários, aumenta o número de camponeses41 em luta pela recuperação destas terras expropriadas, nem que pra isso eles tenham que continuar seu devir histórico: a estrada como caminho. O que vale dizer: a migração42 como necessidade da sua reprodução, a fração do território distante como alternativa para continuar camponês.43

A inevitabilidade da mudança para poder permanecer trabalhando com a terra

é comum quando se estuda a questão agrária brasileira, que foi expulsando mulheres

e homens do campo em nome do progresso, conforme aponta Oliveira (Idem, 2002)

39 FERREIRA, 1996, p. 22. 40ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 41 O termo camponês não será aprofundado neste trabalho, uma vez que se optou por trabalhar com o termo pequeno/a agricultor/a. Porém, se faz necessário a definição deste conceito para contextualizar o presente trabalho. De acordo com Ciro Flamarion S. Cardoso: [...] Uma estrutura camponesa se define do ponto de vista econômico sobretudo por quatro características: 1) acesso estável a terra, seja em forma de propriedade, seja mediante algum tipo de usufruto; 2) trabalho predominantemente familiar (o que não exclui em certos casos, o recurso a uma força de trabalho adicional, externa ao núcleo familiar); 3) economia fundamentalmente de subsistência, sem excluir por isto a vinculação eventual ou permanente com o mercado; 4) certo grau de autonomia na gestão das atividades agrícolas, ou seja, nas decisões essenciais sobre o plantar e de que maneira dispor do excedente. (CARDOSO, 2002, p. 20). 42 O termo migração utilizado neste trabalho está intrinsecamente ligado àquele tratado por Mondardo, quando afirma que: “[...] a migração provoca na saída (abandono do território de origem) um sentimento de e/ou situação de inquietação e, por outro lado, desperta e/ou provoca no encontro com o território novo (chegado) outro sentimento de inquietação”. (MONDARDO, 2012, p. 47). 43 OLIVEIRA,1989, p. 53.

39

na citação acima, deixando-os “a estrada como caminho”. Nesse sentido, Suess

assinala como a economia globalizada beneficia apenas algumas camadas da

sociedade:

O êxodo migratório, que hoje é um fenômeno acoplado à economia globalizada, beneficia determinados setores da sociedade que se sentem aliviados com a saída das “massas sobrantes”. Incorporam as terras dos migrantes em seus latifúndios e substituem a sua mão-de-obra por assalariados mais baratos ou por máquinas.44

Como se vai perceber no decorrer desta pesquisa, o surgimento e a ampliação

do latifúndio favoreceram a migração para o Paraguai, uma vez que as pequenas e

médias propriedades dos/as trabalhadores/as foram passadas para aqueles que

tinham condições de modernizar as plantações em nome do progresso da agricultura

brasileira. Deste modo, a economia se transforma e apresenta novas formas de

organização social, como aponta Ferreira: “Os ciclos econômicos foram

historicamente responsáveis pelas principais correntes migratórias brasileiras”.45

Surge então uma nova organização social, tanto no país de origem como no

de destino, pois a economia capitalista movimenta pessoas em nome do lucro, uma

vez que o sujeito migrante além de deixar seu país terá que se encaixar praticamente

sozinho numa nova sociedade, já que a migração traz como brinde o diferente, o

alheio ao que se está acostumado, de acordo com Suess:

A migração desterritorializa, individualiza e isola. Além de não ter lugar geográfico nem social, o migrante tampouco tem partido político, que o defenda, ou sindicato, que o represente nas lutas sociais. Partidos e sindicatos estão acoplados ao capitalismo46, que está na raiz da migração.47

Além de ser induzido a migrar com base em vários argumentos de políticas

voltadas a esse propósito, o/a migrante tem que se adaptar a uma nova realidade, ao

novo, ao outro, e sem a proteção do Estado ou de partidos políticos, porque aquele

44 SUESS, 2010 p.04. 45 FERREIRA,1996, p. 25. 46 O conceito de capitalismo que será utilizado neste trabalho é aquele definido por Gorender: Defino o capitalismo como o modo de produção em que os operários assalariados, despossuídos de meios de produção e juridicamente livre, produzem mais-valia; em que a força de trabalho se converte em mercadoria, cuja oferta e demanda se processam nas condições da existência de um exército industrial de reserva; em que os bens de produção assumem a forma de capital, de propriedade privada destinada à reprodução ampliada sob forma de valor, não de valor de uso, mas de valor que se destina ao mercado. (GORENDER 2002, p. 16). 47 SUESS ibidem, p.04.

40

que chega é o diferente e precisa buscar uma adaptação, como também pode

acontecer de maneira a negar o “outro”, conforme afirma Bhabha:

A atividade negadora é, de fato, a intervenção do “além”48 que estabelece uma fronteira: uma ponte o “fazer-se” começa porque capta algo do espírito de distanciamento que acompanha a re-locação do lar e do mundo – o estranhamento [unhomeliness] – que é a condição das iniciações extraterritoriais e interculturais.49

Bhabha aponta os motivos para o estranhamento, uma vez que o/a migrante

sai da zona de conforto e se lança ao desconhecido e, para se afirmar no novo lugar,

ele/a cria estratégias para se manter. São exatamente as mulheres, as vítimas de um

processo social excludente que se dá como consequência às questões de gênero. A

história das mulheres sempre foi uma historiografia invisível, não explícita, e falar das

mulheres que migram é falar de algo não declarado, silenciado.

Todas essas adversidades encaradas pelos/as migrantes eram, no entanto,

amenizadas pelo sonho de uma vida melhor no outro país. Mulheres e homens se

lançavam ao desconhecido, acompanhados de expectativas, como destaca Klauck:

[...] a migração era acompanhada pela esperança de dias melhores na nova terra. Isso porque o destino era apresentado como eldorado50, onde os colonos poderiam desbravar as terras de excelente fertilidade, que seriam vendidas por baixos preços e em várias prestações.51

Outro fator relevante nesse ponto da discussão, além das perspectivas

positivas, são as necessidades que incentivam as pessoas a optar por passar por

todos esses desafios já apontados. Diante disso, Suess apresenta uma análise

bastante pertinente: “É difícil distinguir necessidades reais de necessidades sugeridas

pela propaganda”.52

Esse exame do processo migratório apresentado pelo autor contribui para que

não se faça uma análise unilateral do mesmo, pois, no interior desse panorama, é

possível que muitos tenham percebido as necessidades de mudar a partir de

incentivos tanto de propaganda quanto de pessoas próximas que haviam decidido

migrar. Dessa maneira, Assis apresenta as redes sociais de contato de migração:

48 Segundo Bhaba, “além” torna-se um espaço de intervenção no aqui e agora. (BHABHA, 2013, p. 28). 49BHABHA, 2013, p. 31. 50 Eldorado: 1. Local fictício, de riquezas abundantes, que alguns exploradores acreditavam existir na América do Sul. 2. Fig. Lugar que oferece muitas oportunidades de prosperidade. AULETE, CALDAS, 1823?-1878. Novíssimo dicionário contemporâneo de Língua Portuguesa / Caldas Aulete; Organizador Paulo Geiser].- Rio de Janeiro: Lexicon, 2011. 51 KLAUCK, 2011, p. 872. 52 SUESS, 2010, p.02.

41

Nesse contexto, a migração, articulada pelas redes sociais, também vai deixando de ser vista apenas como decisão racional de um indivíduo para ser encarada como uma estratégia de grupos familiares, de amizade ou de vizinhança em que as mulheres inserem-se ativamente.53

Entre outros motivos, o estímulo para que mulheres e homens se lançassem

ao desconhecido (para tentar a sorte no país vizinho) aconteceu porque os amigos ou

familiares haviam partido e estavam conseguindo atingir o êxito.

Nesse sentido, pode-se notar que muitos optaram por irem ao Paraguai.

Existem ainda, as influências subjetivas, as quais induzem os sujeitos a pensarem que

migrar é a solução para o desterro ou desapropriação do seu país de origem. Mas é

tratada aqui a migração voluntária, que de acordo com Suess:

A migração “voluntária” pode ter ainda outros motivos, além da corrida em busca do progresso. Pode basear-se no direito de ir e vir; pode encaixar-se no espírito de migração cultural em busca de uma “terra sem males” dos Guarani; pode ser expressão de um impulso aventureiro ou de uma mística de peregrino.54

Não se pode, pois, afirmar que todos aqueles/as que migram são vítimas de

um processo, já que muitos/as escolheram partir para construir um sonho, ou

simplesmente desejam acompanhar aqueles/as que estão dispostos a encarar a

estrada que leva ao Paraguai, aqueles que não têm medo do desconhecido e os quais

estão dispostos a se aventurar em novas terras. Klauck define quem são esses

migrantes, falando especificamente do caso dos paranaenses:

Em relação àqueles que emigraram para o país vizinho, alguns tinham conseguido adquirir um pequeno pedaço de terra durante os anos de colonização no Paraná. Esses tiveram a chance de vendê-la, podendo com o dinheiro da venda chegar ao Paraguai e iniciar a luta naquele país já como proprietários. Outros tinham que recomeçar do nada. Para estes, o início da luta se dava como arrendatários ou trabalhadores de empreitadas.55

Segundo Baller (2014), outro agente que levou mulheres e homens a

migrarem foi o fator da visitação. Muitos iam visitar seus amigos e/ou parentes no

Paraguai e, ao gostarem do ambiente ou se interessarem por alguma oportunidade

de negócio, optavam pela mudança de país, facilitada por ter conhecidos que já

haviam cruzado a fronteira, como relata uma entrevistada: “A gente ia voltar para

Santa Catarina, daí meu marido foi visitar os pais dele lá no Paraguai e quando voltou

53 ASSIS, 2007, p.752. 54 SUESS, 2010 p.02. 55 KLAUCK, 2011, p. 871.

42

veio com a proposta de ir embora para lá, porque lá tinha bastante serviço e já estava

dando certo para o meu sogro”.56

O fator da visitação, saber que se conhece alguém do “lado de lá”57,

impulsionou muitos/as brasileiros/as a tomarem a decisão de migrar, pois tinham

exemplos de que no Paraguai eles/as teriam a oportunidade de comprar terras ou de

trabalharem nela.

Como a terra foi o estopim da migração, levando mulheres e homens do Brasil

ao Paraguai, é importante frisar que isso se deu fundamentalmente por alterações nas

questões agrícolas e agrárias do nosso país58, uma vez que as mudanças nas formas

de produção e posse da terra ocasionaram a expulsão de inúmeros trabalhadores do

campo.

Essas modificações foram resultado da mecanização e tecnificação da

agricultura, além do capitalismo rural, que trouxe consigo incontáveis transformações

na percepção, posse e manuseio da terra, levando mulheres e homens a lutar por um

bem finito. Diante disso, Silva aponta como a terra passa a ser disputada por

muitos/as, por não ser passível de ser reproduzida ao bel prazer da humanidade:

[...] o desenvolvimento das relações capitalistas na agricultura tem particularidades em relação ao da indústria. A principal delas é o meio de produção fundamental na agricultura – a terra- não é suscetível de ser multiplicado (reproduzido) ao livre arbítrio do homem, como são as máquinas e outros meios de produção e instrumentos de trabalho.

É exatamente por ser a terra um meio de produção relativamente não reprodutível – ou pelo menos, mais complicado de ser multiplicado – que a forma da sua apropriação histórica ganha uma importância fundamental. Desde que a terra seja apropriada privadamente, o seu dono pode arrogar-se o direito de fazer o que quiser com aquele pedaço de chão. Em alguns países como o Brasil, o proprietário de terra tem até mesmo o direito de não utilizá-la produtivamente, isto é deixa-la abandonada, e de impedir que outro a utilize. Por isso é que a estrutura agrária – ou seja, a forma como a terra está distribuída – torna-se assim o “pano de fundo” sobre o qual se desenrola o processo produtivo na agricultura.59

56ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 57 Expressão utilizada por Goettert em sua obra quando descreve as transformações causadas pelas migrações nos lugares deixados e lugares chegados afirmando que: “A experiência migratória é apreendida diferentemente para os sujeitos de cá e para os sujeitos de lá”. (GOETTERT, 2008, p. 46). 58 Em poucas palavras, a questão agrícola diz respeito aos aspectos ligados as mudanças na produção em si mesma: o que se produz e quanto se produz. Já a questão agrária está ligada as transformações nas relações de produção: como se produz, de que forma se produz. (SILVA,1980, p. 11). 59 SILVA 1980, p.21 e 22.

43

Sendo a terra um bem finito, a partir da implantação do capitalismo agrário e

da modernização na agricultura inicia-se uma luta por ela, uma vez que ela passa a

ser mais visada com fins lucrativos, e o/a pequeno/a agricultor/a, vai perdendo espaço

para produção de monocultivo em grande escala. Os médios e grandes produtores,

com a necessidade de ampliar suas produções, compram as terras daqueles que

possuíam pequenos lotes para a produção familiar.

Assim, os processos migratórios são o resultado dessa nova distribuição da

terra, na qual a produção familiar em pequena escala não foi vista como uma peça útil

para o novo projeto pensado para a agricultura brasileira, já que ele estava embasado

pelo desejo das grandes plantações e pelo subsequente lucro.

Gonçalves (2012) aponta essa situação em sua obra, afirmando ser notável

essa conjectura no Oeste do Paraná em 1970, onde muitos agricultores/as não

conseguiam se adaptar às novas formas de produção, que consistiam na implantação

de novas técnicas para o manuseio da terra, como, por exemplo, a introdução de

maquinários com tecnologia superior àquela até então por eles conhecida, pois os

objetivos também haviam se alterado e o mercado determinava o que deveria ser

plantado. Dessa maneira, muitos foram obrigados a desfazerem-se de suas pequenas

propriedades e “diante desse cenário a única opção que lhes restou foi vender suas

terras e migrarem para outros lugares”.60

De tal modo, a concentração de terras nas mãos de poucos gerou um grave

problema para aqueles/as que não possuíam condições para acompanhar o ritmo

desenfreado de expansão territorial e a produção mecanizada. À estas pessoas, uma

das opções para continuar trabalhando com a agricultura foi venda e/ou deslocamento

para outra região do país ou mesmo para fora, como no caso que estamos discutindo

e como nos relata a dona Ana:

Na verdade naquela época estava muito difícil no Brasil né, o salário era muito baixo, não tinha emprego, mesmo que se trabalhasse na lavoura a renda era difícil, tinha que pagar muita renda, os donos da terra às vezes queriam metade da roça e no Paraguai já era mais fácil, lá você arrendava derrubava o mato e ficava dois ou três anos sem pagar renda, era aquela roça bem sofrida, manual tudo, mais só que pra gente era bom né, não pagava renda e naquela época o clima também colaborava mais, o que plantava colhia.61

60 GONÇALVES, 2012, p. 17. 61ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

44

Nota-se que a apropriação da terra e os seus propósitos estavam mudando e

com isso, consequentemente, o país e sua população rural foi se alterando para se

adequar aos novos padrões exigidos pelo capitalismo. E não é novidade que nessa

forma de produção existe a lei do acúmulo de riquezas, que beneficia,

majoritariamente, quem já possui os meios econômicos de produção. Segundo

Klauck:

A partir do final da década de 1960, começou um processo de transformação do setor agrário do país, no qual os pequenos proprietários e muito menos aqueles que não haviam conseguido comprar seu pedaço de terra, não foram beneficiados. Mas pelo contrário foram excluídos. Assim sobretudo na década de 1970, os antigos colonos, parceiros e mesmo pequenos proprietários se viram obrigados a iniciar novos processos migratórios, cujos destinos eram notavelmente, os centros urbanos em expansão, à região amazônica e, no caso dos brasiguaios62, ao Paraguai.63

Como apontado pelo autor, instala-se no Brasil um novo modelo agrícola que

expropria o/a pequeno/a produtor/a, absorve as pequenas propriedades e as

transforma em minifúndios ou latifúndios, como reportado pelo jornal O Estado de São

Paulo:

A tendência de absorção das pequenas propriedades pelas grandes tem aumentado, principalmente no Paraná. Nesse Estado, só entre 1970 e 1980, cerca de 100 mil propriedades com menos de 20 hectares desapareceram, provocando a migração de 1 milhão de lavradores para o Paraguai ou para o Norte do Brasil. Dois Fatores contribuíram para esse fenômeno na região: a geada negra de 1975, e substituição das lavouras de café e de algodão por plantações mecanizadas de trigo, soja, além da implantação de pastos em grande escala. Cerca de 500 mil trabalhadores rurais tornaram-se boias-frias.64

Nesse sentido, segundo Silva (1980), a expansão do capitalismo agropecuário

brasileiro nas décadas de sessenta e setenta foi mais acelerada que em períodos

anteriores, e trouxe como ônus a dizimação de incontáveis pequenas propriedades,

no interior das quais o objetivo do/a produtor/a era obter sua própria alimentação, além

de alguns excedentes para vender nas cidades mais próximas. Infelizmente, as

transformações causadas por tais mudanças na apropriação de terra não foram

apenas essas, ele (idem) destaca: “Foi essa mesma expansão que transformou o

62 O termo brasiguaio será especificado nas páginas subsequentes. 63 KLAUCK, 2011, p. 871. 64O ESTADO DE S. PAULO: Páginas da edição de 19 de outubro de 1997 – p. 267.

45

colono em boia fria, que agravou os conflitos entre grileiros e posseiros, fazendeiros

e índios, e que concentrou ainda mais a propriedade da terra”.65

Desta forma, a apropriação da terra e os propósitos com relação a ela estavam

mudando e, com isso, consequentemente, o país e sua população rural foi se

alterando para se adequar aos novos padrões exigidos pelo capitalismo. Como aponta

Colognese, quando aborda a questão fundiária no Brasil:

Eles (migrantes) foram levados a abandonar o Brasil devido a concentração fundiária ocorrida na década de 1960/1970, à indisponibilidade de novas terras nas regiões de origem para os filhos que atingiram a maioridade [...] Por outro lado, eles foram atraídos para o Paraguai pela fertilidade e os baixos preços das terras, bem como pelos incentivos, baixos impostos e os créditos de longo prazo fornecido pelo Banco Nacional de Fomento.66

Diante dos apontamentos do autor é perceptível que os/as brasileiros/as eram

bem-vindos no Paraguai, uma vez que recebiam muitos incentivos para a migração e

permanência naquele país. Como divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo em

1974:

Cerca de 56 mil colonos brasileiros emigraram para o Paraguai, de outubro de 1968 a agosto de 1973, atraídos pelas facilidades oferecidas para a compra de terras na região de fronteira. “Com a presença do brasileiro – afirma o capitão Roberto Valdez, Inspetor geral de Imigração do Paraguai – a colonização será mais rápida e efetiva. Podem vir quantos brasileiros quiserem, pois terão financiamento e outras facilidades oferecidas pelo governo paraguaio, que acredita na redenção da região com o esforço, o trabalho e a dedicação dos brasileiros.67

Ao mesmo tempo que os/as pequenos/as agricultores/as são expropriados de

seu país em nome da modernidade e do capitalismo, são atraídos pela migração,

estimulados pela possibilidade de adquirir terras com base nas oportunidades de

financiamentos e condições de pagamento que o Paraguai oferecia, à medida em que

o país estava aberto e disposto a recebê-los, conforme apontado na reportagem

anterior.

Os dados apresentados pelos jornais assinalam uma estimativa sobre os

números de migrantes brasileiras/os no Paraguai, mas essas informações precisam

ser refutadas, de acordo com Baller:

Os números referentes à população brasileira e descendentes no Paraguai são incógnitos para ambos os governos, enquanto a chancelaria brasileira

65 SILVA, 1980, p. 12. 66 COLOGNESE, 2012, p. 145. 67O ESTADO DE S. PAULO: Páginas da edição de 17 de fevereiro de 1994 – p. 22.

46

reconhece em torno de meio milhão de brasileiros no Paraguai, os censos mostram em torno de cem mil.68

Mas a migração e o êxodo rural não aconteceram unicamente por conta do

capitalismo e da modernização, distintos fatores também influenciaram a expulsão de

mulheres e homens do campo. Batista (2013) assinala outros problemas causados

pela mudança na concepção de agricultura. Segundo este autor, os cultivos de soja e

trigo acarretaram sérios problemas sociais e econômicos para o Estado, como a

desestruturação dos/as pequenos/as produtores/as que viviam da produção do café e

ainda a extensão da Consolidação das Leis do Trabalho ao trabalhador rural, que

impossibilitou os/as pequenos/as proprietários/as de manterem seus agregados/as,

uma vez que não conseguiam cumprir com os custos sociais da legislação em vigor,

“transformando grande parte dos lavradores em trabalhadores rurais volantes,

conhecidos como boias-frias” 69.

Evidencia-se uma série de motivos que levou os/as pequenos/as

agricultores/as a migrarem, entre eles o fato de que os custos para manter o novo

formato de agricultura eram muito maiores do que aqueles com os quais eles estavam

acostumados a lidar. E, ainda, estes não contavam com incentivos e financiamentos

governamentais para permanecerem em suas pequenas extensões de terras.

[...] é importante salientar que a modernização, ainda que parcial, da agricultura brasileira só tem sido possível graças a fundamental ação do Estado, subsidiando a aquisição de insumos, máquinas e equipamentos poupadores de mão-de-obra. 70

Fica notável a ação do Estado ao financiar créditos aos grandes

produtores/as, visto que eram aqueles que detinham a possibilidade de pôr em prática

os objetivos de modernizar e ampliar as produções, proporcionando lucros,

visibilidade e reconhecimento ao país, de acordo com Masi:

El proceso de modernización de la agricultura brasileña consistió no solo en la incorporación de nuevas tecnologías al proceso productivo, sino que también en el estabelecimiento de una industria de máquinas (vehículos y equipamiento) e insumos agrícolas (fertilizantes y agroquímicos), impulsada sobre todo por la inversión extranjera, y fortalecido, a su vez, por la tendencia global de la “Revolución Verde”.71

68 BALLER, 2014, p. 79. 69 BATISTA, 2013, p. 25 e 26. 70 SILVA,1980, p. 55. 71 MASI, 2017, p. 67.

47

O custo da modernização, como se pode notar, foi bastante alto, uma vez que,

além das máquinas e da mão de obra qualificada para trabalhar, havia a necessidade

de se adquirir insumos agrícolas que facilitariam e aumentariam a produção,

fortalecendo ainda mais a economia brasileira. Para tanto, havia uma necessidade

primordial: a acumulação de grandes extensões fundiárias. É importante frisar que já

existia no Brasil um histórico de centralização de terras nas mãos de poucos. Nesse

aspecto, Oliveira apresenta o histórico concentrador de terras no Brasil a partir da

década de 1940:

Em 1940, o Brasil que não havia sido ocupado ainda quer dizer expandindo-se sobre os territórios indígenas do Centro-oeste da Amazônia, já apresentava seu traço concentrador: poucos com muita terra e muitos com pouca terra. Vamos aos dados: 1,5 % dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas com mais de 1.000 ha, ou seja 27.812 unidades ocupavam uma área de 95,5 milhões de hectares, ou 48% do total de terras, quase a metade portanto: enquanto isso, 86% dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas com menos de 100 ha, ou seja 1.630.000 unidades, ocupavam uma área de apenas 35,9 milhões de hectares, menos, portanto, de 19% das terras.

Se analisarmos os dados de 1985, verificamos que essa realidade não mudou; ao contrário, a concentração de terras nas mãos de poucas pessoas aumentou. Vamos aos dados: menos de 0,9% dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas com área superior à 1.000 ha, ou seja 50.105 unidades, ocupavam uma área de 164,7 milhões de hectares, ou 44% do total das terras; mais de 90% dos proprietários dos estabelecimentos agrícolas com menos de 100 ha, ou seja, 5.252.265 unidades, ocupavam uma área de apenas 79,9 milhos de hectares, ou 21% do total das terras.72

Nota-se que a concentração de terras no Brasil é um fenômeno recorrente,

mas a situação se agravou com a mecanização da agricultura e com a expansão das

já extensas propriedades latifundiárias.

Para agravar ainda mais a situação do/a pequeno/a produtor/a no país,

instalam-se as fábricas de máquina e insumos, contando novamente com o apoio do

Estado, que cunhou um conjunto de financiamentos com o objetivo de estimular a

absorção desses novos produtos por uma pequena parcela da população, qual seja,

aquela detentora de condições financeiras para tal, como assinala Silva:

No início dos anos sessenta, que corresponde ao final da fase de industrialização pesada no Brasil instalam-se no país as fábricas de máquinas e insumos agrícolas. Assim por exemplo são implantadas indústrias de tratores e equipamentos agrícolas (arados, grades, etc.) fertilizantes químicos, rações e medicamentos veterinários, etc. Evidentemente a indústria de fertilizantes e defensivos químicos só poderia se instalar depois de construída a indústria petroquímica; a indústria de tratores e equipamentos

72 OLIVEIRA, 2002, p. 55-56.

48

agrícolas, depois de implantada a siderurgia; e assim por diante. O importante é que a partir da constituição desses ramos industriais no próprio país, a agricultura brasileira iria ter que criar um mercado consumidor para esses novos meios de produção. Para garantir a ampliação desse mercado o Estado implementou um conjunto de políticas agrícolas destinadas a incentivar a aquisição dos produtos desses novos ramos da indústria, acelerando o processo de incorporação de modernas tecnologias pelos produtores rurais.73

Com incentivos governamentais e grandes financiamentos, a paisagem rural

brasileira vai se redesenhando, onde, antes, existiam lotes de produção familiar,

passam a ganhar espaço as grandes fazendas de soja e trigo. Os cafezais e os

empregos por e eles trazidos foram ficando para trás, fazendo com que as vidas de

brasileiras/os fossem transformadas pelo capitalismo e pela busca desenfreada do

lucro. Batista discorre sobre como essas mudanças na propriedade foram se

desenrolando:

A concentração de terras na década de 60 obedeceu novamente às rédeas do autoritarismo, principalmente com a instalação do governo militar a partir de 1964. No Paraná a desestruturação rural foi marcante com a alteração da estrutura fundiária e modificação do sistema agrícola modernizadora, voltada aos interesses da acumulação capitalista. As pequenas propriedades, com áreas entre 10 e 15 hectares e até menores, foram incorporadas por empresários e subordinadas a estes. Passaram a predominar áreas de no mínimo 50 hectares, substituindo grande parte dos cafezais por cultivo de soja e trigo.74

A ditadura militar também foi um dos vetores do deslocamento de mulheres e

homens do campo, e, consequentemente, incentivadora da migração ao Paraguai.

Como reportado pelo jornal Folha de São Paulo: “Foi também na época das ditaduras

militares que ocorreu uma forte migração de colonos brasileiros a território paraguaio

virgem”.75

É perceptível que as mudanças na forma de manejo com a terra, o

desenvolvimento do capitalismo agrário, o aumento do número de expropriações de

pequenos/as agricultores/as e, por fim, a migração internacional, tiveram uma

participação incisiva do Estado, como apoiador e financiador de tais ações, como

assinala Gorender:

Está claro que semelhante impulso ao desenvolvimento capitalista é feito pelo Estado de maneira rigorosamente discriminatória, beneficia os grandes

73 SILVA 1980, p. 27 e 28. 74 BATISTA, 2013, p. 24 e 25. 75 FOLHA DE SÃO PAULO. Equidade beneficia Paraguai e Brasil. Opinião A3. Edição de 02 de abril de 2008.

49

proprietários, dá prioridade aos produtos de exportação e à pecuária bovina de corte, privilegia certas regiões política e economicamente mais poderosas.

E é uma política conjugada com o interesse da indústria de equipamentos e de insumos agrícolas e com a indústria transformadora das matérias-primas agrícolas, setores nos quais predominam amplamente as multinacionais imperialistas.76

Concomitante com o apoio do Estado, as mudanças na maneira de cultivar e

perceber a terra vão se transformando. A vida rural deixa de ser predominantemente

familiar e braçal e passa a ser de monocultivo mecanizado, mas tais transformações

não aconteceram em pouco tempo, tendo que haver muitas adequações e formas de

incentivos para que a agricultura mudasse. Aos poucos, quem podia, comprava mais

terras e ia imprensando o/a pequeno/a produtor/a, obrigando-o a se desfazer de sua

propriedade e, dessa forma, mudando a geografia do lugar. Segundo Oliveira:

A região Sul do Brasil conheceu no período de 70/85 o declínio de todos os tipos de produtores (total caiu 6%; proprietários – 6%; arrendatários – 17%; parceiros 28% e posseiros – 2%). Isso significa de forma clara e inequívoca que nesse período o processo de expropriação foi praticamente absoluto, não só eliminando a possibilidade de trabalho camponês, como certamente atuando no sentido de concentrar ainda mais terras.77

As pessoas que não conseguiam se adequar ao capitalismo implantado na

agricultura se rendiam, e, à medida em que vendiam suas pequenas propriedades,

tentavam, uns, a vida na cidade e, outros, a ida para o Paraguai em busca de terras

para o cultivo com o qual estavam acostumados.

É curioso notar que o período em que os/as brasileiros/as saem do país por

falta de terra ficou conhecido como “milagre econômico”78. Nesse sentido, percebe-se

que o desenvolvimento econômico e social brasileiro é seletivo, atingindo apenas

algumas camadas, como aponta Batista:

A forte corrente migratória brasileira para o Paraguai, resultou de um processo acentuado de expropriações que atingiu milhares de famílias que buscaram no Paraguai a alternativa de mais uma vez tentar a conquista definitiva da terra.79

76 GORENDER, 2002, p. 37. 77 OLIVEIRA, 2002, p. 63. 78 De acordo com Masi: Los años 70 en el Brasil son conocidos como del “milagro económico”, no solo por los altos niveles de crecimiento económico, sino porque también la industrialización ingresa en uma etapa superior con la elaborción de bienes de capital, incrementando la competitividad internacional del país. Aparte de su alianza com los Estados Unidos, em términos políticos y económicos, el Brasil diversifica sus relaciones con otros bloques de países desarrollados y con países que proponen una posición internacional equidistante de la confrontación Este-Oeste. (MASI, 2017, p. 62). 79 BATISTA, 2013, p. 72.

50

Com isso, é sempre importante questionar para quem foi o dito milagre

econômico, pois enquanto a terra, a lavoura e o lucro de uns aumentavam, para outros

a luta pela terra e por sobrevivência era cada vez maior.

Faz-se necessário compreender os motivos pelos quais o/a pequeno/a

produtor/a não conseguiu se adequar às novas formas de funcionamento da

agricultura, já que não se pode aceitar a ideia de que a implantação de um novo meio

de produção agrícola foi digerida e admitida de maneira pacífica. Para tanto, o

entendimento do processo é relevante.

É importante entender que foi esse processo de tecnificação da pequena produção que representou uma completa modificação na sua estrutura de custos. Antes o pequeno produtor de subsistência utilizava-se quase que exclusivamente da terra e da mão-de-obra familiar não remunerada para produzir seus “excedentes”. Agora, entretanto, o pequeno produtor mercantil tem custos monetários elevados, devido aos insumos modernos que necessita utilizar. Ele não pode mais vender sua produção a “qualquer preço”, como na economia do “excedente”, pois tem, agora um custo mínimo a cobrir. Em outras palavras, o fato da agricultura se transformar numa crescente consumidora de insumos industriais tem implicado um crescimento mais rápido dos preços dos produtos agrícolas, sem que necessariamente o produtor se beneficie desses acréscimos.80

As famílias agricultoras ficam encurraladas, muitas vezes não querendo

vender a propriedade, mas também já não conseguindo sobreviver dela. Diante

desses fatores e, ainda, diante da possibilidade de ter que viver na cidade, milhares

de agricultores/as veem no Paraguai a saída para curar suas angústias causadas pela

falta de terras ou pela impossibilidade de acompanharem o desenvolvimento

mecanizado da agricultura brasileira.

Baller (2014) também defende que a saída de milhares de agricultores/as do

Brasil é resultado especialmente da imensa mecanização do campo, principalmente

nas regiões Sul e Sudeste. Ele aponta como fator motivador da migração a construção

da usina hidrelétrica Itaipu, localizada no oeste do estado do Paraná. Segundo o autor,

esses foram os principais fatores que impulsionaram o desterro de trabalhadores

rurais no Brasil.

Além disso, Baller (ibidem) ressalta as políticas do presidente Paraguaio,

Alfredo Stroessner, quem possibilitou o acesso e a condição legal para que os

80 SILVA 1980, p. 60.

51

estrangeiros se colocassem em propriedades nas áreas de fronteira, que de acordo

com o historiador, era “um espaço com terras férteis e baratas”.81

O autor paraguaio Masi também discorre sobre a aproximação entre os

governos de ambos os países, e destaca que um dos marcos dessa confluência foi a

maciça entrada de brasileiros/as no Paraguai:

Otro acontecimiento que marcó la aproximación de ambos países a partir de los años 60 fue la migración masiva de agricultores brasileños en la región fronteriza del Paraguay. A diferencia del caso de Itaipu, este fenómeno sucedió al margen de las prácticas y estrategias de cooperación oficial y/o acuerdos bilaterales, siendo más bien resultado de la convergencia de los procesos socioeconómicos en marcha en ambos países.82

Ao mesmo tempo em que o Brasil está expulsando a família do campo em

favor da mecanização, o Paraguai está precisando de mão de obra para abrir e limpar

suas terras ocupadas pelas matas. Baller (2014) enfatiza que os/as brasileiros/as se

depararam com a condição de migrantes porque passaram a sofrer pressão interna,

motivada por vários motivos, primordialmente pela modernização da agricultura e pela

supracitada construção de Itaipu. Juntos, estes fatores formaram os “aspectos que se

configuraram como fatores de expulsão do próprio país”.83

Enquanto o Brasil expulsa agricultores/as de suas terras, o Paraguai os atraí

tendo como interesse o trabalho que estes podem aprimorar na implantação do

desenvolvimento da agricultura. O mencionado país se utiliza de diversas estratégias

para incentivar a entrada de brasileiros/as e o governo brasileiro percebe nesse

processo migratório uma saída, afinal, não precisaria se preocupar com um

significativo número de pessoas sem terra.

Batista (2013) destaca a ocupação e o consequente esgotamento de terras

no Brasil como consequência do crescimento da mão-de-obra rural84. Gonçalves

(2012) aponta, ainda, que nesse momento o Paraguai estava desenvolvendo a

agricultura comercial, à qual os/as agricultores/as brasileiros/as já estavam

adequados há alguns anos. Desta forma, eles/as se tornaram interessantes para o

governo paraguaio, e “atraí-los para o país para adquirirem terras e trabalharem no

desenvolvimento da agricultura se tornou uma estratégia”.85

81 BALLER, 2014, p. 137. 82 MASI, 2017, p. 70. 83 BALLER, ibidem, p. 135. 84 BATISTA, 2013, p. 73. 85 GONÇALVES, 2012, p. 48.

52

O momento político vivido no Brasil nos períodos de migração foi outro fator

que provocou, ou obrigou, as pessoas a buscarem novas terras para delas proverem

o seu sustento, uma vez que tudo isso aconteceu no florescer da ditadura militar,

modelo político baseado no favorecimento de poucos e o qual, nesse caso, apoiava

aqueles/as que tinham condições de produzir em terras já prontas para a

mecanização. Por outro lado, aqueles/as que haviam deixado a terra propícia para a

implantação da agricultura mecanizada foram obrigados a buscar outros lugares para

iniciarem, novamente, o processo de destoca e preparo do solo.

Batista (2013) ressalta que o regime militar, instaurado em 1964, delineou

uma política de colonização na fronteira que pressionou os camponeses a migrações

coagidas pelo processo de modernização da agricultura nas terras já colonizadas.

Nesse aspecto, ele aponta que as mulheres e os homens se mudaram em função da

carência de condições para arrendarem terras, o que resultou em desapropriações. A

partir disso, eles/as foram incentivados à migração, tanto para outras regiões do país

como Mato Grosso e Rondônia, quanto para território paraguaio.

Esse processo de saída dos brasileiros/as alterou significativamente, em

números, a população paranaense, já que foi nesse estado que a modernização da

agricultura teve seu apogeu. Os seres humanos foram cedendo espaço para as novas

tecnologias, sendo subordinados às vontades do sistema capitalista.

O processo de modernização da agricultura, principalmente no estado do Paraná, acelerou sobremaneira a colonização da fronteira paraguaia por brasiguaios. A população paranaense, principalmente na região norte, diminuiu em 1.268.565 habitantes entre 1970 e 1980. No lugar dos homens entrou a máquina. Em 1970 existiam 18.619 tratores enquanto dados de 1980 registram 79.682. Entre 1970 e 1975 os pequenos proprietários foram expropriados, obrigando-se a vender suas propriedades, ou subordinaram-se aos empresários arrendando as terras para a agroindústrias que se instalaram no Paraná.86

Parte significativa desses paranaenses foram para o Paraguai, uma vez que

o país se tornava cada vez mais atrativo, consequência, inclusive, de uma publicidade

de incentivo que atuava bem no momento em que as famílias produtoras rurais se

sentiam expulsas do seu país. O jornal O Estado de São Paulo apresenta um exemplo

desse estímulo com uma matéria publicada no dia 10 de setembro de 1989, com o

título “Brasiguaios fazem fortuna com a soja”, com subsequente subtítulo: “Com lucro

86 BATISTA, 2013, p. 32 e 33.

53

e liberdade para trabalhar, quem deixou o país nem pensa em voltar”. E o assunto foi

assim abordado:

Longe das leis e normas que regem a agricultura nacional e aplicando os conhecimentos e a tecnologia desenvolvida no Brasil, os produtores brasileiros que cruzaram a fronteira nos últimos anos estão vivendo tempos de euforia e riqueza. É verdade que nem todos fizeram fortuna, mas ninguém reclama da nova vida.87

É notável uma pretensão subjetiva nessa matéria. Primeiro, porque relata o

quão bem estavam os/as brasileiros/as migrantes, o que acaba por desempenhar um

incentivo àqueles/as que ainda estavam em dúvida com relação à partida. E também

porque enfatiza sobre os/as que lá vivem, implantando os conhecimentos e as

tecnologias brasileiras na agricultura.

Corroborando com este assunto, Baller (2014) afirma que os agricultores/as

brasileiros/as foram atraídos por vários estímulos oferecidos pelo governo de

Stroessner, já que para ele era extremamente viável a entrada desses/as

trabalhadores/as com sua mão de obra para desbravar campos demograficamente

pouco habitados do lado leste de seu país.

Desta forma, os/as brasileiros/as começam a migrar para o Paraguai, por

estratégias governamentais dos dois países e, também, por uma vontade dos/as

brasileiros/as de adquirirem terras para o cultivo, já que o dinheiro adquirido com a

venda de suas propriedades no Brasil, tornava possível a compra de uma quantidade

significativamente maior de terras no outro país.

Albuquerque (2010) aponta que não se pode concluir categoricamente que o

elevado número de brasileiros/as migrantes no Paraguai tenha sido resultado de uma

política de aproximação entre os dois países. Portanto, de acordo com este autor:

O que existiu foi uma junção de um processo espontâneo de deslocamento populacional, devido a concentração da propriedade nos estados do sul do Brasil, com interesses geopolíticos dos governos brasileiro e paraguaio em controlar e desenvolver a região oriental do Paraguai.88

As famílias produtoras rurais brasileiras enxergaram, então, no Paraguai a

oportunidade para melhorar de vida, uma vez que foram expropriadas praticamente à

força de suas terras no Brasil. Chiavenato (1980) assinala que o/a pequeno/a

proprietário/a, ao adquirir terras no Paraguai, tem a oportunidade de ampliar seu

87 O ESTADO DE SÃO PAULO. Página da edição de 10 de setembro de 1989 – Economia – p. 64. 88 ALBUQUERQUE , 2010, p. 64.

54

capital, diante do baixo preço de terras em comparação ao Brasil (no Paraguai a terra

valia cerca de cinco a oito vezes menos que o valia no Brasil). Assim, um/a pequeno/a

agricultor/a pode “transformar seus dez alqueires brasileiros em 50 ou 80. Aquele que

tem 50 ou 80 – que no Brasil ainda é uma pequena propriedade – pode se transformar

num fazendeiro paraguaio de 250 a 500 alqueires”.89

A mesma matéria supramencionada do jornal O Estado de São Paulo, do dia

10 de setembro de 1989, apresenta um subtítulo um tanto sugestivo: “Filho triplica

herança do velho Runholff”, relatando como a vida no Paraguai era lucrativa:

Logo que vendeu, há dez anos, os 40 alqueires que cultivava em Cascavel, no Paraná, para deixar de herança uma área de terra para cada um dos filhos, o velho Runholff percebeu que era pouco dinheiro para tantos lotes. Ele reuniu os nove filhos, discutiu a questão fundiária daqueles tempos e concluiu que a única saída para não abandonar a vocação agrícola seria deixar o país. Deu o dinheiro para a mudança e dez alqueires no meio do nada para cada um começar a vida. “Nós destocamos tudo, só com a foice e o machado”, recorda Romeu Runholff, 32 anos, um dos filhos mais velhos. Ele triplicou o tamanho da propriedade, comprou tratores e uma colheitadeira, e este ano enfiou no bolso os 18 milhões de guaranis (NCzS 642 mil) ganhos com a colheita da soja. “Não me arrependo nem um pouco e o único irmão que retornou vive com um salário de motorista no Paraná”.90

O discurso acima explicita a questão agrária do Brasil, demonstra o

encarecimento das terras – ao mesmo tempo em que o Paraguai oferece ótimas

condições para melhorar de vida, a quem já possui capital financeiro para tal – e, por

fim, indica o quão decadente é a vida de quem optou por regressar. Nota-se assim

que migrar passa a representar uma grande vantagem, e o relato da dona Maria Leni

demonstra isso: “Quando fui só pensei em trabalhar, porque lá tinha terra, no Brasil

além de não ter emprego as terras que a gente arrendava era nuns peral que não

dava nada”.91

Enquanto o país de origem expulsava, o país vizinho atraía, já que ele

oportunizava a destoca e o plantio com facilidade de financiamentos, fato que não

estava acontecendo no Brasil para as pequenas unidades de produção familiar.

Segundo Albuquerque (2010) o baixo preço dos impostos e o fácil acesso a

custeios agrícolas também estimularam à migração, pois estes fatores se

apresentavam como facilitadores da produção, situação bem diferente da que ocorria

89 CHIAVENATO, 1980. p. 97. 90 O ESTADO DE SÃO PAULO. Página da edição de 10 de setembro de 1989 – Economia – p. 64. 91ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som.

55

no Brasil, onde fechava-se os olhos para os/as pequenos/as agricultores/as, como

nos aponta dona Ana ao relatar a situação do sogro e da sogra que foram um pouco

antes que ela e a família para o Paraguai:

Meus sogros fizerem financiamentos e tiveram que vender tudo pra conseguir sair daquela dívida do banco, então foi uma coisa muito difícil, foi perdido muito dinheiro no Brasil com esses planos de governo que foi dando tudo errado, então lá eles estavam indo bem e queriam que a gente fosse porque achava que também a gente ia conseguir alguma coisa melhor do que ficar pra cá.92

Nota-se, portanto, que os/as brasileiros/as foram atraídos para o Paraguai em

busca de terras, de um outro lugar, como apontado na entrevista acima. E como no

Brasil a produção rural não era uma realidade acessível a todos/as, esses/as

agricultores/as apostaram na migração para continuar com o trabalho ao qual estavam

habituados, e que representava a vida que gostavam de levar. Muitas dessas

mudanças aconteceram também porque alguns membros da família já haviam partido,

o que se configurava com uma forma de incentivo para aqueles/as que estavam em

dúvida. De acordo com Baller, além das políticas de governo que facilitaram e

instigaram brasileiras e brasileiros a migrarem, existiram outros fatores:

O fenômeno de entrada de brasileiros no Paraguai é alavancado de diversas maneiras, por exemplo, com as políticas de governo que servem como forma de explicação na abertura das novas frentes agrícolas, com demandas regionais, como no caso do conflituoso período vivido no oeste do Paraná. Porém o ingresso espontâneo de pessoas marca, de forma intensa, o movimento e a posterior configuração social no país vizinho, promovidos por parentes e amigos, vizinhos, vendedores e compradores de terras, enfim, afiram uma configuração na busca pela propriedade de terras e a ligação ao meio rural.93

Esse cenário de alterações na exploração de terras, tanto no Brasil como no

Paraguai, favoreceu a atuação de atravessadores que buscavam ter lucro de maneira

ilegal. Esses negociantes geralmente compravam terras que haviam sido

expropriadas de pequenos/as agricultores/as paraguaios/as para revendê-las

futuramente por um preço bastante superior, ou mesmo para explorá-las, utilizando-

se do trabalho dos/as paraguaios/as, e também dos/as migrantes que chegavam ao

país sem condições de adquirir uma pequena propriedade. De acordo com

Chiavenato:

92 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 93 BALLER, 2014 p.134.

56

[...] não foram poucos os grandes latifundiários brasileiros que compraram essas terras roubadas ao lavrador paraguaio. Compravam para revende-las posteriormente, com grande lucro ou então para explorá-las em grandes latifúndios, aproveitando seu baixo custo e mão-de-obra barata oferecida pelo camponês paraguaio desterrado em sua própria pátria.94

Observa-se, assim, as mudanças acorridas na geografia agrária de ambos os

países. No Brasil os/as agricultores/as abriram espaço para a implantação do

agronegócio e da monocultura ao serem obrigados/as pelo sistema a se desfazerem

de suas terras. Ao chegarem no Paraguai eles/as alteraram as formas de produção,

desmataram, prepararam o solo e iniciaram a agricultura para sobrevivência e para

geração de excedentes, almejando o lucro.

O jornalista Carlos Wagner afirma que, diferente deste modo de trabalho

dos/as brasileiros/as, os/as paraguaios/as exploravam a terra de maneira artesanal,

apenas para subsistência, fato que não agradava o então presidente Alfredo

Stroessner:

Até 1959 a região de Alto Paraná vinha sendo explorada de modo artesanal pelos campesinos paraguaios. Eles chegavam e ocupavam uma gleba de terra – que pertencia em grande parte ao governo – faziam uma roça de sobrevivência e exploravam erva-mate nas florestas. Este esquema de produção não era adequado aos planos econômicos de Stroessner para a região, cuja palavra de ordem era modernizar, através de mecanização em alta escala, a produção.95

Reforça-se, pois, que o estilo de trabalho e de ocupação de terras teve uma

alteração estrutural nos dois países. No Brasil, a modernização, mecanização e

ampliação de monocultivo para a exportação, ocuparam o lugar que anteriormente

cabia às pequenas unidades de produção familiar. No Paraguai, os/as migrantes

destocaram grandes extensões de terras, matas virgens, para poderem iniciar os

trabalhos com a agricultura, que até então acontecia de uma maneira artesanal, como

apontado por Wagner. Apontamento este, aliás, que pode ser analisado à luz das

práticas de significação, neste caso, do que é o trabalho para estas sociedades,

porquanto frequentemente esse fator envolve relações de poder, como aponta

Woodwart: “Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem

relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído”96.

94 CHIAVENATO, 1980, p. 97. 95 WAGNER, 1990, p. 14. 96 WOODWART, 2014, p. 19.

57

Esse exame sobre as relações de poder se faz necessário. Amiúde se

reproduz que os/as brasileiros/as foram para fazer o trabalho que os/as paraguaios/as

não faziam, o que reafirma a exclusão de um povo; entretanto, o trabalho pode ter

diferentes significados para as sociedades.

Outro fator que deve ser levado em consideração ao analisar os processos

migratórios são as diferenças entre aqueles/as que migram, principalmente as de

cunho financeiro, uma vez que alguns padrões foram mantidos, por exemplo, os/as

donos/as de terras, os/as que trabalham para estes e os que arrendam terras.

Segundo Baller: “[...] não se podem criar estereótipos de brasileiros/as no Paraguai

como sendo todos frutos de um mesmo processo de construção social no Brasil”.97

Desta forma, o autor aponta para o fato de que a diversidade brasileira não deve ser

ignorada no processo de migração.

No interior dessa perspectiva, ao buscar compreender como as relações

foram se estabelecendo no Paraguai, necessita-se saber mais sobre quem foram e

onde se colocaram os/as migrantes brasileiros (que não foram poucos) no país para

o qual se deslocaram, país este, que tinha características predominantemente rurais,

mas também urbanas. Em consonância com Albuquerque:

Os brasileiros, de diferentes estados, entraram no Paraguai principalmente através do limite entre o estado do Paraná e o departamento de Alto Paraná e na fronteira seca entre o estado de Mato Grosso do Sul e os departamentos de Canindeyu e Amambay. Os principais lugares de entrada e saída de brasileiros foram e são a Ponte da Amizade, o lago de Itaipu e vários pontos da fronteira seca. Muitos entraram sem nenhum tipo de fiscalização. Na década de 1970, quando vários caminhões de mudanças atravessavam o limite todos os dias. Uns ficavam nas cidades e vilas fronteiriças e outros desapareciam no mato, cobertos pela poeira vermelha das primeiras estradas.98

O mapa apresentado por Souchaud ilustra o processo migratório,

demonstrando as regiões brasileiras deixadas e as de chegadas no Paraguai:

97 BALLER, 2014, p. 74. 98 ALBUQUERQUE, 2010, p. 75.

58

MAPA 1: Origem do fluxo migratório brasileiro para o Paraguai

Fonte: SOUCHAUD, 2007, p. 104.

Este mapa mostra os fluxos migratórios, a origem deles, mas levando tudo

para um lugar, visualiza-se que todos os caminhos vão para o Oeste paranaense.

59

Esse fato se torna um artifício de migração, pois essas eram as pessoas bem vindas

no Paraguai. Parece existir só um lugar de entrada, o que indica que eram aceitas as

pessoas de índole e prática europeia. Wagner aponta que as empresas colonizadoras

que incentivavam a migração brasileira para o Paraguai tomaram dois cuidados: “1)

dar prioridade aos descendentes germânicos, e depois, através de longas conversas,

2) convencê-los de que iriam ensinar aqueles preguiçosos paraguaios e a negrada

brasileira, que estava lá, a trabalhar”.99

Cria-se um mito em torno de quem é o/a trabalhador/a, sobrepondo uma

cultura à outra. Consequentemente, a branca, eurocêntrica e tradicional acaba por ser

a mais reconhecida. Baller destaca:

O que fica evidente é que, em relação ao modus operandi desse fluxo de pessoas, o único curso que se diferencia é o relativo às entradas de pessoas do Rio Grande do Sul que, ainda no século XIX, penetram o Paraguai tomando como curso a província de Missiones na Argentina. O restante possui como saída do Brasil o oeste do Paraná e como entrada no Paraguai o leste por Alto Paraná e Canindeyu. Há nesses locais uma característica de aglutinação de pessoas, o que muitas vezes leva-se a acreditar que a entrada no país vizinho é exclusiva de pessoas do estado do Paraná.100

Dona Luzia é um desses casos que não figuram neste mapa, uma vez que ela

nasceu em São Paulo, migrou para o Mato Grosso e, posteriormente, para o Paraguai.

Identifica-se, assim, a heterogeneidade do processo migratório para o país vizinho.

Diante de tal fato é necessário compreender como era a população paraguaia

no período em que as brasileiras e os brasileiros começaram a ser incentivados à

migração. Perceber como o Paraguai era habitado é mais um fator que auxilia na

compreensão de um processo migratório tão significante para ambos os países, uma

vez que ele mudou os rumos econômicos, sociais e políticos das duas nações,

segundo Baller:

Conforme dados da Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos (DGEEC, 1993) entre os anos de 1950 e 1970, havia maior incidência humana nos Departamentos de Central, Assunção, Guiará, Caazapá, Caaguazu, Cordilhera e Paraguari. Departamentos que ocupam uma área territorial de 7% do país e concentravam mais de 63% de sua população. Em oposição a esses Departamentos, a região ocidental, que sempre tivera pouca densidade demográfica, e a região oriental, áreas que somavam em conjunto, cerca de 61% da área territorial nacional e apresentavam uma média de 4% da população do país. A região Oriental passou a ter um quantitativo mais expressivo a partir de 1950, quando passa a sofrer a

99 WAGNER, 1990, p. 17. 100 BALLER, 2014, p. 103.

60

entrada dos primeiros brasileiros, na fronteira com o Brasil, esse número acentua-se depois dos anos 1970. 101

A entrada de mulheres e homens brasileiras/os apresenta uma mudança

significativa no número de habitantes no Paraguai. De acordo com Souchaud:

Varios censos de población establecen el volumen de poblamiento brasileño en la región fronteriza. Es necesario manejar estos censos con prudencia sin embargo constituyen un aporte a la reflexión. De esta forma, Amambay, Canindeyú y Alto Paraná contaban con 2.250 brasileños en 1962, de los cuales 1.500 establecidos en Amambay. En 1972, poco más de 30.000 son censados, 12.028 en Canindeyú, 10.027 en Amambay y 7.130 en el Alto Paraná.102

Com base em tais dados podemos notar que o número de brasileiros/as só foi

aumentando. Em dez anos os números mudaram de maneira significativa – de 2.250

brasileiros/as, em 1962, sobe para 30.000, em 1972. Todavia, o senso paraguaio em

relação ao número de migrantes provenientes do Brasil é um incógnita, como

destacado na Projeção da População Nacional do Paraguai:

La migración es el componente demográfico más difícil de predecir, dado que responde a determinantes de índole diversa: económicas, sociales, políticas, etc. En el caso de la migración internacional, se agrega el inconveniente de que sus estadísticas suelen ser el eslabón más débil de las estadísticas demográficas. En el país se dispone de una información muy limitada, pues no se cuenta con fuentes adecuadas y directas para hacer mediciones sobre esta materia. En el censo 2012, se incorporaron por primera vez preguntas relacionadas con la emigración internacional, a través de las cuales investigaron sobre miembros del hogar que en los últimos cinco años residían permanentemente en el extranjero.103

Deste modo, saber o número exato, ou, quiçá, aproximado, de mulheres,

crianças e homens brasileiras/os que migraram para o Paraguai é uma complicada

tarefa, para não dizer impossível.

Todavia, esse fator não desconsidera o número significativo de migrantes que

cruzaram a fronteira, confirmando que o modelo agrícola brasileiro e os incentivos

recebidos para migrar atuaram de maneira muito eficiente. Uma matéria do jornal

paraguaio ABC color explica como e por que os/as brasileiros/as se mudaram para o

Paraguai:

Se remonta a principios de los años setenta, básicamente con el cambio de la orientación geopolítica del Paraguay durante el stronismo, ya que antes de

101 BALLER, ibidem, p. 94. 102 SOUCHAUD, 2007, p. 106. 103 PARAGUAY Proyección de la Población Nacional, Áreas Urbana y Rural por Sexo y Edad, 2000-2025, p. 28)

61

eso nuestro país se orientaba y salía al mundo por el Río de la Plata y Argentina. El cambio hacia el Brasil inaugura una nueva orientación de la ocupación del territorio, que es lo que se llamó marcha al este. Se construyó la ruta a Puerto Presidente Stroessner y el interés fue ocupar a través de colonos, de pioneros, toda esa zona, en parte también para descomprimir la presión de un creciente número de agricultores que ya no tenían tierra en la zona central. [...] En el Brasil se estaba dando un proceso igual, pero a la inversa, una marcha al oeste. Muchos eran productores desplazados por el avance ya entonces de la revolución verde y que buscaban nuevas tierras en los confines del país. [...] Al sentirse desplazados por la llegada de la agricultura comercial a gran escala, para ellos saltar la frontera fue anecdótico, no existía una frontera, solo era cruzar el río.104

Destarte, percebe-se como os paraguaios/as enxergaram esse processo de

chegada dos/as brasileiros/as, bem como os motivos nos quais fundamentou-se a

entrada desses migrantes em seu país, destacando como principais fatores o

stronismo, sua aproximação com o Brasil e as transformações pelas quais passava a

agricultura em ambos os países.

Através dos dados acima apresentados, nota-se que a entrada de

brasileiros/as e a subsequente quantidade de terras por eles ocupadas no Paraguai

foram expressivas para o desenvolvimento de regiões pouco habitadas pelos/as

paraguaios/as – os quais concentravam-se majoritariamente na região central do país.

O mapa a seguir elucida as regiões habitadas por brasileiros/as em território

Paraguaio:

104 DIÁRIO ABC COLOR, 23/10/2008, versão digital.

62

MAPA 2: Território paraguaio povoado por brasileiros/as

Fonte: SOUCHAUD, 2007, p.154.

Percebe-se que, apesar das diferenças sociais e econômicas existentes entre

as/os migrantes, o objetivo era comum: a terra e a luta por melhores condições de

63

vida. Segundo Chiavenato (1980), grande parte dos/as agricultores/as brasileiros/as

chegaram ao Paraguai após venderam suas terras no Paraná ou no Mato Grosso, ou

então porque nunca conseguiram ter nenhuma terra. Entretanto, a homogeneização

é perigosa porque pode levar a situações polares, já que outros alvos também podem

fazer parte da escolha das pessoas.

1.3 Identidades em construção: ser brasiguaio/a

Os/as brasileiros/as que se mudaram para o Paraguai são costumeiramente

chamados de brasiguaios/as, nomenclatura derivada da junção de brasileiro/a com

paraguaio/a. Essa terminologia é utilizada por vários autores/as para descrever os/as

migrantes, segundo Batista: “Os brasiguaios são conhecidos como trabalhadores

humildes que, sem terra para trabalhar no Brasil, foram expropriados, expatriados pelo

processo de modernização da agricultura e vivem no Paraguai”.105

Os/as brasiguaios/as também ficaram conhecidos por levantar a bandeira de

luta pela terra, ligado a atividades relativas ao campo, como aponta Baller:

O sujeito social brasiguaio surge, num primeiro momento, com uma nova e diferente bandeira de luta pela terra tanto no Paraguai quanto no Brasil, na medida em que ele se diferencia dos demais integrantes de movimentos sociais de luta pela terra. Com o passar do tempo, o tratamento do termo passa a ser de uso corrente, especialmente difundido pela imprensa e representando o brasileiro que está no Paraguai, que está ou esteve ligado as atividades rurais no país vizinho.106

A nova denominação dos/as migrantes já foi empregada de maneira

pejorativa, para afirmar que estes tratavam-se de expatriados; não eram nem

brasileiros/as, nem paraguaios/as, como apontou o Deputado Sergio Cruz do PT em

determinada ocasião: “Vocês são uns brasiguaios, uma mistura de brasileiros com

paraguaios, homens sem pátria”.107

O termo brasiguaio é bastante controverso e de uso recorrente, sendo

utilizado, ainda, com o intuito de afirmar uma nova identidade social, carregada de

significações, como afirma Colognese: “Mais do que uma questão etimológica, os

105 BATISTA, 2013, p. 11. 106 BALLER, 2014, p. 71. 107 WAGNER, 1990, p. 11.

64

sentidos são reveladores das disputas que se travam no processo de construção de

uma identidade social, notadamente numa região de fronteira”.108

Seria, pois, errôneo afirmar que os/as brasileiros/as que migraram não foram

tocados de nenhuma maneira pelos costumes existentes do “lado de lá”, uma vez que,

como afirma Hall: “Na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”109.

O sujeito migrante tem, desse modo, uma nova identidade, qual seja, a

brasiguaia, que se encontra ligada ao novo lugar e às vivências que se produziram

nele. Para tanto, Colognese aponta o que é identidade: “O conceito de identidade

deriva da raiz latina idem, que evoca os sentidos de igualdade e de continuidade.

Porém, como as identidades não são únicas e exclusivas, elas se definem

relacionalmente umas em relação às outras”.110

Desta forma, a identidade brasiguaia se forma a partir da troca, da

comunicação e dos relacionamentos construídos através do contato com o “outro”.

Como afirma Woodwart: “identidades muito frequentemente estão baseadas em uma

dicotomia do tipo "nós e eles””111. Nesse sentido, não se pode colocar ou cunhar uma

identidade baseada num território de referência, pois de acordo com a mesma autora:

“As identidades são diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais nos quais elas

são vividas quanto nos sistemas simbólicos por meio dos quais damos sentido a

nossas próprias posições”.112

Logo, pode-se dizer que a identidade brasiguaia surgiu a partir do contato não

homogêneo entre duas culturas, a brasileira e a paraguaia, e também construídas em

um novo território, marcado por relações de poder e diferenças culturais, conforme

apontado Mondardo: “[...] o território envolve sempre as relações de poder e seu

entrelaçamento, concomitante, com o poder simbólico, ligando dominação (político-

disciplinar-econômica) e apropriação (identitária-afetiva) de uma parcela do

espaço”.113

O/a migrante, então, passa a ser conhecido/a a partir de uma nova

terminologia, e definido/a como aquele/a que ao estar fora do seu local de origem

encontra-se com novos costumes, os quais são por ele assimilados, como pontuado

108 COLOGNESE, 2012 p. 146. 109 HALL, 2009, p. 26. 110 COLOGNESE, 2012, p. 146. 111 WOODWART, 2014, p. 40. 112 WOODWART, ibidem, p. 33. 113 MONDARDO, 2012, p. 40.

65

a seguir por Goettert: “O migrante como um ser em trânsito. Uma mistura de ‘um tanto

de nós com muito dos outros”.114

Mas isso só foi possível a partir da desterritorialização e reterritorialização

dos/as brasileiros/as no Paraguai. De acordo com Saquet e Mondardo:

O processo de desterritorialização é construído por um conjunto de relações sociais que são apoiadas, também na lógica reticular, isto é, produzidas, relacionadas em rede e influenciando diretamente na apropriação do espaço e por tanto, na reterritorialização, tanto econômica como política e culturalmente, no território de destino do migrante.115

O/a brasileiro/a trazia consigo os seus traços culturais, cuidados desde o seu

nascimento, no bojo de sua família, e construídos nas relações de intercâmbio com

parentes e amigos. A manutenção de tais traços fomenta o que Hall chama de culturas

nacionais:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentido com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos que estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens dela são construídas.116

Desta forma, esse conceito de sujeito que migra e constrói novas redes de

comunicação e significação só foi possível a partir do alargamento e porosidade da

fronteira. Segundo Baller: “A fronteira não é mais apenas a paisagem petrificada, são

os objetos que servem para cerceá-la com novas significações, criando com isso as

diversidades de fronteira”.117

Bhabha, ao definir fronteira, afirma que “[...] a fronteira se torna o lugar a partir

do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da

articulação ambulante, ambivalente”.118 Nesse ensejo, a partir desse novo território

fronteiriço se constroem histórias de mulheres e homens que ficaram conhecidos

como brasiguaios/as.

114 GOETTERT, 2008, p. 42. 115 SAQUET & MONDARDO, 2008, p. 122. 116 HALL, 2015, p. 31. 117 BALLER, 2014, p. 43. 118 BHABHA, 2013, p. 25.

66

1.4 O feminino que migra: uma “minoria” esquecida na História

Ao optar por escrever a história das mulheres migrantes brasiguaias escolheu-

se pesquisar ou visibilizar uma história pouco escrita/descrita, pouco narrada, pouco

pensada. Refletir sobre a história dessas mulheres que se deslocam para o Paraguai

é pensar também sobre as memórias que foram invisibilizadas, sobre as violências

sofridas, sobre as esperanças que foram destruídas. Como afirma Angelin: “A mulher

na sociedade, especificamente em nossa sociedade, enquanto sujeito social faz parte

de um sistema estruturado e pautado em subordinações”.119

E nesse sistema de subordinações as mulheres foram sendo apagadas dos

discursos históricos tradicionais, caracterizando-se como parte de uma construção

social das diferenças. À mulher cabia o privado e ao homem o social e político, como

se estes fossem fatores biologicamente estipulados. Como aponta Perrot: “Aos

homens, o cérebro, muito mais importante que o falo, a inteligência, a razão lúcida, a

capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos”.120

Constrói-se, assim, um discurso androcêntrico, imposto pela história

tradicional. Por esse motivo é relevante que se descontruam, como afirma Rago,

esses mitos fundadores do que é ser mulher. Para a autora, “é importante que

possamos perceber a construção das diferenças sexuais histórica e naturalmente

determinadas, desnaturalizando portanto as representações cristalizadas no

imaginário social”.121

Desnaturalizar os discursos construídos sobre o feminino é captar as

dinâmicas que as secundarizam e invisibilizam nos processos migratórios, pois, como

bem o coloca Oliveira: “Elas ainda continuam a ser tratadas como parte da bagagem

do homem”.122

A história das mulheres está ancorada em pressupostos patriarcais, os quais,

segundo Saffioti, exprimem “o regime de dominação, exploração das mulheres pelos

homens”123. A autora assinala que: “as relações patriarcais, suas hierarquias, sua

estrutura de poder contaminam toda a sociedade”.124

119 ANGELIM, 2012, p. 56. 120 PERROT, 2017, p. 186. 121 RAGO, 1998, p. 93. 122 OLIVEIRA, 2016, p. 80. 123SAFFIOTI, 2004, p. 44. 124 SAFFIOTI, ibidem, p. 54.

67

Vive-se, desse modo, em uma sociedade que predominantemente valoriza o

homem e suas facetas, e na qual as mulheres são subalternizadas no interior de uma

estrutura androcêntrica de poder que delega os lugares sociais do feminino e do

masculino – construídos de maneiras desiguais – a uma ordem natural.

A figura da mulher nos processos migratórios foi narrada sob a ótica da

fragilidade e da dependência, afinal, de acordo com as regras do patriarcado,

existencialmente ela necessita de um homem pra protegê-la. A mulher não seria,

portanto, um ser completo a não ser que houvesse uma figura masculina ao seu lado.

De acordo com Tedeschi:

No decorrer da história há uma relação entre gênero e poder que precisa ser estudada, revelada, reescrita pois a história tradicional antropocêntrica e universalizante criou o mito do sexo frágil, da impotência feminina e da sua dependência existencial do masculino.125

A mulher sempre foi vista como aquela que deveria ser a sombra do homem,

e por ele representada. Construiu-se, por conseguinte, uma história sem mulheres, na

qual os tradicionais papéis sexuais às fecharam num mundo privado; mundo este,

onde aos homens atribui-se o protagonismo; uma história, enfim, que escreve sobre

eles de modo a visibilizar seus “grandes” feitos, como se a sociedade fosse constituída

unicamente por um sexo.

Mesmo com a significativa participação feminina no desenrolar da história, a

invisibilidade da mulher foi emblemática. O masculino era sinônimo de migrante, como

o desbravador de novos lugares, o descobridor de novas terras e formas de trabalho,

o ser humano independente, politizado e capaz de grandes feitos.

A mulher foi, por seu turno, esquecida e silenciada nos processos migratórios,

sendo tratada unicamente como mãe e esposa que acompanhava os seus. De acordo

com Faria, Ferreira e Paula, “Por muito tempo, as migrações masculinas ditaram as

tendências teóricas e incluíram as mulheres apenas como cônjuge”.126

Transformar o olhar e entender que a migração também é um ato feminino é

um fator de modificação da história. Colling aborda o fato de que as mulheres não

eram parte da história oficial, esta criada por homens e para homens, ao afirmar que:

“A história sempre foi uma profissão de homens que escreveram a história dos

125 TEDESCHI, 2011, p.09. 126 FARIA, FERREIRA & PAULA, 2016, p. 02.

68

homens, apresentada como universal, na qual o “nós” é masculino e a história das

mulheres se desenvolve à sua margem”.127

O processo de migração do Brasil para o Paraguai não foi diferente, já que se

observa que a história das mulheres se desenvolveu à margem. Suas lutas, dilemas

e conquistas permaneceram em suas memórias, pois o que foi escrito até então

dedicou pouco tempo e espaço à história feminina. O protagonismo era, assim,

unicamente dos homens. Para Assis:

Enquanto os homens são representados como aqueles que vinham em busca de trabalho, as mulheres não foram inicialmente representadas como trabalhadores imigrantes, e sim como aquelas que acompanhavam maridos e filhos. Dessa forma, nunca eram percebidas como sujeitos no processo migratório.128

A história das mulheres é uma história de exclusão, de invisibilidade dada pelo

patriarcado e pelas relações de gênero. Na escrita da história as mulheres não

existiam. Quando a narrativa histórica as apresenta, colocam-nas em seus tradicionais

papeis, que são frutos de um discurso androcêntrico. Por consequência, como o

aponta Perrot: “As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais”.129

Assim, pensar as relações sociais entre mulheres e homens se faz necessário

para compreender os motivos pelos quais o feminino foi deixado de lado, e para

entender porque, tradicionalmente, alguns âmbitos sociais estiveram fechados para

as mulheres, já que nas famílias migrantes que se deslocam, os papeis são

diferenciados para mulheres e homens, recaindo sobre o feminino, como se observa

através dos discursos do patriarcado, o peso do migrar pela questão da família e dos

filhos.

Nesse sentido, Tedeschi aponta uma inquietação à respeito da história das

mulheres, afirmando ser complicado pensar como a história construiu barreiras tão

fortes que acabaram excluindo as mulheres como sujeitos históricos, privilegiando

outras esferas, como a política e a economia, e “generalizando o devir histórico e

impondo ao passado uma cultura histórica etnocêntrica e patriarcal”.130

Segundo Scott, é importante analisar como se fixaram as diferenças entre

mulheres e homens ao longo da história, para que se possa compreender o motivo

127 COLLING, 2014, p. 12. 128 ASSIS, 2007, p. 748. 129 PERROT, 2017, p. 17. 130 TEDESCHI, 2014. p.17.

69

pelo qual já se supôs que as diferenças sociais fossem de ordem natural, a qual

pressupunha que as mulheres nasciam predestinadas biologicamente para

determinadas funções:

Al suponer que las mujeres tienen características específicas e identidades objetivas, y que éstas, por su naturaleza firme y predecible, son diferentes de las de los hombres, y que además generan necesidades e intereses femeninos que pueden ser definidos, los historiadores dieron a entender que la diferencia sexual es un fenómeno natural más que social. 131

Os discursos históricos foram estruturados sobre os padrões estereotipados

do patriarcado, baseando-se na natureza para definir um papel inferior à mulher na

sociedade. Asseverações que necessitam ser desnaturalizadas, em virtude das

diferenciações entre homens e mulheres serem resultado de construções sociais.

Destarte, ao estudar as questões relacionadas ao gênero deve-se despojar-

se de conceitos já construídos a partir dos quais a mulher e o homem assumem papéis

diferentes na sociedade por conta de questões de natureza biológica.

Para Tedeschi, ao estudar as questões relacionadas ao protagonismo

feminino e aos estudos de gênero, é possível compreender como as sociedades foram

se construindo com o passar dos tempos e como a opinião sobre as mulheres também

se alterou, mudando as afirmações sobre elas na medida que “os estudos de gênero

passam a recuperar a singularidade e a arbitrariedade dos arranjos e estratégias

usados em diferentes épocas para ditar o que poderia ser dito ou não em relação as

mulheres”.132

Nesse sentido, quando se fala de migrações de mulheres ao Paraguai, as

fontes tradicionais falham ao relatar os protagonismos desses sujeitos, situação esta

que se reproduz em vários domínios ao longo da história, conforme ilustra Rago ao

dizer que: “O anonimato caracterizou a condição feminina até algumas décadas

atrás”.133

Dessa forma, ao longo da história as mulheres foram silenciadas, porquanto

“não” faziam parte da economia e da política, já que tal ação “era” dos homens.

Tedeschi aponta o caráter histórico tradicional como não eficaz para atingir aqueles

131 SCOTT, 2008, p. 22. 132 TEDESCHI, 2014, p. 18 e 19. 133 RAGO, 2013, p. 32.

70

menos favorecidos na sociedade e destaca que: “Os métodos tradicionais da

historiografia falham na captura das vozes silenciadas”.134

Os métodos tradicionais falham porque buscam majoritariamente relatar os

grandes eventos, heroicizando alguns personagens. Por outro lado, quando se

trabalha com pessoas costumeiramente silenciadas, como as mulheres, é necessário

fazer o uso de outras ferramentas, como aponta Silva:

[...] compreender as razões pelas quais as mulheres constroem as suas memórias e explorar os significados subjetivos que elas carregam, consiste em relacionar suas narrativas a uma verdadeira teia de significados, que precisa ser analisada e interpretada.135

Um dos caminhos para a visibilidade das mulheres migrantes se dá pelas

memórias construídas através da oralidade, ou seja, para analisar como as mulheres

constroem suas histórias é preciso utilizar uma ferramenta de análise distinta daquela

usada para quantificar e heroicizar, já que as lembranças femininas vão se

construindo em uma teia de eventos. Como aponta Silva: “As mulheres revelam com

mais frequência, a emoção da perda e o sentimento de desenraizamento, quando

tiveram que se desapegar de alguns pertences e deixá-los para trás”.136

Historicizar as mulheres é um ato que pressupõe uma mudança de

paradigmas, um despir-se de conceitos enraizados na sociedade137. Para que isso

possa acontecer efetivamente, a discussão de gênero tem sido extremamente

relevante para construir uma história feminina. Através dessa discussão as vozes por

muito tempo silenciadas começam a emergir. De acordo com Faria, Ferreira e Paula:

Se gênero é uma construção social que organiza as relações entre homens e mulheres, gênero atravessa e condiciona todos os aspectos da vida social, configurando de maneira diferente as experiências de cada sexo. Deste modo, a migração desconhece a contribuição da mulher para a economia, política e vida social.138

134 TEDESCHI, 2009, p. 180. 135 SILVA, 2008, p. 121. 136 SILVA, Ibidem, p.115. 137 Nesse sentido é relevante evidenciar a importância dos estudos da Escola dos Annales. De acordo com Tedeschi: “O nascimento de novas abordagens e perspectivas na história com a fundação dos Annales, em 1929, traz consigo uma nova agenda que conquistará um espaço fundamental para emergência da história das mulheres: a crítica as narrativas históricas tradicionais, da história factual particularmente política ou econômica; a procura de colaboração com outras ciências; a substituição da história simplesmente narrada, pela história-reflexiva problema” (TEDESCHI, 2011 p. 09). 138 FARIA, FERREIRA & PAULA, 2016. p. 03.

71

Com a pretensão de romper com os modelos históricos construídos ao longo

dos anos e alicerçados na exclusão das mulheres como sujeitos partícipes da

construção social, é que se procura visibilizar as mulheres nos processos migratórios,

tendo por base o desejo e o esforço planteado por historiadores/as. Segundo Perrot:

“um desejo análogo de inverter as perspectivas historiográficas tradicionais, de

mostrar a presença real das mulheres na história mais cotidiana, sustentou o esforço

das historiadoras nesses últimos anos”.139

1.5 Olhares e experiências femininas sobre a migração para o Paraguai

Escrever sobre as histórias das mulheres brasiguaias é traçar uma nova

perspectiva e enxergar como o processo foi acontecendo a partir da visão delas,

levando em conta os sentimentos e as mudanças mais sutis que ele representou

subjetivamente para as pessoas. Ao atentar-se demasiadamente a dados,

aparentemente o cotidiano se perde, as percepções de sentimentos e frustrações vão

ficando em segunda instância, fator que não ocorre ao trabalhar-se com as mulheres,

cujas vozes femininas, como já discutido anteriormente, são travestidas de

significações:

Los seres humanos como animales simbólicos, porque tenemos la capacidad de usar un lenguaje simbólico por el que substituimos realidades por conceptos. Poseemos un código personal, cultural e incluso de género por el que traducimos los significantes (realidades de cualquier tipo) a significados determinados; y ese código, que sería como un lenguaje cifrado, es el símbolo. Es decir las cosas no son lo que son, sino lo que significan.140

Significados dos momentos vividos, dos valores subjetivos colocados nos

objetos bem como a importância dos acontecimentos, ficam perceptíveis na narrativa

de dona Maria Celina ao narrar como foi a viagem para o Paraguai: “Nós fomos para

o Paraguai no dia 7 de julho de 1983 e fomos pra Formosa no departamento (Estado)

de Alto Paraná, levamos três bolsas e duas malas, nesse dia tava chovendo muito e

deu uma vontade muito grande de desistir”.141

A lembrança exata do dia da mudança pontua um marco divisório na vida de

dona Maria Celina: o de quando ela passa a viver do “lado de lá”. A descrição de como

139 PERROT, 2017, p. 180. 140 CARPIO, 2015 p. 155. 141 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som.

72

foi a viagem, o que levou e a situação do dia chuvoso são aspectos que marcaram um

momento histórico na vida da entrevistada. Nota-se a carga de significações do ato

de migrar, registra-se a dúvida, o medo e a vontade de desistir. Evidencia-se, ainda,

a situação de precariedade pelas quais passavam as mulheres e os homens ao

migrar, expressa na fala de dona Maria Celina através da imagem da bagagem na

mudança, composta apenas por duas malas e três bolsas.

Para Tedeschi é importante entender as narrativas femininas para a melhor

compreensão da história das mulheres:

Na História das Mulheres a dimensão da linguagem, dos discursos, passa a ser uma ferramenta de análise importante, não como meio de representação da realidade, mas operando como um sistema de significação, posto que intervém ativamente na produção de significados que se atribuem ao mundo real e a partir dos quais se organiza e dá sentido à prática. A linguagem não é só vocabulário, más também discurso, isto é, um conjunto de formas conceituais, culturalmente estabelecidas, de perceber, aprender e fazer inteligível nosso contexto nosso cotidiano. Em consequência, os conceitos linguísticos não simplesmente se referem a realidade e a designam, como também contribuem para a elaboração que temos dela e, portanto, influem na maneira em que experimentamos o mundo e nosso lugar nele.142

Desta forma, ao trabalhar com as narrativas femininas tem-se uma riqueza de

registros que ficam perceptíveis no dito e no não dito, nas expressões, nos silêncios

e nas repetições, uma vez que o universo das mulheres é carregado de sentidos.

Ao conversar com as mulheres sobre as razões para ir para o Paraguai elas

relatam que um dos motivos, servindo também como apoio, foi o fato de terem

familiares que haviam migrado. Assim sendo, os processos migratórios são mais

amplos e dinâmicos do que apenas o que viés o econômico faz crer. Eles são, na

realidade, construídos a partir de vínculos sociais. Segundo Saquet e Mondardo:

Entre os territórios de origem e de destino, há várias relações de vínculos sociais realizados pelos migrantes quando percorrem suas trajetórias e quando se reterritorializam. A construção dos territórios, na migração, passa por uma dinâmica em redes que conectam diferentes nós interligados através dos vínculos e dos contatos estabelecidos.143

Os laços de parentesco e amizade foram fatores importantes para o

processo, à medida que serviram como impulso para o ato de migrar. As redes de

contato, portanto, se fazem relevantes na criação de vínculos no local chegado. Dona

Maria Celina ao narrar sobre a sua vida nos diz: “Os pais do Tonho (marido) já

142 TEDESCHI, 2011, p. 10. 143 SAQUET e MONDARDO, 2008 p. 120.

73

moravam lá e ele queria ir, ai ele foi primeiro comprou cama, colchão e mercadoria e

voltou pra me buscar, lá era bonito era um lote legal”.144

Dona Ana, migrante brasiguaia nos diz: “Fui muito contrariada, chorei muito,

mas tinha esperança né, lá estava dando certo pros outros”.145

Nas narrativas acima notam-se que os vínculos sociais já construídos foram

consideráveis na hora da partida. Também são explicitados os sonhos de ter uma vida

melhor a partir da migração. Bassanezi, quando escreve sobre as mulheres que

chegam ao Brasil na época colonial, aponta os projetos pessoais de melhorar de vida

como motores propulsores da migração, “[...] movidas por projetos pessoais e

familiares longamente acalentados em sua terra de origem. Se perguntadas sobre o

que as motivava, responderiam simplesmente: ‘buscar uma vida melhor’”.146

Quando dona Maria Celina descreve os móveis (cama e colchão) à sua

espera, e, também, a mercadoria, ela realça a importância desses objetos na vida da

mulher migrante, posto que o quarto e as mercadorias são objetos de poder feminino.

O quarto, como descrito por Perrot: “[...] é o palco da existência, ou pelo menos seus

bastidores, onde tirada a máscara, o corpo despido se abandona às emoções, às

tristezas e à volúpia”.147 Mais adiante a autora também pontua que “o quarto protege:

você e seus pensamentos, suas cartas, seus móveis, seus objetos. Muralha que

afasta o intruso”.148 Desta forma, esse ambiente privado seria o espaço de liberdade

para as mulheres, onde elas podem se despir de estereótipos e funções socialmente

estipuladas para elas.

Dona Ana, ao contar que não queria ir, mas que o fato de estar dando certo

para outros no Paraguai a fez persistir, demonstra o poder de decisão da mulher ao

migrar. O marido optou pela mudança após uma visita aos pais e ela acaba por

concordar em partir, tendo como base para a sua decisão o sucesso dos parentes que

lá estavam e não a necessidade de acompanhar o esposo. Como descreve Oliveira:

[...] é importante compreender o papel da presença feminina no processo migratório, a partir da percepção de que, embora seja evidente a

144 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som. 145 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 146BASSANEZI, 2013, p. 170. 147 PERROT, 2011, p. 15. 148 PERROT, ibidem, p. 16.

74

preponderância do poderio masculino na decisão de migrar, esse projeto só é efetivado com a aceitação das mulheres.149

Paralelamente a esse protagonismo da mulher que migra, Luzia nos relata

que:

Meu pai bebia muito e já tinha bebido quase tudo o que a gente tinha, dai o meu tio, irmão da minha mãe convidou minha mãe para ir para o Paraguai, no começo ela ficou meio assustada, mas depois foi lá conhecer e gostou, daí nós fomos, mas foi minha mãe quem decidiu ir. 150

Dona Rita, mãe de Dona Luzia, notando que seu marido estava consumindo

os bens construídos por ela e pela família em bebidas alcoólicas, cria estratégias para

se afastar daquele círculo vicioso, usando o convite do irmão como ferramenta. Nota-

se, assim, as relações de poder estabelecidas, por vezes implícitas, como destaca

Foucault:

O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. [...]o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.151

A decisão de migrar é então um ato de resistência152 de Dona Rita. Vivendo

em uma sociedade patriarcal, convergente com costumes que a obriga a permanecer

casada, em situações de submissão nas quais não pode proibir o marido de beber,

ela decide aceitar o convite do irmão. Foucault ao escrever sobre as relações de poder

contribui para que se possa entender algumas posições femininas diante dos padrões

sociais:

Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais.153

149 OLIVEIRA, 2016, p. 78. 150 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 18/05/2017. 55 min. (aprox.), som. 151 FOUCAULT, 1988, p. 89. 152 O conceito de resistência adotado neste trabalho é o definido por Michael Foucault: [...] não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa — alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 91) 153 FOUCAULT, ibidem, p. 92.

75

Trabalhar e ver o marido consumir os bens em bebidas alcoólicas foi uma

realidade frequente e dolorosa que, em alguns casos, necessitou da interferência de

algum membro da família para auxiliar no processo de superação. De acordo com

Silva, os desgostos nas relações familiares com filhos e maridos alcoólatras são

recorrentes na vida das esposas:

Em muitas ocasiões, o sofrimento, advindo da relação com os filhos e maridos, é parte constitutiva do destino de gênero. Mulheres que não abandonam os filhos, que suportam a violência e o alcoolismo dos maridos durante toda vida, são muito frequentes. Raras são aquelas que logram romper com esse destino.154

As relações de gênero na história dessas mulheres estão, muito

frequentemente, representadas pelo sofrimento, consentimento, resistência, dor,

compaixões, esperanças, desilusões e silenciamentos.

Migrar para a família de Luzia era sinônimo de libertar o pai da bebida com a

esperança de assim construir uma vida melhor. Nota-se novamente o caráter dinâmico

do processo migratório, também chamado por Mondardo de “linha de fuga”155: “Esta

“fuga” do território se daria em virtude de uma rusga, de um mal estar naquele recorte

espacial vivido, da busca por um novo território, por novas relações, por “novos ares”,

novas oportunidades, experiências e convivências”.156

Dona Fátima, corroborando com esse modo dinâmico da migração, conta sua

história e os motivos para partir, ela afirma: “Meu esposo achou que lá às vezes a

gente ia viver melhor, mas foi difícil lá”.157 Essa entrevista demonstra a pressão que

as mulheres sofriam sobre o ato de migrar, assim como o sofrimento travestido nos

silêncios e rememorações158, o qual aparece, por exemplo, quando questionada sobre

o porquê ir embora, momento este em que ela silencia e diz “meu esposo achou que

ia ser melhor”; silencia novamente e diz “mas foi difícil lá”. Desta forma, é importante

salientar que a situação do migrar é apreendida de maneira diferente por mulheres e

homens. Segundo Peres: “As transformações experimentadas por ambos os sexos

154 SILVA, 2010, p.16. 155 O autor afirma que ato desprender-se, de uma porção do espaço em que fez amizades e inimigos, viveu, pode se caracterizar em “linha de fuga”, isto é pode-se construir no abandono de um “território saturado”. (MONDARDO, 2012, p. 47) 156 MONDARDO, 2012, p.47. 157 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som 158 De acordo com Gagnebin: “A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, particularmente a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente” (GARGNEBIN, 1999, p. 89).

76

são distintas e cada uma delas tem impacto diferenciado, especialmente na família e

no domicílio”.159

Continuando com sua narrativa, Dona Fátima conta que o ato de migrar se

deu porque o seu esposo tinha parentes no Paraguai e que isso serviu como elo no

processo:

Nós o primeiro ano que nós entramos lá, a sorte que tinha um primo dele que morava lá num cara que tinha bastante terra, nem sei quanta terra, mais era tipo um fazendeirinho assim, então ele já tinha uma casa, dai ele cedeu a metade de parede e meia pra nós morarmos um tempo, dai a gente abriu o mato e fizemos o barraco pra gente morar, fazer a casinha, dai tinha uma serraria perto né, dai madeira de facão que nem diz o ditado de “pau a pique” né fazia as casinhas pra gente morar, lascar coqueiro pra fazer os barracos, lasca tabuinha pra cobrir, foi o que a gente fez e vivemos acho que uns dez anos naqueles lugares lá depois que a gente mudou.160

Percebe-se na sua narrativa a riqueza de detalhes com a qual ela descreve a

morada construída por ela e o esposo, demonstrando a carência de recursos

financeiros com os quais tinham de lidar ao chegar. A memória feminina é permeada

de significações, dos lugares vividos e dos espaços ocupados, como bem o afirmam

Oliveira e Zanchett, para quem: “a memória é o retorno a vestígios antes trilhados; é

relato da captação de estilhaços do que se viveu”.161 Retornar através da memória às

lutas travadas para construir uma vida melhor em outro país explicita as angústias e

os sonhos carregados pelas mulheres.

Muitas vezes o marido ia primeiro para ver como era e depois voltava e

buscava a família, como nos relata a dona Maria Leni:

O Clóvis (marido) ficou 32 dias no Paraguai e me deixou na casa da minha mãe, ai todo mundo começou a falar que ele não ia voltar, meu mundo parece que ia desmoronar porque eu já tinha três filhos pra criar e meu pai disse que eu ia ter que me virar pra cuidar deles sozinha porque ele não tinha mandado eu me casar, dai um dia quando eu estava trabalhando na roça com meu irmão o Clovis chegou, eu voltei pra casa da mãe de tardezinha e tinha uns parentes lá e todo mundo ficou me olhando e rindo, eu achei que era deboche porque o meu marido tinha me deixado, mais dai eu vi ele, nossa parece que eu fui lá em cima e voltei, fiquei muito feliz e dai quando a gente foi conversar eu disse pra ele que ia junto com ele nem que fosse para debaixo de uma árvore, só que ele disse que não tinha dinheiro pra levar eu e as crianças, mais ia dar um jeito, dai ele eu fui pra casa da minha sogra e ele para o Paraguai de novo, trabalhar pra juntar dinheiro pra buscar eu e as crianças, dai um dia de noite chegou o meu cunhado com a caminhonete do pai dele e me disse o Clóvis mandou eu vir te buscar, eu disse que não queria ir com ele porque imagina eu queria ir com o Clóvis, mais dai ele disse que o Clóvis

159 PERES, 2014, p. 3. 160 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio-mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som. 161 OLIVEIRA & ZANCHETT, 2015, p. 450.

77

confiava nele, dai eu fui, em cima da carroceria da caminhonete com as crianças e a mudança, passamos em Medianeira fazer compra que o Clóvis tinha mandado a lista de compra e mandou comprar um chapa de fogão também só que não encontrei, e ai partimos pro Paraguai eu nem sabia pra onde tava indo, não via nada porque a caminhonete estava fechada com lona, dai o João (cunhado) ia parando pra gente se esticar e respirar bem porque era abafado lá em cima, dai chegamos lá de noite eu já não entendia nada, tava transpassada de cansaço e sem respirar direito, só acordei meio tantan quando minha cunhada puxou minhas crianças quando a gente chegou dai eu gritei com ela porque não reconheci só dai o Clovis falou comigo e eu conheci a voz dele.162

Na narrativa de dona Maria Leni percebe-se uma carga de sentimentos que

sugerem um conjunto de problemas que as mulheres enfrentam ao migrar, como a

violência doméstica. Esse trajeto da história das mulheres é longo e solitário. As

represálias, o sentimento de vergonha, a dependência econômica e o medo de perder

os filhos contribuem para que a violência permaneça nesses deslocamentos.

Quando dona Maria Leni relata que o seu pai não a ajudaria a criar os filhos,

pois não mandou que se casasse, percebe-se nitidamente os lugares de poder que

permeiam as relações entre as mulheres e os homens, no qual o feminino está

encurralado nas grades do patriarcado, e onde os espaços tanto de trabalho quanto

de vida são ocupados de maneira distintas baseados na hierarquização. Segundo

Angelin:

As diferenças entre homens e mulheres construídas no desencadear do processo histórico-sociocultural, seja no âmbito da família, seja no âmbito da sociedade em geral, produzem desigualdades e geram hierarquias entre o trabalho masculino e o feminino, perpetuando a divisão sexual do trabalho e a distinção entre os papéis sociais masculinos e femininos.163

Outro ponto marcado pelas diferenças de gênero e pelos lugares socialmente

determinados para as mulheres aparecem quando ela relata o pensamento da

possibilidade dos parentes estarem debochando dela porque acreditam que o marido

a havia abandonado. Registra-se, dessa forma, como as mulheres eram taxadas e

colocadas em condições de inferioridade em relação aos homens, numa sociedade

marcada pelas desigualdades entre os sexos, na qual as mulheres deveriam,

sobretudo, assumir papéis do mundo privado, dependendo incondicionalmente de um

homem enquanto protetor de sua honra. Deveriam estar cientes, ainda, de que, caso

162 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 163 ANGELIN, 2012, p. 59.

78

fossem abandonadas, seriam motivo de escarnio e desonra, como apontam Oliveira

e Nascimento:

A partir desse momento ela não era mais aceita no seu antigo ciclo de amizade, por se tornar má influência e afetar a honra das mulheres que compartilhassem na sua amizade. [...] Os papeis que a sociedade determinava para as moças eram os de boa filha, boa moça e virgem, para posteriormente se casarem e tornarem-se boa esposa, boa dona-de-casa e boa mãe.164

Serem abandonadas pelos maridos era, portanto, um medo constante na vida

das mulheres. Por este motivo é também emblemático como ela relata sua reação

quando percebe que o marido havia retornado, em virtude do cotidiano feminino estar

permanentemente marcado pelo temor.

Dona Maria Leni registra também o receio de viajar com o cunhado e não com

o marido, em razão de não saber para aonde estava indo, só sabia que era para o

Paraguai. E foi a duras penas, na carroceria da caminhonete, fazendo tudo isso para

buscar junto com o marido uma vida melhor, como ela mesmo conta: “Eu fui porque a

gente achava que lá era melhor porque tinha trabalho, tinha empreitada pra derrubar

mato e daí dava um dinheirinho bom pra gente viver”.165

Os relatos das mulheres brasiguaias demonstram como o processo de ida foi

difícil, como o ato de mudar de país aconteceu de maneira sofrida por aqueles que

buscavam melhorar a vida a partir do trabalho. Dona Ana narra:

Eu fui morar com a sogra, só que lá tinha muito mato daí eles derrubaram umas arvores, fizeram uma tábuas, daí vendeu umas madeiras pra um comerciante e conseguiu comprar as telhas e fez de tábua de motosserra, fez uma casinha bem pequena, quatro por cinco, uma cozinha e um quartinho, um banheirinho lá, assim a gente começou.166

As condições de vida que esperavam essas mulheres no Paraguai eram

bastante precárias. Elas precisaram organizar o cotidiano e suas necessidades

básicas com raros recursos, em decorrência de não possuírem condições financeiras

favoráveis, da cidade ficar longe e dos meios de transporte serem escassos. Como

destaca Certeau:

164 OLIVEIRA & NASCIMENTO, 2012, p. 9. 165 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 166 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

79

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime pois existe uma opressão do presente. Todo dia pela manhã, aquilo que assumimos ao despertar é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.167

Viver no novo lugar significava enfrentar desafios diários. Dona Maria Leni,

ao contar sobre a chegada no Paraguai, diz: “Nós chegamos lá e era só mato, pra

qualquer lugar que a gente olhasse, aquele mato bonito sabe bem fechado, nem

estrada tinha, eram os carreiros que os homens tinham feito pra conseguir chegar nos

barracos”.168

A história de Dona Fátima também menciona a precariedade encontrada ao

chegar no “lado de lá”:

Entrar com mudança lá para o Paraguai foi difícil, carregar a mudança nos carreirinhos nas costas porque não entrava nem carroça de cavalo ou de boi pra carregar a mudança da gente, umas coisinhas, mudança a gente fala mas era os barracos169.

Nas memórias de Fátima e Ana podemos notar que “os barracos” têm um

significado profundo, simbólico, no outro lugar e que isso reflete também a pobreza e

as condições difíceis vividas pelos migrantes no Paraguai.

Percebe-se aqui a diferença entre o que a imprensa noticiava sobre as

mulheres e homens que migraram para o país vizinho e a realidade vivenciada por

elas/es na prática. A riqueza e as grandes conquistas não eram parte da vida de

todas/os que escolheram o Paraguai como novo local para assentar raízes.

Quando suas memórias as transportam para os barracos, explicita-se o valor

simbólico do lugar, da casa, dos objetos, das vivências que foram construídas naquele

espaço, demonstrando os lugares de valor da memória feminina ao narrar sobre a

morada. De acordo com Perrot: “Os modos de registro das mulheres estão ligados a

sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com seu modo

de rememoração, da montagem propriamente dita do teatro da memória”.170

167 CERTEAU, 2013, p. 31. 168 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 169 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio-mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som. 170 PERROT, 1989, p. 15.

80

Migrar para um país diferente sem saber o que as esperavam foi um ato de

coragem das mulheres brasiguaias. Quando questionadas sobre o momento da

chegada e de como eram suas casas, elas relatam detalhes que são travestidos de

significações, como no caso de dona Maria Celina:

A casa foi construída com lasca de taboca (lasca de madeira mole) é tipo marfim, dava caruncho que nem milho e a cobertura era de tabuinha mais os esteios era de angico uma madeira boa, pesada, o piso era de bosta de vaca com barro, era igual um piso bem arrumadinho bem branquinho eu passava a noite antes de dormir, daí ia tomar banho e no outro dia tava lindo, branquinho, mais tarde nós fizemos uma casa de madeira.171

O valor colocado nas casas e nos objetos de mudança levados ao Paraguai

demonstra como elas percebiam o processo. Ao narrar, dona Maria Celina enfatiza

que os esteios da casa eram de angico, assegurando que, apesar de ser simples e da

outra madeira carunchar, a casa era resistente, o que a deixava em segurança. Nota-

se como a memória feminina é construída a partir da significação dos espaços e

lugares vividos. A memória, de acordo com Nora: “Se alimenta de lembranças vagas,

telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as

transferências, cenas, censura ou projeções”.172

A partir de uma memória sensível e excluída da historiografia tradicional, os

relatos cheios de detalhes vão demonstrando ricamente o primeiro momento das

mulheres brasiguaias em um país diferente, onde elas tiveram que se adaptar ao novo

e ao distinto para construir os sonhos almejados ao partir. Como afirmado por Nora, a

memória se alimenta de momentos sensíveis e simbólicos vividos. Dona Maria Leni,

ao contar sobre a chegada no “lado de lá”, faz questão de descrever a primeira

refeição e o trabalho compartilhado com o marido ao organizar os colchões para a

primeira noite no Paraguai:

Quando eu cheguei lá minha cunhada fez janta pra todos nós, ai depois de comer eu e o Clóvis fomos encher os colchões com as palhas que ele já tinha picado com a Lúcia, já estava quase tudo pronto, até um fogão de barro ele já tinha feito para esperar a gente chegar, pena que eu não consegui comprar a chapa em Medianeira, mais dai ele fez com uma lata mesmo.173

171 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som. 172 NORA, 1984, p. 03. 173 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som.

81

Ao descrever suas vivências, as mulheres vão constituindo-se sujeitos da

história, quebrando com o paradigma da história universalizante de homens e para

homens. As narrativas tradicionalmente descreviam a vida pública e política

masculina, acreditando abarcar e representar, num mesmo movimento, a vida das

mulheres. É o que elucidam Soihet e Pedro, ao afirmarem que: “acreditava-se que, ao

falar dos homens as mulheres estariam sendo representadas, igualmente

contempladas, o que não correspondia com a realidade”.174

Dona Maria Inês, ao narrar sua história e de sua família ao chegar ao

Paraguai, nos conta:

Nós chegamos em Hernandárias175, ai o meu veio deu um problema de saúde, ele ficou 12 dias na cama, más não tinha cama, só colchão assim, dormia no assoalho, no piso, era uma casa que nós aluguemos até conseguir serviço nas fazendas. Dai ele doente e eu não entendia guarani, não sabia nada do que eles estavam falando, daí eu fui falei meu Deus e agora, ele doente, que compreende alguma coisa, e eu vou fazer o que, más eu vou ter sair comprar alguma coisa pra comer, pra fazer comida né, ai fui num, tinha um açougue assim né, comprar banha eles não me entendiam más eu mostrei o que eu queria né, que tinha um porco lá pendurado né no açougue, eu mostrei que eu queria só banha, castigo parecia um castigo cheguei dai eu comprei lá uns quilos nem me lembro quanto, quando eu coloquei na panela aquele cheiro de banha de cachaço176, Deus o livre nem devia falar um coisa dessa mais é a realidade ai eu não sabia mais o que que eu ia fazer, ele mal desse jeito nem levantava da cama, 12 dia e era mês de março mês de novena de oração assim campanha de oração né os paraguaio são muito católico. Dai um dia eu falei assim pra uma paraguaia que perguntou mas e o seu marido? Ai eu falei tá doente, tá enfermo, ai ela falou me deixa eu mira, ela veio visita ele né e falou pra mim assim vamos fazer um encontro de oração e falou bem claro assim que deu pra gente entender, mas eu falei só tenho que agradecer muito se você me faz essa oração tudo junto aqui na minha casa, só assim que pode que ele vai melhorar, porque se não, não sei o que vou fazer eu, eu não compreendo nada pra mim o país é estranho. Aí quando chegou a noite era uma quarta feira se reuniu aquela equipe de pessoas né, e vieram fazer oração. Quando foi no outro dia ele levantou da cama. Elas fizeram aquela oração e tipo uma via-sacra, uma coisa assim que, na quaresma né, é.... Mês de março... E daquelas orações no mesmo dia já levantou, meio tonto, assim, meio fraco né. Ah, eu agradeci a Deus, levantei as mãos para o céu e falei: “Meu Deus, esse pessoal tão abençoado, ele vai se curar agora”, falei entre mim né, “Que Deus dê a força, que ele possa reagir a saúde dele, se não, o que vai ser de mim com as crianças?”.

Aí foi onde ele melhorou e saiu na cidade, não sei se dali uns três dias. Aí se encontrou com o Afonso, aí ele arrumou serviço, arrumou camioneta e já trouxe nós pra terra deles. Dai lá tinha um barraquinho até tipo um galinheiro, nós já chegamos de noite, dai ele levou até uma lona pra colocar no chão, pra forrar os colchão, naquela noite eu pensei assim: “Meu Deus, que que eu

174 SOIHET e PEDRO, 2007, p. 284. 175 Cidade localizada no Departamento de Alto Paraná, à 16 km de Foz do Iguaçu Paraná. 176 Cachaço é um porco que ainda não foi castrado, utilizado para reprodução.

82

vou passar na vida, eu não conheço ninguém. Agora sim, estamos juntos com os brasileiros, mas o que que vai acontecer eu não sei.177

Nessa narrativa nota-se que os problemas relacionados à chegada ao outro

país, além de serem muitos, foram ainda agravados pela doença do marido e pela

dificuldade de entender o idioma falado pelos habitantes do novo lugar. O receio da

possível falta de comunicação e o medo pela compreensão do novo marcam a

importância da linguagem, que segundo Hall: “Falar uma língua não significa apenas

expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a

imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos

sistemas culturais”.178

Dona Maria Inês não partilhava da mesma gama de significações linguísticas

que os paraguaios/as, sofrendo pela dificuldade de comunicação. Mas mesmo diante

da falta de compreensão ela não se acanhou perante à necessidade, saindo em busca

dos alimentos que precisavam, e lutando com as ferramentas que tinha, que, neste

caso, tratava-se da linguagem gestual. Percebe-se, por isso, o protagonismo exercido

pelas mulheres nos processos migratórios, mesmo que não o seja narrado nas laudas

da história oficial, como destaca Oliveira:

A mulher muitas vezes “tinha que vir” em obediência ao pai ou ao marido. Porem suas trajetórias vão além da representação de submissão e docilidade; são elas também sujeitos de suas histórias, ainda que em processo constante de negociação com o poderio masculino.179

Exprimem-se no relato de dona Maria Inês os pontos de intersecção que unem

brasileiros/as e paraguaios/as. É o caso da religiosidade, a qual desempenha um

importante papel no auxílio à superação das dificuldades de comunicação, estas,

então supridas em nome de uma fé em comum. Tal fato demonstra que algumas

culturas são partilhadas, fugindo, pois, aos limites territoriais oficiais. Como afirma

Hall: “As culturas sempre se recusam a ser perfeitamente encurraladas dentro das

fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites políticos”.180

Quando dona Maria Inês fala: “Que Deus dê a força, que ele possa reagir a

saúde dele, se não, o que vai ser de mim com as crianças?”, ela explicita as relações

de poder impostas pelo patriarcado no imaginário feminino. Mesmo depois de sair

177 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 178 HALL, 2015, p. 25. 179 OLIVEIRA, 2016, p.128. 180 HALL, 2009, p. 35.

83

sozinha num país do qual o idioma ela não compreendia, e tendo construído relações

de fé com pessoas estranhas a sua realidade, dona Maria Inês ainda tinha medo de

não conseguir seguir a vida sem o marido.

Sua forma de pensar foi influenciada pelos discursos absorvidos ao longo de

sua vida, os quais designavam papéis e lugares às mulheres, afirmando que estas

necessitavam de um homem como esteio para sobrevivência. Discursos esses,

cunhados desde a antiguidade, como afirma Tedeschi:

O primeiro discurso a ser utilizado para a designação dos papéis sociais femininos é da matriz filosófica grega. Considerando as mulheres seres “imperfeitos por natureza”, menos valiosas, portanto, inferiores aos homens, estas, naturalmente deveriam ser submetidas a eles. Essa posição de inferioridade e subordinação parecia fazer parte da “ordem natural” das coisas.181

Aparecem também na narrativa de dona Maria Inês as condições precárias

encontradas ao chegar ao Paraguai. Ela relata primeiramente a falta de uma cama

para dormir, o que a obrigou a colocar o colchão diretamente no chão. Na segunda

morada, ao se referir ao “barraco” que ela compara a um “galinheiro”, deixa-se

transparecer as angústias vividas quando lhe faltavam as condições dignas pelas

quais primava.

Considerando-se isso, observa-se que a memória de dona Maria Inês se

assemelha a das outras migrantes, que da mesma forma foram criando raízes nos

lugares, com seus objetos, com as angústias e sonhos vividos. Como afirma Nora: “A

memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”.182

Outro fator relevante na entrevista é o pensamento que dona Maria Inês teve

antes de dormir, que demonstrava, simultaneamente, medo e alívio diante da

imprevisibilidade da vida. O medo que se registra é em relação ao futuro e sobre os

possíveis caminhos a trilhar. E o alívio surge por estar entre os seus “agora sim,

estamos juntos com os brasileiros”. Esse fator dialoga com o que Bhabha afirma em

relação às mulheres e suas falas:

As mulheres falam em línguas a partir do “entre-lugar entre uma e outra”, que é um espaço da comunidade. Elas exploram uma realidade “interpessoal”: uma realidade social que aparece dentro de uma imagem poética, como entre

181 TEDESCHI, 2012, p. 17. 182 NORA, 1984, p. 09.

84

parênteses – esteticamente distanciada, contida e, todavia, historicamente emoldurada.183

Diante do novo as mulheres migrantes enfrentam e constroem outra realidade,

calcada algumas vezes no medo, num outro lugar. Questionam-se em seu imaginário

sobre o devir e o emolduram, distanciadamente, com base nos sonhos que a fizeram

cruzar as fronteiras e se instalar no Paraguai.

Estas narrativas demonstram que existe outra história sobre o processo

migratório ao Paraguai, contada e descrita por mulheres. Sendo assim, buscou-se

apresentar neste capítulo os motivos pelos quais as pessoas migram, bem como os

desencadeamentos que levaram um significativo número de mulheres e homens a se

deslocarem para o Paraguai a partir de meados do século XX. Foi exposta, ainda, a

formação de um novo/a sujeito o/a brasiguaio/a, tendo como objetivo primordial o

protagonismo das mulheres em processos migratórios. No próximo capítulo, abordar-

se-á a vida cotidiana, as desilusões, os sonhos não realizados do “lado de lá”.

183 BHABHA, 2013, p. 44.

85

CAPÍTULO II

LUTAS, CONQUISTAS, TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS: A VIDA DE

MULHERES BRASILEIRAS NO PARAGUAI

Toda mulher

tem no seu íntimo uma magia própria

de fazer acontecer...

Toda mulher traz na alma a força dos

ventos...

A sensibilidade de uma flor

que sente, pressente, intui...

Se abre no momento certo

e exale seu perfume...

Enfrenta tormentas...

Apaixonada

Não abandona o que acredita por nada.

K. Butterfly.

86

2.1 Introdução

Este capítulo apresenta, inicialmente, uma análise das relações construídas

entre os brasileiros/as e os paraguaios/as. Elucidam-se a manutenção dos costumes

brasileiros e também a bagagem cultural alicerçada em estereótipos impresumíveis

sobre os habitantes nativos do Paraguai, situação que acarretou uma estigmatização

entre os sujeitos.

Posteriormente, são apresentadas a vida, o cotidiano, as lutas e conquistas

das mulheres brasiguaias naquele país, ponderando-se sobre os protagonismos

femininos aos quais, costumeiramente, não foram dados a devida atenção, em virtude

da história dos/as brasileiros/as que migraram para o Paraguai ter se concentrado

majoritariamente nas disputas masculinas por espaço. Considerando tal fato, o que

se busca fazer aqui é justamente o contrário.

As violências sofridas pelas mulheres migrantes também se fazem presente

nas páginas seguintes, onde afunilam-se as discussões para a importância da religião

e da construção de igrejas para as mulheres que migram, o que permite mostrar a

dominação simbólica que a religiosidade tem sobre o ideário feminino.

No último momento deste capítulo será abordado o retorno ao Brasil e o

porquê deste, com ênfase à reflexão acerca da nova situação de desterro daqueles/as

que viam no Paraguai a concretização do sonho de ter um pedaço de terra para

produzir.

2.2 Representações sobre os paraguaios/as no imaginário das mulheres brasileiras

Historicamente os seres humanos se dividiram em grupos sociais com

características semelhantes. No entanto, com frequência muito maior, eram as

distinções – e não as semelhanças – que prevaleciam. Entre brasileiros/as e

paraguaias/os as dessemelhanças foram construídas ao longo do tempo a partir de

conflitos históricos184, que, mesmo findados, deixaram marcas no ideário das pessoas.

184 Um exemplo desses conflitos é a guerra da Tríplice aliança que ocorreu de 1864 a 1870. Para mais informações pode-se consultar a obra de SQUINELO, Ana Paula. 150 anos após – A Guerra do Paraguai: Entreolhares do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Campo Grande, MS. Ed. UFMS, 2016.

87

Um exemplo dessas marcas são as impressões, os medos e preconceitos que

se construíram entre as duas nações, fazendo com que, de modo recorrente, as

mulheres e os homens que migraram para o Paraguai buscassem comprar terras e se

instalarem em lugares onde já haviam outros brasileiros/as, formando-se as

chamadas “colônias de brasileiros/as”. Era comum nesses casos não se ter contato,

ou sequer conhecer paraguaios, como nos relata dona Maria Leni:

Na região que a gente foi morar só tinha brasileiro, era uma terra que os paraguaios não moravam, porque o Paraguai naquela época não tinha tanta gente, daí eles ficavam lá pro lado de Assunção que já era mais moderno, depois mais tarde foi que a gente foi se encontrando com eles.185

Transparece-se a ideia de que morar numa região onde a presença de

brasileiros/as é comum apresenta uma noção de segurança aos chegados, os quais,

assim, poderiam manter suas estruturas culturais, sem se preocuparem com o “outro”,

com o “diferente”. Embora reconhecendo que não estavam em seu país de origem,

os/as migrantes instalaram-se e viviam como se o estivessem, mantendo ainda um

receio do contato com paraguaio/as. Situação notável no relato de dona Ana: “Nós

convivemos bem com eles, eles já eram civilizados, já conseguiam falar português,

eram quase que nem brasileiros já”.186

Percebe-se nessa narrativa a carga de estranhamento presente entre os

brasileiros/as e paraguaios/as, carga essa, decorrente da construção de estereótipos

com relação ao “outro”. A posição na qual os que chegam se colocam em relação aos

nativos daquele país vem ao encontro do conceito de diáspora de Stuart Hall:

O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um “Outro” e de uma posição rígida entre o de dentro e o de fora.187

A diferença entre os/as que “chegam” e os/as que “recebem” se estabelece

baseada numa preconcepção de inferioridade. Ao dizer que “eles já eram civilizados”,

dona Ana enfatiza que os/as paraguaios/as eram “quase que nem brasileiros”, o que

cria a pressuposição de que para ser civilizado era necessário que o/a paraguaio/a se

assemelhasse ao/a brasileiro/a. Essa carga cultural está fundamentada nos costumes

185 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 186 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 187 HALL, 2009, p. 32.

88

que as sociedades calcam no indivíduo, reafirmando uma superioridade em relação

ao que está de “fora”. Reforça-se, dessa forma, o que Hall chama de concepção

binária de diferença. Concomitante com esse fato vem a noção essencialista de

identidade, que de acordo com Woodwart: “Com frequência a identidade envolve

reivindicações essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um

determinado grupo identitário, nas quais a identidade é vista como fixa e imutável”.188

As trajetórias de mulheres e homens no Paraguai começaram a ser traçadas

com base na diferença cultural entre os habitantes, como nos conta dona Maria Inês,

quando questionada sobre a presença de paraguaios na região onde foram morar:

Tinha bastante Paraguaio também. Só que nós, graças a Deus, nunca tivemos problema com ninguém. Só não tinha, já digo assim, amizade para se dar, porque a gente não sabia, não entendia a língua deles, mas também não tinha problema né.189

Diferentemente de dona Ana e de Dona Maria Leni, a dona Maria Inês já relata

uma coexistência mais proximal com os/as paraguaios/as, mas mesmo assim destaca

não ter formado nenhum vínculo de amizade e coloca como empecilho para tal a

dificuldade de comunicação, consequência de não se falar a mesma língua. Esse fato

pode ser entendido a partir do conceito de cultura nacional de Stuart Hall: “A formação

de uma cultura nacional contribui para criar padrões de alfabetização universais,

generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em

toda nação”.190

Desta forma, os/as brasileiros/as chegam ao Paraguai e não constroem laços

com os/as paraguaios/as. Eles permanecem arraigados a seu imaginário, aos seus

hábitos e costumes nacionais. As culturas distintas prevalecem e os relacionamentos

não engrenam, pois como afirma Darnton: “Operamos dentro de coações culturais,

exatamente como todos partilhamos convenções de fala”.191

Assim, brasileiros/as e paraguaios/as inicialmente mantêm seus padrões

culturais coagidos, não alimentando muito interesse por criar relações uns com os

outros. Essa situação gerada entre esses sujeitos pode ser analisada à luz das

representações, discutida por Chartier:

188 WOODWART, 2014, p. 13 189 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 190 HALL, 2015, p. 30. 191 DARNTON, 1986, p. 17.

89

Representar, portanto, é fazer conhecer as coisas imediatamente pela “pintura de um objeto”, “pelas palavras e gestos”, “por algumas figuras, por algumas marcas” – tais como os enigmas, os emblemas, as fábulas, as alegorias.192

A representação que os/as brasileiros/as que chegam ao Paraguai trazem em

seu imaginário, com relação aos sujeitos oriundos daquele país, os fizeram criar um

distanciamento entre ambos, o que se reflete, de maneira subjetiva, nos relatos das

mulheres, quem asselam para o fato dos/as paraguaios/as não serem “civilizados”

como os brasileiros/as. Dona Fátima, ao narrar sobre os paraguaios, afirma: “No

começo a gente se dava bem com os paraguaios, mas depois eles começaram a

incomodar”.193

Nas narrativas dessas mulheres a convivência com as/os paraguaias/os

aparece como um problema a ser enfrentado. Isso acontece por conta das

construções sociais, ou representações, edificadas ao longo da vida, as quais

baseiam-se em relatos do senso comum, o que acaba por alimentar diferenças e

padrões sociais que se alteram de acordo com cada cultura. Conforme assinala

Darnton: “O senso comum é uma elaboração social da realidade, que varia de cultura

para cultura”.194

É possível notar, portanto, que a bagagem cultural dos/as brasileiros/as que

migraram para o Paraguai foi alicerçada em estereótipos impresumíveis com relação

a aversão às pessoas e à integração aos lugares chegados. Tratam-se, pois, de

estereótipos fundamentados, por vezes, unicamente em representações ideológicas

do que havia do “lado de lá”.

2.3 Lembranças de um lugar: a vida de mulheres brasileiras no Paraguai

O deslocamento de brasileiros/as para o Paraguai aconteceu por diferentes

motivos, e de acordo com as particularidades de cada família. Conforme Baller, a

migração efetivou-se em dois momentos historicamente considerados nos quais os

agricultores/as procuraram terras em alguns pontos específicos do mencionado país:

A intensidade de povoamento da fronteira paraguaia por brasileiros efetivou-se em dois momentos historicamente considerados, um entre os anos de 50

192 CHARTIER, 2010, p. 17. 193 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio-mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som. 194 DARNTON, 1986, p. 39.

90

e 74 e outro entre 75 e 84. No primeiro movimento entrou 35,2%do brasiguaios e foram emigrações de curta distância, principalmente devido às vantagens com relação aos preços das terras e a fertilidade do solo; os colonos procuraram principalmente as terras paraguaias localizadas em Santa Rosa, Narajal, Katuete, General Dias, Gleba 4, Cedralez, Corpus Chisti e La Paloma.195

Ao chegar no Paraguai os grupos familiares se organizavam a partir de suas

especificidades. De maneira geral, num primeiro momento os homens procuravam

trabalho na preparação das terras para a agricultura. As mulheres, por sua vez, se

encarregavam da organização das moradas e dos cuidados para com a casa e os

filhos, dando também os primeiros passos na produção para subsistência, como no

preparo da horta e na criação de animais domésticos para o consumo. Dona Maria

Leni, ao narrar sobre a vida conta:

No começo o Clóvis pegava empreitada de derrubar mato para os outros e eu ficava no barraco com as crianças, primeiro era só eu e a Lucia (cunhada), daí a gente começou a criar umas galinhas e uns porquinhos, a gente ia lavar roupa no rio e já aproveitava pra dar uma passeada com as crianças de canoa a tarde. Mais tarde dai quando a coisa apertou eu também fui pra roça e trabalhei muito.196

As mulheres participaram ativamente na geração de renda para a família,

tanto no Brasil como, posteriormente, no Paraguai. É importante frisar este fator

porquê, de maneira recorrente, as atividades femininas não são reconhecidas. O

trabalho compartilhado frequentemente foi notado como uma simples ajuda. De

acordo com Bruschini e Rosemberg:

Embora a influência feminina fosse combinada à esfera doméstica, o progresso material da família dependia tanto da esposa quanto do marido. A mulher trabalhava em todo tipo de atividade, muitas delas extensões de suas funções domésticas, como criação de animais domésticos, a confecção de roupas etc. Muitas vezes nas famílias mais pobres, o trabalho da mulher significava a diferença entre sua subsistência e a total provação. 197

Partindo desse pressuposto, o trabalho das mulheres, apesar de mostrar-se

essencial para o desenvolvimento econômico da família, ao não ser reconhecido –

fato que ocorre com frequência –, acaba sendo invisibilizado. No Paraguai, as rotinas

femininas se constroem na dupla ou até tripla jornada de trabalho. Ao ser questionada

sobre o dia a dia, dona Ana relata:

195 BALLER, 2014, p. 29. 196 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 197 BRUSCHINI & ROSEMBERG, 1982, p. 10.

91

A gente, era levantar cedo e tirar um leite, fazer um queijo e encaminhar toda a comida, a gente tinha que colocar as panelas, era mandioca com carne de porco cozinhava no fogão e ia pra roça. E a Daiane (filha mais velha), na época tinha uns seis anos pra sete anos, aí ela cuidava o fogo e ainda cuidava do irmão em casa e né, assim, a gente ia pra roça e vinha quase meio dia e fazia esse almoço ligeiro, lavava uma roupa, fazia o que tinha que fazer e voltava de novo até a noitezinha, daí a noite ia as vezes tirar leite com lanterna, assim pra aproveitar o dia na roça né. E foi assim, bastante trabalhado e bastante sofrido.198

Pode-se notar nesta entrevista a rotina árdua de trabalho desempenhada

pelas mulheres. Antes de ir para a roça, dona Ana já realizava três atividades: tirar

leite, fazer queijo e encaminhar o almoço. Quando retornava da roça, ao meio-dia, ela

terminava de organizar o almoço e lavava as roupas, feito isso, voltava para a roça e

a tardezinha ainda tirava leite novamente. De todas essas atividades, as que dona

Ana realizava em casa, de maneira frequente, não eram reconhecidas como trabalho,

uma vez que a sociedade pressupõe que o labor doméstico é uma obrigação da

mulher. Ao mesmo tempo, os serviços desempenhados pelas mulheres na roça não

são vistos como compartilhamento de tarefas e sim como apoio ao cônjuge. Diante

disso Saffioti e Ferrante destacam que: “Ainda que se saiba que a mulher desempenha

papéis importantes na produção e reprodução do sistema capitalista, seu labor

cotidiano era simplesmente ignorado”.199

Historicamente, as mulheres agricultoras desempenharam seus labores, tanto

doméstico como na lavoura. Mas esse fator não foi reconhecido pela sociedade, a

qual continuamente assentou os trabalhos desenvolvidos por elas em segunda

instância, colocando-as subordinadas ao homem, e ocupantes de lugares sociais

desiguais (mesmo quando sua renda era sinal de melhorias para a família). Dona

Maria Inês, ao narrar sobre as tarefas que desempenhava, afirma que o dinheiro da

costura era primordial para se ter acesso a algumas “regalias”:

Ah, eu criava galinha, eu costurava, eu ajudava na roça, tinha mês que eu tirava muito bem nas costuras, porque tinha bastante morador por perto. Minha máquina de costura, então simplesinha né, mas eu ganhava, dava bem pra ajudar compra um negócio, mistura pra comer, desde roupa pra criança, calçado, eu tirava de costura.200

198 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 199 SAFFIOTI & FERRANTE, 1982, p. 112. 200 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som.

92

Nesse relato percebe-se novamente a situação de precariedade de algumas

famílias que migraram no momento em que dona Maria Inês afirma que as costuras

que realizava em sua simples máquina são sinônimos de uma mistura para comer.

Nota-se os protagonismos das mulheres nesse enfrentar das atividades laborais no

Paraguai, buscando juntamente com toda a família o progresso econômico tão

almejado ao migrar. Enfrentando uma sociedade patriarcal que não reconhece o

trabalho e as atividades femininas como provedoras do lar, elas não se abatem e lutam

para melhorar de vida. De acordo com Angelim:

A família, baseada no modelo homem/provedor e mulher Dona-de-casa, reflete assimetria sexual, centralizando todo o poder no homem. A mulher cônjuge, a quem é atribuído o papel de esposa, mãe e responsável pelo trabalho doméstico, ocupa uma posição subordinada nessa relação assimétrica.201

As relações familiares são fundamentadas em assimetrias: enquanto o

homem ocupa um papel de destaque, apaga-se o das mulheres, principalmente em

processos migratórios. Por muito tempo acreditou-se que ao falar dos homens as

mulheres estariam do mesmo modo sendo representadas, por este motivo a migração

tem “rosto” de homem.

Desta forma, é relevante reforçar que a categoria gênero é importante para

entender os processos de migração, uma vez que o seu uso tem causado mudanças

na percepção de sociedade. De acordo com Rago:

Sem incorrer na ilusão de que as mulheres vêm libertar o mundo, acredito que a pluralização possibilitada pela negociação entre os gêneros é fundamental não só para a construção de um novo pacto ético, mas para a própria construção de um ser humano menos fragmentado entre um lado supostamente masculino, ativo e racional e outro feminino, passivo e emocional. A superação da lógica binária contida na proposta de análise relacional do gênero, nessa direção, é fundamental para que se construa um novo olhar aberto as diferenças.202

A superação dessa lógica binária é o marco para a compreensão da história

das mulheres, que se desenvolveu à margem, com seus papéis sendo

recorrentemente invisibilizados à medida que das mulheres migrantes pouco se fala.

As mulheres brasiguaias iam juntamente com os homens trabalhar na

derrubada das matas e faziam, também, a destoca da terra para deixa-la propícia para

201 ANGELIN, 2012, p. 55. 202 RAGO, 1998, p. 93.

93

a agricultura, já que, ao chegaram ao Paraguai, a terra encontrava-se praticamente

coberta de mata, como relata dona Ana:

Eu trabalhava na roça, derrubar mato eu não derrubei, mas amontoar aqueles galhos que ficava, tudo isso a gente fez, plantar, limpar, tudo fazia. E as crianças coitadas ficavam em casa, coitados, mas fazer o que tinham que ficar né, a roça era perto mas eu sempre penso assim que a gente fez eles sofrer bastante e vendo essas crianças de hoje era bem difícil antigamente.203

Na narrativa acima transcrita pode-se perceber a presença de um sentimento

de culpa nessas mulheres, que tão duramente trabalhavam no Paraguai, por terem

que deixar seus filhos em casa ou levá-los juntos para a roça, a fim de exercer as

atividades laborais. Como aponta Oliveira:

O ato de os(as) migrantes lembrarem, narrarem e escreverem suas histórias está iminentemente ligado à memória e às representações que têm do mundo a sua volta. [...] Suas histórias são entendidas pelo viés da memória como fruto de uma experiência coletiva (que abarca também experiências individuais), em que o silêncio e o não dito podem revelar o mundo subterrâneo das relações sociais em que os agentes estão inseridos/as.204

Para as mulheres, deixar os filhos/as para trabalhar é um ato de dor, uma vez

que a sociedade tradicionalmente lhes impõe a noção de que devem ser as guardiãs

primordiais das crianças, as quais devem estar acima de tudo e todos, com a clara

exceção do marido.

Outro relato importante para a reflexão sobre a vida e sobre os sofrimentos

das mulheres que migraram foi o de dona Fátima. Ela se emociona ao lembrar que ao

decidir migrar deixou sua filha de seis meses com a sogra:

Fui para o Paraguai, quando ela estava mamando ainda, por causa das vacinas, por que lá no Paraguai não tinha condições por que lá era difícil né então pra completar as vacinas dela ela ficou, mais foi difícil hein, mas depois ela (sogra) me trouxe a nenê mas dai ela nem me queria mais nem me reconheceu ai teve que ir acostumando de novo, quando eu ia dar de mamá a minha sogra tinha que se esconder por que ela queria ir com a avó dela, se acostumou né.205

Ao narrar as lembranças de migrar sem a filha pequena, um misto de culpa e

tristeza transparece na face e na fala de dona Fátima. Quando o reencontro

aconteceu, a aflição foi ainda maior porque sua filha não mais se lembrava dela, sendo

203 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 204 OLIVEIRA, 2016, p. 92-93. 205 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio-mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som.

94

necessário um período de reconhecimento. Falar sobre o ato de alimentar a filha

também perpassa pelos símbolos da memória que foi sendo construída para as

mulheres como responsáveis primordiais por esta tarefa. Desta forma, a memória de

uma mãe é alicerçada nos padrões sociais de identidade formados pela sociedade,

como aponta Candau: “A memória é a identidade em ação, mas ela pode, ao contrário

ameaçar, perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade”.206 Dessa forma, a

identidade de mãe de dona Fátima é perturbada pela memória de ter deixado sua filha

para trás ao partir para o Paraguai.

Observam-se as diversas lutas enfrentadas pelas mulheres ao mudarem-se

para o solo paraguaio e lá permanecerem. Estas histórias por muito tempo não foram

valorizadas e nem tidas como relevantes no imaginário das pessoas enquanto

participação ativa no processo migratório, tendo em vista que as vozes femininas

sempre foram colocadas à margem da história tradicional. Para Tedeschi: “Enquanto

narrativa, a história constitui-se como tradição e cânone do qual as mulheres não

participaram de modo visível pelos caminhos tradicionais do fazer histórico”.207

Deste modo, as mulheres foram construindo suas histórias e desenvolvendo

suas atividades nos bastidores de um palco criado unicamente para o sexo masculino,

no qual o feminino é sempre caracterizado e determinado como o lado sensível da

humanidade, como aponta Colling:

As reivindicações de igualdade entre os sexos, sempre barrou sob o argumento da natureza feminina. Invoca-se o discurso médico para justificar o papel conferido a mulher na família ou na sociedade. Segundo este discurso, o útero é o órgão de identidade da mulher, que explica as características de sua fisiologia e de uma psicologia vulneráveis.208

As mulheres acabaram sendo descritas e estigmatizadas como

impossibilitadas para desenvolver certas tarefas que habitualmente se chamavam de

“coisas de homem”. E quando elas desenvolvem atividades que são tidas como

“masculinas”, isso não é notado tradicionalmente. Delas só se reconhece o dever

doméstico. As funções sociais das mulheres geralmente são estipuladas pelas

sociedades que limitam e determinam o que elas podem ou não ser.

Obviamente, a história tradicional não reconhece os protagonismos femininos,

e quando os menciona o faz de forma velada. Mas as funções desenvolvidas pelas

206 CANDAU, 2016, p. 18. 207 TEDESCHI, 2009, p. 181. 208 COLLING, 2011, p. 171.

95

mulheres foram extremamente significativas para o desenvolvimento da humanidade.

No caso específico dos/as brasiguaios/as não foi diferente, como fica explicito na

entrevista de dona Maria Celina, quando ela relata suas atividades diárias no

Paraguai:

La no Paraguai eu sempre trabalhei na roça, fazendo de tudo, daí o Tonho trabalhava fora e eu cuidava do nosso sitio daí ele me ajudava de vez enquanto quando podia por que eu que fazia tudo. Eu vendia porco, galinha, eu limpava e vendia pros milicos209 as vezes o Tonho limpava mas enquanto eu limpava dois o Tonho limpava um. Frango, peru, pato eu ia vender de carroça, ficava só eu e os meninos (filhos), o Marcio chegava da escola e me ajudava eu gostava daquele tempo, eu tinha força, dava vontade da fazer as coisas.210

Nota-se nessa fala um processo inverso do usual, pois dona Maria Celina

aponta o seu Antonio como o seu eventual ajudante e ainda enfatiza que ela era mais

ágil ao desempenhar algumas tarefas, posto que dela dependia o desenvolvimento da

economia proveniente do sitio da família. Assim, dona Maria Celina, ao destacar que

também era ela quem saia para vender, reafirma sua posição de poder na economia

doméstica no outro país.

Na história das mulheres o privado e as miudezas se tornam um referencial

de suporte fundamental para a sobrevivência do núcleo familiar, ou seja, o privado na

história de migração é fundamental na manutenção da sobrevivência dessas famílias

brasiguaias.

Nessa conjuntura é importante abordar o conceito de empoderamento para,

assim, compreendermos como as mulheres transformaram, em diferentes níveis, a

realidade na qual viviam, a partir de uma nova forma de perceber o trabalho que

desempenhavam. Segundo Deere e León:

O empoderamento não é um processo linear com um começo bem definido e um final que seja o mesmo para todas as mulheres; é moldado para cada indivíduo ou grupo através de suas vidas, seus contextos e sua história, assim como ocorre de acordo com a posição de subordinação nos níveis pessoal, familiar, comunitário e nos níveis mais elevados.211

O privado, as miudezas, são expressões do empoderamento, este,

fundamental à manutenção da família nos processos migratórios. As estratégias de

poder feminino perpassam vários níveis de resistência, como o tratamento com os

209 Qualquer militar das forças armadas. 210 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som. 211 DEERE & LEÓN, 2002, p. 55.

96

filhos (através do ato de designar tarefas a serem realizadas), bem como com o marido

(de maneira mais branda, no entanto, uma vez que a mulher é colocada,

constantemente, como subordinada a este).

Mencionando novamente a narrativa de dona Maria Celina, ao colocar-se

como responsável primordial pela venda das aves, notam-se as relações de poder

femininas na história. Mas sabe-se que a realidade de muitas mulheres é bem

diferente. Mesmo exercendo diversas atividades, (os afazeres da casa, o cuidado com

os filhos, o manejo da roça, enfim, jornadas sobrecarregadas de trabalho), elas são

descritas e narradas como a sombra de um homem, seja ela do pai ou marido.

Dona Ana relata que quando chegaram ao Paraguai foram economizando e,

aos poucos, comprando algumas cabeças de vaca, e se orgulha em dizer que ela e

suas filhas eram as únicas responsáveis pelo labor com a criação: “Cuidar das vacas,

tirar leite, fazer ração era tudo nós as mulheres, eu que pagava as contas de casa, o

dinheiro do meu marido ia tudo pra lavoura e depois de tirar o leite eu ia pra roça o dia

inteiro ainda”.212

Novamente se destaca o poder das mulheres no desenvolvimento econômico

da família. Nessa entrevista se faz presente a importância que ela atribui ao seu

trabalho e de suas filhas “Tirar leite, fazer ração era tudo nós as mulheres”, colocando-

se também como sujeito do processo migratório e dos trabalhos a partir dos quais

sobreviveram no Paraguai.

Dona Ana também relata que ela sempre comprava os móveis da casa sem a

colaboração do marido. Era com dinheiro do leite e de alguns artesanatos por ela

confeccionados que ia adquirindo suas coisinhas. Ela descreve, pois, o esmero e o

trabalho empenhados, tirando leite no escuro, para comprar uma pia e os armários da

cozinha:

Minha cunhada casou, mas logo ficou viúva e ela tinha comprado uns armários tudo de madeira pra cozinha dela, mas dai com a morte do marido ela não queria mais, queria vender tudo, e eu tinha gostado muito, mas não tinha o dinheiro pra pagar tudo, dai fiz um acordo de pagar ela aos poucos, dai eu ia tirar leite de manhazinha antes de ir pra roça, no escuro ainda com a lanterna, porque eu tinha o compromisso né, tinha que pagar os meus armários. Dai hoje a Elaine (filha) fala que já estão muito velhos e fora da moda, que eu tenho que trocar, mas ela não sabe da batalha que foi pra eu

212 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

97

conseguir, e eles já tem mais de vinte anos e ainda tão bom, os de hoje em dia não duram nada. 213

O valor simbólico dos armários para dona Ana vai além do que algumas

pessoas podem compreender, afinal ela conhece as dificuldades percorridas para

conseguir os móveis. Tedeschi aponta a importância de analisar os relatos femininos

que são permeados de significações:

A memória e a conservação de si próprias emergem nos relatos. Ao ouvir a voz das mulheres nos relatos, revivemos momentos cruciais com os mesmos, observamos conversas, histórias que produziam imagens e narrativas de um tempo passado de extrema importância em suas vidas.214

Dona Ana posa com orgulho para uma foto ao lado do armário, comprado há

tanto tempo atrás, mas que carrega um valor significativo para ela:

213 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 214 TEDESCHI, 2009, p. 180.

98

Foto 7: Dona Ana posa ao lado de seu armário. Fonte: acervo da pesquisadora. 12/03/2018.

Escrever sobre mulheres é ter a oportunidade de ouvir e entender o que por

muito tempo foi ignorado, falar dos/as excluídos/as, falar, como aponta Dourado:

“Sobre os quais pairava um sistemático esquecimento”.215 Assim, as mulheres

brasiguaias vão sendo valorizadas enquanto sujeitos protagonistas de uma história,

quebrando antigos estereótipos de uma visão androcêntrica que as subjugavam.

Como afirma Guardia: “Excluidas, silenciadas, invisibles, las mujeres fueron ignoradas

en el ámbito doméstico y privado; también en el económico, social y cultural. La

mayoría de las veces fueron imaginadas, descritas o relatadas en forma parcial”.216

215 DOURADO, 2005, p. 16. 216 GUARDIA, 2005, p. 13.

99

Ao romper com os silêncios das histórias das mulheres brasiguaias é possível

deparar-se com histórias de vida marcadas pelo sofrimento. Fato que, como afirma

Guardia, não é nem imaginado por uma história tradicional patriarcal. A história

narrada por dona Maria Leni ao relembrar os momentos de privação, trabalho e de

angústias vividos, causados por uma doença que atingiu um de seus filhos, é mais um

exemplo de luta e determinação para sobreviver e alimentar os filhos em um país

estranho:

Um dos meus filhos começou a ficar doente, apareceu um caroço no pescoço dele e foi crescendo e a gente começou a achar estranho, dai pegamos ele e levamos primeiro em Santa Rosa (Paraguai), mas os médicos nem quiseram pôr a mão, aí mandaram ele pra Foz do Iguaçu, ele veio, trouxe o guri pra Foz do Iguaçu, os médicos não quiseram por a mão também, mandaram que ele fosse pra Curitiba. E nós tinha nossa casinha, nossas coisinhas lá, que dava pra viver né, mas era obrigado a curar aquele filho né, daí pegamos e fomos pra casa do meu pai em Santo Antônio porque lá tinha um médico muito bom né, nós achamos que lá o médico iria curar ele né, ai o médico olhou ele e falou: “ Vamos operar isso aí, aí ele vai ficar bem”, aí o médico operou e eu fiquei lá internada com ele e o Clóvis (marido) foi pro Paraguai porque tinha que trabalhar pra pagar nossas despesas né, eu fiquei lá internada com ele, com cinco dias que deu alta ele já estava voltando com aqueles carocinhos de novo, daí eu perguntei pro medico que que ele via né, daí o médico me falou: “ Isso aí é íngua, mas igual se for a mesma doença dentro de um ano não pode ser mexido”. Daí ele deu alta, melhorou né, daí o Clóvis voltou pra lá de novo pra ver como é que ele estava pra nós voltar embora, daí viemos embora pro Paraguai de volta, trabalhar. Eu deixava as crianças tudo em casa com a Veronica (filha mais velha) e ia pra roça. Trabalhava, fazia empreitada, fazia de tudo, só não derrubei mato, mas roçar, eu rocei. Daí via aqueles caroços cada vez crescendo mais, crescendo mais, nós querendo fazer um ano e voltamos no medico de novo em Santo Antônio, aí chegando lá o médico falou: “Eu não posso mais pôr a mão”, mandou pra Beltrão, daí o Clovis foi à Beltrão né. Chegando lá em Beltrão, os médicos queriam tirar um pedacinho daquele caroço para mandar pra Curitiba, pra ver o que que era, aí o Clovis falou né: “Bom, se vamos tirar o caroço aqui pra mandar pra Curitiba, não seria melhor vocês me encaminharem pra Curitiba?”, daí os médicos encaminharam ele pra Curitiba, e ele foi e eu fiquei na casa do pai. Fazia um mês que eu estava na casa do pai, ele estava em Curitiba, ele veio de volta, daí nós viemos pra casa, mas dentro de 15 dias tinha que voltar com o guri lá de novo, daí ele voltou e eu fiquei no Paraguai, trabalhando lá, eu plantava feijão, eu plantava milho, plantava arroz, plantava hortelã, trabalhava de pião. Fui tocando minha vida e o Clóvis só na estrada com ele, isso foi, uns cinco anos foi assim, ele ficava mais em Curitiba do que em casa né e eu com as crianças lá trabalhando. Nossa eu fazia qualquer serviço sabe, pegava empreitada pra colher e rastelar hortelã, pegava bicho com armadilhas no mato, pra vender e para comer, ia carpir por dia para os vizinhos, não tinha medo de serviço, fazia de tudo para salvar a vida do meu filho, era tudo o que eu queria, mas infelizmente Deus quis levar ele depois de cinco anos e meio de luta, foi cinco anos nessa luta de ser homem e mulher, pai e mãe dentro de casa, dai ele foi desenganado pelos médicos e foi morrer em casa com a família. E hoje o meu sofrimento é ter perdido o túmulo dele, depois que ele morreu eu não consegui mais ficar naquele lugar, a gente se mudou e quando eu fui visitar o cemitério depois de algum tempo, tinham mudado o jeito do cemitério, o portão estava em outro lugar e já tinha muro e como a gente não tinha dinheiro na época pra fazer tudo de material

100

tinha ficado na terra com uma cruz de madeira, o Clóvis até colocou uma pedra em cima, mais dai sumiu tudo, eu acho que pelos outros túmulos que são de antes dele que o muro passou em cima dele. Mas acho que Deus e ele perdoam a gente porque a gente não tinha como fazer nada.217

A narrativa de dona Maria Leni é carregada de momentos marcantes de

trabalho, dor e superação numa busca desenfreada por salvar o filho. Primeiro ela

caminha pelos preâmbulos que levaram o marido a ficar cinco anos e meio num

hospital em Curitiba com o filho doente, enquanto ela ficou no Paraguai com seus

outros filhos. Aparecem, aqui, as dificuldades enfrentadas pelos/as migrantes que, por

não terem acesso a uma assistência médica próxima, tiveram que se adaptar às idas

e vindas entre Brasil e Paraguai em busca de atendimentos de saúde.

Nesse ficar para trabalhar e para organizar as finanças com o intuito de

alimentar os filhos, manter o marido no hospital e de cuidar do filho doente, dona Maria

Leni se debruça sobre uma rotina de trabalhos incessantes, esquecendo-se do

cuidado consigo mesma, uma vez que em seu relato ela nunca se coloca como

prioridade. Esse fato nos remete ao que Rago elucida ao afirmar que as mulheres

foram educadas e ensinadas para que cuidassem dos outros: “As mulheres foram

tacitamente convidadas a se esquecerem de si mesmas, a renunciar ao exame da

própria existência, e, acima de tudo, foram estimuladas a cuidar do outro em primeiro

lugar”.218

Dona Maria Leni esquece-se de si para trabalhar e sustentar a família.

Desempenhando o papel de “pai e mãe” em casa, desenvolvia trabalhos que

recorrentemente são vistos como masculinos, como a caça de animais silvestres e

empreitadas para roçar mato. Orgulha-se de ter trabalhado, por ter feito tudo que era

possível para salvar o filho, mas ainda não se conforma por não ter logrado êxito em

mantê-lo vivo. E ainda carrega o sentimento de culpa por ter perdido o lugar do túmulo.

Situação esta, que pode ser caracterizada por um “sofrimento indizível”219.

Fica nítido como dona Maria Leni descreve um momento muito difícil,

travestido de significações. Ela aborda o quão complicado foi ficar longe do filho e do

marido, ter que desempenhar tarefas árduas e jornadas extenuantes de trabalho para

conseguir dinheiro para manter a família. Ela aborda de maneira muito superficial a

217 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som. 218 RAGO, 2013, p. 64. 219 Terminologia utilizada por Gagnebin (2004) quando trata da crueldade dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.

101

dor sentida nos momentos de angústia. Esse sofrimento do distanciamento, seguido

pela aflição com a morte do filho, são silenciados. Ela fala dos fatos, mas o sentimento

não é abordado.

Isso é caracterizado pela memória traumática220, na qual as pessoas de

maneira recorrente silenciam momentos de dor. Escolhem não falar deles, como

ferramenta para driblá-los e seguir a vida. Como aponta Tomasi: “As lembranças

silenciadas e as omissões das experiências vividas por essas pessoas acabam sendo,

em muitas ocasiões, as soluções para tentar seguir uma vida sem culpa e

ressentimento ou sem medo e sofrimento”.221

A vida das mulheres brasiguaias é perpassada por situações dolorosas. Seu

cotidiano reflete-se em conceitos do feminino estipulados socialmente, os quais ditam

como a mulher deve se comportar, e se fundem em imagens presas a representações

sociais do que podem ou não fazer. Quando dona Luzia narra sobre a ida ao Paraguai

ela relata as situações complexas vividas pela mãe, as quais foram reflexos de

decisões mal tomadas pelo pai:

Aí quando nós mudamos pra lá, meu pai também já não saia mais de casa, porque o armazém era longe, era 7 km pra chegar num bolichinho (pequeno mercado) e só minha mãe que andava pra ir buscar, aí a minha mãe trazia pinga pra ele, mas era assim, ia lá, fazia a comprinha dela e trazia uma garrafa de pinga, e essa aí o pai tomava a semana inteira. Aí graças a Deus não deu mais aquela loucura nele, porque ele ficava louco mesmo, queria sumir, queria agredir, ficava agressivo e atropelava até a gente que era criança né. Meu pai dai já não trabalhava mais, só os filhos né, porque tinha, a família era grande, meu pai e minha mãe, é pai de 20 filhos

Depois meu pai, não sei o que que deu lá nele, um paraguaio lá, ele era... Sei lá, começou a iludir muito meu pai, e meu pai saiu pra cidade e na cidade sem minha mãe saber ele iludiu meu pai e meu pai caiu na bobeira dele, de vender o lote sem a mãe saber, aí meu pai lá tinha uns 20, 22 hectare de terra, tinha gado, depois esse homem falou assim: “Atilho eu te dou tanto no lote”, depois o pai vai e: “Toma” , assim né, sem a mãe saber, aí foi aonde derrubou a mãe outra vez, mas a mãe, graças a Deus não desistiu, tornou pegar um restinho de gado que tinha e comprou outra chacrinha mais sobre a ruta (perto do asfalto) porque era muito difícil, pra sair nós morava lá no Cerro Memby colônia brasileira, lá naquele fundão, canhatão que era o lote do meu pai. Era difícil, se chovia, não entrava e não saía de lá e aí ficamos lá

220 Tomasi entende a memória traumática como sendo: “provocada por diversas razões, de modo que uma pessoa ou mesmo um grupo podem acabar silenciando e esquecendo as lembranças de experiências vivenciadas. Além desses não ditos descritos anteriormente, mais um aspecto que se deve destacar da memória traumática é o silêncio sobre si. Diferente do esquecimento, ele é um trabalho de gestão da memória, podendo ser uma condição necessária para manter uma comunicação com o meio ambiente” (TOMASI, 2012, p. 06). 221 TOMASI, 2012, p. 08.

102

até depois, eles mudou ali perto da ruta, ficava mais perto, já tinha passado o asfalto, eles comprou uma chacrinha ali.222

Esta narrativa apresenta situações de luta vividas pela mãe de dona Luzia,

quem esforçava-se para que seu marido deixasse o vício da bebida, tentando evitar,

assim, situações de violência dentro de casa “ele ficava louco mesmo, queria sumir,

queria agredir, ficava agressivo”. Ela assume uma posição de poder e de trabalho,

dobrando sua jornada de atividades, com a responsabilidade, além de tudo, de cuidar

da saúde do marido, regulando seus vícios para proteger a si própria e aos filhos.

Sair dessa situação de dominação e sofrimento era impensável para as

mulheres, uma vez que o casamento deveria seguir até o fim da vida, como pregado

nos discursos religiosos. Independentemente das situações de espoliações vividas

por elas dentro de um relacionamento, a elas era ensinado que isso fazia parte da

natureza feminina e que deveriam ser fortes, afinal era para isso que “serviam” as

mulheres, como apontado por Del Priore:

A Igreja Católica explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher dentro de casa, incentivando a última a ser exemplarmente submissa. A relação de poder já implícita na escravidão se reproduzia nas relações mais intimas de marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com sexo, dando-lhes filhos que assegurassem sua descendência e servindo como modelo para a sociedade com que sonhava a igreja.223

Torna-se clara, assim, a permanência de um discurso, presente desde a

época do Brasil Colônia, no ideário social até a atualidade. Desta forma, além de ter

que se sujeitar a relações violentas com o marido, a mãe de dona Luzia, a dona Rita,

trabalha junto com os filhos para manter a família unida e com situações mínimas de

sobrevivência. Mas todo esse trabalho não é reconhecido pelo marido, que, sem

pensar e consultar sua esposa, decide vender as terras que eram fruto do trabalho

dos filhos e de dona Rita, e as quais serviam de sustento para todos.

Diante de uma situação de desterro, ela não se deixa abater “tornou pegar um

restinho de gado que tinha e comprou outra chacrinha”. Vê-se que ela consegue se

desenvolver autonomamente dentro do relacionamento, driblando com frequência as

falhas do marido com relação à busca pela sobrevivência e pela melhoria econômica

222 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 18/05/2017. 55 min. (aprox.), som. 223 DEL PRIORE, 2014, p. 13.

103

da família. Bassanezi destaca que a vida de mulheres migrantes está pautada em

perdas incontáveis que nem sempre são recompensadas com o tempo, fenômeno

este, recorrente na vida de grande parte do feminino migrante:

Independentemente dos contextos de origem e de destino, do momento da partida ou da chegada, a vida da mulher migrante, pelo menos nos primeiros tempos no país de adoção, é sempre muito difícil. Envolve muito trabalho, inúmeras perdas, e nem sempre traz compensações. Algumas das vivências relacionadas a migração chegam a ser comuns a todas as mulheres, outras são específicas a grupos e indivíduos; várias permanecem no decorrer do tempo, outras com ele se transformam ou desaparecem.224

As situações de violências e de dissabores vividos por dona Rita se

perpetuaram na vida de sua filha, a dona Luzia, sendo agravada após a sua morte:

Quando você tem mãe você não sabe a falta que vai fazer né, amanhã ou depois você não sabe, porque a minha vida mudou muito, muito, depois que a mãe morreu, porque antes da mãe morrer, nossa, o marido era bonzinho, não fazia nada errado, tratava a gente tudo bem, e depois aí já foi mudando tudo né, foi mudando tudo, sempre ele ficava estranho, sempre diferente, e foi indo, foi indo, os filhos foi crescendo. Eu nunca, pra falar a verdade, eu nunca, fui apenas, eu vivia em casa porque eu tinha meus filhos né, e eu tinha que assumir minha responsabilidade de mãe dos meus filhos pra não abandonar, mas depois, eu não era uma dona que tinha uma liberdade de falar “hoje eu vou sair de casa”. Eu não saía, eu não saía de casa, nunca tive nada, meu marido nunca me deu nada mesmo, sempre foi ali meio em cativeiro ali né. Não tinha liberdade pra nada, só a minha liberdade era cuidar os filhos. Eu nunca tive nada no meu nome, foi indo, ele foi ficando, não brigava, mas também não me dava liberdade de nada, então eu vivia amarrada né. Eu, nem documento eu tinha, porque o pai tirou o documento da gente quando foi pra gente entrar no Paraguai, mas nós era tudo de menor, então, com dez anos já não valia mais aquele documento, e tinha que tirar de novo, e ele não deixava eu sair nem pra tirar um documento, se eu precisava sair com uma criança, eu tinha meu filho, o segundo filho meu teve muito doente, se eu saía, eu tinha que sair acompanhada né, porque eu não podia nem viajar sozinha. Eu não tinha, não podia sair, depois tirei até meu título de eleitor, mas não podia votar porque não podia sair de casa. Então eu fiquei uma dona de casa neutra, só prestava pra trabalhar. Aí foi indo, foi indo, até que depois graças a Deus, dei conta do recado, formei meus filhos, tudo já tão, não são casados, mas tudo acompanhado graças a Deus. E daí eu falei, igual assim eu nunca saía, aí ele deu de ficar agressivo ainda né, porque bater, ele não batia, só com ofensa, já bastava pra mim né, já bastava, aí eu fui passando mal com aquilo.225

Nesta entrevista aparecem os múltiplos tipos de violência sofridos por dona

Luzia, frutos da transformação do relacionamento de gênero logo após a morte da

mãe, que no imaginário dela era o escudo de proteção com relação ao marido. A

dominação do marido é perceptível e repressora, e representada, principalmente, pela

224 BASSANEZI, 2013, p. 175. 225 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 18/05/2017. 55 min. (aprox.), som.

104

proibição de que ela tenha os documentos pessoais, que servem como símbolo de

liberdade, de ir e vir sem precisar da escolta de uma terceira pessoa.

Dona Luzia, como seu relato coloca, é vista como objeto, como assujeitada

ao marido e às relações patriarcais de poder que incutem nela a submissão.

Posicionamentos individuais, frutos de uma educação social resultante dos costumes

patriarcais, como aponta Beauvoir:

O casamento incita o homem a um imperialismo caprichoso; a tentação de dominar é a mais universal, a mais irresistível que existe; entregar o filho a mãe, entregar a mulher ao marido é cultivar a tirania na terra; muitas vezes não basta ao esposo ser aprovado, admirado, aconselhar, guiar: ele ordena, representa o papel do soberano. Todos os rancores acumulados em sua infância, durante sua vida, acumulados cotidianamente entre os outros homens cuja existência o freia e fere, ele descarrega em casa, acenando para a mulher com sua autoridade; mima a violência, a força e a intransigência: dá ordens com voz severa, ou grita, ou bate na mesa; essa comédia é para a mulher uma realidade cotidiana. Ele se acha tão convencido de seus direitos que a menor autonomia conservada pela mulher lhe parece uma rebeldia; gostaria de impedi-la de respirar sem ele.226

A liberdade de dona Luzia é limitada pelo marido, ela não pode ter

documentos e não tem permissão para sair de casa. Só pode realizar atividades que

estejam de acordo com as vontades do marido, as quais, conforme seu relato, se

limitavam ao trabalho. Como ela destaca “era uma dona de casa neutra, só prestava

para trabalhar”. Observa-se que ela tinha vontade de expor sua opinião e de usufruir

dos frutos do seu labor, o que, entretanto, lhe era restrito pelos desejos e ordens do

lado masculino conservador do relacionamento.

Novamente percebe-se que dona Luzia, assim como a mãe, dona Rita, não

consegue se libertar do relacionamento abusivo, baseado em responsabilidades

femininas fundamentadas socialmente e perceptíveis quando afirma: “eu vivia em

casa porque eu tinha meus filhos né, e eu tinha que assumir minha responsabilidade

de mãe dos meus filhos”. Nesse sentido, Silva pontua como o condicionamento e as

subordinações das mulheres são definidos:

Elas são definidas pela função de reprodutora natural ligada à reprodução biológica. Daí a importância que assume o trabalho doméstico. A fusão desses dois papéis é tão íntima que é considerada natural e a aceitação da naturalidade dos processos ocorre também dentro da família. É no interior da família que é construído o destino de mulher. [...] as dimensões das relações

226 BEAUVOIR, 2016, p. 250.

105

patriarcais transcendem a esfera familiar. Assim sendo, o destino de gênero é moldado tanto pela socialização quanto pela experiência de vida.227

As mulheres mantêm-se em relacionamentos fundamentados em dissabores

e sofrimentos para terminarem de criar os filhos, cumprindo assim com uma das

funções primordiais destacadas pela sociedade com relação à mulher (ter filhos e

cuidá-los). Outro ponto destacado por dona Luzia acerca do relacionamento abusivo

por parte do marido era a falta de atenção dele com relação às prioridades e aos

confortos que poderiam ter dentro de casa. Mesmo quando ela apresentava

problemas de saúde ele se negava a comprar alguns eletrodomésticos que facilitariam

a vida dela:

Não posso mais trabalhar, então eu falava pra ele: “Compra as coisas pra mim, eu não aguento, não tenho nem um fogão a gás pra mim cozinhar, eu quero ter um fogão a gás pra mim, eu não aguento mais rachar lenha eu falei, e ele: “Não, porque tem que pagar conta, porque não sei o que”. [...] e enquanto isso ele tinha caminhão, trator, caminhoneta e essas coisas.228

O conforto e o bem-estar da esposa não eram a prioridade do marido. Ele

vivia numa situação de facilitação das atividades laborais, contando com instrumentos

tecnológicos para auxiliá-lo, enquanto dona Luzia, mesmo doente, deveria

permanecer com seu fogão a lenha e com as dificuldades de manuseio que ele

acarretava. Fundamentalmente, se acredita que as atividades realizadas pelas

mulheres são menos trabalhosas e pesadas, já que elas “só” têm que cuidar da casa,

dos filhos e “ajudar” na roça. Desta forma, o trabalho das mulheres carece de um

reconhecimento efetivo. De acordo com Saffioti e Ferrante:

[...] a maioria das famílias rurais necessita, para subsistir, da colaboração feminina não apenas nos serviços domésticos, mas também no trabalho fora do lar, garantidor de um percentual de renda mínima para assegurar a produção e reprodução da força de trabalho dos elementos rurais.229

Pode-se, assim, perceber que as memórias das mulheres brasiguaias são

marcadas por momentos de tristeza e lutas diárias para a manutenção de uma vida

digna, garantido a alimentação e a moradia da família. Por outro lado, apesar da

predominância das recordações de momentos sofridos em suas narrativas, algumas

vezes elas viveram momentos de conquistas, alegrias e felicidade. E num país

227 SILVA, 2010, p. 12. 228 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 18/05/2017. 55 min. (aprox.), som. 229 SAFFIOTI & FERRANTE, 1982, p. 119.

106

diferente, o ponto de encontro, de mobilizações e trocas de experiências estava nas

igrejas. As mulheres tiveram uma função extremamente importante nesse processo

de consolidação das comunidades religiosas, já que em alguns casos elas foram as

precursoras dessas obras.

2.4 “Naquele sertão as nossas crianças estavam crescendo sem religião”: o feminino na formação de comunidades religiosas no Paraguai

As mulheres e a religião sempre tiveram um acercamento significativo, uma

vez que frequentar a igreja e seguir os seus preceitos eram como uma receita a ser

seguida se estas quisessem ser respeitadas socialmente. A conduta feminina era

associada à mãe de Cristo, à qual todas deveriam se parecer. Como pontua Del

Priore:

Pobre ou rica, a mulher possuía, porém, um papel: fazer o trabalho de base para todo o edifício familiar – educar os filhos segundo os preceitos cristãos, ensinar-lhes as primeiras letras e atividades, cuidar do sustento e da saúde física e espiritual deles, obedecer e ajudar o marido. Ser enfim uma “santa mãezinha”. Se não o fizesse, seria confundida com um “diabo doméstico”. Afinal, sermões difundiam a ideia de que a mulher podia ser perigosa, mentirosa e falsa como uma serpente. Pois ela não havia conversado com uma no paraíso? O modelo ideal era Nossa Senhora. Modelo de pudor, severidade e castidade.230

Elas deveriam seguir um padrão estipulado pela igreja. Suas vidas deveriam

ser orientadas de maneira casta e submissa, e o objetivo principal era o casamento,

baseado no cuidado do marido e dos filhos. Todos esses preceitos eram

fundamentados na Bíblia, livro soberano para os religiosos e o qual exercia um poder

significativo sobre elas. Como destaca Silva:

Muitas são as passagens bíblicas que afirmam a submissão da mulher ao homem e a Deus. Em virtude do pecado de Eva, a mulher é considerada pela religião judaico-cristã desobediente e portadora de todos os males que povoam o mundo, sendo culpada pela desobediência a Deus. Essa concepção difunde a ideia de sofrimento e doação da própria vida para conseguir a salvação do pecado original, cometido por Eva.231

Assim, a religião povoa o imaginário feminino, estabelecendo como elas

devem ser e como devem educar os filhos. Dessa forma, as mulheres brasiguaias

sentem-se incomodadas ao chegarem ao Paraguai, que é quando se dão conta de

230 DEL PRIORE, 2014, p.12. 231 SILVA, 2010, p. 08.

107

que os filhos não frequentariam a catequese e tampouco poderiam participar de

celebrações, devido ao fato de que as igrejas eram escassas e as que existiam

ficavam a léguas de distância. Como nos relata Maria Leni:

Nos finais de semana os homens iam caçar nós ficávamos em casa com as crianças, perto do meu barraco e da minha cunhada moravam mais algumas mulheres brasileiras, paraguaio a gente nem ouvia falar que tinha por ali, daí nós sabíamos que mais pra baixo bem longinho tinha uma família de brasileiros/as com vários filhos casados que tinham comprado terras por ali, então eu e a minha cunhada e as vizinhas decidimos ir lá visitar, conhecer as pessoas, era uma solidão naquele mundão de meu Deus, daí chegamos lá e começamos a conversar, todo mundo muito alegre e de bem, daí surgiu uma preocupação nossa, das mulheres, que naquele sertão as nossas crianças estavam crescendo sem religião, foi um susto sabe, porque a gente era cristão, mas nossos filhos nem sabiam direito o que era uma igreja, ou um missa, daí nós pensamos semana que vem não vamos deixar os homens irem caçar vamos nos reunir pra rezar um terço todo mundo junto primeiro, daí se eles quiserem ir depois que vão, quando eles chegaram em casa e nós contamos eles ficaram de acordo que ia rezar, pensa que juntou gente, rezamos de baixo de uma arvore, era um monte de criança. Naquela mesma semana o Clóvis (marido) foi para Santa Rosa com mais dois vizinhos falar com o Padre, e daí já voltaram com os folhetos pra fazer o culto e com a data da missa marcada. A primeira missa foi rezada debaixo da árvore, nós levamos lençóis pra fazer o confessionário, uma mesa e duas cadeiras para o padre poder fazer a celebração. Foi uma alegria muito grande saber que as crianças iam ter uma religião. Ali debaixo daquela árvore foi celebrado batizado, casamento e teve muita festa.

Depois disso os homens se juntaram e decidiram construir um salão paroquial, para servir de igreja e também ser um lugar pras festas da comunidade, o Clovis ajudou a fazer o primeiro buraco para fincar a primeira estaca e só parou quando foi colocada a última tabuinha no telhado.

É muito bom saber que hoje lá onde nós começamos a rezar o terço há muito tempo atrás, hoje tem uma igreja.232

Na narrativa de dona Maria Leni se fazem presentes alguns costumes sociais

que revelam as diferenças de gênero dentro das famílias. Quando ela aponta que nos

domingos os maridos saem para caçar, a disparidade se faz presente, pois os homens

saem de casa para uma atividade de lazer com os amigos enquanto as mulheres ficam

responsáveis pelo cuidado dos filhos e da casa. Posição socialmente construída que

coloca a mulher em situação de submissão, sem muitos direitos. Assim, algumas

vezes as mulheres nem percebem que se encontram inseridas em situações de

inferioridade no relacionamento, em virtude dos costumes do patriarcado serem

naturalizados e percebidos como corretos. Como aponta Angelim:

232 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 45 min. (aprox.), som.

108

[...] ainda estavam, incutidas na mente das pessoas ideias antigas que entendiam que a mulher como figura que nasce para ser dona de casa, esposa e sobretudo, mãe. Uma mulher dedicada a família e as tarefas domésticas. Assim era extremamente necessário que a mulher se esforçasse para manter a família em estado de harmonia, bem vista socialmente, e deixasse o marido satisfeito.233

Subjetivamente, pensando em manter a família em estado de harmonia

através do respeito às normas da igreja, as brasiguaias se sentem profundamente

preocupadas com relação à formação religiosa dos filhos. Nesse sentido, a posição

assumida por dona Maria Leni e pelas outras mulheres da comunidade demonstra a

importância das iniciativas femininas, que costumeiramente são silenciadas ou

esquecidas. As decisões significativas, quando tomadas por mulheres, não são,

entretanto, reconhecidas pela sociedade, pairando sobre elas a invisibilidade.

Conforme destaca Perrot: “São invisíveis. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o

silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas”.234

Outro ponto importante apresentado na entrevista é a coragem das mulheres

que decidem passear num domingo à tarde em regiões inóspitas e cercadas por mata

fechada. Para que os filhos tivessem acesso a uma cristianização, as brasiguaias

enfrentaram a estrada e impuseram sua vontade aos homens, imposição sentida

quando dona Maria Leni destaca: “semana que vem não vamos deixar os homens

irem caçar vamos nos reunir pra rezar um terço todo mundo junto primeiro, daí se eles

quiserem ir depois que vão”.

As mulheres desenvolveram autonomamente a iniciação do que

posteriormente se transformou numa igreja. Dona Maria Leni relata orgulhosa a

participação do marido do início ao fim da obra “O Clovis ajudou a fazer o primeiro

buraco para fincar a primeira estaca e só parou quando foi colocada a última tabuinha

no telhado”. Esse exemplo demonstra o protagonismo familiar na construção de um

sonho cunhado por mulheres cuja pretensão era educar os filhos na fé cristã.

Ela sente-se também altiva por ver que a ideia de algumas mulheres

agricultoras se concretizou e se transformou numa igreja, finalizando sua narrativa

com a frase: “É muito bom saber que hoje lá onde nós começamos a rezar o terço a

muito tempo atrás, hoje tem uma igreja”. Ela guarda com alegria a foto do primeiro

casamento realizado no lugar por elas escolhido para se rezar o primeiro terço.

233 ANGELIN, 2012, p. 63. 234 PERROT, 2017, p. 17.

109

Foto 8: Festa de casamento realizada na Colônia Mbarete – debaixo da árvore onde foi rezado o primeiro terço, organizado pelas mulheres. Fonte: acervo pessoal de Maria Leni Tomascheski, 1980.

As memórias de dona Maria Leni perpassam a formação religiosa dos

filhos/as no Paraguai e demostram o papel preponderante da religião para a vida das

mulheres, como aponta Candau:

Na escolha dos acontecimentos destacados, esse ordenamento das referências memoriais, é preciso observar o trabalho de construção da identidade que vai se fundar sobre os memoranda, quer dizer, as coisas dignas de entrar na memória. Essa formatação não é totalmente rigorosa, pois sugere um registro passivo de uma seleção de coisas do passado, ideia muitas vezes subjacente no discurso sobre a manutenção das tradições. 235

Nesse ensejo, a representação da importância da vida religiosa se faz

presente no ideário feminino migrante. A religiosidade configura-se, pois, como uma

forma de elo, de socialização espiritual perante as adversidades do espaço e do meio.

A religião torna-se o lugar de sociabilidade das mulheres – já que aos domingos os

homens saem para caçar. E a recordação de um momento crucial de protagonismo

das mulheres, também é proeminente para compreender como as memórias são

construídas em torno de momentos de superação e de conquistas.

235 CANDAU, 2016, p. 94.

110

Dona Maria Inês, ao narrar sobre s sua vida no Paraguai, também demonstra

uma profunda preocupação por não se ter uma igreja por perto a qual frequentar e por

meio da qual educar os filhos na fé cristã:

Aí sem igreja, sem escola de novo: “O que que vai ser de nós agora nesse lugar aqui? Vamos ter que organizar alguma coisa”, aí eu, eles se reuniram, meu velho, uma equipe de pais e falaram assim: “Vamos arrumar um trator, umas motosserras e vamos abrir um pedaço de terra ali em cima e vamos...” [...], “E vamos fazer alguma coisa ao menos pra abrir o lugar, abrir espaço pra que possa ter uma escola, pra que possa ter uma igreja.236

Novamente vê-se a posição preponderante das mulheres na iniciativa de

construir uma igreja. O santuário desempenha, pois, um papel privilegiado em suas

vidas e em sua formação ideológica, o que se justifica pelo fato de que, desde a mais

tenra idade, essas mulheres são ensinadas que a religião é fundamental para o bom

desenvolvimento da sociedade. Essa instituição representa um instrumento de poder

para elas, como destacado por Oliveira: “Ao longo da história da emancipação

feminina é possível pensar que a educação e a religião são fatores importantes que

contribuíram para evolução e progresso da mulher brasileira na busca do seu espaço

social”.237

Dona Ana, ao narrar sobre a vida religiosa da família, destaca um fato curioso:

Nós tivemos sempre sorte de morar onde que era sempre tudo brasileiro então fazia até os folhetos vinham em português, então assim, nós não tivemos dificuldades nessa parte porque vinham, só que daí era assim cada ao menos um domingo por mês tinha que ser feito culto castelhano assim em espanhol né então um domingo por mês tinha que ser feito assim, mas daí a gente já tava acostumado então já né.238

Percebe-se que a cultura brasileira predomina entre este grupo de migrantes

no Paraguai, o qual acaba optando por seguir com seus hábitos, com sua cultura

nacional. Há uma quebra de hegemonia nacional (língua) praticamente de maneira

inconsciente por estas pessoas, a cultura paraguaia é suprimida, sendo incluída

apenas em uma celebração mensal. Assim, os/as brasiguaios/as, ao deixarem um

domingo para rezar em espanhol, reforçam sistemas simbólicos de dominação de uma

cultura ou nação sobre a outra. Segundo Woodwart: “Os sistemas simbólicos

236 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 237 OLIVEIRA, 2009, p. 04. 238 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

111

fornecem novas formas de se dar sentido à experiência das divisões de desigualdades

sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados”.239

Quando questionada pelos motivos de celebrarem uma vez por mês em

espanhol ela relata que: “Não era exigido mas assim porque tinha nessa última

comunidade que a gente morou então os padre eram tudo e paraguaio então daí já a

gente também fazia porque né pra eles também né”.240

A ideia de inclusão não era direcionada à comunidade de maneira geral e sim

aos padres que eram paraguaios. A figura do padre na igreja é um símbolo de poder.

Foi por esse motivo que os/as brasiguaios/as começaram a fazer uma celebração por

mês em espanhol, ou seja, para incluí-los, pressupondo novamente a hierarquização

das culturas. Como apontado por Albuquerque: “O intenso contato entre os grupos

étnicos não dissolve as diferenças culturais. Pelo contrário, as identidades étnicas se

fortalecem na zona de fronteira”.241

Mais adiante no seu relato ela destaca que sentia como se continuasse

morando no Brasil e que alguns brasileiros/as sentiam-se incomodados por terem que

fazer uma celebração em espanhol durante o mês, reafirmando assim o fortalecimento

das identidades culturais:

Sim, muitas vezes senti assim que morava no Brasil, quando eu ia né na igreja pelo menos que fazia tudo assim, a gente se sentia bem, porque né. E depois no final eu já tava até acostumando, assim, não achava difícil. Agora que tem gente que tá lá até hoje e se revolta, não quer saber de canto espanhol, mas eu falei: “ É errado né, eles tão lá no país deles tem que...”, e eles cantam as vezes tão bonito e não é difícil né.242

Brasileiros/as e paraguaios/as dividem o mesmo espaço, mas as diferenças

culturais não são respeitadas, uma vez que uma cultura se sobrepõe à outra. Não era

respeitada a identidade nacional paraguaia, que sofria constantes espoliações –

quando, por exemplo, um simples ato religioso celebrado apenas uma vez por mês

em castelhano era o suficiente para incomodar alguns brasileiros/as, que viam essas

práticas como desnecessárias. Deste modo, a supremacia cultural se fazia presente,

uma vez que os/as brasileiros/as queriam integrar os paraguaios/as ao seu modo de

239 WOODWART, 2014, p. 20. 240 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 241 ALBUQUERQUE, 2010, p. 46. 242 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

112

vida, não aceitando o contrário. Nesse contexto, este comportamento dos

brasileiros/as que migraram para o Paraguai pode ser associado ao conceito de

culturas nacionais de Hall, já que ele constrói sentidos e organiza ações:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos de representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.243

Considerando tal fato, nota-se que a nacionalidade tem uma representação

significativa sobre o sujeito, podendo ser utilizada na compreensão de seu modo de

pensar e de sustentar suas ações. É justamente o caso supracitado, no qual os

brasileiros/as colocam sua cultura, seus modos de falar e de se comportar acima

daquela do país ao qual migraram.

Começa-se, assim, a instituírem-se os conflitos entre brasiguaios/as e

paraguaios/as, e casos como o descrito se transformam em pivôs de outros problemas

que surgirão por posse e usufruto de terras.

2.5 A luta por terra continua: o retorno

A migração das/os brasileiras/os ao Paraguai se deu primordialmente pela

busca de terras para trabalhar. Mulheres e homens se deslocaram em busca de

construir um sonho a partir do trabalho com a agricultura.

Durante os primeiros anos no Paraguai a vida transcorreu normalmente,

dentro dos padrões esperados pelos/as migrantes. Uns conseguiram comprar terras,

outros arrendaram e alguns trabalharam como diaristas nas empreitadas, ou, ainda,

como funcionários de grandes fazendas. Mas não demorou muito tempo para que os

problemas com as terras naquele país começassem a assombrar a tranquilidade

dos/as brasiguaios/as. Como destaca Baller:

Houve na realidade o prolongamento do exercício das atividades realizadas no Brasil e a consequente reprodução dos mesmos atores históricos no Paraguai. Ou seja, para a grande maioria desses brasileiros, o êxito rural não se concretizou, uma vez que se reproduziu naquele país o mesmo grupo de trabalhadores rurais que existia no Brasil – pequenos agricultores, arrendatários, meeiros, parceiros, parceleiros, entre outros, que acabaram

243 HALL, 2015, p. 31.

113

sendo os principais atores que passaram a fazer parte do grupo social denominado de brasiguaios.244

Assim sendo, os/as brasiguaios/as começaram a ter problemas com relação

às terras. Um dos problemas estava relacionado aos arrendamentos, que se davam

frequentemente com o intuito de que o arrendatário limpasse a terra, destocando-a,

deixando-a propícia para a agricultura mecanizada. É o que relata dona Maria Inês:

Aquela época os arrendamentos eram de 4 em 4 anos e a gente morava, arrendava os terrenos né, mas eu acho que é mais de 4 anos. Era só arrumar tudo, arrendava e vinha. Então, roçava, queimava, destocava, plantava o algodão, o algodão era uma planta, coisa mais linda, a menta, a menta também. Aí quando vencia o contrato, a terra tava boa gente tinha que ir embora. Assim a gente viveu muitos anos né, no Paraguai pra nós naquela época, meu Deus, que terra boa que o que a gente plantava tinha. Era mandioca, batata doce, porco nós tinha 50, 100 porco, era na mangueira assim, tudo...aí nós vendia também pra quem não tinha né, vendia pra açougue também né. Nós moramos em uma porção de lugares. De 4 em 4 anos, faça a conta, nós moramos 16 anos.245

As memórias compartilhadas por dona Maria Inês proporcionam uma noção

sobre o trabalho desenvolvido pelos/as brasiguaios/as, e sobre como ele era

organizado para que a terra fosse “limpa” com base em uma mão de obra barata e

sem grandes custos para o proprietário. A terra foi recebida pelos/as agricultores/as

com mata fechada, a qual eles necessitavam desmatar, em um primeiro momento,

para depois dar início à agricultura. Quando terminavam a destoca, isto é, quando a

terra estava totalmente propícia para a lavoura, coincidentemente os contratos

findavam, fazendo com que o pequeno produtor tivesse que buscar uma nova área

disponível “quatro em quatro anos, nós moramos dezesseis”. De acordo com os

apontamentos de Klauck:

No caso dos arrendatários, estes conseguiam terras para arrendar enquanto existiam terrenos ainda não desflorestados. Muitos brasileiros que conseguiram comprar as terras em mata fechada no Paraguai, possivelmente, para não arriscar muito com financiamentos na preparação dos terrenos, cediam parte dessas terras, na forma de arrendamento, à outros agricultores. No final do contrato, o proprietário recebia-as de volta para o cultivo mecanizado.246

Notam-se as relações de poder e exploração entre aqueles que tinham e os

que não tinham acesso à compra de terras. Para o proprietário, contar com uma mão

244 BALLER, 2014, p. 71. 245 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 246 KLAUCK, 2011, p. 874.

114

de obra barata e disponível para desflorestar as terras era uma proposta instigante e

promissora, a qual propiciar-lhe-ia um retorno favorável. E, enquanto isso, o/a

arrendatário/a se transforma em um nômade em terras paraguaias.

No caso de dona Maria Inês, durante os últimos anos no Paraguai, sua família

deslocou-se para uma cidade chamada Nueva Esperanza, conhecida como Troncal

Quatro, na qual, por tratar-se de um lugar pequeno, eles puderam continuar com

alguns hábitos presentes na agricultura:

Por último nós moramos no Troncal Quatro, lá já era cidade. Aí eu já fui ficando meia sozinha né, cada qual nos seus lugar né e daí nós tinha aquela casinha em Troncal Quatro né, como tinha as terras lá pros fundos da casa também e eu criava franguinho de granja, não tinha como fazer uma, e horta, eu tinha a minha vaquinha de leite também no lote assim não era grande né, mas ali eu conseguia. Fazia coisinhas pro gasto e pra vender, não tinha como eu fazer um galinheiro, eu puxei um bico de luz de dentro do quarto uma frestinha do assoalho do quarto né ponhei pra baixo da casa lá fiz uma gaiola grande fechei em baixo da casa, criava os bichinhos, os frangos lá. Então de noite eu ligava a luz pros bichinhos lá em baixo da casa e por uma fresta. Eu tinha vaca de leite e meus bichinhos bem criados também né, trazia da roça dos filhos os porcos né, as coisarada que tinha lá. E foi onde que nós decidimos ir embora, porque lá já teve coisas que não serviu pra gente né.247

Com grande engenhosidade dona Maria Inês conseguiu manter os hábitos de

agricultora enquanto morou na cidade. Isso demonstra os costumes demasiadamente

arraigados à realidade da mulher brasiguaia, que não consegue abandonar suas

raízes agrícolas. Ela buscou alternativas para continuar criando seus animais

domésticos e também garantir sua independência financeira, produzindo não somente

para o consumo, mas também para a venda. Ter uma renda, fruto de suas mãos, é

de extrema importância para as mulheres e parte do pressuposto da valorização de

si, como destaca Saffioti:

Para a mulher, ter um emprego significa, embora nem sempre se eleve em nível de consciência, muito mais do que perceber o salário. Ter um emprego significa participar da vida comum, ser capaz de construí-la, sair da natureza para fazer a cultura, sentir-se menos insegura na vida. Uma atividade ocupacional constitui, portanto, uma fonte de equilíbrio.248

Continuar desenvolvendo tarefas que lhe traziam um desenvolvimento

econômico, era para dona Maria Inês, um modo de se reafirmar enquanto mulher

trabalhadora e de buscar um equilíbrio entre o campo e a cidade.

247 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 248 SAFFIOTI, 2013, p. 96.

115

Já no final da entrevista, ela coloca que foi nesse lugar que decidiram

regressar ao Brasil. Desvela-se que o principal objetivo do/a brasiguaio/a é a terra, e

que, quando ele já não consegue adquiri-la no país adotado, ele opta por voltar "pra

casa”, tentando a vida em um acampamento de reforma agrária, dando, desse modo,

continuação à luta pela terra. Seguindo com sua narrativa, dona Maria Inês aponta os

motivos para regressar:

O que nós ouvimos falar do acampamento que ganhava terra, o meu velho, a vida dele era falar né, “Meu Deus do céu, nem que seja 4 hectare de terra no Brasil. Lá a gente pode fazer isso, pode fazer aquilo outro, plantar, criar os bichos e vai ser muito melhor, porque a gente aqui, aqui nós estamos num país estranho, diferente, nunca nós vamos ser dono de nada”, e é verdade né, lá nós não cabíamos dentro do país, como se diz.249

O fato de dona Maria Inês utilizar a frase do marido dentro de sua narrativa

para justificar o retorno explicita as relações de gênero no cotidiano feminino, lugar

este da preponderância dos desejos masculinos. Segundo Tedeschi:

O sentido da fala e da linguagem e o significado que os depoimentos carregam explicitam as intenções e as práticas das mulheres agricultoras em torno das relações de gênero e poder na esfera familiar, refletindo as condições socioculturais da produção e reprodução dos discursos.250

A luta pela terra se faz constante na vida de dona Maria Inês e de sua família,

que viveram praticamente em um regime de itinerância no Paraguai, sendo que, por

não obterem condições financeiras para comprar terras, acabaram se submetendo

aos arrendamentos.

Outro fator que pode ser notado no relato de dona Maria Inês é a questão da

supervalorização do Brasil em detrimento do Paraguai, algo que se dava de maneira

regular entre os/as brasiguaios/as, como assinala Albuquerque:

Os imigrantes costumam sempre comparar o Brasil com o Paraguai, geralmente enaltecem a grandeza territorial e a riqueza econômica do seu país de origem e veem a nação de destino como um estado pequeno, atrasado e corrupto.251

Os/as brasiguaios/as carregavam em seu imaginário noções estigmatizadas

do Brasil como nação desenvolvida, para a qual retornar, caracterizava-se o novo

sonho, uma vez que as expectativas não haviam sido alcançadas no Paraguai. Como

249 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 27/05/2017. 50 min. (aprox.), som. 250 TEDESCHI, 2009, p. 188. 251 ALBUQUERQUE, 2010, p. 192.

116

dona Maria Inês reforça, “aqui estamos num país estranho, nunca vamos ser donos

de nada”.

O destino migrante de dona Maria Inês e sua família os conduzem a um

acampamento de reforma agrária, localizado na região de Ponta Porã, fronteira física

com a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, onde o barraco na beira da rodovia

é erguido a fim de que as lutas pelas terras sejam travadas novamente.

A saída de dona Maria Inês e sua família do Paraguai se deu de maneira

tranquila. Não havia nenhuma disputa territorial efetiva entre brasiguaios/as e

paraguaios/as. O caso de dona Fátima, no entanto, ocorreu de maneira distinta, uma

vez que ela e sua família travaram diversos embates com os sujeitos nativos daquela

nação, que ansiavam por ter suas terras retomadas dos estrangeiros252. Dona Fátima,

ao narrar sobre a vida no Paraguai, conta o quão dificultoso foi adquirir um pedaço de

terra e como este foi deixado para traz:

Quando nós entramos lá foi de arrendatário e depois a gente comprou pelo banco, mais dai não deu certo, dai a gente acabou vendendo, vendendo não, foi entregado e depois ultimamente a gente comprou, conseguiu, nos últimos anos. Há uns 13 anos atrás daí a gente consegui comprar financiado também, mais daí conseguimos pagar e lá era puro mato né e a gente foi destocando daí a gente vendeu de novo e fomos comprar numa área de assentamento lá do Paraguai, dai a gente ficou um ano e meio mais ou menos por ai, dai os paraguaios começaram a falar que iam invadir que iam tomar o lote e então dai nós vendemos pela metade do preço que gente tinha pago a gente vendeu.253

Novamente as pequenas mudanças dentro do Paraguai estão presentes.

Dona Fátima, ao narrar, destaca a necessidade de buscar novas terras dentro daquele

país para poder continuar trabalhando na agricultura. Ela menciona também os

financiamentos recebidos pelo banco para comprar terras e salienta que a primeira

propriedade comprada foi devolvida por falta de pagamento.

Facilitava-se uma linha de crédito, mas algumas vezes no período da colheita

os preços dos produtos caiam, e os/as pequenos/as agricultores/as não conseguiam

pagar suas contas. Esse fator levou muitos brasiguaios/as a pensar em retornar ao

252 A retomada dessas terras muitas vezes não aconteceu por parte dos agricultores pobres paraguaios, os quais tiveram suas terras também usurpadas, mas por grandes empresas colonizadores e/ou grandes proprietários latifundiários. 253 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio-mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 07/02/2015. 123 min. (aprox.), som.

117

Brasil. como aponta Batista: “A saída do Paraguai foi por falta de condições para viver,

o produto não valia mais nada, não conseguiam vender senão a preço de custo”.254

Outro assunto destacado por dona Fátima é o medo causado pelas ameaças

de invasão por parte das/os paraguaias/os, que de acordo com Colognese:

Eles estão organizados e exercem pressão, intimidando os agricultores brasileiros, invadindo propriedades, trancando estradas, montando acampamentos, impedindo o plantio das lavouras, etc. Eles argumentam que o governo autoritário se apropriou de suas terras, distribuindo-as a setores do próprio governo e as empresas estrangeiras.255

Brasiguaios/as e paraguaios/as passam a lutar pelo mesmo objetivo: a posse

da terra. Assim como os brasileiros/as foram expropriados de suas terras no Brasil, o

mesmo aconteceu com os/as paraguaios/as devido, majoritariamente, à chegada dos

imigrantes. Entretanto, isso fica velado nos discursos daqueles/as que chegaram

àquele país, já que eles/as apontam que se tratava de uma “terra de ninguém”, a qual

precisava ser colonizada. É o que destaca Albuquerque:

Os imigrantes brasileiros no Paraguai incorporam a ideologia do trabalho e sempre relatam as dificuldades iniciais de colonização naquelas terras. [...] Embora se saiba que existiam vários grupos de indígenas nos departamentos fronteiriços, os “pioneiros” costumam afirmar que não havia ninguém naquelas regiões e que foram eles que trouxeram o progresso mediante muito sacrifício individual e familiar.256

Desta forma, nota-se que se criou uma estigmatização entre brasiguaios/as e

paraguaios/as. A luta por terra passa a ser válida para um grupo em detrimento do

outro. Sendo praticamente expulsos do campo brasileiro em nome do “progresso”,

mulheres e homens chegam ao Paraguai e não conseguem perceber que a mesma

exclusão passa a acontecer com os habitantes daquele país. Este fator gerou uma

revolta nos paraguaios/as, que em conformidade com Costa:

De acordo com os camponeses paraguaios, o governo do general Alfredo Stroessner utilizou-se de mecanismos ilegítimos para apoderar-se de propriedades que lhes pertenciam e partilhá-las entre setores do próprio governo, empresas estrangeiras e projetos agropecuários, incluindo aqui o assentamento de milhares de pequenos agricultores brasileiros.257

Nos anos posteriores institui-se naquele país uma luta por terras entre

brasiguaios/as e paraguaios/as, através da qual ambas as partes queriam afirmar

254 BATISTA, 2013, p. 98. 255 COLOGNESE, 2012, p. 151. 256 ALBUQUERQUE, 2010, p. 170-171. 257 COSTA, 2009, p. 11.

118

seus domínios sobre o solo. Os conflitos começam, então, a aparecer e muitos dos

imigrantes que para lá foram agora pensam em voltar ao Brasil.

Dona Ana, ao nos contar sobre os últimos tempos vividos no Paraguai, narra

momentos de tensão e violência:

A gente tinha comprado, tinha até os documentos da terra, como os dois tem documento paraguaio, a Elaine e o Marco (filhos). Onde a gente comprou era um direito deles dos campesino, aí eles venderam pra gente tudo bem e daí outros, outro desse grupo que age até hoje por lá né aí invadiram porque tinha bastante mato e eles gostavam de fazer carvão as coisa assim né, e aí acabaram invadindo e a gente sofreu muito, não, não digo assim que a gente perdeu, praticamente perdeu porque daí teve que vender assim, baratinho pra vim de lá e pronto né porque ariscou a vida né, ariscou a vida porque era assim , foi bem difícil, teve dias que assim, eles tentaram sequestrar o Nelson e meu piá também né, então foi assim com graça de Deus né, até que um dia uma, assim, o Nelson tava armado e eles né, um paraguaio que assim, até trabalhava pra nós fazendo cerca e as coisas lá, aí acabou roubando o revolver dele e aí outro contou que a noite com o próprio revolver ia matar ele (Nelson), aí sabe, foi assim, muito difícil né, e aí, daí sorte que ele falou pra um outro paraguaio, o outro contou pro Nelson, avisou daí veio a polícia, tenta, fez ele entregar né aí teve que entregar a arma e tudo, daí acabou indo preso né. Daí nesse tempo ali a gente sofreu muito né, sofreu muito, muito mesmo porque você tem que ficar e enfrentar assim eles ali na frente da tua casa né e saber que toda hora queriam te matar, queriam né, então foi um mês assim que a gente né, um terror né.258

Percebe-se que os momentos de embate travados pela terra eram muito

frequentes entre esses dois grupos. Um fator que agravava ainda mais essa situação

era a venda de uma mesma área de terra para mais de um agricultor/a, o que ocorria

em decorrência da carência de Cartórios no Paraguai, fato este que dificultava a

validação dos títulos. Como destaca Batista: “Existe apenas um cartório de imóveis

no país e os nomes dos proprietários de terras é um sigilo mantido pelo Estado”.259

Assim, a “compra de direitos” da terra era uma prática muito frequente no

Paraguai, onde as pessoas faziam acordos verbais, ou através da utilização de

documentos não oficias, para uso e posse da mesma, deixando, dessa forma,

algumas brechas para a ação de atravessadores (tanto brasileiros/as como

paraguaios/as) que posteriormente passavam a reivindicar a posse da terra – uma vez

que possuíam em mãos os documentos das mesmas terras. Essa prática ocorria por

intermédio de falcatruas:

Uma das práticas que vitimou muitos imigrantes foi a prática de venda de um mesmo imóvel para mais de um agricultor. Esses casos eram mais comuns

258 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som. 259 BATISTA, 2013, p. 78.

119

quando o vendedor no Paraguai era alguém membro do governo paraguaio, sobretudo das Forças Armadas. Isso porque a base de sustentação de Stroessner no poder se baseava na distribuição de prebendas em troca de fidelidade ao Ditador Alfredo Stroessner; em muitos casos, esse benefício pode ter sido em terras. Estes beneficiários vendiam as terras em tamanhos menores aos imigrantes.

Contudo, ao vender a terra para os pequenos agricultores, posteriormente, podia aparecer uma companhia colonizadora interessada nas mesmas terras e então oferecia uma oferta bem melhor por ela.260

Elucidam-se assim os diversos problemas enfrentados pelos brasiguaios/as

naquele país. Muitas das desavenças terminavam, aliás, em enfrentamentos físicos,

como no caso citado por dona Ana, que relata a ocasião em que o marido era

constantemente ameaçado pelos paraguaios, pressionado a deixar as terras que

haviam comprado. Quando ela diz “saber que toda hora queriam te matar”, ela

exemplifica a tensão física e psicológica que os levou a vender suas terras por um

preço inferior ao qual tinham pago para que pudessem retornar ao Brasil.

Mais adiante em seu relato ela afirma outro fator que ocasionou a saída de

muitos migrantes brasiguaios/as do Paraguai, foram os mesmos motivos que os

levaram a sair do Brasil, isto é, a alta mecanização e monocultivo da agricultura no

interior da qual os arrendamentos e as vendas eram feitos preferencialmente para os

grandes fazendeiros:

Depois quando tava derrubado e aqueles pau já tavam podre que era fácil de passar a esteira e limpar tudo né, daí ele começou a vender pros fazendeiros que daí os fazendeiros pagam mais renda né [...] e daí sempre ia, vai ficando mais difícil né. Só que aí já foi virando também tudo fazendeiro ao redor261.

Após a realização do trabalho braçal de destoca pelos pequenos

agricultores/as, o qual apresentou como retorno o arrendamento temporário das

mesmas – que, por sua vez, coincidia geralmente com o tempo que levariam para

deixar a terra propícia para a agricultura mecanizada –, os grandes empresários

capitalistas vão ganhando espaço, reproduzindo o modelo brasileiro de

desapropriação, como aponta Batista:

No Paraguai os brasiguaios já sofrem com os reflexos da política agrícola que é direcionada aos interesses imperialistas, e começa a atingir inúmeras

260 KLAUCK, 2011, p. 880. 261 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel. (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 15/05/2017. 60 min. (aprox.), som.

120

famílias que sentem repetirem-se no país vizinho as mesmas dificuldades que sentiram no Paraná e em outros locais de onde saíram do Brasil.262

Historicamente as mulheres viveram espoliadas socialmente, sob padrões

hegemônicos que as diminuíam, mas isso não as impediu de acompanhar o

desenrolar político à sua volta. As brasiguaias estavam a par da situação

organizacional da sociedade e percebiam as mudanças estruturais que com

frequência valorizavam unicamente aqueles que contavam com uma situação

financeira abastada, situação a partir da qual os/as pequenos/as agricultores/as

novamente se viam sem terras para viver e produzir.

Dona Maria Celina, ao ser questionada sobre o porquê do retorno ao Brasil,

nos conta que:

A decisão foi mais por que tivemos a notícia do acampamento daí o Tonho veio e eu fiquei trabalhando eu tinha dois pensionistas, fazia comida, costurava pra fora e o Marcio trabalhava na firma. Eu não via a hora de vim embora, ele foi lá e eu falei vende essa casa, vamos dar um jeito que eu não quero mais ficar aqui. Em 20 anos nós construímos uma casa, tínhamos um sitio grande, mais fomos investindo em terra e nunca dava nada daí vendemos a casa e pagamos umas contas e sobrou 10.000.000 gs. Quando nós chegamos em 1983 era bom qualquer pinguinho de soja dava dinheiro até 1995 foi bom depois começou a piorar porque o preço foi arruinando, plantava sempre devendo, nós financiávamos e não produzia daí a gente ficava devendo por outro ano, daí o pequeno produtor foi ficando excluído, eles não queriam mais a gente lá, só os grandes.263

O acampamento de reforma agrária aparece, nesse cenário, como solução

para aqueles que não conseguiriam comprar terras no Brasil com meios próprios.

Assim, saber que existia a esperança de ser atendida por um programa

governamental incentivou a família de dona Maria Celina a voltar para o Brasil. Isso

revela a importância dos movimentos sociais do campo no auxílio ao desterro dos

brasiguaios/as, como destaca Wagner:

A mobilização dos sem-terra começava dentro no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Paraná - entidade que agrupa agricultores e simpatizantes com sua luta por um naco de chão para plantar; existe um em cada Unidade da Federação – e para onde a causa dos brasiguaios, no território brasileiro, foi canalizada.264

No relato de dona Maria Celina novamente percebe-se a preponderância das

suas atividades enquanto geradora de renda para a família. Ela ficou no Paraguai

262 BATISTA, 2013, p. 95. 263 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski.

Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som. 264 WAGNER, 1990, p. 25.

121

trabalhando enquanto o marido veio para o Brasil conhecer o acampamento.

Salientam-se assim os tão importantes trabalhos femininos na migração. Segundo

Bassanezi: “Elas assumem todas as atividades da propriedade, quando os homens

para aumentar a renda buscam trabalhos fora”.265 Nesse caso, além de trabalho, o

seu Antonio buscava uma nova morada para ele e sua família no país de origem.

Ela também acentua a questão das dificuldades na produção e a

desvalorização dos pequenos/as produtores/as naquele país quando diz que “não

queriam mais a gente lá, só os grandes”. Tal passagem de sua fala evidencia a

situação de desapropriação – desenrolada de maneira velada – que foi se aplicando

à produção; uma situação que fez com que os preços de venda já não cobrissem os

financiamentos. Costa destaca tais problemas, ao afirmar que:

Em um primeiro momento, os brasileiros tiveram facilidade no acesso à terra e nos contratos de arrendamento. Contudo, a situação transfigurou-se. Além dos conflitos mencionados, estes agricultores começaram a presenciar o mesmo processo de mecanização.266

Pode-se notar que as famílias brasileiras que buscaram no Paraguai a solução

para o desterro vigente no Brasil – sofrido por conta das novas formas de apropriação

da terra – se reencontram depois de alguns anos com a mesma situação naquele país,

no interior do qual também passa a imperar a lei que favorecia quem tinha condições

financeiras para se adequar ao sistema.

Nessa perspectiva buscou-se apresentar neste capítulo a vida das mulheres

brasiguaias no Paraguai a partir de suas memórias. Foi possível, portanto, expor a

existência de outra face da migração, fugindo da história tradicional migratória ao

elucidar a vida de mulheres, com seus problemas, anseios e conquistas, e rompendo,

assim, com os paradigmas de uma história narrada pelo masculino.

A chegada no Brasil, a vida de acampamento, as resistências femininas na

luta pela terra, a chegada e permanência delas no lote serão parte do próximo

capítulo.

265 BASSANEZI, 2013, p. 176. 266 COSTA, 2009, p. 10.

122

CAPÍTULO III

UMA NOVA HISTÓRIA: CHEGADA E PERMANÊNCIA DAS MULHERES NO

ASSENTAMENTO ITAMARATI

É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço

nas minhas pernas, mais esperança nos meus

passos do que tristeza nos meus ombros, mais

estrada no meu coração do que medo na minha

cabeça.

Cora Coralina.

123

3.1 Introdução

Este último capítulo aborda num primeiro momento as transformações que

perpassaram as terras que na atualidade fazem parte do Assentamento Itamarati. De

maneira descritiva, retoma-se a colonização do espaço, iniciada pela Companhia Mate

Larangeira (primeiro empreendimento privado da região), passando-se, então, à

história da implantação da Fazenda Itamarati, latifúndio monocultor que

posteriormente foi transformado em um assentamento através da luta pela terra.

Após as discussões iniciais, é abordada a chegada das mulheres ao

acampamento de reforma agrária, bem como suas vivências neste espaço, no interior

do qual os movimentos sociais lutavam pelas terras da antiga Fazenda Itamarati. O

cotidiano de luta de cada uma delas é, ainda, descrito de modo a enfatizar suas

ocupações, tanto de militância como no cuidado da família, na organização dos

barracos e nas relações construídas durante esse período.

E por fim é descrito, a partir das entrevistas, o modo como elas percebem a

consolidação do sonho após tantos caminhos percorridos em busca de terra. Além

disso, são apresentados os primeiros momentos no lote e as novas lutas travadas

para a concretização da agricultura, contando com poucas ferramentas, em terras

tomadas por pastagens e ervas daninhas. O trabalho é finalizado, então, através da

narrativa de como elas descrevem a felicidade de viverem numa terra que podem

chamar de sua.

3.2 O valor social da terra: de latifúndio a assentamento

A luta pela posse de terras no Brasil, como já discutida anteriormente, é uma

questão histórica. Desde o período da colonização incontáveis batalhas foram

travadas entre povos que tinham por objetivo o domínio territorial. As terras que hoje

constituem o Assentamento Itamarati já passaram por várias transformações,

configurando-se primordialmente, no entanto, como uma região indígena.

As alterações territoriais tiveram início no pós-guerra da Tríplice Aliança,

momento em que as terras limítrofes com o Paraguai começaram a ser demarcadas

por uma comissão que percorreu a fronteira para delimitar os espaços físicos

brasileiros. De acordo com Brand, Ferreira e Almeida:

124

Com o término da Guerra do Paraguai uma comissão de limites percorre a região ocupada pelos Kaiowa e Guarani, entre o rio Apa, atual Mato Grosso do Sul e o Salto de Sete Quedas, em Guaíra Paraná, terminando em 1974, os trabalhos de demarcação das fronteiras entre Brasil e Paraguai. Seu provisionador, Thomas Larangeira, percebe a grande quantidade de ervas nativas existentes na região e, também, a abundante mao-de-obra pós-guerra disponível.267

Tomaz Larangeira nota como a região pode ser lucrativa e utiliza suas

influências políticas para conseguir concessões de uso das terras, fundando assim a

Cia Mate Larangeira, primeiro megaprojeto privado instaurado na região. Como

aponta Terra:

A Companhia Mate Laranjeira foi o primeiro grande empreendimento privado implantado nesta porção do território brasileiro, criado em dezembro de 1882, por Tomaz Larangeira, que conseguiu o monopólio para explorar erva-mate em terras devolutas na fronteira Brasil-Paraguai, ao sul do planalto de Amambai.268

Como supracitado, a região era habitada por comunidades indígenas,

comumente esquecidas. Notadamente, quando se reportam a esta fração do território

nacional abordam-se temas explicitando a Cia Mate Larangeira, como se a história do

local começasse com esta empresa. Como destaca Queiroz:

[...] uma primeira constatação a ser feita é a de que a enorme relevância assumida pela empresa, isto é, a amplitude e a longa duração de sua presença nos ervais, levou-a a “sequestrar” por assim dizer, grande parte da história e memória de toda a região ervateira sul-mato-grossense. [...] muitos estudos têm levado a confundir, mais do que seria justo e desejável, a história da economia ervateira sul-mato-grossense com a história da empresa, como se fossem ambas uma só e a mesma coisa.269

A importância e destaque dados à Cia Mate Larangeira, escondem a realidade

indígena. Comunidades foram, na realidade, dizimadas e escravizadas pelo trabalho

com a erva. Mas este é um processo de longa duração, porquanto a história

tradicional, de maneira recorrente, ocupava-se com historiar sobre as grandes

economias e sobre os projetos megalomaníacos. Segundo Brand, Ferreira e Almeida,

contudo:

As concessões feitas a Companhia Mate Laranjeira atingem em cheio o território dos Kaiowá e Guarani. Embora a mão-de-obra amplamente predominante nos ervais tenha sido a paraguaia, ocorreu em várias regiões

267 BRAND, FERREIRA & ALMEIDA, 2005, p. 1. 268 TERRA, 2009, p. 54. 269 QUEIROZ, 2015, p. 210.

125

o significativo engajamento de índios Kaiowá e Guarani na exploração da erva-mate.270

O que aconteceu nessa região foi semelhante ao que ocorreu no restante do

território brasileiro: a comunidade indígena e seus costumes não foram respeitados.

Os não índios chegavam e tomavam posse da terra, e algumas vezes usavam da

força bruta para conseguir o trabalho escravo destas populações.

No entanto, as condições precárias nas quais se encontravam as pessoas da

região facilitavam a ação de exploradores. Como aponta Queiroz, “os trabalhadores,

Tomás Larangeira os encontrou no empobrecido Paraguai do pós-guerra, bem como,

em certa medida nos indígenas que habitavam as matas sul-mato-grossense”.271

Com os/as trabalhadores/as empobrecidos, a relação de trabalho baseada na

exploração foi facilitada para a empresa, que transformou seus funcionários/as em

reféns de um sistema próprio criado pela Companhia que cerceava a liberdade dos/as

mesmos/as, como destaca por Queiroz:

Segundo relatos disponíveis, o trabalho dos mineiros era extremamente penoso e desenvolvido em condições análogas à escravidão, uma vez que o trabalhador, além de ser engajado mediante um adiantamento, ficava obrigado a abastecer-se nos armazéns da própria empresa e não podia deixar o trabalho enquanto não saldasse integralmente seus débitos.272

Além disso, a empresa também agia limitando as vendas de terras para

pequenos/as produtores/as, com objetivo evitar a concorrência. É o que destaca

Terra, ao afirmar que: “[...] a Companhia procurou todas as formas, e utilizando-se dos

mais diversos meios, impedir que pequenos proprietários ou posseiros ocupassem a

área sob seu controle”.273 O autor (idem) aponta, ainda, que a Companhia era

confundida com governo na região, “Agindo como se fosse autoridade pública, de tal

modo que as pessoas preferiam pedir sua autorização para requerer terras”.274

A referida empresa prolongou sua atuação no então estado de Mato Grosso,

tendo sob seu domínio grandes extensões de terras275. Foi, pois, uma pequena fração

270 BRAND, FERREIRA & ALMEIDA, 2005, p. 2. 271 QUEIROZ, 2015 p. 214. 272 QUEIROZ, ibidem, p. 211. 273 TERRA, 2009, p. 55 274 TERRA, ibidem, p. 57 275 A exploração de erva mate em território do atual Mato Grosso do Sul, passou por várias transformações, para mais informações indico as seguintes leituras: TERRA, Ademir. Reforma agrária por conveniência e/ou por pressão? Assentamento Itamarati em Ponta Porã – MS: “o pivô da questão”. Presidente Prudente 2009. Tese doutorado – Universidade Estadual Paulista – Faculdade de ciências e tecnologia.

126

desse monopólio que se transformou em Fazenda Itamarati na década de 70 do

século XX. Segundo Pavão e Nobre:

A Fazenda Itamarati está localizada na Região Sul do estado de Mato Grosso do Sul, na cidade de Ponta Porã/MS, próxima aos estado de São Paulo e Paraná, nas coordenadas 22 32s (latitude Sul) e 55 43s (longitude oeste), altitude de656 m do nível do mar e com precipitação média anual ao redor de 1400 mm. A sede da Fazenda fica à 45 km da sede municipal, possuindo os seguintes limites e confrontações: Rio Dourados (Norte); Fazenda Santa Virgínia, Córrego Tajhire e Córrego Santa Rita (Sul); Rio São João e Rio Dourados (Leste); e Fazenda Santa Virgínia e R.F.F.S.A. (Oeste) Sua área total era de 50.000 hectares (25.000 hectares adquiridos da Fazenda Santa Virginia276 em 18/12/1973 e os demais hectares foram adquiridos em 1977), sendo que 80% desta área total são agricultáveis e os solos se caracterizam por pertencerem à classe Latossolo Roxo.277

Em 1973 tem início o segundo megaprojeto nas terras do Sul do então Mato

Grosso, a partir do qual Olacyr de Moraes passou a produzir commodietes em grande

escala e investir fortemente em tecnologias avançadas para época, atingindo, desse

modo, padrões de produção e qualidade que o deixaram conhecido nacionalmente.

Segundo Nogueira:

O grupo Itamarati era uma grande empresa agropecuária que tornou Olacyr de Moraes conhecido como o “rei da soja” a partir da década de 1980. O grupo contava com alta tecnologia em sua produção, dispondo de laboratórios, equipamentos e maquinários de ponta, além de mão-de-obra qualificada, especializada e setorizada.278

Olacyr de Moraes foi um empreendedor que ao obter o apoio de

financiamentos públicos para implantar a Fazenda Itamarati (sinônimo de qualidade e

desenvolvimento) bateu recordes de produção. Como de costume no Brasil, não é

novidade a facilitação de créditos para grandes empreendimentos, enquanto os/as

agricultores/as de pequenas propriedades encontram dificuldades em conseguir

financiamentos para produzir, fator ainda mais evidente no período da ditadura. De

acordo com Terra:

[...] com base nessas facilidades e nas condições históricas e econômicas, num momento em que o país, e principalmente o estado de Mato Grosso do Sul, passavam por um conjunto de mudanças de grande envergadura com a introdução e expansão das lavouras mecanizadas de trigo e soja, fortemente

MAGALHÃES, Luiz Alfredo Marques. Retratos de uma Época – Os Mendes Gonçalves & a Cia. Matte Larangeira/Luis Alfredo Marques Magalhães – Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, 2016. 276 Fazenda Santa Virginia, adquirida pela Cia Matte Larangeira ao Estado de Mato Grosso em 1892 (título definitivo em 1897) e depois transferida para Larangeira Mendes & Cia em 1903. (MAGALHÃES, 2016, p. 36) 277 PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 17. 278 NOGUEIRA, 2011, p. 56.

127

integradas às agroindústrias, que o empresário Olacyr Francisco de Moraes implantou a Fazenda Itamarati no município de Ponta Porã, em parte das terras pertencentes, anteriormente, à Companhia mate Laranjeira.279

Além de uma tecnologia de ponta, a referida Fazenda contava com uma

estrutura de moradia e atendimento aos funcionários/as que chamava a atenção nas

redondezas e incentivava muitos/as a buscarem emprego e se instalarem no local,

que foi visto como sinônimo de bem-estar e progresso. Segundo Pavão e Nobre:

No ano de 1985, após 12 anos desde sua implantação a Fazenda Itamarati possuía uma infraestrutura urbana completa, estrutura esta que servia de modelo para a região, pois era oferecido aos funcionários e seus familiares: Escola com formação até o Ensino Médio, clube recreativo, campos de futebol, templo ecumênico, restaurante que fornecia comida aos funcionários solteiros e marmitas aos funcionários que trabalhavam no campo, hospital com dez leitos, sala de pequenas cirurgias e Raios-X, supermercado, horta comunitária, pomar, vaca mecânica que fornecia gratuitamente leite de soja aos funcionários, padaria, alojamentos para os funcionários solteiros e casas para os funcionários e suas famílias, todos os equipamentos que garantiam uma vida digna, com cultura, lazer e fartura, infraestrutura que na época muitas cidades da região não possuíam.280

Não se pode pensar que diante de tamanha estrutura de atendimento não

existiam problemas. Pavão e Nobre realizaram uma pesquisa de campo com ex-

funcionários da Fazenda Itamarati, para a qual eles descreveram os principais

benefícios e desvantagens do trabalho para a empresa. Um dos problemas apontados

foram os baixos salários: “Na sua opinião281, o salário pago aos funcionários da

fazenda era baixo e só aumentava um pouco devido as horas extras”.282

Apesar dos/as funcionários/as contarem com uma infraestrutura física

admirável, os salários que recebiam não condiziam com a realidade, sendo este

também um dos motivos da decadência da empresa, como destaca Nogueira:

O outro fator a ser considerado para o fracasso da fazenda foi a saída de muitos funcionários (mão-de-obra qualificada) da fazenda. Ela não oferecia condições financeiras de permanência. Entre outros fatores, dois deles seriam a falta de salários condizentes com o trabalho realizado e o baixo investimento na área de recursos humanos.283

Se faz pertinente então refletir sobre a vida desses funcionários/as, uma vez

que, frequentemente, se aponta a Fazenda Itamarati como megaempreendimento,

responsável pelo reconhecimento nacional de Olacyr de Moraes. Mas o cotidiano

279 TERRA, 2009, p. 67. 280 PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 30. 281 Entrevista concedida a Pavão e Nobre. 282 PAVÃO & NOBRE, ibidem, p. 26. 283 NOGUEIRA, 2011, p. 56.

128

dos/as trabalhadores/as, suporte primordial para tal sucesso, é esquecido e

maquiado, situação muito comum na escrita da história tradicional, na qual “heróis”

são destacados enquanto o povo é excluído, invisibilizado. Outro ponto dessa forma

de escrita é a supervalorização de determinada situação e/ou propriedade para se

criar uma noção de modelo, para povoar o ideário das pessoas. Terra aponta:

Não há como oferecer uma estratégia de inserção na economia de um lugar sem estabelecer algum ícone, simbólico e concreto para estabelecer uma tese de sucesso econômico. Mesmo que a fazenda Itamarati não possuísse condições modelares, estas deveriam ser construídas pela mídia, pelos políticos locais e demais atores econômicos. O sentido de modelo é “o” exemplo que tenta provar a regra geral de desenvolvimento, este não pode conter dúvidas, não pode aceitar contra reações e deve ser inabalável, enquanto durar.

A imaterialidade vai coadunar com a materialidade dos fatos, nesse caso, expressa na quantidade de terra contínua e de tecnologia empregada. 284

A Fazenda Itamarati mantém seus negócios até o ano de 1995, quando os

interesses de Olacyr de Morais começam a ruir. Os fatores apontados para o declínio

são vários, entre eles a falta de recursos para cobrir dividas adquiridas, tecnologias

ultrapassadas que geravam um alto custo de manutenção e, como já citado, a falta de

funcionários/as qualificados/as, que deixavam a empresa por falta de pagamento

justo. Segundo Nogueira:

A decadência da fazenda teve início em 1995 e, em 1996, Olacyr de Moraes avaliava os benefícios e uma provável negociação da propriedade para fins de “Reforma Agrária” e articulava sua efetivação, contando, ainda com a vantagem de se tornar um grande benfeitor da reforma agrária no país.285

Buscando novamente os holofotes da imprensa Olacyr de Moraes afirma uma

provável negociação das terras com o governo para implantação da reforma agrária.

Em entrevista à revista Isto é ele afirma: “Temos propostas de venda da fazenda para

grupos estrangeiros, mas preferiria uma solução social [...] até eu gostaria de ser sem-

terra e ser assentado nas Fazendas Itamarati”.286

Ao buscar essa negociação, afirmando apoio ao projeto de reforma agrária,

ele pretende ser visto como precursor de um novo projeto, agora demagógico. Terra

assela para a seguinte situação:

284 TERRA, 2010, p. 06. 285 NOGUEIRA, 2011, p. 57. 286 ISTO É, 12/06/1996 apud TERRA, 2009, p. 119.

129

Transformar essa enorme máquina enferrujada em assentamento de trabalhadores rurais é uma estratégia de novamente se apropriar de recursos públicos e sair pela porta da frente e no apagar das luzes, sem restituir os prejuízos que nunca intencionou retornar aos cofres do Estado. Faz parte do modelo apropriar-se do capital público, embora isso nunca tenha sido proferido.287

Olacyr de Moraes começa então a buscar negociações para a Fazenda,

alegando que isso seria necessário para saldar dívidas adquiridas de grandes

investimentos feitos em outros lugares, como por exemplo a construção da

Ferronorte288. Sua primeira opção de venda foi o governo. De acordo com Pavão e

Nobre:

A Fazenda Itamarati que antes era símbolo de admiração nacional passou a ser visto como algo preocupante e em franco declínio e para quitar as dívidas, a princípio seu proprietário Olacyr de Moraes ofereceu a área total da Fazenda Itamarati para o Governo Federal por R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais) mas a proposta não foi aceita, então no ano de 2000 a Fazenda foi repassada ao Banco Itaú, representada por sua subsidiária Tajhyre S/A Agropecuária, como parte do pagamento de dívidas de crédito rural.289

Em um primeiro momento foi negociada metade da propriedade. Então, o

Banco Itaú procurou interessados/as em fazer negócios, mas ao fracassar em suas

buscas fez uma proposta ao governo, oferecendo um preço bem abaixo da proposta

feita inicialmente por Olacyr de Moraes. Segundo Terra: “Sem solução à vista, o Banco

Itaú procurou o governo com uma oferta melhor: entregaria metade das terras da

fazenda por 27,6 milhões a serem pagos em quinze anos, com Títulos da Dívida

Agrária (TDAs)290”.291

Após a aquisição pelo Governo Federal as terras foram repassadas ao

Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para que se iniciassem os

procedimentos para a efetivação dos assentamentos, nos quais um número

significativo de famílias poderia ter o tão sonhado pedaço terra, sendo libertadas da

vida de acampamento à beira das estradas. Como aponta Nogueira: “[...] implantou-

se o Assentamento Itamarati I, com o estabelecimento de 1.143 famílias”.292

Essas 1.143 famílias faziam parte de diversos movimentos sociais, inclusive

de uma associação de ex-funcionários/as da Fazenda Itamarati, que percebendo o

287 TERRA, 2009, p. 07. 288 Ferrovia que ligaria os estados de Roraima, Pará, Mato Grosso, chegando ao Porto de Santos. 289 PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 35. 290 Papel emitido pelo governo para pagar desapropriações para reforma agrária. 291 TERRA, ibidem, p. 81. 292 NOGUEIRA, 2011, p. 58.

130

destino da empresa, passaram a reivindicar a posse de terras, amparados pelo

INCRA. Segundo Nogueira: “[...] cerca de 200 funcionários se reuniram em associação

de moradores e fundaram a AMFFI (Associação de Moradores e Funcionários da

Fazenda Itamarati)”.293

De acordo com Pavão e Nobre, o Assentamento Itamarati I está dividido por

Movimentos Sociais da seguinte maneira:

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está representado por 320 famílias; a Central Única dos Trabalhadores (CUT) possui 280 famílias; a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI) tem 385 famílias e a Associação dos Moradores e Funcionários da Fazenda Itamarati (AMFFI) tem 150 famílias assentadas. Cada grande grupo subdivide-se em grupos menores.294

Deste modo, 50% da Fazenda Itamarati continua em andamento até 2004,

sendo na ocasião adquirida pelo Governo Federal. De acordo com Terra: “[...] em 24

de maio de 2004, pelo valor de 165,3 milhões, adquiriu o restante da fazenda (24.900

ha) para a implantação do Assentamento Itamarati II, onde seriam assentadas 1.692

famílias”.295

Anteriormente latifúndios, essas terras transformam-se, agora, em

Assentamento. E onde antigamente o lucro era de poucos, passou-se a alimentar

quase três mil famílias, mudando assim o valor social da terra.

O Assentamento Itamarati II também foi dividido para abarcar vários

movimentos sociais, atendendo um número maior de famílias, apresentando, porém,

uma quantidade menor de terras a cada unidade familiar beneficiada. Segundo Pavão

e Nobre:

O Assentamento Itamarati II foi criado oficialmente em 30 de setembro de 2004, sendo que seus 1712 lotes, que em outubro de 2005 começaram a serem sorteados entre os grupos de sem-terra que ali estavam acampados e entre ex-funcionários, ficando distribuídos da seguinte forma: MST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (588 lotes), CUT – Central Única dos Trabalhadores (270 lotes), FETAGRI – Federação dos trabalhadores na Agricultura (588 lotes), FAF (Federação da Agricultura Familiar (150 lotes) e a FAFI- Funcionários da Associação da Fazenda Itamarati (116 lotes) formada por ex-funcionários da extinta Fazenda Itamarati (PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 40).

293 NOGUEIRA, 2011, p. 59. 294 PAVÃO & NOBRE, 2005, p. 37. 295 TERRA, 2009, p. 81.

131

Tanto no Assentamento Itamarati I, como no Assentamento Itamarati II as

mulheres e os homens brasiguaias/os fizeram parte dos movimentos sociais

supracitados, não havendo assim, um grupo específico para esse público.

E foi nessas terras carregadas de lutas, histórias e transformações que, em

meio a tantas outras pessoas, chegaram, Ana, Maria Leni, Maria Inês, Maria Celina,

Fátima e Luzia. Acompanhadas por seus familiares, cada uma delas chegou de uma

maneira, em tempos diferentes e em condições distintas. Tratar-se-á de suas histórias

a seguir.

3.3 Um acampamento, muitas histórias

Assim como a migração do Brasil para o Paraguai não aconteceu de maneira

igualitária e homogênea, o processo de retorno não foi diferente. A decisão de voltar

aconteceu por motivos díspares e a chegada às terras que hoje são o Assentamento

Itamarati foram em condições e tempos distintos.

Maria Celina, Maria Leni e Maria Inês vieram no tempo do acampamento,

viveram embaixo da lona, e posteriormente foram assentadas, ambas pertencentes

ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST296. Dona Fátima também

chegou na época do acampamento, mas, quando as terras foram repartidas, ela e sua

família ficaram no grupo dos excedentes, para os quais não sobrou terra. Precisaram,

assim, procurar um novo caminho. Depois de muita espera e trabalho em lotes de

terceiros, dona Fátima e sua família vivem, na atualidade, em um lote onde são os

segundos donos297.

Dona Ana e a família fizeram uma primeira tentativa de regresso ao Brasil

ainda no período do acampamento, a demora da concretização do assentamento e as

condições precárias debaixo da lona, no entanto, os haviam feito desistir e voltar ao

Paraguai. Entretanto, quando tomaram a decisão de voltar definitivamente ao seu país

de origem, o Assentamento Itamarati II já havia se consolidado. Deste modo,

atualmente ela vive em um lote no qual são os segundos donos. Eles foram

contemplados com a terra porque, na época do acampamento, ela e o marido

296 Neste trabalho não discorrer-se-á acerca do MST, no entanto, para mais informações sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra acessar o site: http://www.mst.org.br/ 297 A situação conhecida como “segundos donos” acontece quando a família assentada não se identifica com as atividades do campo e cede a terra para quem deseja dela fazer uso.

132

possuíam o cadastro e o registro de participação das atividades dos movimentos

sociais, resultantes, da inicial tentativa de retorno.

Luzia chegou ao Assentamento em 2017, com condições totalmente diversas

das supracitadas à medida que veio ao Assentamento para viver com a irmã, trazendo,

também, seus netos para estudar no Brasil. Ao separar-se do marido Luzia foi morar

com uma de suas filhas, que residia numa fazenda no Paraguai, na qual ela e o esposo

trabalhavam. Devido à distância e às condições precárias vivenciadas pela família,

que vivia nesse lugar um tanto afastado, as crianças estavam sem estudar. Assim,

preocupada com a educação dos filhos, pede à mãe para mudar-se ao Assentamento,

onde as crianças teriam um acesso facilitado ao ambiente escolar.

Diante disso, retratar-se-á as particularidades e as histórias de cada uma ao

chegar e lutar por um novo lugar, onde todas tinham como princípio fundamental o

trabalho com a terra.

Um fator é comum para as entrevistadas: ambas afirmaram que ficaram

sabendo tanto do acampamento, como, posteriormente, do Assentamento, por meio

de vizinhos/as e familiares que já haviam decidido regressar do Paraguai, situação

que se repete, uma vez que, anteriormente, a partida para o supramencionado país

se deu pelos mesmos motivos e por meio dos iguais veículos de comunicação. Como

aponta Martins: “A teia de relações de parentesco e compadrio se encarrega de

difundir as informações sobre a localização de novas terras que ainda podem ser

ocupadas”.298

Quando se fala em reforma agrária no Brasil os assuntos são os mais

variados, como, por exemplo o preconceito e a noção de invasão de terras os quais

imperam no imaginário de alguns setores da sociedade. Por esse motivo se faz

pertinente entender os motivos pelos quais ela (a reforma) surgiu. Segundo Mello,

Cappellin e Castro:

Os projetos de assentamento rural no Brasil, que começaram a ser implementados na década de 80, principalmente em áreas de conflito, surgiram como resultado das lutas pela Reforma Agrária. Estes se desenvolveram através da pressão sobre Estado por parte de entidades que apoiaram o movimento de resistência à expulsão ou de ocupação de terras. Esses projetos apresentaram-se, assim, como uma nova condição de acesso à terra, incorporando-se à estrutura fundiária com uma forma específica de organização da produção familiar na agricultura.299

298 MARTINS, 2016, p. 150 299 MELLO, CAPELLIN & CASTRO, 2010 p. 87.

133

As mulheres e os homens brasileiras/os, ao retornarem do Paraguai,

enxergaram nos acampamentos de luta pela terra uma nova saída para os desterros

que haviam sofrido nos dois países. Essa nova forma de luta pela terra vem carregada

de significações, tendo silenciadas algumas frações de ações vividas. Os meios de

comunicação, e algumas vezes os próprios movimentos sociais, dão uma ênfase

muito maior às pressões e aos conflitos, deixando o cotidiano da vida embaixo da lona

segregado ao esquecimento. De acordo com Medeiros:

No geral, a literatura tem enfatizado que os assentamentos rurais são produtos de conflitos em torno da posse de terra e as pressões dos trabalhadores e de suas organizações pelo direito ao seu uso pleno. No entanto muitas vezes, a ênfase na dimensão conflitiva da criação dos Assentamentos acaba por contraditoriamente, silenciar alguns de seus atores e as diferentes perspectivas com que se engajam nas lutas. É o caso das mulheres muitas vezes somente evidenciadas quando elas ganham destaque como lideranças.300

As mulheres que passam seus dias na luta pela terra à beira das rodovias são

invisíveis à história patriarcal de cunho androcêntrico. De maneira frequente são

relegadas ao esquecimento, já que a história agrária brasileira sempre foi narrada

através da ótica masculina, a qual coloca a mulher como coadjuvante nos trabalhos.

Por esse motivo os acampamentos também eram vistos como “coisa de homem”,

onde o direito à titulação parece ser exclusivamente deles, como aponta Esmeraldo:

A mulher não é percebida pela família nem indicada naturalmente para ser titular. Somente nos casos como de aposentadoria do marido, viuvez, existência de filhos homens de menor idade, a mulher assume o cadastro em nome da família.301

As relações de gênero vão sendo definidas a partir da vivência e dos costumes

de cada sociedade, fator perceptível na entrevista de dona Maria Celina, quando ela

descreve a chegada ao acampamento e a organização do barraco:

Foi legal, eu cheguei gostei, eu já tinha vindo conhecer e fazer meu CPF, eu cheguei de mudança de uma casa pra um barraco, eu cortinei tudo meu barraco, ficou lindo, eu gostava de ficar ali, só que um dia entrou uma cobra, daí eu fiquei com medo e ela pegou um pintinho, só que foi só aquela vez nunca mais entrou outra, o ruim era só morar na beira da BR.302

300 MEDEIROS, 2010, p. 10. 301 ESMERALDO, 2010, p. 191. 302 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som

134

Em sua fala ela ressalta o fato de ter saído de uma casa e ter entrado em um

barraco, o que alterou sua rotina de atividades, além de seu conforto cotidiano. Mas

dona Maria Celina coloca em foco não a adversidade, e sim o fato de ter organizado

o barraco, deixando-o bem bonito. Historicamente, a organização do lar esteve a cargo

das mulheres; e, sendo este um dos seus papéis primordiais, explicitam-se, assim, as

divisões de papéis sociais existentes – acentuadas nas comunidades rurais – entre

homens e mulheres. Segundo Esmeraldo:

Ao longo da história da formação da vida camponesa, estruturas materiais e simbólicas se objetivam e se naturalizam, e perpetuam uma ordem e uma divisão sexual na unidade produtiva e na unidade doméstica ordenando papéis sociais sexuados.303

Dona Maria Celina se recorda também da dificuldade de morar tão próximo à

rodovia, situação precária e perigosa causada pelo movimento de veículos de

pequenos e grandes portes. A fragilidade habitacional se sobressai quando ela

ressalta que sua alegria de morar no barraco que ela havia preparado, tinha sido

abalada pela entrada de uma cobra. Trata-se de uma situação que faz transparecer

os perigos aos quais as/os acampadas/os estavam sujeitos.

O ato de narrar sobre suas lutas e sofrimentos passa a ser uma arma contra

o esquecimento e os silêncios que dominam o feminino na sociedade. E de acordo

com Borges: “A memória surge como resistência elaborada ao longo do tempo;

memória que resiste ao medo, à destruição, ao desalento que de todos tomou conta,

a própria dominação”.304

Dona Maria Inês, ao contar sobre sua chegada ao acampamento, diz:

Eu cheguei com mochila, foi a roupa, acho que eu trouxe uns dois colchãozinho e uma maquinazinha de costura, mas não tinha como costurar porque tinha perdido a maior parte dela que era a mesa tudo e coisinhas assim ai ali nós conseguimos porque tinha um dinheirinho que tinha vendido a casa ai a gente conseguiu comprar a lona pra fazer um barracão reforçado e ali ficamos lutando.305

A precariedade vivida pela família se faz presente quando ela conta a história

de sua primeira experiência de acampamento. Ao descrever os objetos trazidos, dona

Maria Inês demonstra a importância destes para o seu dia a dia. Quando ela ressalta

303 ESMERALDO, 2010 p. 195. 304 BORGES, 1997, p. 103. 305 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som

135

que compraram uma lona para fazer um barracão reforçado é possível perceber a

importância estrutural que o local de morada tem para as pessoas. Pode-se, inclusive,

notar o valor simbólico da máquina de costura, uma vez que, mesmo sem funcionar,

ela fez parte dos componentes da mudança.

Na história das mulheres as representações sobre o gênero passam a definir

os papéis sociais, alimentando-os como naturais. Essas posturas são definidas de

acordo com o que se espera de cada uma delas. Quando dona Maria Inês descreve

os artefatos trazidos e as características que ela esperava do barraco, traveste o que

as mulheres são ensinadas a valorizar desde meninas. De acordo com Esmeraldo:

Como o espaço, o tempo também é usado para organizar e dar vida social e sexuada aos corpos de homens e mulheres. São construções que se eternizam na história, na economia e na cultura e são transmitidas na forma de normas, condutas, comportamentos e valores. Encobertas e naturalizadas, fazem uso de bens simbólicos que se corporificam nos objetos, nas coisas e criam gêneros. Dão a homens e mulheres destinos, funções e representações.306

Dona Maria Celina e dona Maria Inês prontamente se envolveram nas

atividades de militância307 ao chegarem ao acampamento. Quebrando paradigmas

sociais que ditam os lugares femininos, elas atuaram conduzindo e orientando as/os

acampadas/os de modo a tentar proporcionar-lhes uma vivencia menos sofrida

debaixo da lona.

Dona Maria Celina atuou como coordenadora geral da saúde. Ela relata sua

experiência ao colocar que:

No acampamento logo que nós chegamos eu fiz vários serviços, o que eu fiquei mais, até ir para a cidade foi de geral da saúde e cuidava de cinquenta famílias, quando era do grupo era facilzinho, porque eram dez famílias e quando era geral eram cinquenta. A minha atividade era assim, quando precisava de carro pra ir pra cidade, eu ia lá e falava que aquela pessoa estava precisando, dai eu ia lá no boteco falar com o pessoal das finanças pra pagar dai eu assinava e eles pagava, aquele carro que levou a pessoa doente, ai se tinha uma pessoa doente dai eu ia ver ai se precisava levar eu autorizava e eu ajudava o doutor lá, ajudei muito o doutor lá no acampamento.308

306 ESMERALDO, 2010, p. 199. 307 Esmeraldo define o conceito de mulher militante: Por mulher militante, compreendo as mulheres que se engajam no MST para participarem de suas lutas; participam de sua formação e que realizam a condução e a coordenação de ações realizadas pelo Movimento, sem, no entanto, ocuparem cargos de direção no mesmo. Por mulher dirigente, compreendo as mulheres que passam pela trajetória de militantes e ocupam cargos de direção nas instâncias locais, regionais, estaduais e/ou nacional. (ESMERALDO, 2011, p. 02). 308 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 33 min. (aprox.), som

136

O acampamento, além de ser um local de luta e de espera pela terra, passa

a ser também um lugar onde as mulheres se colocam na linha de frente de algumas

atividades, rompendo costumes que ditaram como espaço feminino o privado, onde

elas deveriam se ocupar da casa, do cuidado com os filhos e com os maridos.

Entretanto, a história das mulheres nos acampamentos caminha pela

invisibilidade, uma vez que este é visto como um espaço masculino de luta. Para a

sociedade patriarcal a mulher é apenas coadjuvante no processo de reforma agrária.

Assim, de acordo com Tedeschi, a história das mulheres é caracterizada pela

supressão das capacidades do humano:

A história das mulheres se desenvolveu, dessa forma, aprisionada aos sólidos muros – e talvez intocáveis – do pensamento universal masculino, num território marcado pela exclusão das capacidades do humano. Como resultado, tal parcela da humanidade (mais da metade), miserável e confinada, não pôde sequer ser constituidora de sua própria memória. Esse longo processo histórico ficou então caracterizado, como reflexo direto das relações patriarcais de poder, pela desmemorização e descorporalização das mulheres.309

Não é um fato comum às mulheres serem inclusas em espaços políticos,

ocorrendo tal fato há pouco tempo em nossa sociedade. Mas o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST já destaca em suas diretrizes a importância

de se construir novas relações de gênero, como aponta Honório:

Contrariamente aos sindicatos e/ou partidos políticos em que frequentemente os maridos participam enquanto as mulheres ficam em casa cuidando das tarefas do lar, as diretrizes do MST apontam a necessidade de construir novas relações de gênero no interior do movimento. Essa perspectiva muda a vida das mulheres sob vários aspectos.310

Quando dona Maria Celina afirma que ela assinava o caderno, autorizando o

pagamento do translado do enfermo, ela mostra o papel de destaque que ocupava,

de modo que era reconhecida socialmente por sua atuação. A vida das mulheres que

exerciam algumas funções de lideranças no acampamento era, assim, transformada

ao perceberem-se ativas e partícipes da luta pela terra.

Dona Maria Inês narra que:

Fui coordenadora de grupo um ano e oito meses, a coordenação, assim como o seu Clóvis foi, seria assim, a gente reunia o grupo e ia nas reuniões dos coordenadores, a equipe de coordenação com os estadual, daí eles passavam as informações pra gente, como teria que ser, como que teria que

309 TEDESCHI, 2018, p. 03. 310 HONÓRIO, 2005, p. 147.

137

fazer e ali a gente então se alertava, se espertava o que que era o estudo que a gente tinha que fazer, se tinha uma mobilização ou tivesse lá um evento, alguma coisa pra gente ir e foi clareando assim devagarinho, eu não sabia nada, nem como o que que era a vida embaixo de lona, mas a expectativa era grande, então do nada a gente foi se fazendo, trabalhando, ajudando até que chegou a hora de vim pra terra.311

Ao contar sobre sua experiência de coordenadora de grupo foi perceptível o

tom orgulhoso em sua fala. Ao discorrer sobre as reuniões e manifestações que

organizavam, ela demonstrou que se sentia parte ativa da luta. Ela afirma “eu não

sabia nada, nem como era viver debaixo da lona”, o que elucida as novas formas de

organização social que as pessoas passam a construir ao chegar no acampamento,

independente de desenvolver atividades na liderança. Segundo Honório:

[...] À fase do acampamento em que novas sociabilidades tem de ser construídas. As experiências nos acampamentos são uma das mais importantes, pois é o momento em que se começa a viver coletivamente, o que por sua vez implica estabelecer algumas regras de convivência, materializadas no chamado “regimento interno” decidido em assembleia e que estabelece os “códigos” de conduta de cada membro do acampamento.312

A forma de vida toma novos moldes enquanto se aguarda pelo assentamento.

Para algumas mulheres o período que passaram no acampamento foi um momento

de descobertas e de lutas por ocupar espaços iguais àqueles tomados pelos homens.

Ao serem questionadas se a vida no acampamento as tornou mulheres mais

independentes, tanto dona Maria Celina como dona Maria Inês foram enfáticas ao

afirmar que sim.

Maria Inês ressalta:

Com certeza, com certeza, porque tudo esse tempo que a gente foi coordenadora, a gente sempre tava junto com os grupos, não falhava nas reuniões, mobilizações para vários e outros lugares que a gente foi em Dourados, Campo Grande, Sidrolândia, esses lugares que a gente foi, tudo foi aprendizado pra mim eu não conhecia nada e não tinha oportunidade né e como a gente entrou nesses trabalhos de desenvolvimento pra mim foi muito vantajoso, foi muito importante, hoje eu digo isso.313

Um novo mundo é apresentado a essas mulheres, que passam a se perceber

como peça atuante da sociedade. Falar do passado enxergando-se como sujeito ativo

do processo é muito significativo para elas, que tão frequentemente ocupavam

311 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som 312 HONÓRIO, 2005, p. 01. 313 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som

138

espaços segregados e naturalizados. De repente se ver viajando e conhecendo

cidades em nome da luta pela terra foi algo que marcou a memória de maneira

positiva. De acordo com Menegat:

Assim, refletir sobre as mulheres assentadas, que percorreram uma história de migração em busca pela terra, é admitir que a construção da identidade encontra-se carregada de elementos voltados à memória de lutas passadas, às experiências que viveram em grupo e às tradições históricas e culturais que marcam suas vidas.314

No entanto, sabe-se que a grande maioria das mulheres que participaram de

acampamentos de sem-terra não puderam exercer atividades de liderança.

Historicamente a participação das mulheres em espaços públicos e políticos é inferior

à participação dos homens. É o caso de dona Maria Leni, que se mudou para o

acampamento juntamente com sua família, ocupando-se dos afazeres domésticos. Ao

contar sobre sua chegada no acampamento ela narra que:

Nós trouxemos uma piazinha que era do Antonio, um fogão a lenha, mesa e as camas. Eu me sentia bem, porque eu estava ciente de que nós íamos ter a terra e nós pra comprar um pedaço de terra não tinha condições e se nós ficássemos no Paraguai a gente não ia se aposentar nunca. Então ali eu já me sentia bem, bem mesmo, tranquila. O barraco era bem feito, coberto com uma lona de caminhão, essas que tampam os caminhões, era grandão tinha dois quartos, era dividido, tinha o banheiro tudo de lona e a cozinha, lona, chão batido, Era bem gostoso, comida a gente tinha com fartura, naquele tempo vinham as cestas básicas, nunca faltava nada pra nós. A vida era gostosa porque a gente tinha muita amizade só era difícil quando secava a água que a gente tinha que ir buscar água lá embaixo, mas eu me sentia tranquila, eu gostava do barraco, gostava, gostava mesmo do barraco, como tinha muita amizade a gente se acostumou logo vivia tranquila.315

Ela relata com detalhes como era seu barraco, descrevendo os móveis e a

organização do mesmo. Dona Maria Leni confiava na concretização do assentamento,

e estava ciente de que a reforma agrária era a única saída para ela e sua família

retornarem ao Brasil, pois não teriam condições para a aquisição de um pedaço de

terra.

Outro ponto destacado por ela acerca do regresso ao Brasil foi a oportunidade

de se aposentar, benefício este ao qual não teriam direito caso ficassem morando no

Paraguai. A melhora de vida a partir da conquista da terra e a possibilidade de ter uma

314 MENEGAT, 2008, p. 01. 315 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 39:00 min. (aprox.), som

139

renda mensal transforma-se em um sonho a partir da chegada no acampamento.

Como aponta Farias:

As mulheres e os homens são do campo e da cidade, são caminhantes que aspiram uma vida de fartura, de sossego e de reconhecimento do seu modo de vida, que reflete trajetórias muito marcadas por idas e vindas, cuja terra se coloca como um horizonte possível.316

O acampamento, além de ser um lugar de luta e resistência, foi também um

lugar de partilha, de construção de relacionamentos e de fortalecimento dos laços de

amizades. As três entrevistadas, Maria Leni, Maria Inês e Maria Celina, afirmam sentir

saudades do período em que viviam debaixo da lona por conta da proximidade que

tinham com suas vizinhas, laços que foram cortados ou limitados depois da chegada

na terra.

Dona Maria Inês ao narrar sobre a vida no acampamento conta que:

Mas se eu te falar que tem muitas vezes que eu sinto saudade, tenho saudade pela luta que a gente teve e pelas amizades, quanta amizade, quantos anos faz isso, hoje a gente só se abraça se encontra com muitas pessoas, quando se encontra por ai. Eu não tiro o direito de ninguém do modo de viver, porque muitas pessoas, eles se acomodaram, se acomodou, a gente se encontra, se abraça, conversa, a amizade existe, mas não tem mais aquele negócio de dizer que um visita o outro, que um olha pela saúde do outro, não isso não tem mais.317

Maria Leni também recorda com saudade da época que o chimarrão com as

vizinhas era sagrado:

Tenho saudade do acampamento, e como tenho, a gente morava colado um no outro, tinha tempo de conversar, as vezes lavando roupa mesmo, tinha um monte de gente em volta e a tardezinha aquele chimarrãozinho era sagrado, ali a gente se divertia. Agora não é que tem inimizade não é que não se tem mais tempo, sempre tem uma coisinha ou outra pra fazer.318

O tempo de acampamento de dona Maria Celina foi um pouco diferenciado.

Em consequência da demora da concretização do assentamento, ela começou a

trabalhar em Ponta Porã, onde realizava atividades domésticas:

Eu fiquei indo e vindo pra cidade trabalhando porque o Tonho não podia ir, o marido tinha que estar ali então o que que eu fazia, ele trabalhava assim quando tinha uns serviços nos eucaliptos ele sempre trabalhava, mas sempre precisava de uns trocos, ai só tinha a cesta básica e a gente era acostumado

316 FARIAS, 2011, p. 2. 317 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som 318 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 39:00 min. (aprox.), som

140

a ter uma carne, umas coisa assim, várias coisinhas que a gente tinha, e se ficasse só ali não tinha, então eu trabalhava, eu dava dinheiro pro Tonho, eu dava dinheiro pro Claudio eu mantinha eles e ainda comprava umas coisinhas, porque sempre sobrava uns troquinhos. Pra você ver quando eu comecei meu salário era 250 reais depois quando eu vim pro Cleriston era 300 reais que pagava. Mas todo sábado e domingo eu tava no barraco, a vida era boa, a gente tinha muita amizade, agora a gente vê pouco as pessoas, só os mais chegados mesmo.319

Dona Maria Celina ao narrar sobre sua vida de acampamento e sobre a

necessidade de deixa-lo durante a semana para trabalhar na cidade, levanta pontos

bastante relevantes. Ela era a provedora do lar, rompendo com o estereótipo social

que afirma que é o homem que deve cumprir essa função. Era responsabilidade dela

proporcionar pequenos luxos à vida no barraco, como, por exemplo a carne para

incrementar a alimentação que era fornecida através de cestas básicas.

O ir e vir entre cidade e acampamento – e vice-versa – com o intuito de poder

dar dinheiro ao marido e ao filho, e ainda, de proporcionar uns pequenos mimos a si

própria com o dinheirinho que sobrava, fez com que Maria Celina ocupasse um novo

espaço. Ao dizer “eu mantinha eles”, ela se apropria do poder e afirma a capacidade

feminina de sustentar uma casa e melhorar a vida de sua família, lugar esse sempre

negado a mulher. Como aponta Tedeschi:

A naturalização do privado, do doméstico, limitou a mulher ao lar, mas outorgou a ela uma nova forma de poder, não sobre o espaço público, mas sobre o privado. O significado da maternidade, conferido pelo discurso moral católico, apesar de ser simbólico, não foi menos opressivo, elevando a mulher à condição de “rainha do lar” e atribuindo-lhe funções, sejam fisiológicas ou familiares, transformando o espaço doméstico num local de controle do discurso masculino.320

As lembranças do acampamento geram nas mulheres um sentimento de

nostalgia, pois tratou-se de um momento em que tinham tempo para conversar com

as amigas e para participar de atividades fora do ambiente privado (como

manifestações, reuniões e viagens). Dona Maria Leni ressalta que até nos momentos

de realizar trabalhos domésticos, contava com a companhia de alguém. A vida

embaixo da lona foi uma experiência de trocas simbólicas e de reciprocidade que

acabaram por ficar limitadas a partir do momento em que elas chegaram à terra, onde

tiveram que assumir as atividades laborais e deixar o lazer em segunda instância,

esquecido. Menegat, ao estudar a realidade de assentamentos rurais, afirma que:

319 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 33 min. (aprox.), som 320 TEDESCHI, 2016, p. 73.

141

[...] A partir do momento em que as famílias foram atendidas em suas necessidades básicas (água, estradas e escolas), o movimento coletivo enfraqueceu: era preciso organizar a produção no lote, momento em que as mulheres, em sua maioria, abandonaram o trabalho grupal e passaram ao espaço restrito do lote e dos trabalhos dele recorrentes, reduzindo e mesmo abandonando suas atuações na esfera pública.321

No caso das mulheres do Assentamento Itamarati, depois que elas chegaram

à terra, não somente a movimentação, mas, ainda, os laços de amizade e

relacionamentos também se enfraqueceram. O trabalho na casa e no lote mudou suas

rotinas. O tradicional papel restrito à esfera doméstica volta a imperar em suas vidas,

deixando para a lembrança os momentos em que tinham tempo para partilhar com as

amigas.

A espera pela reforma agrária proporcionou às mulheres uma nova forma de

vida, mais partilhada e independente, mostrando os diversos lugares que podem ser

ocupados pelo feminino. Elas sentem saudades dessa época, mas se sentem

profundamente realizadas em suas terras, conquistadas depois de muitas andanças

e lutas.

A foto a seguir ilustra como era o acampamento no qual elas viveram:

Foto 9: Acampamento no qual viveram Dona Maria Leni, Maria Celina e Maria Inês. Fonte: Acervo pessoal de Maria Celina Azarias David, 2004.

Diferente de dona Maria Celina, Maria Leni e Maria Inês, que posteriormente

ao acampamento, conquistaram a tão sonhada terra, dona Fátima ficou embaixo da

321 MENEGAT, 2008, p. 02.

142

lona por um tempo expressivo e no momento em que as terras foram repartidas ela e

outras famílias ficaram no excedente, o que significa que o número de acampados

ultrapassava a quantidade de lotes cortados na Itamarati. Sobre o tempo de barraco

ela conta que:

No acampamento nós fizemos um barracão bem grande com umas madeira velhas que a gente trouxe lá do Paraguai. Era uma época assim, era bom e não era, porque tinha que trabalhar fora pra viver, a gente ganhava cesta básica, mas não era sempre, dai ele trabalhava fora, e lá no acampamento eu mesmo fazia pão pra vender, fazia sonho, fazia pastel e vendia ali mesmo pra sobreviver.322

As famílias acampadas passaram por diversas experiências, resistindo pela

terra. Dona Fátima ressalta a necessidade da busca de atividades laborais para

conseguir se manter debaixo da lona enquanto o marido sai em busca de trabalho.

Ela também procura uma renda extra, utilizando seus conhecimentos para garantir o

sustento da família. Tal fato explicita a participação feminina na geração de renda para

permanência ou melhora de vida em tempos de lutas.

Ela ficou acampada quase dois anos, mas não conseguiu acesso à terra junto

com as demais famílias. Sobre esse fato Dona Fátima conta que:

Por causa que ia sair o coletivo, que eram 90 famílias e nós ficamos excedente, pra pegar terra no próximo acampamento, naquela época se comentava que ia ser cortada a Santa Virgínia, bem no fim depois ficamos sem e depois conseguimos aqui, só que aqui nós somos os segundos donos. Antes de vir pra cá a gente morou em vários outros lotes aqui das redondezas, mas só cuidando e também ficava de favor.323

O sonho da conquista da terra foi adiado por um tempo e, ao invés de irem

para o seu próprio lote após a concretização do assentamento, a família começou a

trabalhar de agregada em espaços de terceiros, aguardando assim a possibilidade de

um novo acampamento na região. A peregrinação pela terra continua, assim como

aponta Borges:

Trabalhador da terra, trabalhador sem terra, trabalhador expulso da terra, trabalhador retirante, itinerante por esse mundo a fora. Desenraizado, judiado, errando de terra em terra, de cidade em cidade, peregrino em busca de um lugar para aportar e começar a viver, porque isso não é vida, isso é exílio e desolação. Peregrino, solto ao vento, querendo chegar. Acampamento, barraco, beira de estrada, fome, frio, calor, solidão. O acampamento é precário, o barraco é precário, a vida naquele momento é

322 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som 323 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som.

143

precária. Tudo é precário. Só a esperança é forte, não foi arrancada, está ali presente, servindo de apoio àquela insustentável leveza do ser.324

A esperança de conseguir a terra nas redondezas do Assentamento Itamarati

baseava-se na possibilidade da família ser contemplada com uma terra que havia sido

inicialmente destinada a pessoas que, ao não se identificarem com a vida no campo,

decidiram tomar novos rumos. A peregrinação de dona Fátima concluiu-se no ano de

2013, praticamente oito anos após a conclusão da segunda parte do Assentamento.

A experiência migrante de dona Fátima remonta à história das mulheres como

uma história das invisibilidades, uma história não mencionada, não recordada.

Recorrentemente as migrações são tratadas de maneira tradicional, sob ótica

patriarcal e androcêntrica, assumindo o sentido sinônimo de masculino. De acordo

com Oliveira:

Inserir as mulheres nas análises que pensam as migrações internas e externas e, portanto, uma escolha política. Escolha a partir da percepção que o olhar das mulheres tem contribuições a acrescentar à análise do processo migratório, embora seja evidente que, em grande parte da historiografia das migrações, elas ainda continuam a serem tratadas como parte da bagagem dos homens.325

Dona Ana, apesar de ter saído do Paraguai efetivamente para o já

Assentamento Itamarati no ano de 2007, também viveu no acampamento, quando,

numa primeira tentativa de regresso, decidiu optar pela reforma agrária, ficando

acampada com sua família por cerca de um ano. Desse tempo debaixo de lona ela

tem várias lembranças dos medos vividos:

No acampamento a gente via assim que era muito sofrido, ali embaixo daqueles barracos, era muito sofrimento pras pessoas, tinha aqueles que gostavam, mas era muito sofrido, muita gente vendeu tudo o que tinha e vieram ali, demorou muito pra sair essa terra e eles acabaram com tudo o que tinham. Então eu achei assim que a gente ia sofrer muito pra conseguir aquilo, a gente já tinha ido para o Paraguai sem nada, dai quando tinham um comecinho das coisas, vim e começar do zero outra vez, então achei melhor a gente voltar. Depois disso nós ficamos mais seis anos no Paraguai.326

A realidade da vida embaixo da lona fez dona Ana refletir sobre as suas

andanças em busca de terra, e o medo de um novo começo de miséria a fez optar

pelo retorno ao Paraguai. O receio e a incerteza do período de acampamento foram

324 BORGES, 1997, p. 110. 325 OLIVEIRA, 2015, p. 482. 326 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 12/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som.

144

uma realidade que a assustou profundamente. Mesmo tendo o sonho de regressar ao

Brasil, o caminho que ela tinha como possibilidade a fez escolher novamente ser

estrangeira no país vizinho.

Nesse tempo de acampamento dona Ana e sua família fizeram o título de

eleitor, vindo, portanto, periodicamente ao Assentamento para votar. Vendo a reforma

agrária concretizada, a vontade de regressar ao Brasil aumentou. Mas a época do

acampamento já havia passado. Ela, então, relata que eles contavam com a

perspectiva da desistência de alguém que já havia sido comtemplado com o lote:

A gente sempre vinha, porque tinha feito o título de eleitor aqui e tudo né, então a gente sempre vinha votar e com aquela esperança de um dia vim, que um dia alguém ia desistir do lote, que a gente ia entrar, que ia dar certo e foi assim até que deu e hoje estamos aqui.327

O sonho de voltar para o Brasil se concretiza seis anos após a primeira

tentativa de retorno. Para Ana, Fátima, Maria Celina, Maria Inês e Maria Leni a

andança por terra teve fim no Assentamento Itamarati.

3.4 A vida e a terra conquistada

Depois de diversas mudanças e muitas andanças as mulheres brasileiras

chegam, em seu país de origem, à terra que podem chamar de sua (desta vez, sem

correr riscos por falta de documentação). Dona Maria Celina ressalta:

Nós estamos na nossa terra, na nossa casa, o Brasil seja ruim do jeito que for é a nossa casa, fora o problema é o documento, nessa parte ai, lá no Paraguai ele judiava da gente, eu fiz meu documento e não veio, paguei, falou que não paguei, então tudo isso deixava a gente com medo lá.328

Estar novamente no Brasil dá segurança a dona Maria Celina; os medos e

aflições sofridos como estrangeira amenizam a falta de recursos, já que, como ela

enfatiza, “o Brasil seja ruim do jeito que for é a nossa casa”. Quando questionada

sobre a chegada à terra, ela conta emocionada sobre as primeiras atividades

realizadas por ela e pelo já falecido marido:

Nós chegamos com a mudança e jogamos na braquiária, foi maravilhoso, o caminhão que trouxe a mudança que marcou essa estrada. Eu tinha pé de

327 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 12/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som. 328 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 33 min. (aprox.), som

145

limão, ameixa, abacate, manga tudo plantado em pacote de arroz de 5 kg. Hoje quem vê não sabe, não viu o começo. O Tonho de noitinha ficou jogando lona encima no barraco e eu fui buscar água porque aqui não tinha, ai diz que tinha lobo que comia galinha daí eu escondi as galinhas debaixo da minha cama pros lobos não comer. No outro dia eu já fiz o galinheiro e eles dormiam fechadinho pro lobo não comer. Eram 8 frangos duas fêmeas e seis macho e a galinha que era a mãe deles. As primeiras vezes eu tirava os pintinhos pras galinhas ponhar mais rápido e criava guacho pra produzir mais rápido depois eu larguei mão disso porque já tinha bastante. Depois fez o barraco e foi furado o poço e eu terminei de ajudar a furar o poço, quando eu peguei aquela terra molhadinha eu senti uma alegria porque ia dar água, com dez metros surgiu uma mina que é esse poço. Hoje olhando pra trás eu vejo que a gente evoluiu muito, tem coisa que nos plantamos a sementinha, o caroço e já está produzindo, eu tinha a mania de pegar muda, semente de tudo, agora eu parei porque não tem mais lugar pra plantar.329

A riqueza de detalhes presentes ao contar sobre seus primeiros momentos na

terra demonstra a importância desse espaço para ela. Sua memória é repleta de

minúcias as quais evidenciam o que Maria Celina valoriza: o cuidado com as galinhas

colocadas para dormir embaixo de sua cama, a alegria de sentir a terra molhada. Isso

dá a ela a certeza da permanência e da melhora de vida, tão ansiadas desde tempos

remotos. Candau destaca como a memória molda os sujeitos:

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa.330

Os relatos contados pelas mulheres são frutos de uma memória modelada,

através da qual elas apontam os fatos mais marcantes, demonstrando a necessidade

de narrar determinados acontecimentos pelo medo do esquecimento. Esse processo

dialético entre memória e identidade permite entender quem são essas mulheres e

quais foram – e são – seus anseios.

As pequenas lembranças presentes nas narrativas dessas mulheres, não são

menos importantes, pois fizeram parte das suas histórias. Dona Maria Inês por

exemplo, ao descrever a mudança para o lote, destaca a chuva que os assolou:

Chegamos aqui a noite, despencou uma água, ai nós colocamos uma madeira por baixo, umas taboas e colocamos embaixo dos colchões, pedimos uma lona emprestada para o dono do caminhão porque nós não tínhamos, fincamos umas madeiras e jogamos aquela lona por cima, não tinha nem jeito de fazer comida, não tinha aonde fazer fogo né, a água rolava quase meio metro de altura por cima da grama aonde nós paramos. Se levantasse a mão pra cima já encostava na lona sabe, só que era uma lona boa, ai no outro dia

329ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som. 330 CANDAU, 2016, p. 16.

146

já estava tudo normal ai começamos a construir o barraco, eles fazendo em roda e eu carpindo dentro do barraco, meu Deus, nós fizemos dois quartos e uma cozinha grande, depois fizemos uma varandinha na frente e ali ficamos felizes da vida. Dai só começou a produzir as ideias melhor pra gente, o planejamento de fundo perdido, que na época deu pra gente comprar uma vaca, ferramenta para o trabalho. Então são coisas que começou e tudo deu certo, fomos criando umas galinhas, porcos, dai nós já estávamos armados para a luta, para trabalhar.331

A precariedade da chegada ao assentamento não tira a alegria de dona Maria

Inês, que, ao narrar sobre as dificuldades ocasionadas pela chuva e pelo trabalho na

construção do barraco, não deixa de afirmar “nós ficamos felizes da vida”. Outro ponto

elencado no diálogo é a consciência do início de uma nova luta: o trabalho na terra.

Mais adiante ela afirma: “nada se conquista sem luta, nada, é lutando que se consegue

isso é a realidade”. 332

As histórias contadas pelas mulheres constantemente priorizam o trabalho, as

ocupações diárias marcadas por lutas e doações, fator este que está intimamente

ligado aos lugares sociais ocupados por elas, quem são ensinadas a doarem suas

vidas em prol do desenvolvimento da sua família e a priorizar sempre o bem-estar do

marido e dos filhos. Essa prática, naturalizada pela sociedade, é, aliás, mais intensa

no meio rural. Lavratti e Ferreira, ao escrever sobre a dominação patriarcal, afirmam

que:

Essas relações de poder entre o homem e a mulher estão presentes no mundo, por conta da dominação do pensamento patriarcal que é reproduzido de forma universal e tradicional, onde o homem, hierarquicamente, determina as relações sociais e culturais dos indivíduos, seja na esfera da vida urbana ou rural, assim como a relação de submissão dos escravos, a mulher mantem o mesmo papel, sendo desprovida de direitos sociais e políticos, tendo no âmbito doméstico e privado o único papel de procriação e reprodução.333

A história narrada por dona Maria Leni ao chegar em seu lote perpassa os

mesmos caminhos de realizações, trabalhos e lutas diárias:

Que alivio, meu Deus, que coisa melhor do mundo, chegar aqui, a casa só tinha as portas de fora, faltavam as janelas, cerâmica só tinha aqui dentro de casa, lá fora não, tava meio bagunçado ainda, mas foi a melhor coisa, eu perdi as contas de quantas mudanças fiz na vida, chegar aqui foi um alivio, um alivio. Tava sem forro sem nada foi feito a instalação tudo depois que nós viemos eu e o Clóvis forramos os quartos tudo num domingo. Quando chegamos o primeiro serviço foi limpar mandioca, eu e o Clóvis vinhamos

331 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som 332 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som. 333 LAVRATTI & FERREIRA, 2015 p. 02.

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aqui trabalhar, dai quando nós mudamos algumas coisas já estavam plantadas. Tinha plantado mandioca, feijão, feito a horta, de manhã eu fazia comida e cuidava da casa e de tarde ia trabalhar. Tinha minhas galinhas, fizemos um chiqueiro pra colocar uns porcos, eu ajudei a fazer, eu sempre ajudava o Clóvis, porque era só nós dois. Tinha muita coisa pra fazer, mas eu estava feliz porque era terra que nós toda a vida sonhava. Em cima dessa terra não tinha um pedacinho de madeira se precisasse, não tinha nada era a terra e o capim só. A gente tirava água do poço. Assim que cheguei eu comecei a plantar minhas flores, eu plantei tanta coisa que se até agora nada tivesse morrida tava um sertão de tanto mato (risos) em volta desse pátio ai eu plantei tudo cerca viva, não pegou um pé, ai eu fui plantando, plantando, era só chover que a gente já começava.334

A tão sonhada terra agora é algo palpável. O alívio da certeza de que não

haverá mais mudanças é um fato que a deixa profundamente feliz, pois implica que

ela encontrou o lugar para deitar raízes e trabalhar. Além da descrição do sentimento

de sentir-se em paz com a concretização do assentamento, Maria Leni descreve as

atividades laborais dos primeiros dias no lote, afirmando que “ajudava” o marido, e

que, no período matutino, “fazia comida e cuidava da casa e a tarde ia trabalhar”. Tal

afirmação, observa-se, reforça o pressuposto de que as atividades dentro de casa não

são consideradas como trabalho. De acordo com Menegat:

No dia-a-dia das mulheres assentadas observam-se diferentes espaços e de vida e de trabalho compondo seus cotidianos, dentre eles o espaço da roça e o espaço da casa. O espaço da roça é o que denota maior importância, posto que visto como produtivo, pois gera visibilidade e trabalho efetivo, mas é o espaço comandado pelo homem. Já o espaço da casa representa o da reprodução, no qual é consumido o lucro advindo do trabalho coma roça e por isso mesmo é visto como valor nulo, se analisado sob a lógica capitalista, porque não gera lucro. É nesse sentido que o espaço da casa passa a ser o lugar do não trabalho, representando “ajuda”, onde se dá a existência apenas do “serviço”, sendo este o espaço da mulher. 335

A mulher então é vista como coadjuvante no processo produtivo nas terras,

apresentando rotinas duplas ou triplas as quais, ainda assim, são invisibilizadas pela

sociedade patriarcal, que, por sua vez, valoriza as atividades geradoras de lucro.

Nesse contexto não entram os trabalhos realizados na casa e seus arredores, como

por exemplo, a jardinagem, tão presente na vida de mulheres rurais, que fazem

verdadeiras obras de arte nos lotes. Independente desse ato de cuidado com as

plantas, utilizadas na decoração da morada, configurar-se como um ato de amor das

mulheres pela terra, ainda assim é visto como não importante ou secundário. Segundo

Rosaldo:

334 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 39 min. (aprox.), som. 335 MENEGAT, 2008, p. 4.

148

[...] o que talvez seja mais notável e surpreendente é o fato que as atividades masculinas, opostas as femininas sejam sempre reconhecidas como predominantemente importantes e os sistemas culturais deem poder e valor aos papéis e atividades dos homens.336

A diferenciação entre as atividades masculinas e femininas – caracterizada

a primeira como respeitável e a segunda como mera obrigação – é algo alimentado

historicamente. As mulheres lutaram e conquistaram vários direitos constitucionais,

mas muitos deles não foram de fato incorporados em decorrência de questões

tradicionais, como a visão de que os homens são naturalmente capacitados para

assumir responsabilidades a respeito delas, o que demonstra uma dicotomia entre os

gêneros. A sociedade patriarcal, androcêntrica, tem dificuldade em aceitar a mulher

enquanto sujeito e por isso a exclui constantemente. Medeiros destaca:

[...] o reconhecimento dos direitos e sua incorporação na institucionalidade não garantem sua efetiva implementação. A luta pelo reconhecimento é essencialmente produtora de conflitos e não são raros os casos em que os direitos garantidos por lei contrapõem-se a culturas locais, também percebidos como direitos ou se enfrentam com concepções costumeiras de diversos agentes que atuam junto aos assentados e que tendem a desconhecer, na sua prática cotidiana, algumas mudanças em curso. 337

Os direitos das mulheres não são reconhecidos; o lugar social delas é o

privado, ocupando-se da casa e dos filhos e exercendo o papel de dona de casa338.

Portanto, qualquer atividade que fuja desse contexto incomoda a sociedade

tradicional. De acordo com Tedeschi: “O poder simbólico do patriarcalismo de dizer e

fazer crer sobre o mundo feminino teve o controle da vida social e expressou sua

supremacia, estabelecendo valores e normas aos papéis sociais das mulheres”.339

Porém suas práticas de luta, suas resistências e seus protagonismos mostram uma

outra história, a qual vai contra as narrativas tradicionais sobre a invisibilidade

feminina nesses processos.

Dona Fátima ao contar sobre a consolidação de sua luta que, como dito

anteriormente, se alongou por mais alguns anos, relata, ainda, sobre a pressão sofrida

em casa por parte do marido e dos filhos por ser presidente da associação dos idosos:

Agora que eu estou aqui eu gosto de tudo, eu tava antes, três ano de favor aqui, dai conseguimos passar pro nosso nome, conseguimos pra nós né,

336 ROSALDO, 1979, p. 35. 337 MEDEIROS, 2010 p. 18. 338 O papel de dona de casa é um trabalho cotidiano e embora sendo um labor não é valorizado, e consequentemente naturalizado. 339 TEDESCHI, 2016, p. 77.

149

então estou mais contente porque dai é da gente né, eu posso ir reformando a casa, com quatro anos que estou morando aqui agora que esta reformando e eu gosto da chácara, você planta de tudo e você tem, só não tem quem não planta, que aqui tudo que se plantar produz. A segurança que eu tenho hoje eu nunca tive, quando a gente casou ele tinha terra que era herança do pai dele, mas junto com a mãe dele né, ai venderam e repetiram pra quatro irmãos, dai ficou praticamente sem nada, dai que a gente foi para o Paraguai e dai compramos financiado pelo banco e não deu certo, perdemos tudo. Então hoje eu me sinto realizada, tenho um lote, estou reformando a casa e estou de presidente de uma associação e olha que eu nunca tinha entrado em nenhuma diretoria, meu esposo sim já foi presidente de escola, igreja lá no Paraguai, mais agora ele não vai comigo, não me apoia e as vezes até nos briga, ele não quer saber, nem meus filhos, não é que eles criticam mas de vez enquanto dão umas cutucadas, mas eu não ligo porque eu estou fazendo porque eu gosto e quero levar pra frente, eles me criticam xingam, as vezes falta alguma coisinha aqui em casa, mas eu nunca faltei com minha obrigação de mulher sabe, mais ai ele já cutuca sabe, porque essa associação porque não sei o que, mais eu não ligo, tem vezes que eu discuto e tem vezes que eu vejo que não vale a pena e deixo, eu falei agora eu já estou vou levar a diante, não precisa me ajudar. O que ele não gosta é que nos dias de festa eu fico até de noite lá, dai ele não gosta, porque ele não me acompanha e dai como eu não dirijo eu dependo dos outros vim me buscar e levar, mas sempre tem minha secretaria340 que é gente de confiança que me busca e me leva, ai ele não gosta, mas eu não ligo, eu aguento. No começo ele me levava e me buscava, mais depois ele torceu o nariz e não foi mais, ele tentou me proibir mais agora tem que continuar e ele tem que entender né que enquanto eu tiver no mandato eu tenho que continuar eu ate quero me candidatar de novo, mais depende da família, porque eu não posso abandonar eles por causa disso, mas eu gostaria porque todos os meus sócios falam que gostam de mim e que nem precisaria de uma nova eleição.341

Dona Fátima narra com detalhes os difíceis caminhos percorridos até

conseguir uma terra. Ela enfatiza a beleza de poder cultivar, colher e principalmente

a garantia proporcionada pelo lote. Com 57 anos de idade ela afirma: “a segurança

que tenho hoje eu nunca tive”. Tal fato explicita as muitas situações de precariedade

e incerteza que acompanharam as mulheres ao longo dos processos migratórios.

A terra foi impulsionadora de peregrinações e na atualidade é certeza da

permanência. Para Borges: “[...] aquele que tendo a terra como seu ponto de partida,

a descobre e conquista, finalmente, como ponto de chegada”.342

Além do sitio e do mundo privado, dona Fátima exerce uma atividade pública

de representatividade no Assentamento, uma vez que é presidente de uma

associação. Assim como destaca Pizarro: “En médio de los silencios, empezaron a

emerger figuras femeninas”.343 Ela passa, portanto, a ser uma mulher à frente da

340 Pessoa que ocupa o cargo de secretária na associação da qual dona Fátima é presidente. 341 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som. 342 BORGES 1997, p. 27. 343 PIZARRO, 2013, p. 17.

150

comunidade, fato que incomoda os filhos e o marido, já que isso implica que ela deixou

de seguir os tradicionais papéis à ela impostos.

É um fato comum os homens quererem proibir suas esposas de exercer

determinadas funções, pois costumeiramente as mulheres se dedicaram a atividades

específicas e limitadas, vistas como naturais. É por isso que, quando algo diferente

acontece na vida delas, os costumes tradicionais, os quais sempre beneficiaram o

homem e seu domínio sobre as mulheres, pesam.

O caso de dona Fátima pesa mais sobre o seu esposo, porque era ele quem

exercia as atividades de destaque na comunidade “meu esposo sim já foi presidente

de escola, igreja lá no Paraguai, mais agora ele não vai comigo, não me apoia e as

vezes até nos briga, ele não quer saber”. Ver a esposa ocupando esses espaços é

uma novidade que não o agrada, gerando conflitos no relacionamento. De acordo com

Menegat:

É inegável a existência de uma estrutura social que ainda guarda hierarquias de poder, com importância social diferenciada entre homens e mulheres no conjunto social, e no meio rural essa hierarquia parece ter um ritmo mais lento para a superação dessa diferença, o que leva as mulheres a participarem de novos espaços por via de negociação com os homens e não o partilhar nas posições que ambos ocupam.344

Quando ela sai e algumas das atividades tidas como “da mulher” não o

agradam, o marido de dona Fátima utiliza isso como pivô para uma discussão,

objetivando afasta-la das atividades da associação. Desse modo, ela está em

constante negociação com ele para que possa exercer seu cargo sem ter

contratempos ou situações desagradáveis. Na sociedade patriarcal a mulher pode

“até” ter alguns direitos, mas partilhar dos lugares e posições sociais masculinas é

algo impensável. Mas esse cenário vem se alterando a cada dia, com posturas de

resistência como as de dona Fátima, que enfrentara a negativa do marido, escolhendo

fazer o que lhe dá prazer. Segundo Esmeraldo:

Para as mulheres, o sentido de novas possibilidades de ação produtiva, de relações com o mercado consumidor e com a política revela e desafia as orientações dominantes: quebra um silêncio sobre a capacidade de ações múltiplas e fora do contexto familiar: oferece pistas sobre novas evidências e novos significados de papéis: possibilita a produção de sujeitos ativos e em processo de emancipação.345

344 MENEGAT, 2008, p. 5. 345 ESMERALDO, 2010, p. 210.

151

O contexto fora do ambiente familiar não é uma realidade para grande parte

das mulheres que vivem no assentamento, onde se ocupam, sobretudo, do lote e das

atividades domésticas. Dona Ana, ao narrar, a sua chegada a terra, fala sobre a

situação precária de um novo recomeço:

Ah quando eu cheguei, não tinha nada, não tinha nada, nada, nada, quando a gente mudou aqui, não tinha energia, não tinha água, não tinha casa, estava iniciando apenas levantado um pouco, e assim tinham coberto e a parede, não tinha janela, não tinha porta, a gente ficou assim dias encostando qualquer coisa pra fechar. Que as portas ela tinha, a senhora de antes tinha feito um barraco, e daí passou as criação por cima e amassou, quebrou tudo, e não tinha mais nada. E umas partes vendeu e aí sim aquela situação né. Então a gente começou do nada aqui né. Foi muito sofrido né. Muito sofrido até a gente conseguir né, arrumar tudo, foi bem, bem difícil. Quando a gente chegou aqui, a gente já mandou gradear tudo aqui, arrumar assim, foi de enxada batendo tudo aquela braquiária né, fizemos tudo de enxada aqui eu e a Daiane, o Nelson, ajudava daí, nós tinha uma parte arrendada lá (Paraguai), e ele aí ia pra lá, eu e a Daiane ficava aqui. E a gente foi se virando sabe assim, plantando e fazendo, trabalhamos bastante. Hoje já estou tranquila aqui, que nós já trabalhou muito.346

As narrativas sobre as características da casa e dos trabalhos desenvolvidos

ao chegar também se fazem presentes na entrevista de dona Ana. As mulheres se

atentam mais aos detalhes da casa, visto que esse é o lugar que elas identificam como

seu e o qual está sob seus domínios. A casa, no entanto, é também o lugar de refúgio,

onde elas guardam suas lembranças, dores e alegrias. Certeau e Giard apontam que:

A diversidade dos lugares e das aparências nem se compara à multiplicidade das funções e das práticas de que o espaço privado é ao mesmo tempo o cenário próprio para mobiliar e o teatro da operação. Aqui se repetem em número indefinido em suas minuciosas variações as sequências de gestos indispensáveis aos ritmos do agir cotidiano. Aqui o corpo dispõe de um abrigo fechado onde pode estirar-se, dormir, fugir do barulho, dos olhares, da presença de outras pessoas, garantir suas funções e seu entretenimento mais íntimo.347

O espaço doméstico é, pois, o lugar de poder feminino, onde elas ditam as

regras, organizam a casa e cuidam dos filhos. É nesse palco que as mulheres

trabalham, onde desempenham atividades que, pela ótica patriarcal, configuram-se

como apenas “obrigações femininas”. Entretanto, a mesma nulidade que se dá ao

trabalho dessas mulheres (posição à qual a presente pesquisa não adere) é utilizada

por elas como forma de dominação do espaço, segundo Rosaldo:

346 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 12/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som. 347 CERTEAU & GIARD, 2013, p. 205.

152

Enquanto reconhecem a autoridade masculina, as mulheres podem dirigi-la para seus próprios interesses; e em termos de escolhas e decisões reais de quem influencia quem e como, o poder exercido por eles pode ter efeito considerável e sistemático.348

As mulheres marcadas pelas representações de gênero no decorrer da

história ocupam espaços limitados pela sociedade. Todavia, dentro desses lugares

elas fazem uso de estratégias de poder, colocando-se como protagonistas de muitas

ações – por vezes de maneira velada, por conta das tradições patriarcais. Situações

estas que podem ser analisadas pelas pequenas resistências diárias, como destaca

Wolff:

A resistência nem sempre se expressa em aberta rebeldia, ela se dá em gestos, muitas vezes introspectivamente, mas permite que o sujeito se afirme mesmo em um contexto de total negação de seus direitos, suas vontades, seus prazeres.349

Quando dona Ana relata que enquanto o marido ainda estava envolvido com

atividades lá no Paraguai, ela e a filha foram organizando o sítio, ela explicita o papel

principal desenvolvido pelas mulheres. Mas fatos como este geralmente ficam por

detrás das cortinas, à medida que a sociedade se acostumou a ver os homens como

representantes dos trabalhos rurais.

O Assentamento Itamarati é, assim, um lugar onde se desenrolam muitas e

distintas formas de vida. Lugar em que algumas famílias concretizaram a luta pela

terra, trabalhando hoje em seus lotes. Mas a história dos lugares e das pessoas não

são homogêneas, enquanto para uns é o lugar de deitar raízes depois de muitas

andanças, para outros ainda é o lugar de passagem e trabalho em busca da terra.

Dona Luzia é uma dessas muitas pessoas que estão no assentamento a

trabalho enquanto aguardam a realização de uma nova reforma agrária. Como já

mencionado anteriormente, ela saiu do Paraguai para trazer os netos para estudarem

no Brasil. Ela conta com tristeza sobre os últimos acontecimentos da vida de casada

que a fizeram buscar uma nova vida:

Eu me separei dele, a nossa separação já estava muito tempo, na época eu estava muito doente né, então, devido a essa doença foi causado mesmo por causa dele né, só de fazer eu passar muito nervoso. Então daí eu já doente, cada vez mais, ele não mudou nada, continuou agressivo daquele jeito, ele não me batia mais só de emocionalmente já ia me acabando com minha

348 ROSALDO, 1979, p. 37. 349 WOLFF, 2015, p. 584.

153

saúde né, então graças a Deus eu vi que não dava saí, nesse intervalo minha filha precisou de mim, mais um motivo pra mim ficar junto dela.350

Depois de muitas formas de violência sofridas, como agressões verbais, a

exploração do seu trabalho, a falta de assistência na hora da doença, dona Luzia, já

com uma idade avançada, decide deixar tudo pra trás, saindo de um relacionamento

abusivo. Sem muitas opções ela é acolhida pela filha, que estava com problemas de

saúde e, por não poder abandonar o trabalho no Paraguai, pede para a mãe trazer

seus filhos para estudarem no Brasil. Tendo uma irmã no Assentamento Itamarati,

Dona Luzia recorre a ela pedindo abrigo:

Ai ela me pediu pra vir pra cá pra estudar as crianças e através da minha irmã que estava aqui, eu consegui vir, ela foi muito boa, ela me ofereceu o apoio, casa, um lugar, então meu cunhado, velho Amaro, então ele falou, não tem problema me acolheu muito, foi muito bom pra mim, só que depois não deu mais certo, ai eu já tinha esse servicinho aqui na dona Maria, dai eles me ofereceram pra vir morar aqui com as crianças, dai eu vim definitivamente pra cá. E eu falei a minha condição é essa: eu quero separado, separação total, cozinha, cama e banheiro, não quero nem usar o seu banheiro, eu uso porque trabalho, mas as crianças não, aí como ele aceitou, ele falou não, tem problema nós separa, vamos separar e vamos combinar um preço, que a gente pode também ajudar um pouco a senhora, rico nós não somos, mas fome ninguém vai passar. Aí o que a senhora precisar é só avisar, a gente concede, e como que a gente vai pagar pra senhora, e pode trazer até criação, se a senhora tem, pode trazer, uma galinha um porquinho, se a senhora tem condições de trazer, pode vim que a gente vai arrumar um lugarzinho pra senhora. Mas do meu casamento eu não trouxe nada, ele (marido) falou que não vai me dar nada, isso que eu fico mais revoltada, porque eu vivi 35 anos com ele, e ele não me deu nada, nada, nada. Ai eu me inscrevi lá no sem-terra em Antonio João, eu tenho muita esperança de um dia morar no que é meu.351

A história de vida de dona Luzia perpassa vários momentos de sofrimento e

de lutas. O relacionamento abusivo no casamento é infelizmente uma questão comum

para muitas mulheres, que são vistas pelos homens como meros objetos que estão à

sua disposição. De acordo com Tedeschi: “O marido torna-se por definição, a

presença mais importante no universo feminino, representando uma autoridade moral,

como também é entorno dele que gira o poder de enunciar as representações sobre

a mulher”.352

Fugir dessa autoridade não é fácil, motivo este que leva à compreensão das

causas que fizeram com que o casamento de dona Luzia tivesse durado 35 anos. As

350 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 34 min. (aprox.), som. 351 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio – mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 34 min. (aprox.), som. 352 TEDESCHI, 2016, p. 74.

154

mulheres muitas vezes, principalmente no meio rural, se sentem coagidas a manter

relacionamentos infelizes por não terem a quem recorrer, por falta de informação e

principalmente por conta dos valores morais e religiosos, introduzidos no ideário das

pessoas e tidos como verdade única, e os quais defendem a ideia do casamento para

a vida toda, independente de como ele é vivido. Segundo mesmo autor:

A moral cristã e o discurso da Igreja obrigaram e limitaram a mulher a “ser para” e “através dos” outros, negando-lhe a possibilidade de ser ela mesma. Deste modo, portanto, as mulheres continuam no mundo privado, sendo consideradas socialmente subalternas e ausentes do espaço público.353

Deste modo, o fato de dona Luzia ter optado por deixar o marido para buscar

uma nova forma de vida, sem nenhum apoio financeiro, demonstra a força e coragem

que teve após anos de situações em que foi subestimada. Ela agora é “dona do próprio

nariz”, como ressaltou em outro momento da entrevista. O trabalho no Assentamento

proporcionou-lhe independência e agora ela sonha com a possibilidade de ter uma

terra, fruto da reforma agrária. Ela conta com orgulho:

Hoje em dia além do meu salário o meu genro e a minha filha me ajudam com dinheiro pra eu poder cuidar das crianças, inclusive hoje eu tenho tudo dentro de casa, quando eu vim de lá ele já tirou pra mim, máquina de lavar, centrífuga, fogão, agora tenho um fogão a gás novinho que ele me deu, até liquidificador ele tirou, então tenho de tudo, antigamente eu vivi 35 anos com um homem que não me deu nada, trabalhando pra ele e cuidando dos filhos dele e ele não me deu nada.354

O valor simbólico do salário e dos artefatos domésticos povoam o ideário de

dona Luzia, que se sente vitoriosa por ter conseguido sair de um relacionamento

abusivo e com seus próprios méritos construir uma nova vida com mais conforto e

liberdade. O trabalho, tanto com o cuidado dos netos como o de empregada

doméstica, representa para ela uma mudança no padrão de vida que acaba por

romper com estereótipos sociais limitadores da mulher. Como destaca Esmeraldo:

Novos padrões de vida doméstica emergem com as mudanças nos padrões de trabalho e de consumo. Os sistemas dominantes de representação do masculino e do feminino no mundo camponês já não estão mais assegurados diante da mobilidade da mulher para o campo produtivo e político. Nas trilhas dessas terras subterrâneas caminha a produção de novas subjetividades de um Devir Mulher, que se ancora no campo produtivo e político.355

353 TEDESCHI, 2016, p. 73. 354 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 34 min. (aprox.), som. 355 ESMERALDO, 2010, p. 210.

155

As mulheres, com muito custo, estão alcançando novas formas de vida e

reconhecimento social. Os trabalhos e atividades que historicamente foram

invisibilizados estão começando a ganhar força e reconhecimento. Mas ainda há um

longo caminho a ser percorrido, principalmente no meio rural.

A história conjugal de dona Luzia revela mais um dos problemas sociais

causados por uma sociedade androcêntrica, na qual o casamento coloca o homem e

mulher em posições díspares De acordo com Saffioti: “O casamento, capaz de

estabelecer relações igualitárias, ter-se-ia que dar entre indivíduos. Ora, isso não

ocorre, pois ele une um indivíduo a uma subordinada”.356

Dona Luzia ressalta o fato de ter trabalhado 35 anos junto com o marido e,

mesmo assim, ter saído sem nada desse relacionamento, situação que deixa

transparecer a desigualdade de direitos entre os gêneros, onde o homem se sente no

direito de ficar com todos os bens materiais construídos com o trabalho dos dois.

Segato aponta os sofrimentos e violências sofridas pelas mulheres como resultado de

uma colonização do feminino que precisa ser desmontada:

Esa construcción colonial moderna del valor residual del destino de las mujeres es lo que necesitamos desmontar, oponer y reencaminar, porque es de este esquema binario y minorizador que se derivan no solo los daños que afectan a la vida de las mujeres sino que también se expresan los males que afectan a la sociedad contemporánea como un todo. Porque las agresiones que la mujer padece en las violencias y abusos cotidianos de la casa y en nuevas formas informales de la guerra, son el termómetro que permite diagnosticar los tránsitos históricos de la sociedad como un todo.357

Situações de abuso como as sofridas por dona Luzia acontecem com as

mulheres de maneira recorrente. Isso ocorre porque a sociedade construiu valores

pautados em relações patriarcais, colocando o homem como produtor ou “chefe” de

família e as mulheres como subordinadas. De acordo com Deere e León:

As regras sociais que governam a transmissão de bens produtivos – ou seja, a construção social da masculinidade e feminilidade em que os homens são definidos como os produtores de renda e as mulheres como donas de casa dependentes – tem gerado uma considerável desigualdade de gêneros na posse dos bens.358

Dona Luzia narra os sentimentos de dor e abandono que sentiu ao longo de

sua vida matrimonial, surgindo algumas lágrimas e imperando alguns silêncios em

356 SAFFIOTI, 2015, p. 137. 357 SEGATO, 2016, p. 95. 358 DEERE & LEÓN, 2002, p. 41.

156

determinados momentos do diálogo. Assim, segundo Perrot: “Percebem-se as

reticências, a imensidão do não dito. Sente-se o peso do seu silêncio”.359 Um silêncio

que resiste.

Essas seis mulheres chegaram e encontraram no Assentamento Itamarati seu

refúgio, a concretização do sonho de ter um pedaço de terra para cultivar, ou, como

no caso de dona Luzia, um emprego para se manter enquanto ainda aguarda pela

terra, o que a faz depositar suas esperanças na reforma agrária.

Todas elas travaram incontáveis lutas a partir do momento em que resolveram

migrar. A vida como migrante foi cheia de percalços, mas em momento algum elas

deram-se por vencidas, tendo como horizonte o retorno ao Brasil – aspiração

concretizada por meio da reforma agrária.

Um dos últimos questionamentos feitos a elas foi se elas se sentiam

realizadas na atualidade. Eis, a seguir, a resposta de cada uma dessas mulheres:

Dona Ana: “Sim eu me sinto realizada e feliz, eu acho que o que deu pra fazer

a gente fez, e agora é tentar fazer o possível pra viver bem, tentar manter uma

amizade com os vizinhos, com a comunidade, ficar em dia pra ficar em paz”.360

Dona Maria Inês:

Sim eu me sinto, me sinto realizada e agradecida a Deus, pela distorção de memória que a gente teve, sobre a organização, que a gente só imaginava assim, meu Deus entrar no nosso lote, só com a cara e a coragem, sem ter um pé de nada plantado, da onde vai vim, pra dizer que hoje a gente tem os recursozinho da gente, graças a Deus.361

Dona Maria Celina: “Graças a Deus sim, me sinto bastante realizada, também

treze anos, porque nós chegamos aqui em 2005 e de lá pra cá, nós deu umas quedas

feias, deu uns problemas, mas no fim vai dando certo”.362

Dona Fátima: “Hoje eu me sinto realizada, tenho um lote, estou reformando

minha casa e sou presidente de uma associação”.363

359 PERROT, 2017, p. 26. 360 ENTREVISTA. Ana Samariva Daniel (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 12/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som. 361 ENTREVISTA. Maria Inês Alves Nunes (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 09/04/2018. 62:02 min. (aprox.), som 362 ENTREVISTA. Maria Celina Azarias David (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 17/02/2012. 58 min. (aprox.), som 363 ENTREVISTA. Fátima de Lourdes Fincatto (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 37:00 min. (aprox.), som.

157

Dona Maria Leni: “Hoje eu me sinto a pessoa mais feliz do mundo aqui, em

olhar pra essas árvores ai, pra essa terra, em saber que a gente tem uma vida que

pediu pra Deus, uma vida tranquila”.364

Dona Luzia: “Graças a Deus eu me sinto bem feliz aqui, eu saio a hora que

eu quero, onde eu saio a turma me convida, vem conversar com a gente, estou mesma

coisa se tivesse na minha casa aqui”.365

O caminho percorrido em direção à concretização do sonho foi longo e árduo,

no qual os preâmbulos de alguns acontecimentos foram marcados por violências. As

mulheres, entretanto, pautaram suas lutas na esperança de dias melhores,

alimentando com ela as resistências diárias.

Deste modo, a história dessas mulheres ilustra o fato de que, após tanta luta

e tantos sofrimentos, as mulheres brasiguaias que decidiram voltar ao Brasil

conseguiram alcançar o fator propulsor da migração, qual seja, a terra. Terra na qual

agora podem deitar raízes, re-enraizar366.

364 ENTREVISTA. Maria Leni Tomascheski (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 10/04/2018. 39:00 min. (aprox.), som 365 ENTREVISTA. Luzia Mauro (Áudio –mp3). Produção: Elisandra Tomascheski. Ponta Porã. 21/03/2018. 34 min. (aprox.), som. 366 Termo utilizado por Borges, 1997, p. 111.

158

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A migração de mulheres e homens do Brasil para o Paraguai decorreu,

fundamentalmente, da busca por terras. As mudanças na concepção de agricultura

alteraram as formas de trabalho com a terra e, por conseguinte, transformaram a vida

de centenas de famílias agricultoras, considerando que a mecanização e a produção

em larga escala eliminaram as pequenas propriedades até então utilizadas para a

produção familiar.

Como se pode observar através das discussões desenvolvidas no primeiro

capítulo, o surgimento e a ampliação dos latifúndios favoreceram a migração, uma vez

que as pequenas e médias propriedades que não conseguiam adequar-se ao novo

padrão agrário foram “engolidas” pelas grandes em nome do progresso rural, que

como apresentado não atingiu a todos/as. A economia se transformou, passando a

apresentar novas formas de organização social.

Outro fator marcante no processo migratório foi a visitação entre parentes e

amigos. Saber que já existia um conhecido do “lado de lá” dava àqueles, ainda em

dúvida, uma certa segurança. Isso resultou na formação de comunidades

predominantemente brasileiras dentro do Paraguai.

No lugar “chegado” – palco de divisões com o “outro”, com o “diferente” – o

estranhamento entre brasileiras/os e paraguaias/os mostrou-se marcante.

Adequações e coexistências foram desenvolvidas pelos dois grupos, algumas de

maneira amistosa e outras não. É importante ressaltar que a migração deixou marcas

e ocasionou transformações tanto no lugar como nas pessoas. Com o intuito de

viverem nesse novo espaço ocupado, as mulheres e os homens “chegados/as”

criaram mecanismos, como a adaptação ao novo idioma e aos costumes distintos. O

mecanismo de adaptação primordial foi, portanto, a manutenção dos seus hábitos

culturais além fronteira.

A fronteira tornou-se, então, um termo dinâmico, de encontro, de coexistência,

não se limitando a aspectos geográficos, lugares estes, nos quais a alteridade não se

fazia tão frequente, porquanto a sobreposição de cultural foi bastante comum. Estes

fatores remontam ao que Martins destaca em suas pesquisas sobre fronteiras:

Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnia, fronteira da história e da historicidade do homem. É sobretudo fronteira do humano. Nesse sentido a

159

fronteira tem um caráter litúrgico e sacrificial, porque nela o outro e degradado para, deste modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora.367

O processo migratório entre esses dois países é bastante conhecido, tendo

sido mencionado desde os seus primórdios, seja através da imprensa, seja por meio

de pesquisas realizadas em torno da temática. O presente trabalho, no entanto, partiu

por sua vez, da premissa de analisar os protagonismos das mulheres migrantes,

história, esta, invisibilizada de maneira recorrente.

Apesar de constante ao longo da história, a migração de mulheres foi pouco

mencionada, fato que decorre dos padrões tradicionais patriarcais e androcêntricos

sobre os quais a sociedade é pautada, e os quais colocam, de maneira recorrente, o

masculino em posições de destaque. De acordo com Tedeschi: “a história das

mulheres, por sua vez, narra e revela uma “história menor”, do silêncio, uma história

do confinamento, arbitrária, cercada de mistérios e zonas de sombra”. 368

A história das mulheres é então feita pelas margens. Escrever sobre mulheres

é romper com paradigmas construídos ao longo da constituição histórica, porque a

elas cabia o silêncio do mundo privado, não passível de reconhecimento. Alicerçaram-

se padrões excludentes em uma história androcêntrica.

A decisão de partir integra esse migrar, afinal, as mulheres concordaram com

a mudança de país. Tratou-se, assim, de uma decisão conjunta, familiar. Tal situação,

contudo, normalmente não é notada dentro do binarismo social que sobrepõe os

papéis dos homens aos das mulheres, as quais, quando retratadas, são

frequentemente descritas como se fossem parte da bagagem do masculino migrante,

um “ser” sem vontade própria. Situações limitadoras do poder feminino que

perpassam os espaços domésticos. Sendo assim, para Rosaldo: “[...] em toda parte

os homens têm alguma autoridade sobre as mulheres, possuem direito legitimado

para a subordinação e confiança delas”. 369

As mulheres que migraram para o Paraguai levaram consigo uma vontade de

melhorar de vida que se refletia na sua busca por um progresso econômico que

proporcionaria, enfim, o bem-estar a sua família. Com base nesses objetivos elas

enfrentaram árduas jornadas de trabalho e condições precárias de moradia.

367 MARTINS, 2016 P. 11. 368 TEDESCHI, 2018, p. 05. 369 ROSALDO, 1979, p. 37.

160

Fazem parte dessas jornadas as pequenas histórias, ditas invisíveis. Elas

tiveram medo de migrar, pois o “lado de lá” era algo que as assustava profundamente.

Os detalhes da narrativa das mulheres, os momentos que marcaram suas trajetórias,

são comumente excluídos da historiografia oficial, tradicionalmente pensada por

homens para escrever sobre “grandes” feitos masculinos.

A carga de significações sobre o ato de migrar marcou o imaginário das

mulheres, quem, ao narrar sobre os detalhes da viagem, sobre os contratempos

encontrados, sobre as condições precárias de moradia, proporcionaram uma nova

visão – mais detalhada – do processo migratório, o qual passa, então, a apresentar

novos sujeitos à medida que traz uma riqueza de registros, perceptíveis no dito e no

não dito, nas expressões, nas repetições. Essa história feita pelas margens vai contra

a história tradicional, oficial, da migração, no interior da qual o feminino não é apontado

como protagonista.

As trajetórias das mulheres foram marcadas pela persistência. Historicamente

colocadas em situações de submissão, as mulheres migrantes quebraram paradigmas

historiográficos ao mostrarem-se protagonistas de ações que transformaram o viver

cotidiano de famílias brasileiras no Paraguai.

Elas construíram resistências tanto na vida familiar privada como nos espaços

públicos, enfrentando a autoridade imposta por uma sociedade tradicional, que

comumente alocou as mulheres em lugares menores. Mas dentro desses espaços

subalternos elas se organizaram, e, de maneira subjetiva e gradual, foram negociando

com as estruturas masculinas, impondo suas vontades, sonhos e objetivos. Segundo

Rago:

De um lugar estigmatizado e inferiorizado, destituído de historicidade e excluído para o mundo da natureza, associado à ingenuidade, ao romantismo e à pureza, o feminino foi recriado social, cultural e historicamente pelas próprias mulheres.370

As mulheres, num jogo de poder por vezes travestido de submissão,

construíram seu cotidiano em terras paraguaias. Suas memórias perpassam lugares

de subjetividade, como os sentimentos (de dor, de saudade, de indignação), recintos

estes, invisíveis à escrita da narrativa tradicional, que extingue o feminino da história.

370 RAGO, 2013, p. 25.

161

Como aponta Perrot: “sua presença é frequentemente apagada, seus vestígios

desfeitos, seus arquivos destruídos”.371

Além da subjetividade notada nas entrevistas, as brasiguaias relatam as

atividades árduas geradoras de renda familiar desenvolvidas por elas. Os seus

afazeres frequentemente não são reconhecidos como trabalho, um não

reconhecimento que, inclusive, pode partir das próprias mulheres, que, por vezes,

enxergam seu labor como ajuda. Isso é resultado dos papéis de gênero historicamente

impostos, que definiram o trabalho como sinônimo do masculino.

As mulheres trabalharam e trabalham junto aos homens, ou até mais que

estes. Ainda assim são vistas socialmente como inferiores. De acordo com Puga:

Nossa cultura cristã ocidental construiu para as mulheres e homens diferentes papeis, para que desenvolvessem tarefas e ocupassem posições em nossa sociedade, não por serem biologicamente diferentes, mas, produzidos por construções sociais diversas.372

As mulheres brasiguaias narraram também as violências sofridas ao longo do

processo de migração, que acontecem porque carregam consigo o seu gênero.

Retomando um pouco o que foi visto no primeiro capítulo, as estruturas patriarcais da

sociedade obrigam as mulheres a permanecerem em situações de submissão em

nome de uma moral baseada em princípios religiosos que impõem uma diferença

entre os gêneros, subalternizando o feminino.

O trabalho feminino no Paraguai foi essencial para o desenvolvimento

econômico da família. A extensa jornada de trabalho, tanto no âmbito familiar como

na roça, como apresentado no segundo capítulo, foi sinônimo de melhorias para

família, já que permitiu, por exemplo, a aquisição de móveis, roupas, calçados, enfim,

de objetos que proporcionaram certas comodidades a todos/as. Isso mostrou-se uma

característica comum nas narrativas dessas mulheres, qual seja, a preocupação com

o “outro”, seja filhos/as ou esposo.

A formação ideológica feminina transcorre dentro das subjetividades e da

dominação. As mulheres e a religião tiveram um acercamento significativo, o que se

reflete no fato de que frequentar a igreja era algo que lhes era imposto, afinal, só assim

seriam respeitadas socialmente. Os costumes religiosos migraram com elas e foram

371 PERROT, 2017, p. 21. 372 PUGA, 2015, p. 646.

162

um fator de preocupação, pois ao chegarem no Paraguai perceberam a falta de

igrejas, as quais seriam instrumentos para a educação dos/as filhos/as.

A formação religiosa cristã subjuga o feminino a uma segunda instância,

colocando-o em uma posição de dominação pelo masculino. No Paraguai, contudo, a

formação de comunidades religiosas foi resultado do empoderamento feminino, pois

partiu-se das próprias mulheres a luta pela construção de igrejas, consequência de

uma preocupação a respeito da educação das crianças. O espaço religioso foi

também o espaço de socialização e lazer delas, porquanto os maridos saiam para

caçar.

Esse fator demonstra a invisibilidade dos papeis femininos dentro das igrejas.

As mulheres estão em números mais expressivos nas direções de atividades

religiosas, como leituras bíblicas, formação catequética. Ainda assim, a sociedade

pautada em padrões do patriarcado não às enxerga como sujeitos.

A prática religiosa brasileira predominou sobre a paraguaia nos lugares

chegados pelas mulheres entrevistadas. As celebrações eram dirigidas em português,

sendo realizadas em espanhol uma vez por mês, na presença do padre que era

paraguaio. A ideia de incluir não era pensando na comunidade e sim no padre,

autoridade que se fazia presente. Reforçava-se, desse modo, sistemas simbólicos de

dominação de uma cultura ou nação sobre a outra.

A vida das mulheres e homens brasileiras/os no Paraguai transcorreu

normalmente durante um tempo: uns lograram adquirir uma fração de terras, outros

arrendaram, alguns trabalharam de diaristas nas empreitadas, ou como funcionários

de grandes fazendas. Mas não tardou muito para que os problemas com terras

começassem a alarmá-los.

Os problemas foram de várias ordens. Os arrendamentos de curto prazo, por

exemplo, não permitiam uma produção com lucros para os arrendatários, explicitando,

assim, as relações de poder entre os donos das terras e os que nela trabalhavam.

Outro fator de expulsão ocorrido do “lado de lá” foram os conflitos por terras entre

brasileiros/as e paraguaios/as. Os nativos daquele país ansiavam por ter suas terras

retomadas dos/as estrangeiros/as. Pode-se ressaltar que, frequentemente, as

eventuais retomadas dessas terras não se deu por parte dos agricultores/as pobres

paraguaios/as – os quais também têm suas terras usurpadas – mas por grandes

empresas e/ou proprietários latifundiários.

163

A documentação das terras e dos/as estrangeiros/as também propulsou o

retorno. No Paraguai havia uma carência de cartórios, os títulos das terras e os

documentos de imigração não eram validados, situação que abria espaço aos

atravessadores. A mesma fração de terras era vendida para mais de uma pessoa,

situação conhecida como “compra de direitos”, a partir da qual as pessoas faziam

acordos verbais ou com documentos não oficiais, e, posteriormente, outros donos

apareciam e reivindicavam a posse das mesmas terras, conjuntura na qual alguém

sempre saía perdendo, sobretudo os/as agricultores/as pobres brasileiros/as ou

paraguaios/as.

A ideia de retorno, como visto no segundo capítulo, começa a se alicerçar. As

mulheres entrevistadas pontuaram que sempre pensavam em voltar para o Brasil,

porque lá no Paraguai não se sentiam bem. Relataram que era como se estivessem

vivendo fora de casa, pois, a socialização delas naquele espaço outro, além fronteira,

(o lugar “chegado”) não fazia com que se sentissem satisfeitas, devido a insegurança

provocada pela titulação das terras e da documentação pessoal.

Voltando a atenção para o terceiro capítulo, observa-se que, mesmo

passando por situações precárias no acampamento, esse espaço significou muito

para as mulheres brasiguaias, pois ele foi um lugar de empoderamento e socialização

para elas.

Durante o período de acampamento as mulheres brasiguaias exerceram

papéis de militantes e de lideranças na organização dos grupos, situações estas que

não aparecem na história tradicional, patriarcal e de cunho androcêntrico. De maneira

frequente foram relegadas ao esquecimento, uma vez que a história agrária brasileira

sempre foi narrada pela ótica masculina.

Os protagonismos femininos foram igualmente invisibilizados neste caso, pois

os acampamentos também eram vistos como coisa de homem. Tais situações são

resultantes das relações de gênero que vão definindo os papéis femininos e

masculinos a partir das vivências e dos costumes de cada sociedade. Tedeschi, ao

escrever sobre a história das mulheres ressalta:

Durante muito tempo foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação, consequência da manipulação e do controle tanto da palavra quanto da escrita. Isso assegurou a instalação do poder, da lei e do imaginário social na História (com H maiúsculo) e trouxe, como consequência, a legitimação de uma minoria social que assegurou, determinou e confinou as ferramentas do pensar, vedando às mulheres o livre exercício da autonomia do narrar e do escrever. O patriarcado teve, como

164

uma de suas funções na história, a construção e a reprodução de uma memória implacável, imóvel, endurecida e controladora da episteme historiográfica.373

O acampamento é recordado por elas com nostalgia, pois tratava-se de um

local de encontro e convivência proximal com as vizinhas, no qual tinham tempo para

conversar, partilhar um chimarrão, trocar experiências, situação nova para estas

mulheres, que desde a tenra idade já dedicavam seus dias ao trabalho. A vida

embaixo da lona representou para elas uma nova rotina de trocas simbólicas e de

reciprocidade.

A conquista da terra representou para as mulheres um alívio. Depois de tantas

mudanças, acompanhadas de inseguranças e medos, chegar num lugar em que

podem chamar de seu trouxe a elas uma garantia desconhecida até aquele momento.

E o narrar sobre esse aportar no lote é carregado de minúcias e emoções que

evidenciaram o quão significativo foi para elas a certeza da permanência naquele

local.

As pequenas lembranças relatadas por elas não são menos importantes, pois

fizeram parte da história dessas mulheres. É exemplo disso o fato de se recordarem

de um dia chuvoso, da precariedade vivida novamente na construção de um barraco,

da falta de água potável até a perfuração do poço. São frutos de uma memória

pautada em momentos marcantes, porém invisíveis a uma história tradicional, a qual

aparece baseada na hierarquia de gênero e de acontecimentos.

Os primeiros momentos no lote foram sinônimos de trabalhos árduos, visto

que a terra recebida estava em condições não compatíveis com a agricultura. Para

deixar o espaço pronto para a produção, as mulheres exerceram diversas atividades,

juntamente com seus maridos. Ao narrarem, no entanto, esses fatos o termo “ajuda”

se fez presente, o que demonstra a divisão de gênero nos espaços rurais, no quais o

feminino é visto como coadjuvante no processo produtivo. De acordo com Bruschini e

Rosemberg:

Como as tarefas produtivas desempenhadas pela mulher no campo em geral não são remuneradas ou de irrisória remuneração, frequentemente não são consideradas pelas estatísticas oficiais, o que provoca uma subestimação da participação feminina na produção social rural.374

373 TEDESCHI, 2018, p. 4. 374 BRUSCHINI & ROSEMBERG, 1982, p. 13.

165

As mulheres agricultoras exercem de maneira frequente uma dupla rotina de

trabalho, desenvolvendo tanto os afazeres domésticos quanto os rurais. E ainda assim

são invisibilizadas pela sociedade patriarcal, que comumente diferencia as atividades

entre masculinas e femininas, atribuindo à primeira o caráter de respeitosa, e à outra

o caráter de obrigação natural que as mulheres carregam com seu sexo. Situação

alimentada historicamente dentro dos padrões de gênero. De acordo com Paredes:

Las concepciones de los tiempos en el patriarcado han planteado que lo que ocupa el hombre, o sea el tiempo del hombre, como más valorado, haga lo que haga el hombre, difícilmente para la sociedad, él está perdiendo su tiempo. Los tiempos de las mujeres, en vez, son tomados como trabajos de segunda, no tan importantes y por eso se paga menos y fácilmente salen expresiones como: las mujeres no hacen nada, las mujeres pierden su tiempo.375

É dentro dessa rotina intensa de trabalhos que as mulheres sentem saudades

do acampamento, já que a chegada na terra limitou o tempo que tinham, e as

atividades laborais colocaram o lazer em segunda instância. Os momentos de partilha

com as amigas no assentamento não aparecem nas narrativas das mulheres.

Situação que explicita que as trocas simbólicas de experiências e reciprocidade se

restringiram maiormente ao acampamento.

As violências sofridas pelas mulheres brasiguaias se fizeram presente ao

longo do texto. O fato de os homens se sentirem no direito de exercer a dominação

sobre as mulheres é bastante comum, ao longo dos anos isso foi tido como normal,

em uma sociedade que subalternizou o feminino, ditando os espaços que poderiam

ocupar. De acordo com Deere e León: “Pelo fato de a subordinação da mulher parecer

normal dentro da ideologia patriarcal, é difícil que a mudança entre em erupção

espontaneamente da condição de subordinação”.376

As mulheres sobretudo do meio rural, como vimos no terceiro capítulo, se

sentem coagidas a manter relacionamentos infelizes, por não terem a quem recorrer,

por falta de informações e maiormente em respeito ou medo dos valores morais e

religiosos instituídos socialmente e tidos como verdade inquestionável. Sair de uma

realidade de violência doméstica é sobretudo um ato de coragem e demonstra

também a força feminina recorrentemente subestimada.

375 PAREDES, 2010, p. 104-105. 376 DEERE & LEÓN, 2002, p. 55.

166

Marcadas pelas representações de gênero, as mulheres historicamente

fizeram uso de estratégias de poder no mundo privado, baseadas em pequenas

resistências diárias. E dentro desses pequenos espaços elas desenvolveram ações

que as colocaram em posições de destaque social, mas são costumeiramente

invisibilizadas, porquanto a sociedade acostumou-se a ver o homens como

representantes femininos em todos os âmbitos.

Como apresentado no último momento do capítulo, a concretização do sonho

de ter um pedaço de terra, não é uma realidade homogênea no nosso trabalho, pois

uma das nossas entrevistadas ainda continua em processo de luta, almejando a

conquista da terra, isso demonstra a diversidade das experiências e vidas de mulheres

brasiguaias.

O Assentamento Itamarati é um lugar onde se desenrolam distintas formas de

vida. Lugar este onde algumas famílias concretizaram o sonho de ter uma fração de

terra para viver e produzir, e também espaço de passagem para outras, ainda em

busca de um lugar para ancorar.

As mulheres brasiguaias, apesar de serem uma marca da história do Mato

Grosso do Sul, tratam-se de sujeitos que não aparecem na historiografia oficial. Este

trabalho contribui, pois, para uma história feminina, de mulheres que, ainda hoje vivas,

resistem através de suas memórias, têm consigo a história de dois mundos, um de

“lá” e um de “cá”.

A vida árdua e sofrida dessas mulheres, universo desta pesquisa, é

perpassada por dificuldades, por condições econômicas precárias, por tristezas e

descontentamentos conjugais, por incertezas. Mas é perpassada, ao mesmo tempo,

por muita coragem; coragem para enfrentar o cotidiano. Desse modo, elas não

deixaram para trás suas memórias de mulheres do interior, da roça (motivação de

suas trajetórias), à medida que o imaginário faz com que elas recriem continuamente

as esperanças na sua terra, no seu chão, no seu espaço: o Assentamento Itamarati.

167

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FONTES DIPLOMÁTICAS

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