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APRENDER SE APRENDE APRENDENDO: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade Paula Chies Schommer Íris Gomes dos Santos Organizadoras Série Editorial CIAGS

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APRENDER SE APRENDE APRENDENDO: construção de saberes na relação

entre universidade e sociedade

Paula Chies SchommerÍris Gomes dos Santos

Organizadoras

Série Editorial CIAGS

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Direitos reservados a Universidade Federal da Bahia – Centro Interdisciplinar de Desenvolvimen-to e Gestão Social (UFBA/CIAGS)

Av. Reitor Miguel Calmon, s/n - Escola de Administração – Vale do Canela – Salvador - BAwww.gestaosocial.org.br | [email protected] |

(71) 3247-5477

Impresso no BrasilTodos os direitos reservados. Os conceitos e opiniões emitidos nesta

publicação são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.1ª edição - 2009

Organização: Paula Chies Schommer; Íris Gomes dos SantosEditoração eletrônica: Carlos Vilmar

Revisão: Paula Chies Schommer; Íris Gomes dos SantosDiagramação Capa: Carlos Vilmar

Imagem da Capa: Heroturko – Adaptação: Carlos Vilmar

A654 Aprender se aprende aprendendo: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade/ Paula Chies Schommer; Íris Gomes dos Santos. – Salvador: CIAGS/UFBA, FAPESB; SECTI; CNPq, 2010. 160 p. :il.; .- (Coleção Gestão Social)

Série Editorial CIAGS ISBN - 978-85-60660-05-6

1. Aprendizagem . 2. Universidade-Sociedade 3. Aprendizagem sócio-prática 4. Gestão social 5. Desenvolvimento sócio-territorial I. Schommer, Paula Chies. II. Santos, Íris Gomes dos Santos.

CDD – 370.1523

Ficha Catalográfica Elaborada pelo Bibliotecário Neubler Nilo Ribeiro da Cunha (CRB-5/1578)

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APRENDER SE APRENDE APRENDENDO: construção de saberes na relação

entre universidade e sociedade

Paula Chies SchommerÍris Gomes dos Santos

Organizadoras

Série Editorial CIAGS

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Angélica Maria Araújo CorrêaProfessora Associada II da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Biologia, Departa-mento de Zoologia. Experiência em fisiologia animal comparada com ênfase na fisiologia de crustáceos. Graduada em História Natural pela Universidade Federal da Bahia (1971), mestre em Ciências Biológicas (Fisiologia Animal) pela Universidade Federal de Pernambuco (1979) e doutora em Ciências (Fisiologia Animal) pela Universidade de São Paulo (1992). Compõe a equipe do Programa Marsol – Maricultura Familiar Solidária, participando desde 1993 em projetos de extensão na região do Baixo Sul Baiano.

Iara IcóGraduada em Administração (2003) e mestre em Administração (2007) pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, desenvolve atividades de ensino na faculdade UNIME, atua como Coordenadora de Comunicação, Gestão e Avaliação do Programa Marsol - Maricultu-ra Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano – e coordena a área de Projetos Alternativos para Geração de Trabalho e Renda da Prefeitura Municipal de Salvador. Tem experiência na área de Administração, com ênfase no estudo de organizações e poder local, atuando principal-mente nos seguintes temas: desenvolvimento local, políticas públicas, participação popular e economia solidária.

Íris Gomes dos SantosMestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (FFCH/UFBA) e graduada em Secretariado Executivo Bilingue pela Universidade Federal da Bahia. Integrou a equipe de implementação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública, Ministério da Justiça, na Bahia, bem como coordenou grupo de trabalho de campo no Programa Marsol – Mari-cultura Familiar Solidária. Atualmente, compõe equipe do projeto Gente da Maré – Programa para a Promoção da Equidade, acordo bilateral entre Brasil e Canadá (SEAP/CIDA/WFT), na condição de articuladora interinstitucional. Integra o grupo de pesquisa Instituições e Governos Subnacionais, do Centro de Recursos Humanos (CRH/UFBA). Possui experiências na área de políticas públicas; metodologias de pesquisa e extensão; processos de desenvolvimento comunitário; mobilização política e social e desenvolvimento territorial participativo.

Mariana Leonesy da Silveira BarretoPsicóloga formada pela Faculdade Ruy Barbosa (2008). Pesquisadora do Centro Interdis-ciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), com bolsa da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão (FAPEX). Participante do programa de estudos transculturais em psi-cologia pela University of Wisconsin, Oshkosh, desde 2007. Membro do grupo de pesqui-sa em comportamento do consumidor na UNIPESSOA. Atualmente, trabalha no Centro de Referência de Assistência Psicossocial (CRAS) no município de São Domingos. Trabalha com temas relacionados à capacitação de gestores, formação profissional e educação.

Miguel da Costa AcciolyGraduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (1989), mestre em Botânica pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (1992) e doutor em Ciências Biológicas (Botânica) pela Universidade de São Paulo (2004). É professor adjunto da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Biologia. Atua no Mestrado Profissional em Desenvolvimento e Gestão social (CIAGS/UFBA). É revisor de artigos para as revistas Acta Botanica Brasilica, Revista Ciência Agronômica e Aquaculture (Amsterdam). É coordenador do Programa Marsol – Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano. Tem experiência na área de Ecologia de ambientes costeiros e em Maricultura, atuando principalmente nos seguintes temas: maricultura, carcinicultura, ecologia marinha, algicultura e extensão pes-queira, tendo realizado inclusive perícias judiciais relacionadas a esses temas.

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Natali Lordello de OliveiraBacharel em Ciências Biológicas com ênfase em Recursos Ambientais, pela Universidade Federal da Bahia (2008). Possui formação técnico/profissionalizante em Química pelo Cen-tro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA). Tem experiência com cultivo de macroalgas agarófitas para fins comerciais, em região impactada na localidade de Simões Filho-BA, dentro do projeto Eco-Luzia, com enfoque na prática da economia solidária (2006-2008). Sua experiência atual, desde novembro de 2008, é voltada para a ostreicultura fa-miliar solidária em projeto vinculado ao ECOMAR-UFBA, no âmbito do Programa Marsol – Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano.

Paula Chies SchommerDoutora em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas - SP (2005), mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (2000) e graduada em Administração de Em-presas pela Universidade de Caxias do Sul (1995). Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG), na graduação em Administração Pública e no Mestrado Profissional em Administração, a partir de 2009. Pesquisadora e professora colaboradora da UFBA, junto ao Cen-tro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) e ao Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA), desde 2001. Entre 2006 e 2009, conduziu junto ao CIAGS/UFBA a pes-quisa “Comunidades de prática como bases da aprendizagem em processos de desenvolvimento sócio-territorial”, financiada pela FAPESB e pelo CNPq, tendo acompanhando as experiências do Mestrado Multidisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social e o Programa Mar-sol – Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano. Entre seus temas de interesse, estão: relações interorganizacionais, gestão social e desenvolvimento, gestão pública, responsabilidade social empresarial, investimento social privado, aprendizagem organizacional e comunidades de prática.

Rodrigo Maurício Freire SoaresGraduado em Comunicação Social pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), especialista em Gestão da Comunicação Organizacional (UFBA) e, atualmente, aluno do Mestrado Multi-disciplinar e Profissionalizante em Desenvolvimento e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia. É bolsista do Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares: Mapeamento dos Mestres Artesãos do Território do Sisal/BA (FAPESB) e participa do Projeto de Im-plantação dos Planos de Desenvolvimento Territorial da Cultura no Estado da Bahia (UFBA/SECULT). É co-autor do livro “Metodologia Participativa no Meio Rural: uma vi-são interdisciplinar” e tem atuado prioritariamente em projetos e programa nas áreas de comunicação, cultura e avaliação.

Rosana de Freitas BoullosaDoutora em Políticas Públicas pela Università IUAV di Venezia, em Veneza-Itália, é pro-fessora da Universidade Federal da Bahia, Escola de Administração (Departamento de Estudos Organizacionais/DEO), desde 2009, e associada do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), desde 2006. Além de ministrar aulas para os cursos de Graduação em Administração, Graduação Tecnológica em Gestão Pública e Gestão Social e Mestrado Multidisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social, participa de projetos de extensão e coordena o Programa Residência Social do CIAGS/UFBA. Em 2007, venceu o prestigioso Prêmio Giovanni Ferraro, edição 2006, de Melhor Tese Italiana em Planejamento e Políticas Públicas em sua área de estudo (planejamento e políticas públicas), com a tese “Che tipo di innovazione stiamo viven-do? Le politiche di regolarizzaizone fondiaria in Brasile - un modello interpretativo”, orientada pelo prof. dr. Pier Luigi Crosta. Atua no campo da Gestão Pública e Social, com particular atenção aos aspectos da formação e ensino.

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Siegrid GuillaumonDoutoranda em Administração pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA) da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista do CNPq. Graduada em Administração de Empresas pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), e mestre em Administração pelo NPGA/UFBA. Coordenadora Executiva do Projeto de Ex-tensão em Desenvolvimento Institucional e Gestão Social, no qual é responsável pela articulação interinstitucional, planejamento e execução das atividades envolvidas. Pesquisadora do Núcleo de Planejamento e Gestão da Cultura e do Turismo (NCTur). Pesquisa nas áreas de desenvolvi-mento territorial, turismo e desenvolvimento sustentável, cultura, aprendizagem.

Silvia Maria Bahia MartinsGraduada em Comunicação Social pela Universidade do Estado da Bahia (2007). Mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua como pes-quisadora bolsista junto ao Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS/UFBA), desde 2007, como monitora do Projeto de pesquisa e extensão “Incubadora de Núcleos Produtivos Associativos para o Desenvolvimento Sócio-Territorial da Península de Itapagipe”, fi-nanciado pela FINEP e apoiado pela Fapesb, e acompanha o Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares: Mapeamento dos Mestres Artesãos do Território do Sisal/BA (FAPESB).

Tacilla da Costa e Sá Siqueira SantosDoutoranda e Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Gerenciou durante cinco anos o departamento de Mobilização de Recursos e Comunicação do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids da Bahia (Gapa-Ba). Coordenou oficinas e consultorias sobre Sustenta-bilidade, Marketing Social e Comunicação para mais de 200 organizações da sociedade civil em todo o Brasil. Atualmente, é professora do MBA em Sustentabilidade e Responsabilidade Social Empresarial da UNIFACS, Coordenadora da Graduação em Relações Internacionais da Unijorge – Centro Universitário Jorge Amado, e pesquisadora do Laboratório de Análise Política Mundial – LABMUNDO. Faz parte do Projeto de Extensão em Desenvolvimento Institucional e Gestão Social, pela Universidade Federal da Bahia, no qual esteve à frente de oficinas realizadas com o Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP).

Tânia FischerDoutora em Administração pela Universidade de São Paulo (USP), é professora titular da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA) e colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora 1A do CNPQ, coordena o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) e é professora do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA), ambos da UFBA. É autora dos livros Gestão do Desenvolvimento e Poderes Locais (ed. Casa da Qualidade), Gestão Contemporânea (ed. FGV), uma das organizadoras de Análise de Organiza-ção: Perspectivas Latinas (ed. UFRGS) e participou da organização da versão brasileira do Hand-book de Estudos Organizacionais (ed. Atlas, volumes 1, 2 e 3). Dentre os programas e atividade de ensino que coordena, estão o Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares: Mapeamento dos Mestres Artesãos do Teritório do Sisal/BA(FAPESB), o Programa de Capacitação Docente em Administração - PCDA/ ANPAD e o Mestrado Multidisciplinar e Profissionalizante em Desenvol-vimento e Gestão Social (UFBA).

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SUM

ÁRIO

Apresentação Paula Chies Schommer e Íris Gomes dos Santos 9

Agradecimentos 14

PrefácioUm convite a aprenderTânia Fischer 15

1. Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagemPaula Chies Schommer e Rosana de Freitas Boullosa 17

2. O peso de elementos institucionais e metodológicos na balança das relações intersetoriais: análise de duas experiências que pretendem contribuir para o desenvolvimento sócio-territorialPaula Chies Schommer e Íris Gomes dos Santos 43

3. Aprendendo a ser interdisciplinar: reflexões e experiências vividas no Marsol Paula Chies Schommer; Angélica Maria Araújo Corrêa; Iara Icó; Miguel da Costa Accioly; Natali Lordello de Oliveira 67

4. Desafios da gestão intersetorial, interdisciplinar e internacional: aprendizagem na prática da maricultura familiar solidária em prol do desenvolvimento sócio-territorialPaula Chies Schommer; Iara Icó; Angélica Maria Araújo Corrêa; Miguel da Costa Accioly 87

5. A Residência Social como experiência de aprendizagem situada e significativa em cursos de gestão social e gestão públicaRosana de Freitas Boullosa e Mariana Leonesy da Silveira Barreto 113

6. Projetos interinstitucionais e formação de comunidades de prática: aprendizagem em uma experiência de desenvolvimento institucional e gestão socialSiegrid Guillaumon e Tacilla da Costa e Sá Siqueira Santos 131

7. Aprendizagem feita à mão: a experiência do Projeto Maestria em Artes e Ofícios PopularesRodrigo Maurício Freire Soares; Silvia Maria Bahia Martins; Tânia Fischer 149

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Apresentação

Este livro é um dos frutos da pesquisa Comunidades de prática como bases da apren-dizagem em processos de desenvolvimento sócio-territorial, realizada entre 2006 e 2009, junto ao Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Fe-deral da Bahia (CIAGS/UFBA), coordenada por Paula Chies Schommer, sob orientação da Professora Tânia Fischer. O projeto foi apoiado pelo Programa de Desenvolvimento Cien-tífico e Regional (PRODOC/DCR), uma parceria entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico (CNPq).

Como objetivo principal, a pesquisa buscou ampliar a compreensão de processos de aprendizagem organizacional com base em comunidades de prática no âmbito de progra-mas que visam a contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial no estado da Bahia. Foram dois os campos de investigação primordiais: 1) o Mestrado Multidisciplinar e Pro-fissional em Desenvolvimento e Gestão Social, do CIAGS/UFBA, coordenado pela Profes-sora Tânia Fischer e por um grupo de professores do CIAGS; 2) o Programa Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano - Marsol, coordenado pelos Professores Miguel da Costa Accioly e Angélica Maria Araujo Corrêa, do Instituto de Biologia da UFBA.

Este livro, organizado pelas colegas Paula Chies Schommer e Íris Gomes dos Santos, é composto por textos relativos a experiências vividas nesses programas pelas organiza-doras e por outros pesquisadores que compartilham conosco o interesse pelo tema da aprendizagem em iniciativas que estabelecem relações e diálogos entre universidade e sociedade.

Nós, Paula e Íris, começamos a trabalhar juntas, em 2004, no âmbito do programa de formação de gestores sociais que pretendia contribuir para o desenvolvimento sócio-ter-ritorial de quatro localidades do estado. De lá para cá, temos compartilhado realizações, alegrias, dúvidas, reflexões, conquistas e decepções – em meio a viagens de ônibus, de carro, a pé, de canoa ou de ferry boat, preparando e realizando oficinas de trabalho com nossos colegas na universidade e nas comunidades e organizações parceiras, elaborando projetos e relatórios, fazendo visitas e recebendo visitantes, escrevendo artigos acadê-micos e apresentando-os em eventos e espaços de discussão. Vivendo intensamente as oportunidades de aprendizagem propiciadas em iniciativas que pretendem promover ar-ticulação entre universidade e sociedade. Nossa intenção ao organizar esta publicação foi sistematizar e compartilhar algumas de nossas experiências, acreditando que, a partir dos registros aqui apresentados, contribuímos para afirmar nossas aprendizagens e ressigni-ficá-las em novos processos.

O título do livro, Aprender se aprende aprendendo: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade, pode parecer redundante. Talvez o seja. O sentido da re-dundância aqui tem a ver com nossa compreensão sobre aprendizagem hoje, ao finalizar o percurso dessa pesquisa. Visualizamos, cada vez mais, a aprendizagem como um proces-so contínuo, construído ao caminhar, sempre aberto, para o qual não há receitas prontas, apenas mapas provisórios a orientar os aventureiros. Aqueles que desejam aprender, co-nhecer melhor ao mundo e a si próprios, contam com algumas pistas sobre como fazê-lo, mas jamais são capazes de imaginar sequer uma pequena parte do que ocorre no fluxo dos acontecimentos. É possível preparar-se para a viagem, planejar roteiros, providenciar

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equipamentos, contar com estruturas de apoio, definir lugares a visitar, mas há sempre espaço para o inusitado, a novidade, o surpreendente. Nesta pesquisa, inclusive, muitos dos roteiros e destinos programados não foram percorridos ou alcançados, enquanto ou-tros caminhos abriram-se, outras pessoas agregaram-se, práticas não previstas foram com-partilhadas.

O interesse pelo tema aprendizagem tem origem na tese de doutorado de Paula, defen-dida em 2005, pela FGV/EAESP, intitulada Comunidades de prática e articulação de saberes na relação entre universidade e sociedade. O referencial teórico da tese que, na época, serviu de base para analisar oito programas de relação entre universidade e sociedade era constituído por referenciais sobre articulação de saberes acadêmicos e não-acadêmicos e pela abordagem social (ou sócio-prática) da aprendizagem, na qual se insere o conceito de comunidade de prática. No âmbito desta abordagem da aprendizagem, foi marcante no tra-balho a influência de autores como Jean Lave, Etienne Wenger, Luis Araujo, Mark Easterby-Smith, Silvia Gherardi e Dvora Yanow, entre outros que também estão nas páginas deste livro. No que tange à relação entre aprendizagem social e aprendizagem organizacional, um texto em especial, de Karl Weick e Frances Westley, foi bastante explorado, o que pode ser visto nos primeiros textos deste livro. Para explorar a relação entre universidade e socie-dade foram fundamentais idéias de Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Peter Spink, Gerard Delanty e Renato Janine Ribeiro, às quais se somaram contribuições de autores com os quais tomamos contato ao longo do percurso.

A tese já evidenciava algo que se explorou e aprofundou na pesquisa – potenciais e obstáculos para a formação de comunidades de prática nas quais se busca compartilhar e construir conhecimentos que contribuam para o desenvolvimento sócio-territorial. Embora as iniciativas que envolvem não-universitários e universitários de diferentes disciplinas em torno de um projeto comum gerem contextos sócio-práticos propícios à aprendizagem, há inúmeras barreiras capazes de inibir este potencial. Ao limitar o processo de aprendizagem e a formação de comunidades de prática entre diferentes sujeitos e seus saberes, certas condições sociais, culturais, institucionais e metodológicas acabam mantendo ou reforçan-do desequilíbrios de poder entre sujeitos e regiões em processos de desenvolvimento sócio-territorial. Por outro lado, experiências que se propõem a desafiar tais limites revelam seu rico potencial para gerar aprendizagem individual, coletiva e organizacional, ao colocar em contato diferentes repertórios, trajetórias, saberes, em processos marcados por interações em torno de práticas situadas em contextos específicos.

Outro aspecto que se tornou evidente, ao longo do percurso, é algo assinalado pela abordagem social da aprendizagem: a aprendizagem de um indivíduo, embora possa ser percebida em um único sujeito, é sempre construída em relação com outros e situada em certo contexto sócio-prático. Se observarmos os agradecimentos de dissertações e teses, por exemplo, podemos ver que o processo de elaboração de conhecimentos, solitário em alguns momentos, somente é possível pela combinação de diversos fatos e pessoas presen-tes na trajetória de um acadêmico, incluindo-se aí familiares e amigos, sempre lembrados como fundamentais nas páginas iniciais.

Quando assistimos a um filme e ficamos até o final, ao acender das luzes, podemos observar a “interminável” lista de nomes de pessoas que participam de sua construção e a diversidade de conhecimentos associados a cada uma delas. Em meio a tantas contribui-ções, há estrelas que brilham por seus talentos individuais. Talentos estes revelados e apri-

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morados justamente por encontrarem um contexto estimulante, dinâmico e enriquecedor, construído por várias pessoas em interação. Cada um dos saberes e talentos empregados no processo fazem parte, de alguma maneira, do “produto”, o filme, o qual mesmo depois de editado e distribuído, não termina sua trajetória. Segue provocando emoção, reflexão, decepção talvez, entre aqueles que o assistem.

Nossas pesquisas também evidenciam o caráter coletivo da construção de conhecimen-tos acadêmicos. Com base nas múltiplas interações entre graduandos, mestrandos, pesqui-sadores, professores, gestores públicos e sociais, marisqueiros, pescadores e parceiros, foi possível elaborar um conjunto de produções de caráter científico, quase sempre escritas a várias mãos, corações e mentes. A apresentação desses trabalhos permitiu participar de eventos científicos em administração, gestão social, ensino e pesquisa, terceiro setor, estu-dos organizacionais, poder local e desenvolvimento, nos quais se pôde interagir com colegas de diferentes regiões e países. Os estudos sobre aprendizagem também permitiram a par-ticipação em bancas, e elaboração de projetos de extensão, a participação na coordenação de um mestrado e a orientação de dissertações. Outro resultado do trabalho é a publicação Comunidades tradicionais de pesca e mariscagem no Baixo Sul baiano: aprendendo com identidades e diversidades, voltada para distribuição nas cinco localidades em que se desen-volveu o Programa Marsol. Esses encontros e seus produtos permitem que o processo de aprendizagem siga ocorrendo, em meio às reflexões e interações que propiciam.

Passamos agora a apresentar um pouco sobre cada trabalho que integra o livro.

O primeiro deles é um dos tantos e deliciosos frutos da parceria entre Paula Chies Schom-mer e a querida colega Rosana de Freitas Boullosa. A idéia do texto nasceu de conversas em um grupo de estudos que incluia o colega Júlio Cesar Andrade de Abreu, do NPGA/UFBA, ao qual Paula e Rosana são especialmente gratas, por compartilhar algumas “viagens”, como a idéia de explorar a dupla metáfora das andorinhas e do verão para compreender apren-dizagem. No texto Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagem, as autoras discutem, com base na abordagem social da aprendizagem, características deste fenômeno como processo social, prático, contínuo, de expansão de fronteiras e de fronteiras de expansão. Exploram, ainda, riscos de que o planejamento ex-cessivo limite os potenciais de aprendizagem em experiências de formação acadêmica e profissional que se pretendem inovadoras.

O segundo trabalho é uma das produções em conjunto de Paula Chies Schommer e Íris Gomes dos Santos. No texto O peso de elementos institucionais e metodológicos na balança das relações intersetoriais: análise de duas experiências que pretendem contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial são analisadas características de processos de interação entre universidade e sociedade, no que se refere a seus potenciais e a seus limites para propiciar aprendizagem organizacional, com base no viés interpretativo da aprendizagem social. Baseado em duas experiências ocorridas entre os anos de 2004 e 2007, o texto elabo-ra reflexões sobre o desenho de processos de formação profissional e de gestão de projetos em prol do desenvolvimento sócio-territorial. Os resultados permitem analisar elementos metodológicos e institucionais que influenciam os potenciais de aprendizagem organizacio-nal, os quais se relacionam com características do contexto histórico, político, social e cultu-ral no qual acontecem as interações sociais que propiciam a aprendizagem. Tais elementos

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podem fazer pender a balança para um dos lados, em meio a relações em que se pretende construir certo equilíbrio entre os vários participantes.

O terceiro e o quarto trabalho que compõem este livro foram elaborados em conjunto por coordenadores e pesquisadores ligados ao Programa Marsol – Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano, o qual vem sendo estruturado desde 2004, contemplando atividades de extensão, articuladas com pesquisa e ensino, sob a coordenação de professores do Laborató-rio de Ecologia Costeira e Maricultura (ECOMAR), da Universidade Federal da Bahia.

No artigo Aprendendo a ser interdisciplinar: reflexões e experiências vividas no Marsol, os autores Paula Chies Schommer, Angélica Maria Araujo Corrêa, Iara Icó, Miguel da Costa Accioly e Natali Lordello de Oliveira compartilham reflexões a partir de três cenas vivencia-das no contexto do Programa, identificando fatores que levaram às “situações-problema” relatadas e sugerindo caminhos para superá-las. São evidenciadas as diversas, às vezes sutis, dificuldades para concretizar ideais que parecem simples e óbvios no que tange à articu-lação entre disciplinas do conhecimento científico e à aproximação da universidade com outros setores da sociedade. O texto evidencia que se pode aprender a ser interdisciplinar enfrentando resistências e obstáculos em cada cena de nossa trajetória diária, embora mui-tos desses obstáculos sequer sejam percebidos, de tão arraigados nos comportamentos dos sujeitos e nas regras institucionais. Também se observa que a interdisciplinaridade tende a ser favorecida quando há articulação entre saberes científicos e não-científicos.

Outro artigo baseado na experiência do Marsol, Desafios da gestão intersetorial, inter-disciplinar e internacional: aprendizagem na prática da maricultura familiar solidária em prol do desenvolvimento sócio-territorial, é de autoria de Paula Chies Schommer, Iara Icó, Angélica Maria Araujo Corrêa e Miguel da Costa Accioly. O trabalho analisa características particulares da gestão em contextos de interação entre diferentes setores – universitário, governamental, empresarial e da sociedade civil, diferentes países – Brasil e Canadá – e diferentes áreas de conhecimento – ciências biológicas, humanas e sociais aplicadas. Para tal, recorre-se a referenciais teóricos sobre gestão social, desenvolvimento e aprendizagem sócio-prática, relacionando-os ao histórico da estruturação do Marsol enquanto programa e a observações dos participantes deste processo.

A seguir, em A Residência Social como experiência de aprendizagem situada e signifi-cativa em cursos de gestão social e gestão pública, Rosana de Freitas Boullosa e Mariana Leonesy da Silveira Barreto apresentam a metodologia da Residência Social, desenvolvida pelo CIAGS/UFBA desde 2001, para a formação de gestores sociais. Elas propõem hipóteses avaliativas sobre a experiência, sobretudo em seu potencial para a integração de saberes – novos e velhos, internos e externos, explícitos e implícitos, individuais e coletivos – dos estudantes que mergulham em contextos sócio-práticos nos quais vivenciam novas re-alidades e tem oportunidades de aprendizagem. Com base em referenciais conceituais que enfatizam a aprendizagem situada e significativa em certo contexto (social, histórico, interacional), as autoras identificam tensões que ainda regem a experiência: entre plane-jamento e aprendizagem situada, entre a produção explícita e a implícita resultante da residência social, entre o residente-bricoleur e o residente-colecionador, entre necessi-dade de avaliação, objeto de avaliação e foco de avaliação. Guiadas pelo questionamento sobre quais são os ganhos de aprendizagem para os envolvidos nesse tipo de experiência, Rosana e Mariana propõem perguntas que podem orientar processos avaliativos de expe-riências de Residência Social.

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No texto intitulado Projetos Interinstitucionais e Formação de Comunidades de Práti-ca: aprendizagem em uma experiência de desenvolvimento institucional e gestão social, as colegas Siegrid Guillaumon e Tacilla Siqueira Santos expõem parte da experiência vi-vida em um projeto de extensão no qual se engajaram. As autoras constroem o texto a partir do relato de três oficinas realizadas entre consultores-pesquisadores oriundos da universidade e os gestores de um instituto dedicado a promover a qualidade da educação pública na região da Chapada Diamantina e do Semi-Árido baiano. De maneira sensível e perspicaz, relatando detalhes de um percurso vivenciado por elas e partilhado por alguns dos co-autores deste livro, mostram o delicado equilíbrio entre o planejado e o emergen-te, o objetivo e o subjetivo, a essência e a forma, o que pode ser mudado e o que deve ser preservado em processos de aprendizagem. O texto faz relação entre a experiência relatada e a aprendizagem sócio-prática, demonstrando a possibilidade de formação de comunidades de prática em torno de projetos de extensão que propiciam o encontro en-tre diferentes pessoas, seus desejos e seus saberes.

Por fim, no trabalho Aprendizagem feita à mão: a experiência do Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares, Rodrigo Maurício Soares, Silvia Bahia Martins e Tânia Fis-cher revelam as primeiras descobertas de projeto que o grupo vem desenvolvendo no Território do Sisal, na Bahia. Ao examinar o processo de aprendizagem do artesanato, buscando definir o que caracteriza um mestre-artesão, observam as nuances da aprendi-zagem de uma atividade tradicional, rica em simbolismo, em subjetividade e em ligação com o contexto familiar, histórico e cultural em que ocorre. Os autores oferecem algumas pistas para investigação de como se dá o processo de aprendizagem de um conhecimento tradicional e quais os desafios existentes para seu repasse às futuras gerações. São per-cebidas conexões entre mestre e aprendiz, aprendizagem e contexto cultural e a impor-tância da oralidade na transmissão de saberes tradicionais. São elementos que mostram a riqueza da aprendizagem nesse contexto de produção artesanal, envolvendo o aprender a ensinar, a manusear, a apreender e a difundir. Nas palavras dos autores, “o processo de aprendizagem característico do artesanato requer um olhar específico, dada as relações sociais envolvidas e como se efetua a transmissão do saber”.

Acreditamos que este livro possa ser visto como um pequeno pedaço reificado, o re-trato de um momento dentro de um processo de aprendizagem que segue seu curso, con-tinua acontecendo. Processo este construído em coletivo, conectado a práticas de relação entre universidade e sociedade, vivido por diferentes sujeitos em interação. Muito além do que é possível explicitar em um texto, no dia-a-dia de nossas práticas de pesquisa, ensino e extensão, aprendemos a nos relacionar com colegas e parceiros, aprendemos a planejar, a gerir, a avaliar, a dialogar, a sistematizar, a analisar, a emocionar e emocionar-se, a acreditar, a recuar, a desistir. Aprendemos a aprender, enfim, com todas as alegrias e dores que este fenômeno pode propiciar.

Esperamos que o espírito de compartilhamento que orientou esta construção faça algum sentido aos leitores que vivem experiências similares e desejam refletir sobre elas. Mais do que contribuir para reflexões de outras pessoas, desejamos ser capazes de in-corporar um pouco do que aprendemos nas experiências aqui relatadas ao cotidiano de nossas práticas na interação entre universidade e sociedade.

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Agradecimentos

À Fapesb e ao CNPq, pelo propósito de promover o desenvolvimento científico e regional na Bahia, disponibilizando recursos e instrumentos para tal. Em especial à equipe da Fapesb, sempre pronta a apoiar e a superar obstáculos em cada etapa do projeto.

Aos colegas que compartilham conosco a escrita desta publicação – Angélica, Iara, Ma-riana, Miguel, Natali, Rodrigo, Rosana, Siegred, Silvia, Tacilla e Tânia.

Aos que nos apoiaram na editoração e publicação – Neubler Nilo, Rodrigo Maurício Soa-res, Carlos Vilmar e Jaime Wanner.

A cada pessoa com a qual tivemos oportunidade de interagir no âmbito das atividades junto ao CIAGS e ao MARSOL, da Universidade Federal da Bahia – pesquisadores, professo-res, mestrandos, residentes sociais, pescadores, marisqueiros, técnicos e parceiros.

Aos mestrandos, doutorandos e ao corpo docente do Centro Interdisciplinar de De-senvolvimento e Gestão Social (CIAGS) e do Núcleo de Pós-graduação em Administração (NPGA), da Universidade Federal da Bahia.

Aos demais parceiros e parceiras de escrita acadêmica durante esse período, junto aos quais foi possível elaborar idéias e trilhar alguns dos muitos caminhos de aprendizagem gerados no âmbito da pesquisa. Alexandre Mendes Nicolini, Daniela de Assis Silva, Edgilson Tavares de Araújo, Ernani Marques dos Santos, Genauto Carvalho de França Filho, Jader C. Souza-Silva, Maria Priscilla Kreitlon, Melissa Santos Bahia, Vanessa Paternostro Melo Duar-te, além dos já citados co-autores deste livro.

À Siegrid (Ziggy), Tacilla, Ósia, Gustavo, André, Vivina, Cybele, Fernanda e toda a equipe do Instituto Chapada pela Educação, com quem aprendemos sobre educação, redes, gestão, paixão, aprendizagem, amizade, persistência e superação.

Ao amigo Eduardo Davel, pelo constante incentivo, confiança, generosidade e amizade.Ao colega Jader C. Souza-Silva, por ter nos apresentado à abordagem social da aprendi-

zagem, por ser um interlocutor prestativo e instigador, e por ter aberto a oportunidade de organizarmos tema central da revista Organizações & Sociedade sobre aprendizagem social e comunidades de prática.

À Tânia Fischer, principal incentivadora da pesquisa que deu origem a este livro, entu-siasta do livro em si, amiga, companheira, instigadora, orientadora, autêntica mestre – que nunca deixa de ser aprendiz, apaixonada pelo aprender, pelo desafiar, pelo transformar.

Finalmente, agradecemos uma à outra, Paula e Íris, parceiras em projetos, dúvidas, an-gústias, estudos, viagens, conversas. Os muitos frutos dessa amizade são lastreados pela cumplicidade, pela sintonia no trabalho e pela admiração.

Paula Chies Schommer e Íris Gomes dos Santos

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Prefácio

Um convite a aprender

Tânia Fischer

Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me. E eu te direi que o nosso tempo é agora. Esplêndida avidez, vasta ternura Porque é mais vasto o sonho que elabora Há tanto tempo sua própria tessitura. Ama-me. Embora eu te pareça Demasiado intensa. E de aspereza. E transitória se tu me repensas.

(Hilda Hilst)

A aprendizagem é uma conquista pessoal, no sentido de ser uma caminhada para o mis-tério, para o desconhecido, que segue as pistas de uma rota de sedução colocadas incidental ou intencionalmente pelos ensinantes que se encontram nos mais diversos contextos de ação.

Por depender de contextos de ensino, formais ou não formais, a aprendizagem é tam-bém um ato relacional visceralmente imbricado no tecido social. Da antiguidade clássica ao contemporâneo, estuda-se a aprendizagem como um fenômeno humano na perspectiva de diferentes disciplinas, saberes e fazeres. Mistério e “sonho que elabora há tanto tempo sua tessitura”, a aprendizagem é a vitória após uma batalha entre o conhecido e o desco-nhecido, que obedece aos preceitos evocados por Jerome Bruner : o preceito da perspec-tiva (produção do significado); o preceito das restrições (da natureza humana e do espaço, tempo e causalidade); o preceito interacional (uma comunidade em interação); o preceito da externalização (obras, artes e ciências de uma cultura, estruturas institucionais e outros fazeres) entre outros princípios identificados pelo autor.

A aprendizagem é um ato passional de energia e entrega, vivência de dor e prazer que contém, em si mesma, a marca do transitório. Se estamos vivendo, estamos aprendendo e, na arte de aprender, deve haver espaço para a “arte de perder”, como disse a poeta Elizabe-th Bishop, que viveu intensamente a paixão de aprender o Brasil, de perdê-lo e de resgatá-lo em versos.

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Só admitindo perder o que se construiu até o aqui e agora, abrimos possibilidades para a reconstrução e criação do novo. Só apostando na incerteza podemos desenhar o futuro. No entanto, o passado e o futuro, que não existem, a não ser na memória e na imaginação, tem ancoragem nas estruturas do presente, nas conexões e artefatos que permitem a produção colaborativa do conhecimento.

A aprendizagem, como a gestão, é uma interação entre o que já existe e o que se agrega nos encontros incidentais ou deliberados com as coisas novas que provocam ou evocam sensações, desconstroem e reconstroem conceitos, princípios, generalizações, traduzidos em processos, representações significativas e formas organizativas.

Na gestão e, especialmente na gestão social, estão compreendidas muitas formas de aprendizagem. Na aprendizagem, estão presentes as formas da gestão, por se tratarem am-bas de atos integradores entre pessoas que detém, em um determinado momento, em um espaço delimitado, poderes assimétricos sobre resultados desejados e sobre os itinerários a escolher, sejam gestores ou ensinantes, sejam aprendentes em qualquer contexto.

Gestão e aprendizagem são exercícios da paixão que decorrem de encantamento inten-so, mas exigem dedicação e atenção aos detalhes. Um livro é o resultante de um processo de aprendizagens múltiplas, seja ele elaborado por um ou mais autores. Uma coletânea é expressão de aprendizagens socialmente construídas, colagem e hipertexto reflexivo de saberes e fazeres compartilhados. A coletânea cujo título é “Aprender se Aprende Apren-dendo” reitera os sentidos e significados da aprendizagem não apenas no título.

Paula Chies Schommer, à frente da pesquisa que dá origem a esta publicação, participa desde a concepção original de uma construção interorganizacional e interdisciplinar: o Pro-grama de Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS), que institui em uma universidade pú-blica do nordeste do Brasil um centro de referência no ensino, pesquisa e difusão de gestão social, onde se aprende a aprender ao aprender a ensinar.

O Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) é, antes de tudo, uma construção coletiva que vai desenhando trajetórias de formação de gestores sociais para o desenvolvimento territorial nos seus diferentes cursos de ação. Ao refletir sobre esta trajetória, Paula fez convites a autores, também construtores de programas e do centro, para o resgate de práticas de gestão, de ensino e de aprendizagem, sendo ela uma presença permanente no CIAGS desde o seu início.

Júbilo, memória e noviciado da paixão por aprender estão presentes na narrativa insti-tucional que este livro representa. Intensos, ásperos e transitórios são estes momentos. A Paula Chies Schommer e aos demais colaboradores deste livro, o reconhecimento do CIAGS por acreditarem, com paixão, “que é tempo ainda e o nosso tempo é agora”.

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Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagem

Paula Chies SchommerRosana de Freitas Boullosa

1 - Introdução: as andorinhas, a aprendizagem e o verão

“Uma andorinha só não faz verão”. O ditado que se tornou popular tem origem na obra de Aristóteles (384-322 a.C.). No livro Ética a Nicômano, o filósofo grego diz que “uma andorinha só não faz primavera” para defender que um indivíduo não pode ser julgado por um ato isolado (TORRES, 2009). Este ditado encerra de modo simples, mas não simplório, que a ação individual é mais bem compreendida dentro de certa trajetória, de uma estrutura de relações sociais, de um contexto sócio-histórico. A idéia abre caminhos para refletirmos acerca das múltiplas possibilidades de exploração e construção de conhecimentos, sempre interacionais, entre indivíduos e grupos sociais. Alguns desses caminhos nos levam para o campo da aprendizagem, por onde preten-demos aqui prosseguir.

Este ensaio assume a dupla metáfora da andorinha e do verão para tratar de apren-dizagem. O uso de metáforas para explorar novas conexões entre teoria e prática, entre representação e realidade, não é novidade nas ciências sociais aplicadas, pois de certa forma autoriza o pesquisador a explorar somente as conexões que lhe interessam (di-ferente da analogia, outra figura de linguagem, que exige maior rigidez comparativa). A escolha da dupla metáfora contida nesse ditado popular se deu em meio ao debate sobre processos desencadeadores de aprendizagem em experiências de convivência, programadas ou não, entre sujeitos externos a grupos sociais relativamente estáveis, que estimulariam novos percursos do inteiro grupo ou parte dele1.

A andorinha carrega consigo forte correlação com o conceito de grupo (como íco-ne), de “mudança” (como índice), assim como de “migração” (como símbolo). Esta riqueza sígnica a torna extremamente convidativa para o tipo de exploração metafó-rica que queremos desenvolver. O verão, por sua vez, é uma potente metáfora para a aprendizagem, não só por remeter a um conjunto de andorinhas, mas por encarnar a vivacidade e a erupção social que acompanham este fenômeno climático da natureza, recordando-nos da potência criativa geradora de aprendizagem.

Assim como uma andorinha só não faz verão e assim como um indivíduo não pode ser julgado por um ato isolado, o fenômeno da aprendizagem não pode ser compreen-dido em relação a um único locus, a um só indivíduo ou, menos ainda, se observados unicamente aspectos cognitivos envolvidos na aprendizagem.

Na abordagem social (ou sócio-prática) da aprendizagem, a qual fundamenta nossa análise, a aprendizagem é vista primordialmente como resultado de interações e prá-ticas compartilhadas pelas pessoas, manifestando-se nos comportamentos cotidianos,

1 As autoras manifestam especial agradecimento a Júlio Cesar Andrade de Abreu (NPGA/UFBA), por sua partici-pação nas reuniões de estudo que deram origem a este trabalho, pelas idéias que compartilhou conosco e pelo incentivo à elaboração deste texto. Valeu Júlio! Sigamos construindo aprendizagem em novas oportunidades.

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visão esta alinhada com a tradição empirista nas ciências sociais. A aprendizagem não é encarada como um objeto a ser analisado, um produto ou um processo técnico que acontece na mente dos indivíduos, mas sim como uma prática social que é parte do processo de construção da realidade, entrelaçada com a cultura e a política (EASTERBY-SMITH; ARAUJO, 2001; LAVE; WENGER, 1991).

A aprendizagem corresponde à relação dinâmica e de mútua influência entre pes-soas e sistemas sociais dos quais participam, combinando transformação pessoal com mudança das estruturas sociais (WENGER, 2000). Os sistemas sociais funcionam como complexas estruturas que modelam e orientam o comportamento individual, determi-nando em grande parte como os indivíduos podem relacionar-se entre si, ditando as bases para possíveis interações. Os sistemas ou estruturas sociais acabam, pois, por modelar parcialmente o modo como os indivíduos podem aprender, consolidar novos conhecimentos, perceber lacunas cognitivas e enfrentá-las, construir novas práticas, rotinas, produtos, etc., o que não significa que não haja margem para questionamento e transformação dessas estruturas a partir de cada sujeito que as integra.

Tais estruturas, por sua vez, são cultural e politicamente contextualizadas; cons-tituem complexos sociais extremamente resultantes de uma relação tempo-espacial, não somente geográfica, mas sobretudo historicizada. Esta relação entre indivíduo e es-truturas sociais não impede a investigação da aprendizagem individual, e sim a (re)con-textualiza como parte de um processo social, em diferentes escalas relacionais (fig. 1).

Figura 1: Relações entre níveis de aprendizagemFonte: Elaboração própria (2009)

Voltando às andorinhas, assim como uma só não faz verão, o verão não se faz apenas de andorinhas, mas se faz com a presença delas. De modo metafórico, um sujeito-an-

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dorinha não aprende sozinho, mas o faz em certo contexto social (vivendo em bandos), em suas práticas cotidianas (interagindo e migrando), indicando mudanças sociais (anun-ciando mudanças), contribuindo para a contínua definição e (re)definição de contextos e estruturas sociais. A paisagem, o clima, a cadeia alimentar, as pessoas que observam as andorinhas (e o sujeito-andorinha), são todos influenciados por sua chegada. Elas buscam o calor, viajam, aventuram-se, relacionam-se, aprendem, voltam à origem. O verão e o inverno influenciam as andorinhas, assim como sua presença, ou sua ausência, marcam o verão e o inverno para outras espécies. Como as andorinhas, o sujeito-andorinha segue os ciclos e fluxos da natureza. Elas partem, transformam-se, retornam. Influenciam e são influenciadas pelo contexto e pelas relações em que se envolvem.

Do mesmo modo, é nos ciclos, fluxos, práticas e relações entre pessoas em certo contexto que a aprendizagem tem lugar, de modo inevitavelmente implicado nas inte-rações cotidianas entre as pessoas e o mundo. As práticas por meio das quais as pes-soas interagem e constroem aprendizagem são situadas no tempo, no espaço, no con-texto; agentes, atividades e o mundo são mutuamente constituídos (ARAUJO, 1998).

Embora se movendo em bando, para cada sujeito-andorinha a experiência é singu-lar, tem sentido próprio. O significado do que vive e aprende em cada viagem é parti-cular para cada sujeito, mas é sempre relativo às interações com outros sujeitos, com outras “espécies” com as quais se relaciona, e com os contextos nos quais interage. Assim podemos ver a trajetória de aprendizagem de cada pessoa durante a vida: única, mas em contínua transformação, construída e (re)definida em cada nova experiência, em relação aos contextos sociais, às interações com pessoas, às comunidades de prá-tica das quais participa. Aprender é estar no mundo, interagir, experimentar, viver, re-fletir, como verões simultâneos que experenciamos. O conhecimento não é, pois, algo que armazenamos em nosso cérebro para utilizar quando necessário, mas algo conti-nuamente construído e reconstruído no cotidiano. O que sabemos tem um significado agora, pode ter outro significado em seguida, pois a cada situação nova, aprendemos e podemos transformar aquilo que já era tido como conhecido.

Nesse sentido, nos diz a abordagem social da aprendizagem que, para compreen-der aprendizagem, mais importante do que analisar processos cognitivos individuais, é perceber contextos culturais e sociais nos quais as pessoas interagem, constroem suas práticas compartilhadas, seus repertórios cognitivos e emocionais, e a partir dos quais definem suas identidades. Isso ocorre, fundamentalmente, no âmbito de comunidades de prática, noção esta que apresentaremos adiante. Em outras palavras, reafirma-se que o indivíduo-andorinha aprende (e o que aprende pode ser analisado e compreen-dido), mas sempre em relação a um contexto sócio-prático.

Com base nessas colocações, recorremos aqui às andorinhas e ao verão como inspi-ração para explorarmos quatro idéias que consideramos essenciais para compreender aprendizagem:

(a) aprendizagem é fundamentalmente um processo social e que diz respeito à prática – prática essa situada no contexto (andorinha como ícone da convivên-cia em grupo – bando);

(b) aprender é um processo contínuo e inovador, embora não linear e não cumu-lativo (andorinha como índice de “mudança perene”);

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(c) aprendizagem se refere tanto à expansão de fronteiras como a fronteiras de expansão (andorinha como símbolo de migração);

(d) o planejamento e o controle excessivo ou pormenorizado da aprendizagem, em processos voluntários migratórios, é um dos paradoxos limitantes da pró-pria aprendizagem (por meio da exploração da metáfora do verão, a partir das andorinhas, observando, em particular, relações entre universidade e socieda-de, tema central deste livro).

São estas idéias que passamos a desenvolver a seguir, cada uma delas em um tó-pico, entendendo-as como características que se constituem e se influenciam mutua-mente para definir o mesmo fenômeno – a aprendizagem. Após argumentar sobre cada parte desse conjunto, com base em referenciais teóricos e na dupla metáfora do verão e das andorinhas, apresentamos possíveis implicações dessa concepção de aprendiza-gem no desenho e na condução de relações entre universidade e sociedade nas quais se pretende contribuir para a formação de sujeitos e para o desenvolvimento sócio-territorial. O fazemos articulando argumentos aqui desenvolvidos com nossa vivência enquanto acadêmicas engajadas em comunidades de prática situadas nas fronteiras entre disciplinas do conhecimento científico, entre atividades de ensino, pesquisa e ex-tensão e nas relações entre universidade e sociedade. Nas considerações finais, busca-mos recuperar um pouco daquilo que consideramos mais significativo nesse processo de aprendizagem compartilhado pelas autoras ao elaborar este trabalho.

2. Aprendizagem como processo social, essencialmente prático e situado no contexto

No âmbito da abordagem social da aprendizagem, duas dimensões são fundamen-tais para compreender a natureza da aprendizagem. Uma delas, como o próprio nome da abordagem revela, é a concepção de que a aprendizagem, embora possa ser verifi-cada e analisada no âmbito individual e psicológico, é fundamentalmente um processo social (EASTERBY-SMITH; ARAUJO, 2001; YANOW, 2000). A outra dimensão essencial da aprendizagem é a prática, por isso tal abordagem social pode ser redefinida (ou refina-da) em termos de sócio-prática (SOUZA-SILVA; SCHOMMER, 2008).

Prática entendida não como oposto de teoria ou de reflexão. Prática no sentido de práxis, de ação e reflexão permanentemente imbricadas (FREIRE, 1987), sempre em relação a um contexto em que faz sentido para o praticante. Ler, ouvir, pesquisar, pa-rar, aquietar-se, refletir sobre o que foi vivido, sistematizar conhecimentos – tudo isso faz parte do processo de aprendizagem. Também são práticas. Entretanto, em meio à diversidade possível de práticas, aquelas que tendem a ser mais significativas para a aprendizagem e para a definição da identidade de cada pessoa são as compartilhadas em grupo, especialmente em comunidades de prática (WENGER, 1998).

As andorinhas costumam voar juntas, em grupos de até 200 mil pássaros, em bus-ca de calor. Esta prática compartilhada pode ser vista nas Américas, por onde pas-sam as maiores aglomerações, partindo do Norte em outubro, em direção ao Sul, de onde voltam em abril (TORRES, 2009). As práticas e conhecimentos, as experiências e

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seus significados durante a viagem são compartilhados pelo grupo, contribuindo para a construção da identidade de cada andorinha e da identidade do grupo. Este percur-so compartilhado de aprendizagem ilustra em grandes linhas nossa trajetória social. Vivemos em grupos, somos parte de diferentes comunidades, nas quais interagimos, compartilhamos práticas e conhecimentos, vivemos experiências e emoções, vamos construindo nossa identidade enquanto indivíduos e em relação a cada comunidade da qual participamos (WENGER, 1998). Somos como sujeitos-andorinhas que se envolvem e experenciam diferentes percursos, simultaneamente e com dinâmicas e tempos pró-prios, em diferentes grupos sociais ou comunidades. Estas experiências influenciam-se no contexto da aprendizagem do indivíduo, e, em menor escala, podem provocar pe-quenas alterações nos demais percursos que aquele indivíduo vivencia. São processos de migração transacionais, quase sempre assincrônicos, que podem desencadear ino-vação social.

Como aves migratórias, ao viajarem, as andorinhas levam consigo o que viveram no lugar de onde partiram, vivem ao viajar, encontram outro lugar, outras vivências. Vão em grupo, enfrentam juntas os desafios da viagem, chegam juntas ao novo contexto. Ao chegarem, influenciam esse novo contexto e são influenciadas por ele2. Sinalizam a chegada do verão, inspiram outros sujeitos a voar, a sair do ninho, a abrir-se para a nova estação.

As relações entre processos cognitivos individuais e processos sociais de aprendiza-gem são objeto de disputa na literatura sobre aprendizagem. Na concepção que aqui adotamos, seja para analisar como um indivíduo, uma comunidade ou uma organiza-ção aprende, é fundamental analisar os contextos sociais e interacionais que geram oportunidades de aprendizagem. Embora admitindo que a aprendizagem seja, simulta-neamente, um processo social e psicológico (ANTONACOPOULOU, 2001), concordamos com Yanow (2000) que não é a soma de aprendizagens individuais que permite que a aprendizagem coletiva ocorra. Ao contrário, práticas e interações sociais nas quais os indivíduos engajam-se é que permitem a aprendizagem individual. Não se trata de des-considerar processos cognitivos e psicológicos envolvidos na aprendizagem, os quais costumam ser focalizados pela abordagem cognitiva da aprendizagem, mas de enfati-zar que a aprendizagem é um processo social situado em um contexto histórico, políti-co e cultural (LAVE; WENGER, 1991). “O que é aprendido é profundamente conectado às condições nas quais é aprendido” (BROWN; DUGUID, 1991:47), inclusive no que se refere aos aspectos emocionais presentes na aprendizagem3.

Na abordagem social, o produto aprendizagem não é visto como propriedade de um indivíduo ou de uma organização, ou como algo que é processado e acumulado na mente dos indivíduos, mas como resultado do processo aprendizagem, que compreen-de, continuamente, interações entre indivíduos, grupos, organizações e o ambiente,

2 De acordo com Brown e Duguid (1991), a maneira como as pessoas percebem e interpretam o ambiente pode influenciar o próprio ambiente, algumas vezes mais do que o ambiente influencia a interpretação.3 Já é reconhecido que características cognitivas dos indivíduos são vinculadas a fatores emocionais. Na fisiologia do cérebro, funções cognitivas e emocionais são diretamente ligadas. O que aprendemos está fisiologicamente conectado ao que sentimos. Um cheiro, uma imagem, uma palavra ou um conceito, quando “lembrado”, costuma trazer à tona também as emoções presentes quando os “aprendemos”. O que sentimos, assim como o que apren-demos, embora seja algo registrado por cada indivíduo, é vivido em relação a outras pessoas, ao ambiente, aos contextos nos quais interagimos.

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manifestando-se nos comportamentos cotidianos (EASTERBY-SMITH; ARAUJO, 2001; LAVE; WENGER, 1991; WEICK; WESTLEY, 2004; WENGER, 2000).

A aprendizagem não se refere, pois, a acumular conhecimento sobre o mundo, mas a estar no mundo, a interagir, a participar do mundo social. O conhecimento é vis-to como algo presente nas práticas cotidianas, nos objetos que se constituem como focos de interações, na cultura de um grupo, comunidade ou organização, na lingua-gem e nos significados intersubjetivos de símbolos, valores, crenças, rituais e artefatos construídos em contextos específicos de interação (YANOW, 2000)4. Para compreender aprendizagem, a ênfase está no coletivo, nas ações e interações das pessoas, nas es-truturas, nos papéis, no repertório e em seus significados particulares nos grupos ou comunidades, e não em cada um de seus membros (EASTERBY-SMITH; SNELL; GHERAR-DI, 1998; WEICK; WESTLEY, 2004; YANOW, 2000).

A visão de aprendizagem situada no contexto e na prática compartilhada pelas pes-soas enfrenta, porém, resistências. Segundo Lave e Wenger (1991), tal visão pode ter conotação de paroquialismo, particularidade, temporalidade e circunstancialidade. Es-tes autores observam, no entanto, que um conhecimento geral ou uma representação abstrata, aparentemente descontextualizados, são derivados de uma ou mais circuns-tâncias ou eventos específicos e não possuem significado enquanto tal, a menos que possam tornar-se específicos, numa situação palpável. Para os autores, toda especifi-cidade implica algum grau de generalidade, o que não significa abstração, assim como um conhecimento dito geral não é privilegiado ou superior em relação a outros tipos de conhecimento, pois qualquer conhecimento somente pode ser obtido e aplicado em circunstâncias específicas5.

Lave e Wenger (1991) identificam, contudo, uma epistemologia folclórica que dis-tingue conhecimento abstrato de conhecimento concreto, o que, para eles, não existe no mundo real; assim como não existe hierarquia de conhecimentos nas práticas das pessoas6. Araujo (1998) é outro autor que critica as visões de conhecimento como algo acabado, como entidade abstrata localizada na mente dos indivíduos, transcendendo tempo e espaço, formando um estoque a ser acessado e utilizado. Ele reforça o coro dos que defendem a transição de uma visão de conhecimento como algo abstrato para o conhecimento situado na prática, relacional e transitório.

Para este autor, a filosofia ocidental foi por muito tempo influenciada por uma orto-doxia idealista que concebe o conhecimento e as idéias como livres das contingências de tempo e de lugar, como se contextualizar uma idéia a enfraquecesse. É a defesa do valor da objetividade das idéias, disassociadas de interesses, pessoas e conven-

4 A própria linguagem, que é instrumento para reflexão interpessoal e intrapessoal, é um fenômeno social, o sistema cultu-ral central de qualquer grupo ou organização social. A linguagem é elemento essencial na aprendizagem, constituindo-se, simultaneamente, como instrumento e repositório da aprendizagem. Assim, mesmo no nível primário (o da linguagem), toda aprendizagem ocorre por meio da interação social ou, dito de outro modo, a aprendizagem está inserida nos relacio-namentos ou conexões (WEICK; WESTLEY, 2004).5 Essa visão faz lembrar Jean Paul Sartre, que em O Existencialismo é um Humanismo defende que cada escolha, cada ato de uma pessoa, mesmo localizado no tempo e no espaço, é também absoluto e universal: “[...] há uma universalidade do homem; mas ela não é dada, é indefinidamente construída [...] e não há diferença alguma entre ser um absoluto tempo-rariamente localizado, quer dizer, que se localizou na história, e ser compreensível universalmente“ (SARTRE, 1978, p.17).6 Marsden e Towley (2001) apontam que, embora a separação entre teoria (mundo do pensamento) e prática (mundo da ação) tenha sido ultrapassada há muito tempo na filosofia das ciências sociais, ainda está presente tanto no senso comum quanto em análises organizacionais, como se a teoria correspondesse a um ideal inexequível na prática.

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ções dos contextos nos quais emergiram. Araujo (1998) observa que o conhecimen-to local não costuma ser visto como digno o suficiente, designado por palavras como habilidade (skill), costume (custom), ou tradição (lore, entendido como conjunto de conhecimentos e de tradições de um grupo ou povo folk/lore). Segundo ele, “Formal, decontextualized knowledge frees knowers from the engagement with the world, from the particularities of time, place and ongoing activity” (ARAUJO, 1998:324).

As colocações de Araujo (1998) guardam relação com a crítica de Santos (2003) ao descompromisso da ciência moderna com a aplicação do conhecimento que produz. Pode-se também fazer vinculação com os estudos de Latour e Woolgar (1997), que demonstraram que a ciência, ao definir algo como um fato científico, costuma abando-nar qualquer menção ao contexto de sua produção. Para Lave e Wenger (1991), assim como para inúmeros autores que evidenciam o caráter político e contextualizado da ciência, as práticas dos cientistas devem ser analisadas em termos situacionais, histo-ricamente localizadas, de acordo com o caráter socialmente definido de significados. A própria formulação de Kuhn (2001) dos paradigmas científicos contribuiu para mudar a idéia de que a produção do conhecimento é um ato individual, solitário, em que as convenções, interesses e expectativas são removidas da cena (ARAUJO, 1998).

A vinculação da ciência com o contexto no qual é produzida e aplicada, bem como a valorização e a articulação entre diferentes saberes – científicos e não-científicos, são, a nosso ver, cruciais na construção da aprendizagem na relação entre universidade e sociedade, ao que voltaremos adiante.

2.1 Comunidades de prática: espaços privilegiados de aprendizagem

Uma noção relevante no âmbito da abordagem social da aprendizagem é a de co-munidades de prática. O termo foi cunhado por Lave e Wenger (1991) e desenvolvido posteriormente por Wenger (1998), inspirando trabalhos de diversos outros autores.

Uma comunidade de prática pode ser definida como um conjunto de pessoas liga-das umas às outras pelo envolvimento em atividades ou práticas comuns, engajadas mutuamente num empreendimento coletivo, as quais desenvolvem um repertório pró-prio, que simboliza identidade, significados e relações de pertencimento (WENGER, 1998). Comunidades de prática surgem espontaneamente em contextos de interação social, como resposta a alguma situação desafiadora ou a um interesse comum entre pessoas que integram um grupo maior.

A noção de comunidade de prática nos remete de alguma forma à idéia de comu-nidade de indagadores, desenvolvida por Dewey (1938), para quem a indagação é in-terpretada como um movimento interacional entre indivíduos que compartilham em diferentes graus a necessidade de enfrentamento de uma situação problemática ligada à prática (profissional). Os indagadores se articulariam para reconstruir alguma situ-ação que bloquearia o curso natural das suas práticas ou mesmo para garantir a con-tinuidade delas. A continuação dessa articulação geraria uma dinâmica oportunística que ajudaria a conservar os sujeitos como pertencentes a uma mesma comunidade (DEWEY, 1938). Uma comunidade de indagadores, assim como uma comunidade de

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prática, possui um sistema próprio de aprendizagem que define o modo como indiví-duos e o coletivo potencialmente aprendem.

No âmbito organizacional, comunidades de prática surgem espontaneamente e in-teragem com as estruturas formais. Não são passíveis de controle e, como as comuni-dades de indagadores de Dewey (1938), refletem maneiras pelas quais as pessoas se aproximam para lidar com as rotinas formais e com as tensões emocionais, (re) signifi-cando-as e definindo como cada rotina será efetivamente praticada (WENGER, 1998).

Cada pessoa integra diferentes comunidades de prática, ocupando distintas posi-ções entre seu centro e sua periferia7, e aprende a comportar-se de acordo com as com-petências exigidas em cada uma delas. Se uma pessoa é reconhecida como membro de uma comunidade de prática, ela desfruta de legitimidade para participar da definição do empreendimento, do repertório, dos significados e das competências requeridas. Pertencer a uma comunidade de prática refere-se não apenas a realizar uma tarefa, mas a uma experiência de pertencimento, o que torna tais comunidades fundamentais para a aprendizagem e para a definição da identidade de cada sujeito – como vê a si próprio, o que conhece e como interage no mundo. No âmbito dessas comunidades, as pessoas sentem-se seguras para compartilhar dúvidas, aspirações, experiências e perspectivas, inclusive erros, refletindo coletivamente e redefinindo significados, ou seja, aprendendo pela prática compartilhada, sem dicotomias entre ação e reflexão ou entre o individual e o coletivo.

Para além da aprendizagem no interior das comunidades, há interações nas frontei-ras entre comunidades de prática, em relações intra e interorganizacionais, por meio da quais a estabilidade e as experiências sedimentadas são desafiadas, gerando certa desordem e desequilíbrio, exigindo novos conhecimentos e visões8.

Retomando a metáfora das andorinhas em seus bandos, podemos visualizar sujei-tos-andorinha em suas comunidades: compartilham experiências, constroem repertó-rios ao longo do caminho, aprendem em conjunto, conferem sentido ao mundo e às próprias experiências a partir da vivência coletiva. Ao chegarem a um novo contexto, são influenciados por novas interações e repertórios, desestabilizando o que está posto e sinalizando para novas possibilidades, para uma nova estação, interagindo com outras espécies, outras experiências, de diferentes sujeitos-andorinha, em suas comunidades.

Vejamos agora como essa natureza social, prática e contextualizada da aprendiza-gem está vinculada, em nossa visão, a outra característica – a da aprendizagem como processo contínuo.

7 Lave e Wenger (1991) desenvolvem a noção de legitimate peripheral participation (participação periférica legí-tima ou legitimada), para explanar como novos membros tornam-se parte de uma comunidade de prática e para explorar as múltiplas oportunidades de aprendizagem nas relações entre mestres e aprendizes, os quais podem ocupar diferentes posições (mais centrais ou mais periféricas em relação às práticas e conhecimentos da comu-nidade), em situações específicas. De acordo com tal noção, aprender depende essencialmente de tornar-se um insider, participar dos processos de dentro, ser membro da comunidade para aprender a linguagem, captar sua visão subjetiva, saber as histórias e o momento oportuno de contá-las, enfim, adquirir a habilidade de comportar-se como membro da comunidade (BROWN; DUGUID, 1991). Nas palavras de Hanks (1991:22): “[...] if learning is about increased access to performance, then the way to maximize learning is to perform, not to talk about it”.8 A entrada de novos membros em uma comunidade de prática ou uma nova experiência vivida por um de seus integrantes também tende a desestabilizar as práticas da comunidade, provocando desequilíbrio entre experiência e competência (WENGER, 1998), tema ao qual retornaremos adiante.

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3. Aprendizagem ou aprendizado? Aprendizagem como processo contínuo

Andorinha voa veloz Voa mais do que minha voz Andorinha faz a canção Que eu não fiz Andorinha voa feliz Tem mais força que minha mão Mas sozinha não faz verão...(Voa Bicho, de Milton Nascimento. Álbum Pietá)

Além de seu caráter prático e social, a aprendizagem é um processo contínuo, em-bora não cumulativo e não linear. Não se trata de somar experiências, justapor e arma-zenar conhecimentos em computadores ou no cérebro. Trata-se de aprender, esque-cer, atribuir e redefinir significados. Aprendemos todo o tempo, construímos novos saberes, enquanto esquecemos outros (DE HOLAN; PHILIPS, 2006). Mais uma vez a metáfora da andorinha, cujo signo pode ser interpretado como índice de mudança (um bando de andorinhas anuncia a chegada do verão), presta-se à exploração da aprendi-zagem e seus processos.

Este processo de mudança perene está fortemente relacionado ao que Norbert Elias, para quem indivíduo e sociedade não são categorias separáveis, chamou de mu-dança como condição humana (ELIAS, 1939). A reestruturação contínua do sistema de significados e significantes sobre o qual se consolida a aprendizagem é também uma condição humana. Essa, porém, não se realiza em um contexto livre de modelagem. Pelo contrário, a abordagem social enfatiza que a aprendizagem acontece no seio das estruturas sociais e culturais, enfatizando a interdependência relacional entre sujeito-andorinha, mundo, atividade, significado, cognição, aprendizagem e conhecimento. O conhecimento, num mundo socialmente constituído, é mediado socialmente, histori-camente contextualizado e sempre aberto. Os significados, inclusive de discursos e de teorias, alteram-se no curso das ações (LAVE; WENGER, 1991).

A aprendizagem pode ser compreendida como a expansão das fronteiras ou limites do conhecimento individual e coletivo. Aprendemos quando ampliamos as nossas pos-sibilidades de compreensão do mundo e dos seus fenômenos, dos nossos pares e das suas ações. Podemos dizer que a aprendizagem se dá por completamento de lacunas cognitivas, dispostas não linearmente, tampouco circunscritamente. Estas lacunas po-dem ser compreendidas como dúvidas ou como problemas que perpassam nossas prá-ticas sociais, e que, de certa forma, acabam por também modelá-las. O enfrentamento de tais dúvidas ou lacunas nem sempre se dá de forma direta e voluntariosa. Pelo contrário, muitas vezes resistimos em vê-las e as contornamos consolidando percursos nem sempre produtivos. Por percursos produtivos, do ponto de vista da aprendizagem, compreendemos percursos que nos levam a novas dúvidas e problemas e, assim, esti-mulam novas conexões e nos distanciam da apatia cognitiva, contrária a nossa condi-ção humana, para tornar a Norbert Elias.

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O mais importante é que o movimento para a resolução de dúvidas ou de proble-mas através da interação adaptativa acaba por instituir novas condições ambientais, que dão lugar a novos problemas ou dúvidas (DEWEY, 1938). Pierce (1931), pragmático estadunidense, já tinha estudado tal continuidade, chamando-a de semiose infinita. Nesta perspectiva, o sujeito se torna sujeito-andorinha, num decurso de aprendizagem ad continuum, cuja velocidade e diversidade varia no tempo e no espaço, de acordo com o contexto no qual o sujeito se move.

Mesmo quando novos significados são definidos como frutos de profundos mo-vimentos de síntese criativa, como os que acontecem em eventos dramáticos ou em uma aparentemente repentina “iluminação”, são também frutos de microprocessos, das ações e interações vividas no cotidiano. Do mesmo modo, quando paramos para observar ou refletir de modo sistemático sobre o que foi experimentado, a aprendiza-gem segue acontecendo. Quando se escreve um texto sobre uma experiência vivida, a experiência segue ecoando no escritor e novos significados vão sendo construídos na prática do escrever. Quando concluído o texto, seu significado para o escritor já é diferente, pois ele já não é mais o mesmo. Para outros que lerão o texto, o significado dependerá das interações entre esse novo estímulo e suas experiências anteriores. Ou seja, o texto ali “imobilizado” (ou reificado, termo utilizado por Wenger (1998)) conti-nua sendo construído, gerando novos significados, em interação com quem o escreveu e quem o lê9. E se uma pessoa lê o mesmo texto em diferentes contextos ou momen-tos, nele encontrará outros sentidos.

A aprendizagem, como processo contínuo, sempre “está sendo”, nunca é, como no tempo verbal do presente contínuo da língua inglesa”. Mesmo que possamos identifi-car “lições aprendidas”, extrair dos fatos ou dos objetos “leis” ou “verdades”, são elas expressões ou manifestações de certa propriedade ou característica de um processo que segue acontecendo e que guarda em si o potencial de, a qualquer momento, der-rubar a verdade provisória antes estabelecida, expandindo contornos, definindo novas fronteiras de expansão, característica da aprendizagem que exploramos a seguir.

4 - Aprendizagem como fronteira de expansão e como expansão de fronteiras

A andorinha voou, voou Fez um ninho no meu chapéu E um buraco bem no meio do céu E lá vou eu como passarinho Sem destino nem sensatez Sem dinheiro nem pra um pastel chinês.

9 Em inglês, a palavra learning é usada tanto para se referir ao processo aprendizagem como ao possível “produ-to” aprendizado. É raro encontrar a palavra learned, que poderia ser entendida como algo aprendido, como em lessons learned (lições aprendidas). Quando se fala em conhecimento, a palavra knowing tem conquistado espaço em relação a Knowledge, evidenciando a natureza processual e contínua do conhecimento, contrastando com sua percepção como produto ou como estoque que pode ser acumulado.

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A andorinha voou, voou Fez um ninho na minha mão E um buraco bem no meu coração E lá vou eu como um passarinho Como um bicho que sai do ninho Sem vacilo nem dor na minha vez.(Voa Bicho, de Milton Nascimento. Álbum Pietá)

O desejo de aprender é o desejo de expandir fronteiras, ampliar horizontes, ir além do conhecido, responder a dúvidas e inquietações. O resultado da realização desse de-sejo pode transformar simultaneamente o que se conhece e as maneiras pelas quais se busca conhecer. A aprendizagem situa-se, sobretudo, nas fronteiras de expansão e na expansão de fronteiras - do conhecimento, da experiência, da cognição, das emoções, da vida.

A aprendizagem parte de uma situação conhecida ou estável, delimitada por certa fronteira, nos limites da qual se configura um sistema de aprendizagem (o modo como aprendemos). O equilíbrio dentro daquela fronteira é perturbado por alguma dúvida, desejo ou lacuna que gera desequilíbrio – o conhecido não é suficiente, não é confortá-vel. Busca-se uma nova situação de equilíbrio, mesmo que provisório e precário. Nessa busca, não apenas é gerado um novo conteúdo (ou produto da aprendizagem, que responde à dúvida), mas também uma nova configuração do processo aprendizagem, tanto em sua estrutura (fronteira, forma, desenho), como em sua dinâmica (movimen-to, sistema vivo, estratégia). Em outras palavras, uma viagem pode propiciar novas experiências e conhecimentos, os quais alteram inclusive a maneira como viajamos. Essa mudança na maneira de viajar pode representar uma expansão das fronteiras da aprendizagem enquanto sistema, ampliando as possibilidades do aprender.

Diferentes autores buscaram compreender a passagem entre o estágio de conhe-cimento que já não mais satisfaz as práticas sociais (desequilíbrio) e o alcance de um novo estágio (equilíbrio). Entre eles, os pragmáticos estadunidenses Charles Sanders Pierce e John Dewey detêm lugar de destaque. Para Pierce (1931), cujo foco de estudo era o indivíduo, este desequilíbrio era interpretado como o surgimento de uma “dúvi-da” e a dúvida era uma propriedade do conhecimento individual. Quem duvida, por-tanto, é sujeito (na esteira do que concluiu o francês Descartes – “Dubito, ergo cogito, ergo sum” ou “Duvido, logo penso, logo existo”). Poucas décadas mais tarde, Dewey (1938) reinterpreta o pragmatismo pierciano, preconizando uma abordagem social e atribuindo à dúvida a qualidade de produto de uma interação. Nesta nova ótica, o su-jeito duvida porque se encontra em uma situação duvidosa e tal situação nunca é pro-duto solitário do indivíduo que duvida. Assim, a própria dúvida provoca a indagação, que por sua vez está na base da aprendizagem, é já um produto social. Todo o resto, portanto, também se desenvolve no plano social.

Um sujeito não é sempre uma andorinha, naturalmente. Mas ele se faz andorinha em diferentes momentos da sua vida. Para o que nos interessa, uma andorinha se distingue pela sua necessidade de mudança, traduzida em longos deslocamentos tem-po-espaciais. Em sentido inverso, as mudanças do contexto (da estação) provocam o desequilíbrio que impulsiona as andorinhas a buscar outro lugar, outro ponto de equi-

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líbrio. Esta necessidade de alguma forma nos remete a nossa experiência, pois, como nos recorda Norbert Elias, a mudança é uma condição humana. Na trajetória de vida de cada andorinha, assim como na nossa, acontecem idas e vindas, partidas e chegadas, contextos diferentes de interação com outras andorinhas e com outras espécies. Elas partem em função das alterações da estação, combinando um modo já conhecido de fugir do frio, pelo instinto da sobrevivência, e dispostas a novas experiências nessa bus-ca do calor. No processo de migração carregam consigo resquícios do que tinham deixa-do para trás. Ajudam a plantar novas sementes por onde passam, cruzando fronteiras (geográficas e de relações) e dando continuidade à expansão das fronteiras da vida.

Uma pessoa, organização ou sistema que não se renova, fica no conhecido, reduz as oportunidades de aprendizagem, mudança e inovação e tende à entropia, à morte. Em certa medida, o padrão já dominado, a competência comprovada, o comportamento conhecido é mais confortável, aparentemente seguro. O cérebro humano tende a cris-talizar padrões de comportamento para poupar energia, em uma espécie de “economia cognitiva”. As organizações tendem a reproduzir rotinas sem questionar sua razão. As comunidades de prática tendem a fechar-se em si mesmas e isolar-se de outras. Podem tornar-se comunidades-fortaleza, fechadas às invasões do mundo, do mesmo modo que grupos muito homogêneos tendem ao paroquialismo e à xenofobia.

As andorinhas, porém, para sobreviver, para estarem novamente confortáveis, pre-cisam migrar, aventurar-se por outros ares e lugares, relacionar-se com outros contex-tos e repertórios. Não foram feitas para a segurança do conhecido. Como os navios, que embora estejam mais seguros e protegidos nos portos, são feitos para navegar.

Assim como a sustentabilidade da vida está baseada em um delicado balanço entre ordem e caos, entre competição e cooperação, a sobrevivência dos sistemas sociais ou das organizações depende de certa tensão permanente entre equilíbrio e desequilíbrio, ordem e desordem, padrões e flexibilidade, institucionalização e mudança, eficiência e inovação, conhecimentos existentes e novas possibilidades, organização e aprendiza-gem (WEICK; WESTLEY, 2004; CHILD; MCGRATH, 2001). Nos termos de Wenger (1998; 2000), é o desequilíbrio entre experiência (o que já experimentamos e sabemos) e competência (conhecimentos e comportamentos definidos socialmente como espera-dos ou necessários em uma nova circunstância) que constitui o motor da aprendiza-gem, o impulso para que se busque uma nova condição. Uma nova experiência não se sustenta naquilo que já se sabe, na competência que já se tinha ou se dominava. Pelo contrário, ela exige novas competências, desafiando o repertório e o comportamento dos que a vivenciam. Esta exigência é condição sine qua non para a aprendizagem que acontece no seio dos microprocessos e micropráticas do cotidiano.

Voltando à Dewey (1938), entre a dúvida e a resolução da dúvida podemos en-contrar propriedades transacionais da relação entre quem indaga e a situação de in-dagação. Como vimos, a dúvida é algo intrínseco à situação social de onde a mesma brotou, mesmo que um ou poucos sujeitos se disponham a resolvê-la voluntariamente ou que a resolvam acidentalmente a partir de um movimento social de indagação. Este movimento de indagação, da perspectiva da abordagem social, nos ajuda a explorar os limites da aprendizagem. O indagador indaga em uma comunidade de indagadores, co-autores da dúvida ou problema, o que nos leva para o campo da prática social. A inda-gação é um processo social, pois é condicionada por um sistema social que estabelece

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os seus pressupostos (ARGYRIS; SCHON, 1996). Se a dúvida ou problema está na raiz da aprendizagem e ela constitui estímulo para o movimento da indagação desencadeador de aprendizagem, para que aprendamos é necessário que o sistema de aprendizagem seja, de alguma forma, modificado.

A modificação do sistema de aprendizagem de um grupo (que condiciona a apren-dizagem individual) é aqui interpretado a partir do conceito de expansão de fronteiras e de fronteiras de expansão, estimulados pela leitura metafórica dos movimentos mi-gratórios das andorinhas. O surgimento da dúvida, problema ou situação problemática em um complexo de sujeitos abre a possibilidade de novas conexões entre a experiên-cia à teoria (reflexão sobre a teoria), através de um novo ajuste de mediação sígnica. A descontinuidade cognitiva que provoca a dúvida estimula os sujeitos envolvidos no problema a encontrar alguma forma de reconectar as partes até então conexas, mes-mo que frouxamente, estimulando a aprendizagem.

Aprendemos quando ampliamos socialmente as fronteiras da nossa percepção. A aprendizagem requer um sistema de aprendizagem, um processo de aprendizagem, um produto da aprendizagem, além dos sujeitos da aprendizagem (ARGYRIS; SCHON, 1996). Além disto, exige fundamentalmente que os sujeitos da aprendizagem se recon-textualizem e revejam suas posições no próprio processo. Esta revisão pode acarretar uma alteração, mesmo que não muito significativa, do sistema de aprendizagem que modela em grande parte a aprendizagem do grupo e dos seus sujeitos. Em outras pala-vras, esta revisão ou reequilíbrio é que chamamos de fronteiras da expansão. Quando aprendemos, não somente expandimos as fronteiras do conhecimento (sabemos mais, compreendemos de outro modo, articulamos com mais propriedade), mas também ex-pandimos ou ampliamos as fronteiras de expansão da aprendizagem, que é seu próprio sistema de aprendizagem.

Cada grupo possui um sistema de aprendizagem próprio, com dinâmicas, modos, tempos e alquimias diferentes. Tal sistema é responsável pela alimentação e susten-tação prático-cognitivo do inteiro grupo, assim como dos processos de interiorização e socialização do conhecimento que o perpassa ou que ali é produzido. Nos interes-sa, em particular, possibilidades de aprendizagem proporcionadas por interações so-ciais advindas de sujeitos que se introduzem ou são introduzidos intencionalmente em grupos sociais até então alheios a ele(s). Metaforicamente, nos interessa estudar os verões desencadeados por sujeitos-andorinhas, mais do que as inovações em si que eles possam ter trazido. Entendemos que uma das principais contribuições deste tipo particular de troca se dê, justamente, no sistema de aprendizagem de comunidades que compartilham alguma prática.

No âmbito das relações entre universidade e sociedade, nos interessa compreender as possibilidades de expansão das fronteiras da aprendizagem. Ao voltar nossos esfor-ços não para os indivíduos e o que cada um deles é capaz de aprender, não para cada disciplina e seus saberes canônicos, mas sim para os contextos, estruturas, práticas e interações sociais entre sujeitos e sujeitos-andorinha (seus saberes e suas comunida-des), podemos contribuir para o alargamento e o enriquecimento da aprendizagem. Podemos adicionar calor, colorido e sabor aos verões que vivenciamos nessa relação.

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5. O paradoxo da aprendizagem organizacional: entre permanência e inovação

Para explorar contextos potencialmente enriquecedores da aprendizagem na in-teração entre universidade e sociedade, além de identificar aquilo que a impulsiona, cabe reconhecer fatores inibidores, paradoxos ou dilemas da aprendizagem, em parti-cular no âmbito organizacional.

Certos autores consideram que a aprendizagem organizacional se refere à aprendi-zagem individual em um contexto organizacional. Outros, que uma organização apren-de da mesma maneira que um indivíduo (WEICK; WESTLEY, 2004). A concepção aqui adotada admite que, no contexto organizacional, ocorre tanto aprendizagem indivi-dual como organizacional e não há dicotomia entre elas. Nas relações universidade-sociedade, pessoas, grupos, organizações e instituições encontram oportunidade para aprender, para transformar-se. No processo, influenciam-se mutuamente.

Para discutir aprendizagem organizacional, partimos da provocação de Weick e Westley (2004:361): “Organizar e aprender são, essencialmente, processos antagô-nicos, o que significa que a expressão aprendizagem organizacional é um oxímoro. Aprender é desorganizar e aumentar a variedade. Organizar é esquecer e reduzir a variedade.” Essa tensão ou dilema, ao contrário de indicar a impossibilidade de que a organização aprenda, desafia-nos a perceber que é exatamente nessa tensão que residem oportunidades para a aprendizagem organizacional. Para os autores, “Afirmar o oxímoro da aprendizagem organizacional é manter a organização e a aprendizagem conectadas, a despeito de se moverem em direções opostas” (2004:385). Quando a organização “se desorganiza”, há oportunidades para aprendizagem e para um novo padrão de organização.

No mesmo sentido, uma instituição, ou algo institucionalizado, não corresponde a algo que não possa ser mudado, mas sim a algo que requer menos mobilização e inter-venção para sustentar-se. Uma instituição resulta de um particular e contínuo proces-so de reprodução, que define um estado ou propriedade padrão de uma ordem social (JEPPERSON, 1991), funcionando como referência para comportamentos. Instituições são espaços que, simultaneamente, permitem e limitam atividades, constrangem e dão liberdade de ação, incentivam e controlam comportamentos (FRIEDLAND; ALFORD, 1991). No âmbito das organizações, há vetores que impelem à institucionalização de práticas, em contínua interação com vetores que impulsionam à desestabilização e à mudança. As práticas organizacionais são também influenciadas por elementos insti-tucionais do contexto social mais amplo, seja no campo da política, da cultura ou da economia, ao passo que podem igualmente contribuir para alterá-los.

No que se refere à capacidade e as maneiras de aprender, as organizações são diferentes entre si e internamente. Enquanto tipos ideais, formas mais burocráticas tendem a priorizar padronização e eficiência. Aprendem, sobretudo, por melhorias contínuas, aprimorando habilidades existentes. Já as adhocracias, no extremo opos-to, tendem a ser mais sensíveis às mudanças do ambiente e aptas a criar e a inovar. Nas organizações, no amplo espectro que contém tanto rigidez como flexibilidade, até ruptura, configura-se o desafio de combinar o potencial de aprendizagem nas comuni-

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dades internas, explorando pequenos avanços e adaptações nas rotinas, em paralelo à abertura para descobertas, novas possibilidades, contato com outros repertórios e de-mandas, podendo chegar até ao rompimento, à revolução ou à destruição de práticas. Trata-se de uma contínua e íntima conexão entre ordem e desordem, segurança e risco, mudança incremental e transformação, buscando-se preservar a aprendizagem passada e estimular a consciência e a crítica que estimulam a mudança (WEICK; WESTLEY, 2004)10.

Situações que justapõem ordem e desordem são destacadas por Weick e Westley (2004) como propícias à aprendizagem organizacional. Tal justaposição costuma ocorrer em momentos curtos, rápidos, incomuns, quase acidentais, por vezes imperceptíveis, em meio às práticas cotidianas. Podem manifestar-se em um momento de descontra-ção, em uma piada, em uma situação de controvérsia e, sobretudo, em situações que exigem improvisação, nas quais as pessoas refletem e agem rapidamente para encon-trar saída para um problema. Para improvisar, todavia, é importante contar com uma estrutura mínima, uma base a partir da qual são testadas possibilidades, com tolerância aos erros, mas com certa estabilidade. Processos que estimulam a reflexão crítica de pressupostos e práticas, os cultivos da dúvida e da curiosidade, bem como a reflexão sobre erros cometidos, costumam ser catalisadores da aprendizagem. São bem-vindos desequilíbrios, como os provocados por objetivos pouco claros, por certa dose de inco-erência, indecisão e atribuição de responsabilidades contraditórias (WEICK; WESTLEY, 2004), o que provoca dúvidas e novos possíveis caminhos, em cada prática específica.

O reconhecimento do potencial de aprendizagem e inovação nas atividades diárias, cotidianas, que levam a um contínuo de práticas inovadoras, amplia a idéia de ino-vação radical produzida em laboratório ou por fatores externos (BROWN; DUGUID, 1991; WEICK; WESTLEY, 2004; WENGER, 1998). Brown e Duguid (1991) observam, no entanto, que práticas, aprendizagem, mudança e inovação, embora estreitamente inter-relacionadas, mutuamente imbricadas e potencialmente complementares, são freqüentemente vistas como conflitantes. São comuns visões de que as pessoas são resistentes à mudança e que suas práticas de trabalho tendem a ser conservadas; que a aprendizagem é distinta do trabalho; e que a inovação, embora necessária, tende a provocar instabilidade e impor mudanças dolorosas às práticas e à aprendizagem (BROWN; DUGUID, 1991). Em sentido oposto, os autores defendem que a aprendiza-gem seja vista justamente como ponte entre práticas de trabalho e inovação.

Embora reconhecendo esse potencial de aprendizagem e inovação no cotidiano, cabe enfatizar que tanto nas organizações como nas comunidades de prática tende a existir interesse em continuidade, harmonia e ausência de conflito, mesmo quando se sabe que a descontinuidade é comum e necessária para a ampliação de fronteiras. March e Simon (1958) já observavam que os custos da inovação tendem a produzir continuidade. Muitas vezes, as pessoas preferem alternativas que mantenham estru-turas a opções que as alterem. Para Argyris (1992), as pessoas tendem a procurar al-ternativas em função de seu grau de insatisfação com dada situação. Porém, é comum

10 Child e McGrath (2001), referindo-se a novas formas organizacionais, apontam que a organização contemporânea é desafiada a equilibrar-se na tensão estabelecida pela dupla pressão de: ser consistente e confiável e ter flexibilidade; ser eficiente e inovadora; explorar conhecimento existente e explorar novas possibilidades; definir padrões e normas e promover inovação e mudança. Para estes autores, o principal desafio de design das organizações em tempo de informação como algo central é lidar bem com o paradoxo.

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que se evitem situações embaraçosas e de conflito nas organizações, assim como se tende a encobrir erros e a “fingir que está tudo bem”.

De acordo com Weick e Westley (2004), as práticas imperfeitas que geram autocrí-tica, os “erros não fatais”, são protótipos de momentos que justapõem ordem e desor-dem, desorganizam o organizado, desarranjam rotinas. A maneira como a organização lida com erros ou falhas afeta seu potencial para aprender; uma vez aproveitados para investigar, refletir ou redefinir práticas, estimula-se a aprendizagem. Argyris (1992) ob-serva, no entanto, que as rotinas nas organizações favorecem que não se identifiquem e discutam erros. As pessoas aprendem a encobrir seus erros, seja por não estarem conscientes de que os produzem, seja porque procuram agir para que os erros não pareçam erros, criando teorias de como agir eficientemente para evitar percebê-los.

5.1. Inovação e comunidades de prática

No âmbito das organizações, as comunidades de prática podem constituir espaços privi-legiados para admitir e discutir erros, uma vez que se fundam em uma base de confiança e respeito mútuo entre seus membros. Nelas é possível dizer “não sei”, admitir dúvidas e erros (pelo menos é mais difícil omiti-los), buscar maneiras de responder a necessidades novas para as quais não se tem resposta. Weick e Westley (2004) apontam, no entanto, o risco de que a especialização extrema e o fechamento em si mesmas tornem as comunidades de prática rígi-das e, assim, reduzam sua capacidade de mudar. Para preservar sua capacidade de inovação, além do estímulo à reflexão e à dúvida, a articulação nas fronteiras com outras comunidades, a entrada de novos membros e a exposição a outros regimes de competência é fundamental.

Wenger (1998) defende garantir continuidade no âmbito da descontinuidade, o que cria um equilíbrio dinâmico. O autor observa que mesmo em contextos muito institucionaliza-dos, as comunidades conseguem mudar suas práticas constantemente para fazer o trabalho que julgam que deve ser feito, de acordo com valores e identidade definidos. Por outro lado, para continuar sendo a mesma, uma prática pode precisar mudar continuamente, já que o contexto em que é praticada também muda (WEICK; WESTLEY, 2004; WENGER, 1998). Isso não significa que as práticas apenas mudam para responder a novas condições do ambiente, do contexto institucional ou organizacional. Mudam, também, pelas energias investidas por seus membros no próprio desenvolvimento (WENGER, 1998) e pela aprendizagem gerada na própria prática.

Mudanças nas práticas podem não significar, portanto, mudanças em aspectos centrais da identidade de uma comunidade. Em meio à aprendizagem organizacional, as pessoas podem desejar assumir uma nova situação, não uma nova identidade (WEICK; WESTLEY, 2004). É comum que uma organização mude para manter a integridade ou confirmar certa identidade (“mudar para continuar o mesmo”).

Aprender, portanto, pode significar confirmar ou conservar uma prática, pode correspon-der a pequenas melhorias, a uma mudança radical, a pequenas mudanças agregadas que ge-ram uma transformação maior e pode levar, inclusive, à auto-destruição.

Como já observamos, o fechamento excessivo em comunidades e padrões próprios pode minar a capacidade de aprender e levar à estagnação ou à morte. Em paralelo, a abertura ex-cessiva ou a perda da identidade pode resultar na incapacidade de aprender e de compartilhar

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aprendizagem, de manter a integridade e de preservar lições aprendidas. Reforça-se, assim, a tênue relação entre equilíbrio e desequilíbrio, a importância da permeabilidade das fronteiras, não da ausência de fronteiras (WEICK; WESTLEY, 2004; WENGER, 1998).

Além das mudanças provocadas pelas situações cotidianas e pela interação com outras comunidades, a entrada de novos membros pode desencadear transformações em uma co-munidade de prática. A noção de participação periférica legítima, entendida como o processo pelo qual novos membros integram-se a uma comunidade de prática, pode servir como pon-te conceitual entre mudanças individuais e coletivas em uma comunidade (LAVE; WENGER, 1991). A entrada de novos membros é característica essencial de práticas que se mantêm, se reproduzem e se alteram. Cada novo integrante de uma comunidade traz consigo sua biogra-fia, suas relações, suas práticas, influenciado em diferentes graus de intensidade as dúvidas, os significados e o repertório da comunidade que passa a integrar.

Pela interação de diferentes gerações numa comunidade de prática, elementos do passa-do convivem com novos, parte da história de uma prática permanece incorporada, parte se modifica. As pessoas mudam suas posições e encontram novas oportunidades. Ao mesmo tempo, novos artefatos, termos, conceitos e ferramentas são produzidos e adaptados, en-quanto outros se tornam obsoletos e são descartados.

Esse compartilhar de práticas na relação entre gerações de membros podem ocorrer de modo harmonioso ou conflituoso, competitivo ou cooperativo, de acordo com a natureza de cada processo. É esperado certo grau de conflito entre “status quo” e “mudança” e cada co-munidade de prática costuma desenvolver mecanismos próprios para lidar com esses confli-tos (LAVE; WENGER, 1991) 11.

Isso não quer dizer que novos membros sejam, necessariamente, mais progressistas que os antigos, desejem mais mudanças nas práticas, mais reforços à descontinuidade do que à continuidade. Buscam encontrar um lugar para si na história e no empreendimento de que escolhem participar. Vivem certo dilema: por um lado, precisam engajar-se na prática já de-senvolvida, entendê-la e praticá-la, para se tornarem membros da comunidade que existente; por outro, lhes interessa o desenvolvimento da prática e da comunidade, incorporando nesse desenvolvimento pelo menos algumas de suas próprias visões. Os antigos membros, por sua vez, embora tenham interesse em preservar o que investiram para construir, também podem desejar descontinuidades, mudar para continuar engajados no futuro. Podem ser receptivos e incentivadores de pessoas com energia e potencial para mudar e com menos amarras no passado da comunidade de prática (WENGER, 1998).

Outra tensão se refere à substituição de antigos membros pela entrada de novos. Uma co-munidade se reproduz na medida em que produz mais aprendizes, embora ela se transforme ao mesmo tempo em que conta com novos membros (HANKS, 1991). As descontinuidades

11 Referindo-se à estratégia nas organizações, Alain Charles Martinet, durante palestra proferida na VI Conferência da ISTR para América Latina e Carine, na cidade de Salvador (BA), em 2007, falou de estratégias híbridas, mestiças, de “luta-cooperação”, nas quais o mais importante é o tracinho do meio, o qual reflete a tensão constante entre essas duas dinâmicas. Martinet lembra que qualquer relação social implica em luta-cooperação e isso precisa ser considerado na gestão. Para o autor, a construção da identidade corresponde a um processo de singularização que envolve a dinâmica entre luta-cooperação, inovação-imitação, individualização-assimilação. No mesmo sentido, Child e McGrath (2001) notam que as relações que envolvem, simultaneamente, cooperação e competição, nego-ciação e colaboração, embora não sejam novidade, são hoje mais reconhecidas como potenciais para resolver pro-blemas complexos. Tais relações geram conflitos construtivos, que ampliam possibilidades, uma vez que diferentes visões, repertórios e experiências em contato geram material para o equivalente a recombinações genéticas.

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geracionais podem garantir continuidade das comunidades. Novos membros, à sua maneira, perpetuam práticas (WENGER, 1998). Esse conflito entre continuidade e substituição é uma contradição básica, uma tensão fundamental da reprodução social, da transformação e da mudança.

Concluindo esta análise do potencial de aprendizagem e inovação em comunidades de prática, cabe trazer a observação de Brown e Duguid (1991), de que os próprios integrantes das comunidades raramente reconhecem a aprendizagem que compartilham12. As organiza-ções, por sua vez, raramente percebem a aprendizagem que ocorre no âmbito de comuni-dades de prática. Do mesmo modo, as descrições formais do trabalho ou de certa atividade costumam ignorar ou mascarar a aprendizagem e as inovações geradas no cotidiano.

Este ponto abre caminho para tratarmos dos potenciais de aprendizagem e inovação nas relações entre universidade e sociedade, uma vez que se espera da universidade que seja espaço de construção e reconhecimento de aprendizagem e inovação, de modo articulado aos diversos interesses e saberes presentes nas comunidades das quais se constitui e com as quais se relaciona.

6. Aprendizagem e inovação na relação entre universidade e sociedade

A universidade combina características de tradição, rigidez, divisão disciplinar, burocrati-zação e resistência a pressões sociais, por um lado, ao tempo em que constitui espaço de diversidade, experimentação, produção e articulação de diferentes conhecimentos, crítica e inovação, por outro (DELANTY, 2001; SCHOMMER, 2005). Na multiplicidade de relações pos-síveis entre a universidade e outros atores da sociedade, são variadas as oportunidades de expansão de fronteiras, de construção de novos conhecimentos, de manifestação de dúvidas e incertezas, de justaposição entre ordem e desordem. Há, porém, inúmeros riscos a inibir esse potencial.

Nesse delicado equilíbrio entre oportunidade e risco, entre tradição e inovação no seio da universidade, identificamos algumas armadilhas e trilhas sobre as quais acreditamos valer a pena refletir, pesquisar, experimentar mais. Alguns dos trabalhos apresentados neste livro exploram justamente características da aprendizagem em iniciativas nas quais a universida-de propõe-se a interagir ou intervir sobre determinado contexto sócio-territorial. Nesse tipo de iniciativa, nas quais diferentes pessoas e organizações compartilham desafios complexos, combinando distintos conhecimentos, visões de mundo, repertórios e modos de fazer, tende a haver desequilíbrio entre experiência e competência, questionamento de ordens estabele-cidas, desafio à experiência institucionalizada, bem como incorporação de novos padrões. Por outro lado, as pressões no sentido de manter as coisas como estão, a necessidade de cumprir

12 Wenger estudou uma comunidade de prática de processadores de pedidos de indenização de uma companhia de seguros. Ele observou que tanto os processadores quanto os gerentes raramente falavam do trabalho relacio-nando-o a aprendizagem, a não ser quando se referiam aos trainees: “Eles falam a respeito de mudança, de novas idéias, a respeito de níveis de desempenho, a respeito dos velhos tempos...” (WENGER, 1998:95), embora quando perguntados tenham reconhecido que aprendem continuamente. Uma das razões é que eles aprendem exatamen-te o que praticam. O engajamento na prática torna-se tanto o estado quanto o objeto, a estrada e o destino. O que se aprende não é um tema abstrato, mas o processo de estar engajado, participando do desenvolvimento de uma prática em curso.

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procedimentos institucionalizados e rígidos e a dificuldade para abrir-se a novos conhecimen-tos promovem tensões e conflitos.

Tais experiências costumam partir de um projeto, normalmente submetido a um finan-ciador, com objetivos, metas, procedimentos e resultados esperados, incluindo-se aí o pro-pósito de colaboração entre diferentes atores, compartilhando recursos e conhecimentos e, idealmente, construindo novos conhecimentos em conjunto. Podemos compreendê-los como processos migratórios planejados, nos quais se procura estabelecer a priori os percursos e o decurso das experiências de sujeitos-andorinhas, sabendo-se de antemão que tal plano é apenas um mapa provisório, que necessariamente será redesenhado ao longo do percurso, não apenas pelos imprevistos e contratempos (in)desejáveis, mas pelo próprio resultado da aprendizagem que se compartilha. Por mais que se possa criar expectativas, não há como sa-ber a priori o que será construído, já que não se pode compreender integralmente o contexto, o repertório dos demais e as relações com os parceiros antes de vivenciá-los. E não se pode saber de antemão o que somente a prática propiciará aprender.

Os planos e mapas (projetos de pesquisa e de extensão e também os que usamos para pre-parar uma aula ou para desenhar um curso) são importantes para a viagem, mas a viagem não se restringe a eles. Os sujeitos-andorinha dispostos à aventura da viagem devem compreender que seu contexto original é somente o seu background cognitivo, o qual poderá relacionar-se com outras estruturas cognitivas a sua volta e que, juntas, poderão criar um sistema de apren-dizagem que autorize e equilibre os saberes que serão ativados naquele novo contexto e/ou ali produzidos.

Entre as muitas experiências de buscas projetadas ou planejadas de aprendizagem, uma característica específica daquelas nas quais universitários pretendem contribuir para o desen-volvimento sócio-territorial, é que muitas vezes se considera que o outro (a comunidade, a região, o parceiro) está em situação social inferior a qual deveria ou poderia estar. Tal premissa contém um quadro de valores que inclui desde as noções de progresso, justiça social, desen-volvimento e felicidade até a noção de aprendizagem e a compreensão do papel da universi-dade e da difusão dos seus saberes.

De tal perspectiva, nos parece que o objeto de migração de tais processos refere-se, princi-palmente, a um conjunto de conhecimento uni direcionado de um grupo de atores para outro grupo, não raro vestidos como os que ensinam e os que aprendem. Quando isso acontece, a aprendizagem é limitada, pois o sistema de aprendizagem passa a ser problematizado como um “sistema de ensinamento”, onde, no máximo, se ajusta o modo de ensinar ao público lo-cal que deve aprender, respeitando suas práticas, mas não as assumindo como unidade de pesquisa. Na prática, por trás das freqüentes afirmações do mundo acadêmico de que ”apren-demos muito com eles”, vemos poucas mudanças efetivas nos desenhos das pesquisas e dos projetos de extensão, o que denuncia desperdício do potencial de ampliação das fronteiras da aprendizagem nos sistemas desenhados a partir da universidade.

Em um contexto de migração em que somente alguns sujeitos se vêem como sujeitos-andorinha, os riscos da recusa de aprendizagem transformadora é alto, assim como são al-tas as possibilidades de que o diálogo venha a ser rapidamente atrofiado. A possibilidade de formação de comunidades de prática entre universitários e não-universitários torna-se quase impossível, mantendo-os distantes no que se refere à possibilidade de construir novos conhe-cimentos em conjunto.

Assim, tão importante quanto expandir as fronteiras, construindo oportunidades de en-

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contro entre saberes (seja no ensino, na pesquisa, na extensão e na interação entre elas), é trabalhar as fronteiras de expansão da aprendizagem, o que significa reprojetar o sistema de aprendizagem (learning system) dos grupos sociais envolvidos. São, portanto, cruciais não apenas os objetivos e os saberes que cada um deles trás consigo para a viagem, mas as manei-ras pelas quais serão colocados em diálogo. Importam não apenas os recursos investidos e os resultados esperados, mas a escolha, o manuseio e a (re)construção dos instrumentos, cami-nhos, sistemas e estratégias de navegação, os quais constituem, ao mesmo tempo, processo e produto da aprendizagem.

Com base nessas reflexões e em experiências que temos vivenciado enquanto praticantes em comunidades de prática ancoradas em universidades, apontamos algumas trilhas de ex-perimentação e transformação que julgamos possam atuar sobre as fronteiras de expansão da aprendizagem:

Experimentar dar vida ao triângulo ensino-pesquisa-extensão, não raro tomado pela inér-cia, inserindo vetores de movimento que aumentem as possibilidades de explorar a aprendi-zagem como um processo social. Valem fórmulas simples: como estender o que se pesquisa no ensino, pesquisar os limites do que se ensina em projetos de extensão, ensinar a fazer pesquisa como extensão e assim por diante.

Assumir a dimensão social da aprendizagem nas propostas político-pedagógicas voltadas à formação de sujeitos desejosamente implicados em processos de desenvolvimento sócio-ter-ritorial, partindo dos contextos nos quais as pessoas interagem, em lugar de enfatizar proces-sos cognitivos individuais e relações verticais entre mestres e aprendizes. Tal assunção carrega consigo o gérmen da interdisciplinaridade.

Problematizar os limites das fronteiras de expansão do conhecimento, tomando-as como problema de pesquisa, a fim de compreender como se dão os processos de construção e com-petição de saberes que reestruturam, ampliam ou restringem práticas de desenvolvimento de territórios. Nesta perspectiva, reconhecer a parcialidade e a incompletude de saberes e de estruturas formativas, explorar novas e velhas metodologias de construção de saberes inte-grados, assumindo a não primazia do conhecimento científico, valorizando e aproximando-se de saberes oriundos e/ou construídos em outras realidades, sem deslegitimá-los ao rotulá-los como senso comum ou saberes não-científicos.

Privilegiar espaços de reflexão e produção de saberes ancorados nas experiências e dile-mas do cotidiano, buscando superar os limites da indução e da dedução, voltando-se para o que Pierce chamou de abdução, o que favoreceria a construção de uma ciência prática e viva, cujas unidades de análise e de intervenção surjam de contextos sócio-práticos. Esta mudança de unidade de análise e de intervenção pode-se revelar um novo e necessário visco entre universidade e sociedade.

Assumir como desafio pedagógico a construção de metodologias de avaliação que não se-jam apoiadas do desempenho linear e/ou pontual dos aprendizes, exclusivamente alcançado por meio dos conteúdos ministrados dentro da estrutura formativa, buscando extrapolar os limites da auto-refencialidade. Isso implica admitir, inclusive, que boa parte da aprendizagem gerada em cada situação sequer é passível de ser explicitada e reconhecida, mantendo-se ta-citamente associada ao que as pessoas são e fazem no seu cotidiano, em comunidade.

Experimentar espaços em que a Universidade e seus saberes possam ser avaliados por outros setores da sociedade, abrindo-se a sujeitos-andorinhas que não sejam seus pares, mas que podem carregar consigo boas e novas sementes.

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Reconhecer e valorizar erros, controvérsias, brechas e desequilíbrios como oportunidades de aprendizagem. Em meio a conflitos inerentes a processos de desenvolvimento sócio-terri-torial, necessários e desejáveis para que haja construção de cidadania e ampliação e fortaleci-mento da esfera pública (DANIEL, 1999; OLIVEIRA, 2001), a universidade pode encontrar, em cada situação específica, maneiras de contribuir a partir de sua identidade, reconhecendo e valorizando a contribuição e a identidade dos demais envolvidos.

Admitir a precariedade dos processos migratórios planejados. Estes devem funcionar so-mente como mapas provisórios que precisam ser redesenhados coletivamente à medida que se caminha. Caminante no hai camino, se hace camino al andar. Caso contrário não se trata de processo de aprendizagem, mas, sim, de ensinamento.

7. Considerações finais

A dupla metáfora das andorinhas e do verão nos permitiu explorar novos pontos de vista, sobretudo no que concerne à importância do estranhamento e da migração para o desenca-deamento de processos sociais de aprendizagem. Ninguém aprende sozinho, mas sim em e com coletividades, ancorado em contextos que conferem identidade, significado e sentido prático.

Ao explorar a andorinha como ícone da convivência em grupo (bando), defende-mos que a aprendizagem é fundamentalmente um processo social e vinculado a práti-cas situadas em certo contexto. Ao ver a andorinha como índice de mudança perene, sublinhamos que aprender é um processo contínuo e inovador, embora não linear e não cumulativo. Ao definir a andorinha como símbolo de migração, propusemos ver a aprendizagem simultaneamente como expansão de fronteiras e como fronteira de ex-pansão, como processo e produto mutuamente influenciados. Finalmente, ao explorar a metáfora do verão, a partir das andorinhas, argumentamos que o planejamento e o controle excessivo ou pormenorizado da aprendizagem através de processos voluntá-rios migratórios tende a limitar a aprendizagem. Sobre este último ponto, em especial, apresentamos ainda algumas considerações.

Observando especialmente processos de desenvolvimento sócio-territorial nos quais a universidade busca intervir, pensamos que o objeto de migração não deveria ser o conhecimento, mas o sujeito do conhecimento, o que efetivamente poderia pro-piciar a migração do conhecimento. Um sujeito-andorinha tende a perceber-se mais facilmente como co-autor de processos cujo fim, objetivo ou produto não pode ser definido a priori. Ver-se andorinha é compreender-se em processos migratórios, em transição, em transformação. É ver-se como produto perenemente inacabado de co-nhecimento e do conhecimento. Como, enfim, sujeito de aprendizagem.

A aprendizagem, por certo, não segue receita, não define ingredientes mínimos. Acontece como um turbilhão que vai ganhando força e alcança uma “significatividade retrospectivada”, como o anjo da história de Boudelaire, com seus braços voltados para o passado enquanto se lança ao futuro. A aprendizagem pode ser compreendida como um verão. Os verões acontecem, certo, com regularidade, diferente da apren-dizagem, cuja ciclicidade não há. Mas o que nos interessa do verão é o seu processo de desencadeamento, quando diferentes pequenos fenômenos geram um fenômeno

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voluptuoso e sem volta, pois o seu ciclo de maturação deve acontecer. Com a aprendi-zagem acontece algo parecido: o seu processo de desencadeamento não é previsível, não é fruto de planejamento, envolve micro-fenômenos comportamentais e cogniti-vos, que acontecem em um tempo-espaço que lhe confere significado à medida que se desenvolve. Assim, vai ganhando uma autoreferencialidade entrópica que é necessária no momento da concatenação dos micro-fenômenos. O desafio é equilibrar momentos de entropia necessária com momentos de abertura necessária, pois aqui também não há receitas, equilibrar convergência com discordância, a fim de desencadear processos de aprendizagem significativa, ancorada na realidade, mas não restrita a ela.

A aprendizagem é um percurso contorno que não pode ser planejado, sob o risco de não acontecer, mas também não pode não ser objeto de indagação voluntária. É sempre subproduto de práticas sociais, de sujeitos mais ou menos andorinhas, de re-des e de articulação de diferentes saberes, experiências, expectativas, oportunismos. Em outras palavras, os processos de aprendizagem social dificilmente chegam a algum lugar quando já se sabe o que se quer aprender de antemão. Pior ainda quando um grupo se autodetermina como o definidor do conteúdo da aprendizagem. Quando isto acontece, alguns são vistos como os que ensinam e o restante como os que aprendem. Esta dualidade que a princípio pode revelar-se confortável para ambos os lados, quase sempre acaba por se transformar em um grande problema e este provavelmente tem sido um dos principais equívocos inibidores de processos de aprendizagem.

Em processos planejados de desenvolvimento sócio-territorial que envolvem re-lações entre universidade e sociedade, se essa característica de indeterminação é vista como limitante, a probabilidade de que ocorra aprendizagem torna-se menor, pelo menos no que se refere à aprendizagem desenhada no projeto de intervenção. Tais projetos frequentemente não conseguem desencadear o processo de aprendiza-gem desejado porque o projetam como “processo de ensinamento”. Com o tempo, se consegue perceber que os papéis de “grupo de professores sensíveis” e “grupos de alunos diferentes”, a princípio razoavelmente definidos, vão perdendo consistência e legitimidade. Quando isto acontece, nem sempre as partes conseguem se redefinir no processo, alargando ou revendo papéis. Assim, os projetos vão sendo levados pela inércia, porque precisam terminar. São raros os que optam por acabar definitivamente o projeto. Mais raros ainda os que deixam de lado a segurança do saber acadêmico e assumem um papel de não protagonista no processo. Mas para aprender é preciso também esquecer, o que de certa forma implica em esquecer-se, dar menos importân-cia a si mesmo.

Nesta perspectiva, para os estudiosos de aprendizagem, e sobretudo para os que auspiciam projetá-la, planejá-la, talvez um filão de pesquisa interessante seja o das fronteiras de expansão da aprendizagem. Esta expansão comporta o (re)projeto do sis-tema de aprendizagem (learning system) dos grupos sociais. A unidade analítica desse filão passaria a ser a das condições limítrofes em que ocorrem conexões sociais que resultam em aprendizagem. Quem sabe assim os pesquisadores também passariam a “andorizar-se” um pouquinho mais. O mesmo vale para as universidades que poderiam rever práticas de ensino e aprendizagem, a partir da exploração de algumas das diretri-zes que procuramos aqui apontar.

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O peso de elementos institucionais e metodológicos na balança das relações intersetoriais: análise de duas experiências que

pretendem contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial1

Paula Chies SchommerÍris Gomes dos Santos

1. Introdução

O processo de redemocratização vivido no Brasil a partir do final da década de 1970, que tem como marco a Constituição Federal de 1988, possibilitou modificações em es-truturas institucionais da sociedade brasileira. Entre as mudanças, está a valorização das relações intersetoriais e das instâncias locais de planejamento, implantação e ava-liação de políticas públicas em processos de desenvolvimento.

No campo da educação superior, também ocorrem mudanças. Há ampliação do número de cursos de graduação e pós-graduação e do contingente de instituições de ensino, especialmente no setor privado. Isso redefine não somente questões orçamen-tárias, mas, sobretudo, aspectos metodológicos e político-pedagógicos das instituições educacionais, refletindo sobre suas relações com a sociedade.

A universidade tem buscado aproximar-se de distintos setores da sociedade de vá-rias maneiras: expandindo o acesso ao ensino – seu papel mais tradicional – pela am-pliação do número de vagas, tanto no setor público quanto privado; realizando pes-quisas em parceria com governos, empresas, organismos multilaterais ou organizações comunitárias e; ainda, por meio da extensão universitária, em atividades como proposi-ção, execução e intermediação de iniciativas de desenvolvimento. Essas frentes de atu-ação podem ter como motivação atender a demandas específicas da sociedade, obter recursos orçamentários adicionais ou promover oportunidades de aprendizagem aos universitários. Ou, ainda, uma combinação desses e de outros elementos.

Tais rumos no âmbito das universidades, além de acompanhar o contexto político-institucional do País, guardam ligação com movimentos no campo do conhecimento científico, que vive um momento de crise do paradigma tradicional da ciência moderna (SANTOS, 2003). De acordo com este autor, a ciência moderna teria se constituído rom-pendo com o senso comum e dele distanciando-se. Estaria em curso, no entanto, um movimento de reaproximação entre ciência e senso comum e entre os diversos setores da sociedade com seus saberes, o que tende a produzir uma ciência mais democrática e próxima das necessidades da sociedade e, ao mesmo tempo, um senso comum mais esclarecido.

No campo das relações intersetoriais para o desenvolvimento sócio-territorial, as universidades costumam engajar-se em processos com a presença de atores governa-mentais, empresariais e da sociedade civil organizada. As iniciativas, usualmente, carac-

1 Este trabalho teve sua primeira versão apresentada pelas autoras na VI Conferência Regional da International Society for Third Sector Research (ISTR) para América Latina e Caribe, realizada em Salvador, Bahia, em 2007, tendo sido publicado nos Anais do evento.

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terizam-se pela utilização de elementos do discurso participativo em suas metodologias de campo e pelo almejado respeito à diversidade de saberes locais. A intenção costuma ser a de contribuir para a consolidação de uma cultura política compreendida não so-mente como legado histórico, mas como prática, resultado de um processo de constru-ção cotidiana por meio da reciprocidade e compartilhamento de significados atribuídos e construídos no campo do imaginário e das representações sociais de grupos e indiví-duos (CHAUÍ, 1986, apud GOHN, 2005).

Embora haja diversos modos de relação entre universidade e sociedade, neste tra-balho focalizamos nossa atenção em iniciativas em que a universidade figura como in-termediária entre organizações promotoras e financiadoras de programas ou políticas sociais, por um lado, e setores específicos da população, por outro, no intuito de con-tribuir para melhores condições de vida dessas pessoas. Três atores principais tendem a ser claramente identificados no âmbito de iniciativas para o desenvolvimento: 1) fi-nanciador ou promotor; 2) executor ou intermediário; 3) beneficiário ou público-alvo. Isso não significa afirmar que outros atores não estejam presentes em cada contexto específico.

Nas relações intersetoriais, como naquelas que ocorrem entre essa tríade de atores, a cooperação é admitida como essencial, o que não elimina desequilíbrios de poder, os quais são revelados, sobretudo, na natureza e nas formas de participação de cada ator nos processos decisórios relativos a projetos ou programas que os colocam em rela-ção. As diferenças de poder mostram-se, ainda, na aplicação de recursos financeiros, na linguagem privilegiada nos documentos produzidos, no tipo de produto ou resultado priorizado e na definição do tempo de execução do trabalho.

Tais desequilíbrios tendem a limitar a aprendizagem dos envolvidos e as possibi-lidades de mudança das condições de cada ator no processo, especialmente quando condicionantes históricos, culturais, institucionais e metodológicos são produzidos e re-produzidos no contexto dos projetos, configurando limites de difícil superação. Elemen-tos históricos e culturais, como a profunda desigualdade social e de renda brasileira, distintas condições de acesso e de qualidade da educação, diferenças em termos de co-nhecimento transformadas em diferenças de status e de poder, bem como a valorização superior do saber científico e da linguagem a ele associada em relação a outros saberes presentes na sociedade, influenciam práticas e significados no âmbito das iniciativas (SCHOMMER, 2005).

Neste trabalho, a ênfase recai sobre elementos institucionais e metodológicos que afetam as iniciativas, especialmente em situações na quais a universidade coloca-se como intermediária ou executora de políticas de agentes externos – governos, empre-sas ou fundações – em prol de determinada causa ou conjunto de pessoas.

Apesar de esse tipo de prática ser relevante para a produção de conhecimentos e para a articulação entre diferentes setores da sociedade, gerando múltiplas opor-tunidades de aprendizagem para os envolvidos, alguns equívocos são recorrentes em diferentes iniciativas. Ainda que uma proposta de intervenção para o desenvolvimento sócio-territorial seja capaz de provocar mobilização em torno de um imaginário coleti-vo e do fortalecimento de uma cultura democrática, certas iniciativas, geralmente nos moldes de projetos, restringem a participação social, consubstanciando-se mais como eventos do que como processos consistentes de mobilização e desenvolvimento. Segun-

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do Toro e Werneck (1996), embora a mobilização para o desenvolvimento possa utilizar a atratividade e os recursos de eventos como estratégias em seu processo, o evento por si só não assegura mudanças, pois não estabelece uma correspondência contínua e sustentável no cotidiano dos agentes, por sua condição interrupta. O processo de mobi-lização, por sua vez, concretiza-se quando gestos, crenças e informações se consolidam, se propagam, multiplicam e geram ações que concorrem diretamente para os objetivos em função dos quais está sendo proposta a ação coletiva.

A inquietação fundamental que motiva este trabalho é fruto da participação das autoras em diferentes iniciativas de relação entre universidades e comunidades locais, além de pesquisas a respeito de iniciativas similares e contato direto com pessoas de comunidades que já foram “públicos” de iniciativas que visavam promover seu desen-volvimento. O campo empírico que constitui a base das observações e reflexões neste trabalho é composto por dois projetos, aqui denominados Terra Lua e ONG Ativa. O projeto Terra Lua, financiado por órgão do governo federal brasileiro e desenvolvido durante o ano de 2006, tinha como objetivos a pesquisa de recursos tecnológicos para maricultura e a contribuição para a melhoria da qualidade de vida de famílias de pesca-dores (as) e marisqueiros (as) moradores de cinco povoados de uma região do estado da Bahia. O projeto ONG Ativa, financiado por órgão do governo estadual e realizado em 2004, tinha como propósito contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial de quatro localidades, por meio da capacitação técnica de membros de organizações sem fins lucrativos. Ambas as iniciativas foram conduzidas sob responsabilidade executiva da Universidade Federal da Bahia.

O objetivo central deste trabalho é, pois, identificar implicações de elementos ins-titucionais e metodológicos nas relações intersetoriais entre atores que visam a pro-mover o desenvolvimento sócio-territorial, a partir de duas experiências que envolvem atores distintos em interação por certo período. O trabalho apresenta, inicialmente, a descrição das experiências que suscitaram as questões aqui debatidas, bem como a metodologia que fundamenta este artigo. Em seguida, são identificados e analisados elementos institucionais e metodológicos implicados nas relações intersetoriais foca-lizadas, trazendo, ao fim, considerações as quais intentam evidenciar a inter-relação entre dificuldades e desequilíbrios que se reproduziram, ainda que tenham sido previa-mente identificados, no âmbito das relações aqui analisadas.

2. Campo de análise e percurso metodológico

Considerando que as percepções que motivam este trabalho surgiram do engaja-mento das autoras em experiências de interação entre universidade e sociedade, em projetos que visavam a contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial, parte-se da descrição de tais projetos para, a partir delas, elaborar as análises.

2.1. Projeto Terra Lua

O projeto Terra Lua buscou contribuir para a melhoria das condições de vida de famílias

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de pescadores (as) e marisqueiros (as) moradores de cinco povoados/localidades inseridos na região do Baixo Sul Baiano. A proposta era de construção de um processo participativo de organização da produção que contribuísse para a eficiência dos empreendimentos, a emancipação social e a apropriação de conhecimentos sobre o processo produtivo (análise de viabilidade, planejamento e operacionalização efetiva).

O trabalho durou um ano e contou com o envolvimento de dez estudantes de diversas áreas de conhecimento, dez agentes comunitários, três monitores de trabalho em campo, dois pesquisadores e um professor coordenador. Além do apoio financeiro de órgão gover-namental federal, o projeto previu a colaboração de outros pesquisadores, bem como o repasse de materiais por parte de órgãos estaduais ligados à área temática.

A iniciativa partiu da necessidade identificada por pesquisadores de dar continuidade a ações de dois projetos similares anteriormente realizados com a universidade nessa mesma região. A justificativa para uma nova proposta baseou-se sobre os objetivos de ocupar-se de falhas e limitações identificadas nas experiências de intervenção anteriores, quais sejam, a capacidade gerencial para a organização do trabalho coletivo voltado à produção e à comer-cialização no âmbito dos empreendimentos fomentados.

2.2. Programa ONG Ativa

O programa ONG Ativa foi realizado em parceria entre uma secretaria do governo estadual e um centro interdisciplinar da universidade. Seu principal objetivo foi contri-buir para o desenvolvimento sócio-territorial, por meio do fortalecimento da gestão de organizações da sociedade civil. O foco territorial foi um dos critérios para selecionar as organizações que participariam do processo de fortalecimento organizacional e capaci-tação de alguns de seus membros. A proposta, com cerca de sete meses para implemen-tação, previu o envolvimento de vinte estudantes universitários de diferentes cursos, oriundos de instituições de ensino superior das redes pública e privada, que atuaram junto a grupos e organizações em quatro territórios no estado da Bahia, divididos em equipes multidisciplinares e acompanhados no trabalho de campo por dois monitores e um coordenador.

2.3 Veredas Metodológicas

Um estudo de caráter exploratório e indutivo, como o que apresentamos, requer a consideração metodológica de instrumentos de levantamento de dados subjetivos no espaço de práticas e observações compactuadas com os diversos atores envolvidos, tanto pelo caráter interacional, como pela aproximação participante de fenômenos e processos dos campos de análise em questão.

A estratégia básica consiste em explorar certas características de situações vividas no cotidiano das experiências citadas, relacionando-as a referenciais conceituais que nos permitem analisá-las. O que não significa realizar uma avaliação de tais projetos, embora os processos de avaliação realizados em ambos permitam afirmar que alcan-çaram alguns de seus objetivos, geraram espaços para aprendizagem dos envolvidos, especialmente para os estudantes universitários, assim como tiveram lacunas e não

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lograram êxito em algumas das metas planejadas. O propósito fundamental, contudo, está em aprender com essas experiências a partir do entendimento de que tanto acer-tos quanto equívocos constituem fontes de aprendizagem.

Embora existam diferentes experiências de articulação entre universidade e socie-dade em prol do desenvolvimento sócio-territorial, com diferentes recursos e conheci-mentos mobilizados em torno delas, a identificação de dificuldades similares nas duas experiências apresentadas, como resultados do desequilíbrio de poderes imbuídos nas relações entre os participantes, compõem um objeto relevante de análise. Tal análise é permitida pela existência de dados em formato de relatórios de execução e avaliação, diários de campo, grupos focais, entrevistas e questionários aplicados com os atores envolvidos nos contextos. Os dados foram coletados entre os anos de 2004 e 2007, con-tando com o envolvimento das pesquisadoras como participantes.

3. Elementos institucionais na relação entre universidade e sociedade em iniciativas para o desenvolvimento

O significado do termo instituição pode variar conforme o objetivo, o objeto, o âmbi-to, a disciplina, o problema ou a perspectiva de análise. Para este trabalho, adotaremos a acepção de instituição como algo próximo a “regras do jogo” ou como um procedimento estabelecido. Uma instituição representa uma ordem social ou padrão que adquire deter-minado estado ou propriedade, como resultado de um particular e contínuo processo de reprodução (JEPPERSON, 1991). A institucionalização representa o processo e os mecanis-mos para atingir esse estado. Algo que está institucionalizado não corresponde a algo que não pode ser mudado, mas sim a algo que requer menos mobilização e intervenção para sua sustentação.

As instituições são espaços que, ao mesmo tempo, permitem e limitam as atividades, constrangem e dão liberdade de ação, incentivam e controlam comportamentos. Friedland e Alford (1991) demonstram que cada instituição tem uma lógica que é simbolicamente baseada, organizacionalmente estruturada, politicamente defendida, técnica e materialmente delimitada e apresenta limites históricos específicos.

Muitos são os elementos que podemos elencar como institucionais no contexto de atua-ção de universidade e de órgãos financiadores/avaliadores em iniciativas de desenvolvimento. Trataremos daqueles mais ressaltados pelos atores e frequentemente observados como man-tenedores, sob certa medida legitimadores, dos desequilíbrios na relação entre universidade e sociedade.

3.1 Exigência de padrões jurídicos e técnicos para acesso aos recursos

Uma oficina de elaboração de projetos e orientação para institucionalização jurídica foi realizada no contexto do Programa ONG Ativa, a pedido dos participantes das comunidades. Ao tentaram submeter uma proposta a um edital público de seleção foram induzidos, pelo excesso de formalização jurídica exigida, a “contratar” uma fundação, externa à comunidade

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e ligada à universidade, para apresentar a proposta com maior possibilidade de aprovação. A experiência demonstra que quando se consegue superar, em determinado nível, a

tendência à especialização e à profissionalização do conhecimento que gera uma nova simbiose entre saber e poder, na qual não há espaço para leigos, os quais são expro-priados de competências cognitivas e, portanto, de poder (SANTOS, 2003), as iniciativas populares se deparam com outras restrições. Entre elas, restrições jurídicas e tributárias, que vão desde a dificuldade das associações em manter documentação e impostos re-gularizados, até a incapacidade de concorrer com currículos reconhecidos e titulados de universidades, fundações e ONGs mais bem estruturadas.

Tal dificuldade material fortalece a tendência de distinção entre quem pode “oferecer” e quem pode “receber” recursos essenciais ao processo de desenvolvimento, pressupon-do-se uma relação em que a desigualdade de condições materiais reabastece o ciclo de dependência de iniciativas populares em relação a agentes externos, gerando dominação daqueles considerados “menos” desenvolvidos – os “beneficiários”, por aqueles conside-rados mais “desenvolvidos” - executores e financiadores.

Nesse sentido, Freire (1977) sugere aproximação e comunicação direta e contínua en-tre universidade e comunidade in loco, buscando transpor a lógica da posse do método como instrumento de poder e distanciamento entre o saber popular e o científico. Tal aproximação pode gerar oportunidade para formação de comunidades de prática envol-vendo universitários e pessoas das organizações participantes de projetos, em relações que se prolongam para além dos prazos e objetivos das iniciativas formais, embora haja inúmeros limites para que isso se concretize, como demonstra Schommer (2005; 2006).

3.2 Mecanismos de elaboração, submissão e aprovação de propostas

A lógica institucional predominante na universidade sobre o processo de elaboração, submissão e aprovação de propostas para o desenvolvimento sócio-territorial sugere a re-produção do mito da absolutização da ignorância, implicando a existência de alguém que se encontra em posição de propor uma ação para e por outro e não com o outro (FREIRE, 1987). Essa idéia generalizada de limitação intelectual e cognitiva dos beneficiários, aliada às dificuldades jurídicas destes de acesso aos recursos, bem como à própria divulgação direcionada dos mecanismos de financiamento, justificam a inversão de papéis.

Assim, quem procura o beneficiário é o intermediário, que usualmente o faz com um projeto já estruturado no qual sobressaem seus interesses, pontos de pesquisa e padrões de desenvolvimento. De modo geral, há distanciamento entre a universidade e a socieda-de na definição das pautas e objetivos em projetos de intervenção. Segundo um professor entrevistado: “as pesquisas não nascem de um diálogo com a comunidade, nascem das idiossincrasias dos professores”. Para evitar isso, outro professor sugere que a universida-de trabalhe a partir das demandas da sociedade, passando de um sistema de oferta para um sistema de interação com a demanda, colocando as demandas dos grupos sociais para dentro da universidade, com sua participação no processo decisório e considerando seus repertórios de ação e comunicação. É também o que propõe Michaud (2004), a partir da experiência vivenciada em universidade canadense, a qual mobiliza pessoas e outros re-

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cursos, a partir de demandas específicas de segmentos sociais que procuram a instituição.Este primeiro professor citado admite que, embora os temas privilegiados nas pes-

quisas abordem questões sociais e culturais locais, estas refletem mais a oportunidade de financiamento ou de reconhecimento, pelo fato de os temas estarem em evidência na atualidade, do que a efetiva proximidade com a sociedade (SCHOMMER, 2005). Ao se propor uma pesquisa ou um projeto de extensão, há risco de que o “objeto teórico” ou “público beneficiário” transforma-se em objetivo social dos sujeitos que podem investir em pesquisa ou nos projetos e apropriar-se dele. Os que não podem criar objetos teóricos e apropriar-se dos resultados do conhecimento produzido vão sendo destruídos ou degra-dados (SANTOS, 2003). Nesta lógica, as comunidades são meios, objetos de captação de recursos, prevalecendo o que Meszarós (2005) e Freire (1987) denominam de concepção bancária da educação, à qual podemos acrescentar a variável pobreza.

O sistema competitivo de submissão de projetos e iniciativas dessa natureza reforça, ainda, a necessidade de ampliar o escopo de atuação, metas e objetivos, bem como resul-tados almejados, mesmo com prazos relativamente curtos para o cumprimento daquilo a que se propõem. Referindo-se a experiências de pesquisa-ação, Thiollent (2004:42) de-fende que se defina exatamente o que se quer dizer com transformação social em cada projeto ou ação, “sem alimentar ilusões sobre a transformação geral da sociedade em sentido modernizador ou revolucionário”, pois há limites de alcance em cada pesquisa.

Tal problema pode ser visualizado na atuação do Projeto Terra Lua em um dos povoa-dos foco, o qual “acusa” o projeto de ter apresentado uma atuação “mamão”, o que pode ser entendido popularmente como algo sem relevância ou iniciativa, pelo fato de não ter interferido na prioridade local, a viabilização de energia elétrica. Essa sensação é causada, em parte, devido às elevadas expectativas criadas pelos executores de projetos de pes-quisa ou de extensão a respeito das possibilidades de provocar mudanças em questões macroestruturais por meio de projetos de intervenção, geralmente em prazos curtos, o que pode ser observado, também, no campo da gestão pública (FARAH, 2004).

De modo geral, pode-se dizer que o tempo de envolvimento entre universidade e so-ciedade costuma ser insuficiente para os objetivos a que se propõem os projetos de inter-venção, algo apontado por vários entrevistados. Processos de desenvolvimento sócio-ter-ritorial costumam exigir soluções integradas e de maior abrangência, envolvendo diversos atores, raramente possíveis de serem envolvidos em iniciativas de caráter eventual. Não há, porém, tempo padrão para uma intervenção, assim como não há metodologia única, inflexível. Percebeu-se que há tempos diferenciados entre pessoas e grupos sociais e que é preciso respeitar o tempo de amadurecimento de cada um (SCHOMMER, 2005). Contu-do, as diferenças de escopo e de tempo são dificultadas pelo atual sistema competitivo e diretivo de submissão de novas propostas de intervenção social. Apesar de esse respeito às diferenças nos processos locais ser muitas vezes identificado teoricamente como algo imperativo e necessário, na prática, a aceitação e sujeição dos envolvidos a tal sistema impele à afirmação e à reprodução.

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3.3 Insuficiência de canais e instrumentos de controle social

De acordo com Teixeira (1997), controle social pode ser entendido em duas dimensões básicas: i) como accountability - a obrigação de os agentes políticos prestarem contas de seus atos e decisões e, por conseguinte, o direito de o cidadão exigi-lo, de avaliá-los; ii) da res-ponsabilização dos agentes políticos pelos atos praticados em nome da sociedade, conforme padrões previstos em leis. Tal controle implica na correção de desvios e na responsabilização dos agentes. Para tanto, seu exercício requer organização da sociedade civil, sua estruturação e capacitação para esse fim, de forma permanente, em múltiplos espaços públicos, antes e du-rante a implementação das políticas, tendo como parâmetros não apenas variáveis técnicas, mas também exigências de equidade social e aspectos normativos.

A insuficiência de canais e instrumentos de participação que possibilitem o controle, o acompanhamento e a avaliação das ações dos projetos é um aspecto que facilita o não cum-primento de metas, objetivos, metodologias e aplicação de recursos previstos nas propostas. Usualmente, o financiador exige dos executores relatórios e prestação de contas em meados e ao final da realização das iniciativas, deixando espaço para remanejamentos e argumentos diversos a fim de justificar a não contemplação de metas, objetivos e prazos afixados. Em paralelo, as instituições intermediárias não costumam contar com mecanismos de controle sobre os financiadores, para facilitar procedimentos ou solicitar participação nas ações, por exemplo. O quadro é agravado quando se trata dos mecanismos de controle e fiscalização pe-los “beneficiários” sobre a aplicação de recursos e a capacidade técnica no desenvolvimento dos trabalhos das equipes de intervenção/extensão.

Também configuram formas de controle social as regras que orientam as recompensas e as punições existentes na sociedade como um todo e nas instituições em particular (COSTA, 1997). Poucas são as fundações e órgãos financiadores que possuem canais de comunicação com os beneficiários das iniciativas, inviabilizando processos de ouvidoria sobre a execução e a avaliação dos projetos financiados. A universidade, como mediadora, segundo depoimento de um membro comunitário participante do projeto ONG Ativa, em alguns casos, dificulta o acontecimento desse encontro por receio de ser deslegitimada e por não estar habituada a questionamentos em relação a sua autonomia técnica e aplicabilidade dos recursos sob sua competência.

Alguns pesquisadores e estudantes revelam desconforto diante da possibilidade de avalia-ção de suas competências profissionais e habilidades técnicas e esse também é o sentimento de parcela dos membros comunitários participantes, porque não estão habituados a avaliar o trabalho de pessoas educacionalmente mais instruídas.

A proposta do Projeto Terra Lua contava com, aproximadamente, oito pesquisadores para orientar o trabalho em campo. Contudo, durante sua execução, apenas dois deles estiveram diretamente envolvidos nas atividades, os demais se dedicaram a atividades intermediárias. Se as instituições financiadoras não possuem controle sobre a aplicação direta dos recursos humanos e materiais na execução dos projetos, quiçá as comunidades beneficiadas para exi-gir, por exemplo, presença mais próxima de técnicos e pesquisadores. De acordo com um membro comunitário, em entrevista sobre o ONG Ativa, embora as comunidades já tenham aprendido muito nesses processos, ainda não têm a maturidade necessária para lidar com a universidade e o governo: “a maturidade da comunidade é o aprendizado de como jogar o jogo vigente, porque todo mundo está jogando nesse processo.” Ele acredita que o País, e,

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sobretudo as comunidades empobrecidas, sofrem com a história de exploração e “deseduca-ção” que mantiveram as pessoas “adormecidas”.

Financiadores, intermediários e “beneficiários” no contexto das experiências apresen-tam pontos de insatisfação e incapacidade de controle das ações dos demais, a exemplo dos não incomuns atrasos na liberação de recursos, fragilidades burocráticas e ineficiência gerencial dos financiadores, o que compromete atividades em andamento, provocando des-compassos e dificuldades para se cumprir compromissos assumidos com as equipes e com as comunidades. A inexistência ou ineficiência de instrumentos de controle e de punição favorece o não cumprimento de acordos. Uma das integrantes da equipe técnica do Projeto Terra Lua comenta:

Tanto neste projeto como no Brasil, de modo geral, des-perdiçamos riquezas e potencial das pessoas e da nature-za como um todo. Parece haver um pacto de ineficiência e de mediocridade, pouco compromisso. As pessoas não cumprem o que é acordado e não há pena, punição. Há impunidade em todos os níveis. Se eu fizer ou não fizer, dá na mesma, não acontece nada. No final, independente dos resultados pífios, somos perdoados, tanto pelas co-munidades quanto por nós mesmos. Perdoados por ante-cipação, então tudo é permitido.

Há tendência entre os envolvidos a justificar erros atribuindo-os a fatores como não libera-ção de contrapartidas de parceiros ou imobilismo comunitário. As escolhas metodológicas de determinados projetos, sobretudo as participativas e experimentais, também costumam ser colocadas como pretexto para o não cumprimento de metas e objetivos, o que é incorporado e reforçado por membros da comunidade, a exemplo do Projeto Terra Lua. Quando indaga-dos sobre a possibilidade de participação em projetos experimentais afirmaram: acho bom, pois não custa nada tentar. Se tivessem sido incluídos no processo de prestação de contas do projeto, saberiam que o custo da tentativa nesse caso específico foi de aproximadamente duzentos mil reais, proveniente dos cofres federais, “nominais” à causa do desenvolvimento de sua comunidade.

O fato é que boa parte das pessoas das comunidades e da própria equipe técnica não visualiza as ações dos projetos como direitos dos beneficiários, mas sim como serviços pontuais, experi-mentais ou assistencialistas. A universidade é vista como um serviço ao qual se tem acesso não pela via da cidadania, mas pela via do consumo (SANTOS, 2004) ou da benemerência.

3.4 Financiamento dos intermediários

Um aspecto crucial na relação universidade-sociedade é o financiamento das atividades, o que afeta diretamente os rumos das iniciativas inovadoras no âmbito das relações interseto-riais e a idéia da articulação horizontal entre diferentes saberes.

Analisando o panorama atual da pesquisa nas universidades pelo mundo, Yelland (2001) aponta a tendência de sua aproximação de interesses industriais e comerciais. Nos últimos

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trinta anos, na maioria dos países, a universidade e seus serviços perderam o status inquestio-nável de bem público, deixando de ser prioridade nas políticas públicas, gerando redução de financiamento e descapitalização das universidades públicas. De acordo com Santos (2004), o Banco Mundial é exemplo de uma das instituições que tem se empenhado na reforma edu-cacional, propondo medidas como privatização, desregulação, mercadorização e globalização para o ensino, assim como sugere para a economia com um todo.

Em sua condição de instituição social, a universidade exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo (CHAUÍ, 2003). Assim, os cortes de financiamento público servem como incentivos para que busquem gerar receitas próprias, especialmente por parcerias com o setor privado, patenteando seus resultados e comercializando marcas, inclusive a da própria universidade (BOK, 2003; SANTOS, 2004). Para Santos (2004), esse movimento gera pressões para transformar o conhecimento e as pessoas que o constroem em produtos exploráveis comercialmente. Segundo Chauí (2005), a ciência deixou de ser teoria com aplicação prática e tornou-se um componente do próprio capital. Donde as novas formas de financiamento das pesquisas, a submissão delas às exigências do capital, transformam a universidade numa organização ou numa entidade operacional. Diante disso, é preciso definir a autonomia universitária não pelo critério dos chamados “contratos de gestão”, mas pelo poder de definir suas normas de formação, docência e pesquisa.

Como observa Santos (2003), a dinâmica dos financiamentos leva ao elitismo dos cien-tistas e a disputas por recursos entre eles. Se, por um lado, os investimentos em pesquisa garantem desenvolvimento teórico acelerado, por outro exigem a observância dos objetivos de quem financia. Essas pré-condições econômicas dificultam a participação da sociedade na formulação de propostas de intervenção em parceria com a universidade porque reduzem as margens de autonomia político-ideológica e metodológica das instituições.

3.5 Sentimentos de benevolência e visão homogeneizadora

O assistencialismo é uma marca do comportamento das instituições, notadamente no âmbito de ações reservadas às comunidades e a grupos sociais pobres, influencia-do, entre outros fatores, pelo ideário cristão de uma libertação externa aos sujeitos. Embora seja importante destacar que a Igreja Católica fomentou iniciativas de forma-ção de base popular, a noção de libertação por um agente externo e de incompletude, associada às classes mais pobres da sociedade, oportunizou a argumentação da na-turalização de elementos como manipulação e conquista. Referindo-se a isso, Freire (1967) alega que estas são expressões de invasão cultural e não são caminhos de liber-tação, e como tal são caminhos de domesticação.

Deste modo, uma relação estruturada no maniqueísmo presume a coexistência de uma vítima e um algoz, como não foram raras as situações em que membros comuni-tários participantes do projeto ONG Ativa colocaram-se, confortavelmente, na posição de vítimas e atribuíram o papel de algoz à universidade, percebida por eles como re-presentante direta do Estado. Por outro lado, há exemplos em que pesquisadores “cul-pam” membros comunitários por ineficiências no trabalho de campo, alegando que os extensionistas são “seduzidos” ou manipulados pela comunidade.

Segundo Freire (1979), as inter-relações da estrutura social podem dar-se entre sociedades-sujeitos e sociedades-objetos. A sociedade cujo centro de decisão não se

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encontra em seu ser, mas no ser de outra, se comporta em relação a esta como um “ser para o outro”, o que Hegel denomina de relações de “consciência civil” para a “consciência senhorial”. Aqui se encontram dois atores num conflito que poderia ser negociado a partir do compartilhamento de canais e mecanismos de participação efe-tiva, porque somente é possível responsabilizar e comprometer quem efetivamente participa e, como participação é decisão, implica em divisão de poder. Contudo, isso não deve ser doado ou concedido, mas legitimamente conquistado por meio da cons-trução conjunta de iniciativas que considerem a existência de interesses próprios das comunidades, bem como a diversidade de interesses no âmago das instituições inter-mediadoras, neste caso a universidade.

4. Elementos metodológicos na relação entre universidade e sociedade em projetos que visam a promover desenvolvimento

Para escrever a respeito do peso de elementos metodológicos na balança de relações entre financiadores, executores e “beneficiários” de projetos que visam a promover o desenvolvi-mento, importa definir o que entendemos por metodologia. Consideramos método como ca-minho pelo qual se atinge um objetivo, modo de proceder ou, ainda, detalhamento da manei-ra de agir e realizar determinado procedimento, visando a algum resultado. Os procedimentos metodológicos na condução de um projeto para o desenvolvimento sócio-territorial podem ser vistos como conjunto de técnicas, percursos, instrumentos e cursos de ação adotados nas práticas. Tais procedimentos são influenciados por elementos históricos, culturais e institucio-nais. Nesta seção, analisamos elementos presentes nas experiências em foco, considerando-os como elementos metodológicos, uma vez que se referem aos procedimentos utilizados no cotidiano dos processos, embora tenham relação imbricada com elementos institucionais.

De acordo com Fischer (2002), em intervenções para o desenvolvimento local, é comum identificar recorrentes fragilidades metodológicas, evidenciadas por modos de fazer seme-lhantes em torno de objetivos e perspectivas ideológicas diferentes, atuando-se na superfí-cie dos problemas. Embora haja certo consenso da necessidade de métodos participativos, costuma-se esperar da mobilização bem mais do que é possível obter (FISCHER, 2002), o que constitui um dos elementos que discutimos, a seguir.

4.1 Os diferentes significados (e intensidades) de participação

A palavra participação costuma aparecer em destaque no âmbito de iniciativas que visam a promover desenvolvimento. Processo participativo, diagnóstico participativo, metodologias participativas ou avaliação participativa são expressões comuns no coti-diano dessas experiências, seja em documentos escritos – projetos, relatórios, folders, páginas na internet -, seja no discurso corrente das pessoas. Seu sentido e as práticas associadas, no entanto, podem ser múltiplos e, inclusive, contraditórios. No âmbito das diferentes concepções de democracia, a participação tornou-se prática ambígua e vulnerável (SANTOS; AVRITZER, 2002), embora seja reconhecida sua importância para a promoção da democracia, da justiça, da igualdade de oportunidades e da eficiência.

No âmbito de processos de democratização de países, regiões ou contextos insti-

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tucionais e organizacionais específicos, a participação de diferentes atores sociais em processos de tomada de decisão pode representar efetiva inovação e gerar transfor-mações nos campos político e social. Em uma comunidade de prática, a oportunidade de participar dos processos decisórios e na negociação de significados, termo este proposto por Lave e Wenger (1991), é essencial para gerar aprendizagem e autonomia dos sujeitos. No campo dos estudos sobre aprendizagem, participar refere-se a tomar parte, a compartilhar atividades, empreendimentos, repertórios, a estar em relação com outros; é tanto pessoal quanto social, sugere tanto ação quanto conexão; é a experiência de viver no mundo como membro de comunidades sociais e de engajar-se em empreendimentos sociais. A participação legítima depende de tornar-se um insi-der, ser um aprendiz, ocupando diferentes papéis e tipos de responsabilidades em um empreendimento (SCHOMMER, 2005).

Processos participativos podem, todavia, ser convertidos em processos de coopta-ção ou de integração, muitas vezes para legitimar decisões tomadas a priori. Santos e Avritzer (2002) comentam, por exemplo, uma experiência na qual a ocupação do es-paço político por mulheres tanto pode gerar contestação do domínio masculino como pode reforçá-lo. Referindo-se a desenvolvimento local, Fischer (2002) identifica des-gaste de métodos participativos e dos chamados “consensos vazios” que não chegam a resultados.

Assim como a participação cidadã na política pode ser vista como sobrecarga sobre os regimes democráticos, uma vez que a inclusão de grupos sociais anteriormente ex-cluídos gera “excessivas” demandas à democracia (SANTOS; AVRITZER, 2002), nas ini-ciativas aqui focalizadas, também há dificuldades de lidar com o alcance da participa-ção. Muitas vezes, não é incentivada por receio de lidar com as possíveis demandas ou por desconhecimento de metodologias para viabilizar e tornar a participação efetiva. Caberia, pois, a pergunta: que tipos de decisões são tomadas por cada ator social no processo? No quadro a seguir, procura-se evidenciar os atores envolvidos nas decisões, em cada etapa.

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Quem participa das decisões?

Etapas ou atividadesONG Ativa Terra Lua

F E (C+T) E (E) B F E (C+T) E (E) B

Critérios para elaboração do projeto, por edital ou apre-sentação de proposta

X X

Decisão sobre financiamento – aprovação e volume de recursos

X X

Elaboração do projeto formal inicial X X X

Realocação de recursos e atividades, pois a não aprovação total dos recursos exige mudanças nos projetos

X X

Aprovação da realocação de recursos X X

Base metodológica geral do projeto X X

Detalhamento metodológico X X X X

Aplicação de recursos finan-ceiros X X X

Decisões sobre execução de certas atividades e temas X X X X

Processo de avaliação do projeto X X X

Quadro 1: Quem participa das decisões? Fonte: Elaboração própriaLegenda: F – Financiador; E (C+T) – Executor (Coordenação + Técnicos Graduados); E (E) – Executor (Técnicos estu-dantes); B – “Beneficiários”.

Pode-se dizer que há oportunidades de participação dos “beneficiários” durante o cur-so das ações, embora limitadas e de baixa intensidade de poder no processo decisório. No projeto ONG Ativa, houve participação dos “beneficiários” no diagnóstico e elaboração de um plano de desenvolvimento local, embora este não tenha sido implementado no curso do projeto. No projeto Terra Lua, os “beneficiários” participaram da escolha de certos cursos de ação, como o tipo de cultivo a ser implantado e atividades culturais. No entanto,

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não tiveram oportunidade de deliberar a respeito de aspectos técnicos e financeiros da experiência, por exemplo.

Em ambas as experiências, houve múltiplas oportunidades de participação da equipe técnica composta pelos estudantes nas discussões, definição do curso de ações, embora dentro de um desenho metodológico geral definido a priori pela coordenação e pelos técnicos graduados. No ONG Ativa, tais situações foram reconhecidas pelos participantes como oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e profissional, embora não suficientes. No projeto Terra Lua, outro problema que pode ser associado à participa-ção consistiu na falta de mecanismos de coordenação entre as diferentes perspectivas, o que gerava o sentimento de descontrole, falta de foco, gerando desmotivação. Percebe-se que a total liberdade de decisão, desacompanhada de mecanismos de reflexão coletiva e articulação, pode gerar desmobilização.

4.2 Interdisciplinaridade e articulação de saberes científicos e não-científicos

Uma das riquezas potenciais em processos que envolvem diferentes atores, experiên-cias e formações, é a articulação de saberes, que permite aprimoramento de conhecimentos existentes e a construção de novos conhecimentos, criativos e diferenciados, associados às práticas permitidas pelo tipo de iniciativa em foco neste trabalho. Nas duas experiências ana-lisadas, as equipes eram compostas por pessoas com diferentes trajetórias e formações, o que foi avaliado positivamente pelos participantes, por seu potencial de gerar aprendizagem. No entanto, em ambas foi reconhecido que o potencial da multi e da interdisciplinaridade não é plenamente aproveitado, justamente por carência de mecanismos metodológicos que propiciem trocas e novas construções. Como exemplo positivo dessa articulação entre dife-rentes disciplinas, podemos trazer os relatos de duas estudantes que participaram do projeto ONG Ativa, em momento informal de avaliação ao final da experiência. Ambas atuaram no mesmo território e contaram que, no início, sentiram certo incômodo quando alocadas no mesmo grupo. Uma era estudante de administração, a outra de filosofia. Além dos estereó-tipos que cada uma carregava do administrador e do filósofo, pessoalmente uma não “tinha ido com a cara da outra”. No decorrer da experiência, contudo, ambas reconheceram o valor e a complementaridade de seus conhecimentos. Perceberam que a tendência à desconstrução da filósofa, antes da construção a que tendia a administradora, permitia ao grupo “ir além” na construção coletiva. Aprenderam uma com a outra e construíram um conhecimento novo (SCHOMMER, 2005).

Em relação à articulação entre saberes científicos e não-científicos, as avaliações de ambas as experiências evidenciam que essa intenção está presente, há certa disposição das pessoas para tal, mas tende a prevalecer a valorização do conhecimento técnico e acadêmico. Entre os limites para que essa articulação ocorra estão: as distâncias sociais e territoriais das pessoas envolvidas, a linguagem e a dificuldade de acesso a meios de comunicação em alguns locais, fazendo com que as oportunidades de troca limitem-se aos poucos momentos em que as pes-soas de realidades distintas estão juntas e podem manifestar seus saberes.

Promover articulações entre diferentes conhecimentos que preservem as identidades exi-ge esforço de “[...] reconhecimento recíproco, de diálogo e de debate” (SANTOS, 2005: 120).

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Freire (1987) reforça que o diálogo é caminho para os homens terem significação enquanto tais. É, pois, uma exigência existencial, o que implica que ninguém pode ser depositário de idéias de outro, e não se resume à troca de idéias a serem consumidas por um ou outro. O diálogo é, para Freire, um ato de criação. O diálogo exige respeito mútuo dos usuários de dife-rentes sistemas de conhecimentos na formação de relações horizontais de discussão e debate, aprendendo a relacionar conhecimentos diferentes (SPINK, 2001).

Na concepção dialógica de Freire (1987), não há diálogo sem amor ao mundo e aos ho-mens, sem fé no homem e na sua vocação de ser mais, em seu poder de fazer e refazer, de criar e transformar estreiteza em profundidade. A fé nos homens é condição básica, apriorís-tica: “Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hipóte-ses, em manipulação adocicadamente paternalista” (Freire, 1987:81). O diálogo requer, ainda, humildade, pois a recriação do mundo não pode ser arrogante (Freire, 1987). Para que seja possível um diálogo intercultural, é fundamental que haja reconhecimento não só das virtudes próprias e do outro, mas da incompletude e das fraquezas das diferentes perspectivas (SAN-TOS, 2005), já que a auto-suficiência é incompatível com o diálogo (FREIRE, 1987).

Uma das condições para a produção de conhecimentos relevantes para todos os envol-vidos é o engajamento nas práticas e saberes que cada envolvido representa e deseja com-partilhar, inclusive para conhecer seus limites e motivar-se a buscar completude em outros saberes e práticas. Para um gestor entrevistado, se a universidade não estiver vivenciando o dia-a-dia para perceber elementos do contexto político e cultural na sua interlocução com o local, torna-se distanciada e suas proposições inadequadas, difíceis de serem aplicadas: “É necessária, portanto, uma relação mais permanente, mais contínua no tempo. E esse é um ponto nevrálgico da questão”.

4.3 Sustentabilidade do resultado das ações

Embora o foco estivesse na capacitação de gestores, em uma das experiências analisa-das, e na pesquisa sobre maricultura, em outra, em ambas havia o objetivo de contribuir para a geração de trabalho e renda. Muitos projetos enquadram-se entre os que preten-dem contribuir para tal. A maioria deles, no entanto, perdura por períodos curtos – nos casos aqui estudados, 7 meses e 12 meses, respectivamente – e focalizam apenas uma ou algumas das dimensões necessárias para gerar emprego e renda – capacitação em gestão, mobilização social ou técnicas de maricultura. Embora a capacitação em gestão e o co-nhecimento de uma técnica produtiva sejam importantes para acesso a emprego e renda, precisam estar articuladas a oportunidades de acesso a crédito, infra-estrutura, mercados consumidores, fornecedores de insumos, entre outros2.

São definidos objetivos que, para serem atingidos, não dependem apenas dos envol-vidos, mas também de outros atores. Em paralelo, é comum identificar em certos territó-rios a superposição de programas e projetos de diferentes instituições, com repetição de agendas, dispersão e fragmentação de esforços, sem articulação, muitas vezes para não se perder oportunidades de financiamento (FISCHER, 2002).

Segundo o gestor de uma organização não-governamental entrevistado, há progressos

2 No caso do Projeto Terra Lua, a percepção da necessidade de articulação da cadeia de valor da maricultura para viabilizar a atividade motivou a elaboração de outros projetos, no mesmo território, de modo a garantir certa con-tinuidade e ampliação do escopo de atuação da universidade, em articulação com outros atores.

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quando participam de capacitações e outros processos coletivos, mas é preciso que as iniciativas sejam mais profundas e abrangentes para que, a partir disso, as organizações possam seguir sozinhas. Ele enfatiza que as pessoas não querem que alguém permaneça sustentando as organizações, mas que oportunize a criação de condições concretas. O problema, segundo ele, acontece quando dizem: “[...] a universidade vai ajudar a fazer projetos, através dos projetos virão recursos para mobilizar, comprar computador, finan-ciar atividades, criar uma estrutura; aí vem a ducha fria depois: ‘Olha, seu projeto não é tão profundo, tão amplo, não vai dar’”. Este gestor acredita que a principal deficiência da universidade nesses processos é não se aprofundar nas questões necessárias para resol-ver os problemas com os quais se envolve.

Um professor entrevistado, falando a respeito de experiências de incubação de co-operativas populares, observa que a viabilidade econômica dos empreendimentos, em muitos casos, parece depender de algum suporte permanente, pelo menos em certos contextos produtivos e econômicos. Muitas vezes, embora os resultados financeiros não sejam significativos, há outros resultados a serem valorizados, como a elevação da auto-estima, por voltar a estudar, pela oportunidade de conviver com outras pessoas, em ou-tros ambientes, como o da universidade, viajar, debater idéias. Sem a viabilidade econô-mica, porém, corre-se o risco de criar um “laço maldito”, uma relação de dependência que não se esgota. Mas a própria viabilidade econômica passa pela ampliação desse processo de aprendizagem coletiva, de agir em rede, de compartilhar conhecimentos, tecnologias.

4.4 Sujeitos, objetos e produtos

Como a própria linguagem empregada em projetos revela ao utilizar termos como público-alvo, beneficiários ou objeto de pesquisa, ainda predomina em iniciativas dessa natureza a distinção entre sujeito e objeto. Nas relações sujeito-sujeito, ao contrário, a ação libertadora substitui a verticalidade, a sloganização e os comunicados pelo diálogo, nos termos de Freire (1987). Se a postura em processos de intervenção mantém-se assen-tada na idéia de repassar conhecimento, de ensinar a quem “nada sabe”, não se contri-buiu para gerar autonomia. Nas intenções, pode haver reconhecimento de outros saberes e desejo de “conceder” autonomia, “mas, na prática, a gente não sabe como fazer isso, como essa autonomia é gerada. E a gente não sabe na prática porque isso implica estabe-lecer relações, e temos dificuldade de estabelecer relações”, comenta um entrevistado. A linguagem pode revelar a perspectiva de que alguém está levando o conhecimento, certa condição superior, como ao dizer: ”vim para contribuir, para ajudar, para resolver, para trazer”. Segundo um pesquisador entrevistado: “Essa sintonia fina do comportamento e da palavra implica conviver, mergulhar, praticar”. Santos (2003) observa que o privilégio à linguagem técnica, comum na ciência, distancia sujeito de objeto e teoria de fatos.

Em trabalhos como esses, é fundamental tornar disponíveis conhecimentos produzi-dos, tanto aos que participaram de sua construção, evitando-se a distinção entre sujeito e objeto (RIBEIRO, 2003), quanto publicamente, de modo a garantir o direito à livre circu-lação das idéias e dos resultados gerados (MICHAUD, 2004). Para tal, é preciso planejar e praticar mecanismos de retorno aos pesquisados e de disseminação, por diferentes meios e instrumentos, de modo que a informação de fato chegue a quem pode ser útil. Pode-se

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prever, inclusive, pesquisa ou avaliação para verificar se os dados chegaram e como foram utilizados.

Essa necessidade costuma ser reconhecida pelos pesquisadores, mas nem sempre é prio-rizada, como aponta um gestor social entrevistado: “a demora no retorno ou a devolução por meios inadequados, inacessíveis, evidencia que isso não é priorizado pelos pesquisadores”. Outra entrevistada, uma gestora governamental, acredita que: “há inúmeras pesquisas feitas sobre comunidades e nunca as informações voltam de maneira organizada, sistematizada, para facilitar a vida deles”. Muitos dos documentos, relatórios e imagens produzidos no âm-bito dos projetos sequer são apresentados aos “beneficiários” que participaram do processo, mesmo que a maioria deles seja produzida com sua participação.

Em ambos os casos analisados, após o término dos projetos, previa-se a entrega de relatórios em formato apropriado aos participantes nas localidades, mas isso não foi executado ou apenas realizado de maneira pontual e limitada. No ONG Ativa, passados dois anos do encerramento do projeto, nem mesmo os certificados de participação haviam sido entregues às pessoas nas localidades. Dados a respeito de características sociais, políticas, produtivas e associativas das lo-calidades em que se desenvolveram foram coletados em ambos os projetos, gerando monogra-fias, artigos, teses e relatórios, mas os dados não foram devolvidos de maneira sistematizada aos participantes, embora tenha sido um compromisso declarado.

Certos materiais produzidos em cursos e oficinas foram entregues aos participantes, por iniciativa de estudantes que os prepararam, não por definição metodológica no âmbi-to do projeto como um todo. A evidência de que isso não é a prática comum foi a surpresa com que tais materiais foram recebidos, tanto pela coordenação de um dos projetos como por alguns dos “beneficiários”. Um pesquisador entrevistado reconhece:

Não desenhamos desde a formulação das pesquisas, incluindo aí recursos para isso, estratégias apropria-das para a divulgação dos resultados para os públicos envolvidos, inclusive para os formuladores de políticas públicas. Priorizamos a produção acadêmica, como ar-tigos para congressos na área.

As pressões sobre os acadêmicos para que tenham trabalhos publicados, devido à sua va-lorização em avaliações de desempenho, é um fator institucional que influencia as prioridades. Além disso, como visto, os “objetos” da pesquisa ou intervenção não costumam contar com mecanismos de pressão sobre os universitários para que se compartilhe os conhecimentos ge-rados. Yelland (2001) indica que, em vários países, tem havido maior pressão dos governos por accountability, responsabilidade social e avaliação da gestão das pesquisas. Quanto ao Brasil, Ribeiro (2003) observa que a transparência de resultados das pesquisas à sociedade até hoje não foi alvo de política específica.

Mais importantes do que documentos ou relatórios, no entanto, são as práticas cotidianas que promovem o compartilhar de saberes. Comentando a construção coletiva de conhecimen-tos, Ribeiro (2003) defende que a terceira pessoa (objeto) torna-se primeira pessoa (sujeito) ao adquirir um saber sobre si mesmo. Não se trata, pois, de uma questão de difusão para outros que não participam da produção desse conhecimento, mas de retorno do conhecimento a quem é parte de sua construção, pela apropriação efetiva e sua aplicação (RIBEIRO, 2003).

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4.5 Avaliação como recurso para a aprendizagem e tomada de decisões

Seja por exigência dos financiadores, seja por se acreditar que é importante avaliar processos, resultados e impactos, é comum atualmente que projetos sociais e políticas públicas prevejam detalhados processos de avaliação, definindo-se, desde a formula-ção, metodologias, responsáveis e recursos para sua realização. Em ambas as experiên-cias analisadas, foram conduzidos processos de avaliação que contribuíram para gerar reflexão e aprendizagem aos envolvidos. De reconhecida importância pela maioria dos participantes, observa-se que a avaliação deve ser processual, endógena, e não realiza-da apenas para preencher relatórios ou cumprir exigências dos financiadores. Para um membro da equipe, a avaliação: “...não deve ser formal, mecânica, burocrática, para cumprir formalidades, tem que ser visceral, provocar reflexão”.

Estudiosos da avaliação, como Patton (1996), defendem que esta deve ser focada em utilização, produzindo-se informações e conduzindo-se processos de modo que sejam úteis para a tomada de decisões, para gerar adaptação e correção de rumos nos processos em curso ou em iniciativas futuras similares. De acordo com a equipe do Ter-ra Lua, avaliar deve tornar-se hábito, durante todo o processo, o que exige disciplina. O grupo percebe que a avaliação pode ter, ao mesmo tempo, caráter subjetivo, propi-ciando reflexão e transformação das pessoas envolvidas, e caráter integrado a sistemas de planejamento e controle.

4.6 Aplicação dos recursos financeiros

Conforme mencionado no item 4.1, raramente as decisões a respeito da aplicação dos recursos financeiros envolvem os “beneficiários” da ação. De modo geral, os bene-ficiários sequer imaginam quanto é investido em um projeto dessa natureza e em quais rubricas. No ONG Ativa, não houve prestação de contas financeiras aos “beneficiários”. No Terra Lua, foi elaborada uma planilha de prestação de contas dos gastos realizados pelo projeto, porém foi apresentada apenas a um dos grupos de “beneficiários”, e de forma agregada, sem discriminar gastos e rubricas de maneira acessível à compreen-são de leigos.

Um dilema comum em projetos que visam capacitação ou geração de trabalho e renda é que grande parte dos recursos é gasto em “atividades meio” e poucos recursos chegam à ponta, às pessoas que deveriam ser as principais beneficiadas. Ao analisar-se a aplicação dos recursos financeiros no Terra Lua, por exemplo, percebe-se que cerca de 40% do total investido destinou-se à remuneração de pessoal, com uma mínima parte disso para pessoas das comunidades. Outra parcela dos recursos é gasta com transporte, o que tende a não beneficiar empreendimentos de base local, mas empre-sas maiores que exploram tais atividades. Há recursos investidos em equipamentos e materiais, na maioria das vezes, comprados em lojas que não estão localizadas onde vivem os “beneficiários”. Os poucos recursos gastos diretamente no local costumam ser os de alimentação e hospedagem. Nesse sentido, um pescador de uma localidade comentou que os integrantes da equipe da universidade têm alimentação e hospeda-

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gem garantidas pelo projeto, enquanto pessoas da comunidade que participam, “de-pois da atividade, vão para casa e precisam garantir seu almoço”. Segundo ele, bem ou mal, a equipe usufrui dos recursos (bolsas/remuneração, alimentação, hospedagem, trabalhos acadêmicos produzidos) e a comunidade usufrui pouco (quantidade mínima de pessoas do local recebem alguma remuneração e pequenos comerciantes de pou-sadas e restaurantes).

4.7 Conflitos, erros e controvérsias como oportunidades para aprendizagem

A vivência dessas experiências evidencia que são cometidos erros no processo, há conflitos e desilusões, mitos são desconstruídos, enquanto outros são criados. Experi-ências como essas constituem oportunidades de formação para todos os envolvidos, na qual erros e conflitos são naturais e podem ser valorizados como fundamentais para a aprendizagem.

Na retórica de muitos modelos de cooperação para o desenvolvimento é possível identificar, no entanto, a idéia implícita de que “ao estarem todos unidos pelo mesmo objetivo”, devem ser desconsiderados ou minimizados conflitos, disputas e desequilí-brios históricos de poder, ideologias etc. Para Oliveira (2001), o discurso sobre desen-volvimento local é apresentado como capaz de curar todas as mazelas da sociedade, de eliminar conflitos, “... colocando-se no lugar bucólicas e harmônicas comunidades” (2001: 13). Para ele, desenvolvimento não pode ser sinônimo de cooperação, negocia-ção, completa convergência de interesses e apaziguamento de conflitos, sob o risco de o desenvolvimento local fechar-se para a complexidade da sociedade.

Conflito não é algo “ruim”, que deva ser omitido. A sociedade é repleta de confli-tos por todos os lados (OLIVEIRA, 2001) e cidadania não é sinônimo de paz social e de harmonia. Segundo o autor, a própria sociedade civil e as ONGs têm sido vistas de forma “apaziguadora”, como lugar de não-conflito, de consertação, em que os interes-ses não aparecem. Na visão gramsciniana, em oposto, na sociedade civil o consenso é permanentemente contestado pelo dissenso. Um indivíduo autônomo e reflexivo se forma por meio do conflito, da cidadania, da luta pelos direitos, da política (OLIVEIRA, 2001). Novas possibilidades de desenvolvimento e o fortalecimento da esfera pública podem acontecer exatamente pelo choque de interesses e de opiniões entre agentes, que se percebem como diferentes, reconhecendo o outro para que possam interagir e dialogar (DANIEL, 1999). Quando os agentes não têm autonomia para defender seus interesses, perde-se em potencial para o desenvolvimento.

No campo dos estudos organizacionais, pesquisadores observam que tende a ha-ver interesse em continuidade, harmonia e ausência de conflito, embora a desconti-nuidade seja comum e necessária nas instituições. Wenger (1998) defende garantir continuidade no âmbito da descontinuidade, o que cria instabilidade e, ao mesmo tempo, um equilíbrio dinâmico que gera aprendizagem. Para March e Simon (1958), os custos da inovação tendem a produzir continuidade. As pessoas preferem alterna-tivas que mantenham estruturas a aquelas que as alterem, e procuram alternativas de forma mais intensa, quanto mais insatisfeitos estiverem (ARGYRIS, 1992). As pessoas

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preferem, muitas vezes, distanciar-se de suas responsabilidades para evitar situações embaraçosas e de conflito. O usual nas organizações é “fingir que está tudo bem”. As pessoas aprendem a encobrir seus erros, seja por não estarem conscientes de que os produzem, seja porque procuram agir para que os erros não pareçam erros, criando te-orias de como agir eficientemente para evitar percebê-los (ARGYRIS, 1992). As rotinas nas organizações costumam definir-se de forma a evitar que se reconheçam, discutam e identifiquem erros. Ações e omissões costumam ser justificadas pelos limites institu-cionais, que de fato existem, mas que podem ser desafiados.

A avaliação do ONG Ativa apontou que a diversidade de experiências, trajetórias e áreas de atuação dos participantes contribuiu para a riqueza do processo, embora gerasse conflitos, divergências de opiniões e dificuldades na condução das discussões. Havia em um dos subgrupos de trabalho pessoas com extensa trajetória em movimen-tos sociais e políticos e que se engajaram com dedicação. A força do grupo alimentava-se do próprio conflito, além de outros fatores que contribuíram para que o nível de engajamento nesse território específico fosse elevado, como a percepção dos partici-pantes de que essa era uma boa oportunidade de promover articulação de pessoas em torno dos problemas da região.

Em outro território, houve muitos conflitos ao longo do processo, o que levou à interrupção das atividades do Programa antes do prazo previsto. A experiência nes-se local proporcionou situações de aprendizagem importantes para todos os envolvi-dos, especialmente pelas dificuldades enfrentadas, tanto na relação entre lideranças no território quanto entre alguns deles e a equipe da universidade. De acordo com o relatório final de avaliação do Programa, “Foi uma experiência que contribuiu para desmistificar algumas idéias e expectativas românticas de relação entre universidade e comunidade, colaborando para o amadurecimento pessoal e profissional dos envol-vidos”. O depoimento de uma liderança desse território entrevistada no processo de avaliação evidencia aprendizagem:

Aprendemos a negociar e, principalmente, desistir quando a gente vê que não está caminhando bem. É muito difícil as pessoas desistirem, elas preferem em-purrar com a barriga, mas aprendemos que desistên-cia não é derrota por completo, mas é oportunidade de vislumbrar algo melhor. Aprendemos a dialogar com os parceiros e ver que o maior erro de qualquer processo é não trazer uma construção coletiva desde o início, desde a concepção até a execução.

Uma estudante que atuou nesse território apontou que uma das razões para os conflitos foi a visão ne-gativa que alguns dos integrantes da comunidade lo-cal tinham da universidade, por experiências prévias mal-sucedidas. Para ela, até então, a imagem da uni-versidade nas comunidades era sempre de “benfei-tora”. Na experiência nesse território: “[...] vi certa

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resistência da entrada da universidade na comunida-de, algumas pessoas viam a universidade como uma ‘sanguessuga’”.

O desperdício de espaços propícios para a aprendizagem com os erros e conflitos pode acontecer quando há dificuldades para lidar com eles ou quando não são reco-nhecidos. Nos projetos em análise houve situações de conflito entre os integrantes das equipes que não foram trabalhados de maneira sistemática. Havia, também, certo receio das opiniões da comunidade, das críticas, muitas consideradas injustas. Havia receio de debater até no âmbito da própria coordenação as dificuldades, os erros e as responsabilidades, o que era sistematicamente adiado.

5. Considerações finais

Procuramos evidenciar aqui alguns dos elementos metodológicos e institucionais que influenciam a dinâmica das relações intersetoriais, especialmente em iniciativas que pretendem contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial, por meio da re-lação entre universidade e sociedade. Na balança das relações intersetoriais, muitos elementos influenciam seu pendor para um ou outro lado. Para além das capacidades de cada ator envolvido, fatores históricos, culturais, institucionais e metodológicos in-fluenciam o cotidiano das práticas, de maneira imbricada e interdependente, para além do que desejaríamos controlar.

Embora a ênfase aqui tenha recaído sobre os limites ou dificuldades recorrentes em experiências similares às analisadas, certamente há outros elementos, que favorecem o equilíbrio na balança das relações entre os setores. Há inúmeras experiências que demonstram, exatamente, as possibilidades de avanços e transformações. Não se trata, pois, de desqualificar iniciativas nesse sentido, tampouco dizer que qualquer projeto que pretenda contribuir com uma comunidade ou organização pressuponha uma rela-ção extremamente desigual em termos de autonomia e de poder dos agentes.

Nossas experiências têm evidenciado que mais importantes do que os fins ou ob-jetivos desse tipo de projeto são os meios, ou as metodologias empregadas em sua construção, nas práticas cotidianas de sua realização. Espera-se que a reflexão a respei-to de práticas nesse campo de ação contribua para identificar condicionantes, limites e caminhos para sua superação, de modo que tanto os processos como os resultados sejam enriquecedores para todos os envolvidos. Embora não tenhamos enfatizado os caminhos para a superação, acredita-se que é possível avançar, que a realidade não está dada e pode ser permanentemente reconstruída, o que perpassa pela aprendiza-gem construída cotidianamente na articulação entre teoria e prática, ação e reflexão, intervenção e análise..

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Aprendendo a ser interdisciplinar: reflexões e experiências vividas no Marsol

Aprendendo a ser interdisciplinar:reflexões e experiências vividas no Marsol1

Paula Chies SchommerAngélica Maria Araújo Corrêa

Iara IcóMiguel da Costa Accioly

Natali Lordello de Oliveira

1. Introdução

A construção da interdisciplinaridade do conhecimento científico, embora seja um ideal aparentemente consensual, costuma percorrer caminhos tortuosos e desafiadores no seio da universidade e nas suas relações com a sociedade. Para além da intermediação entre pessoas e conhecimentos oriundos de diferentes disciplinas no interior das instituições acadêmicas, a interdisciplinaridade passa pela aproximação entre saberes científicos e a diversidade de sabe-res não-científicos presentes na sociedade; envolve construção de novos saberes, em função de problemáticas específicas, concretas, atendendo a demandas de grupos ou organizações, situa-das em certo contexto social e temporal.

A ampliação da percepção de interdependência e complexidade dos fenômenos, na atuali-dade, vem contribuindo para evidenciar a exigência e a urgência da superação do fatiamento da ciência em disciplinas. Fatiamento esse que pode tornar o cientista um “ignorante especializa-do” e distanciar a ciência das necessidades do contexto em que é produzida (SANTOS, 2003). A superação de fronteiras entre saberes e seus atores, porém, não é algo simples de se concretizar. Afinal, a ciência se constituiu justamente com base no rompimento com outros modos de pro-duzir conhecimento e por meio de seu parcelamento em disciplinas, cada qual com seu objeto, seu repertório, seus métodos, sua compreensão aprofundada - e parcial - da realidade.

No contexto produtivo, a divisão do trabalho reforçou a separação entre saberes, distancian-do pensamento e ação, planejamento e execução, trabalho mental e manual. Em contraposição a isso, nas palavras de Yared (2008, p. 162), a interdisciplinaridade trava ‘‘uma luta constante contra os efeitos alienantes da divisão do trabalho’’. As desigualdades sociais, por sua vez, contri-buem para criar muros, grades, estereótipos e preconceitos entre pessoas, grupos e instituições, dificultando o diálogo e a construção conjunta entre diferentes.

No âmbito das universidades, diversos atores e setores vêm percebendo, todavia, que para enriquecer seus conhecimentos, preservar sua legitimidade enquanto instituição na contempo-raneidade e preservar o pluralismo e o universalismo que justificam o próprio termo universi-dade, cabe a esta milenar instituição estar mais próxima da diversidade de pessoas, saberes e interesses que fazem a sociedade e promover interconexões entre eles (DELANTY, 2001; SAN-TOS, 2004).

A articulação entre conhecimentos científicos e destes com outros conhecimentos pode ocorrer de múltiplas maneiras na universidade, seja no ensino, na pesquisa, na extensão ou na

1 Versão anterior deste trabalho foi apresentada no III Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (ENA-PEGS), realizado em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), nos dias 28, 29 e 30 de Maio de 2009. Tal versão está disponível em www.rgs.wiki.br.

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famosa indissociabilidade entre eles. Neste trabalho, nosso olhar volta-se para uma iniciativa típica de extensão universitária, um Programa que busca promover interação entre diferentes disciplinas e engajamento de acadêmicos e não-acadêmicos em torno de práticas compartilha-das, em prol de um objetivo comum.

Nosso foco neste texto é o relato de três cenas vividas no âmbito do Programa Marsol - Mari-cultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano - o qual vem se estruturando como tal desde 2004 e tem como propósito promover a inserção da maricultura - cultivo de mariscos - em comuni-dades pesqueiras nas quais não há essa tradição. Como base nessas três cenas e dados sobre o Programa, buscamos aqui compartilhar ações e reflexões decorrentes de um processo de apren-dizagem sobre interdisciplinaridade, em seus potenciais e seus limites.

Desde as origens do Programa na universidade, por iniciativa de pesquisadores da área de ciências biológicas, em 1996, foi revelando-se o potencial ambiental e econômico da atividade de maricultura no baixo sul baiano, pelas características daquelas localidades, aliadas à crescen-te necessidade mundial de produção pesqueira para alimentação, em função da redução dos estoques naturais de pescado. Em meio aos potenciais, constatou-se o desafio de implantar a maricultura em conjuntura tradicional como a da pesca e mariscagem, na qual há resistências culturais e políticas e limitações técnicas para uma nova atividade. Era necessário desenvolver vários aspectos da cadeia de valor, como melhores locais e condições para cultivo, qualidade da água e dos produtos, capacitação técnica e organização dos produtores, relações de trabalho, financiamento, adaptação de instrumentos e técnicas de cultivo às condições locais, processa-mento, armazenagem, transporte e comercialização.

Para atender a todos esses aspectos, ficava evidente a necessidade de contar com conheci-mentos de diferentes áreas da universidade, para o que se ampliou e diversificou a equipe, que passou a contar com estudantes, professores e técnicos de diferentes áreas das ciências sociais aplicadas, humanas e biológicas. Era necessário, também, articular recursos e saberes de pesso-as e instituições das localidades do baixo sul baiano em que se desenvolvia o projeto, de órgãos de caráter técnico e de fomento, além de contar com a aprendizagem produzida em experiências consolidadas na área de maricultura. Havia, ainda, o desafio da própria institucionalização do Programa, que vem se estruturando em torno de projetos articulados, ainda em estágio inicial, vivendo fragilidades quanto a sua própria sustentação.

Entre as várias necessidades de articulação e as aprendizagens propiciadas por elas de lá para cá, este trabalho concentra-se nos desafios da construção da interdisciplinaridade e nas oportunidades de aprendizagem que esta construção gera, entendendo-se que o Programa par-te da multidisciplinaridade para construir a interdisciplinaridade, algo ainda em processo, como veremos adiante.

Nesse sentido, o objetivo geral deste trabalho é analisar o processo de construção da inter-disciplinaridade em um programa de extensão universitária em comunidades pesqueiras tradi-cionais. Os objetivos específicos são: a) perceber como a interdisciplinaridade é exigida no coti-diano do Programa; b) identificar causas das dificuldades para promover a interdisciplinaridade; c) identificar caminhos e instrumentos para a superação dos entraves identificados.

Parte-se de uma breve discussão sobre os conceitos de multi, inter e transdisciplinaridade e sua relação com extensão universitária e formação profissional, fazendo menção, em caráter secundário, à aprendizagem nas relações com outros saberes, já que se revelam imprescindíveis em um programa como esse. Em seguida, são apresentadas “três situações-problema” - cenas vivenciadas no cotidiano do Programa, recriadas e sistematizadas a partir de duas oficinas temá-

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ticas sobre interdisciplinaridade e aprendizagem. Nestas oficinas, realizadas em novembro de 2008 e fevereiro de 2009, foram utilizados recursos estéticos como desenhos, teatro e descri-ções que funcionaram como catalisadores de discussões e construções sobre o tema. Contou-se, ainda, com observação direta e observação participante em reuniões, eventos e atividades de campo, análise de documentos – atas, mensagens de comunicação interna, projetos e relatórios, bem como análise da avaliação dos participantes do Programa, por meio de questionários e oficinas.

Cabe ressaltar que a própria elaboração deste trabalho é um esforço de construção interdis-ciplinar, pois envolveu autores de diferentes áreas, integrando repertórios, experiências e estilos de pesquisa e de escrita.

2. Interdisciplinaridade e extensão universitária

De acordo com Santomé (1998), quando a articulação de saberes acontece com a partici-pação de várias disciplinas na composição e exercício de um trabalho, sem estabelecer-se ou perceber-se claramente interações entre elas, se está diante da modalidade multidisciplinar. Po-demos, pois, entender multidisciplinaridade como trabalho conjunto no qual cada profissional trata de certo tema a partir de sua própria ótica, comumente com participação de diferentes disciplinas da mesma área de conhecimento.

Uma vez que se prioriza a contribuição específica de cada disciplina, há também o risco de desconsiderar os saberes produzidos pelos sujeitos em outros espaços de aprendizagem, poden-do resultar em conteúdos sem relação com o contexto e as vivências dos sujeitos.

Já na interdisciplinaridade, Alves et al. (1998) vislumbram a possibilidade de um diálogo en-tre disciplinas, aproximando-se saberes específicos, oriundos dos diversos campos do conhe-cimento, em uma fala compreensível aos diversos interlocutores. Em lugar de uma concepção fragmentária da realidade, a interdisciplinaridade convida à interação, à disposição de ir além dos limites das disciplinas, tomando consciência das limitações dos saberes próprios de uma e de outra e acolhendo contribuições. Para Fazenda (2008), os saberes interdisciplinares consti-tuem o alicerce do conhecimento científico, uma vez que é impossível às disciplinas científicas enfrentarem, isoladamente, as problemáticas complexas da realidade. No mesmo sentido, Yared (2008) coloca que sem a interdisciplinaridade, a disciplinaridade torna-se vazia. Esta autora vê na interdisciplinaridade uma unidade na compreensão dos fenômenos. Não se trata de entender um pouco de tudo, mas de enfrentar os problemas com diferentes competências, articuladas entre si.

Etimologicamente, interdisciplinaridade pode ser definida como a relação entre disciplinas (YARED, 2008), o que, para Fazenda (2008), é uma definição demasiado ampla e insuficiente para compreendermos seu significado. Para Yared (2008), tal definição não implica em um con-ceito fechado, já que inter remete a movimento, a metamorfose, a incerteza. Siepierski (1998), por sua vez, destaca a presença de críticas e conflitos para caracterizar a interdisciplinaridade, estimulando-se, de modo geral, a busca pelo entendimento, a partir de contra-argumentações e do reconhecimento de limites. Espera-se da interdisciplinaridade que se caracterize por provocar trocas generalizadas de informações e críticas, questionando a acomodação implícita em cada área do conhecimento, fortalecendo o trabalho em equipe e estimulando a formação integral das pessoas (ALVES; BRASILEIRO; BRITO, 2004; SANTOMÉ, 1998).

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Discussões sobre interdisciplinaridade costumam enfatizar os sujeitos que constroem e dão vida aos conhecimentos, já que o processo de conhecer o mundo é também um caminho de auto-conhecimento para cada pessoa envolvida (YARED, 2008). A pessoa humana tende a buscar o sentido de suas ações e estar aberta ao transcendente. Em relações interdisciplinares, favo-rece-se a disposição dos sujeitos para acolher diferentes nexos e integrá-los, ao mesmo tempo em que se desestimula a competição, já que o outro é visto como colaborador, não como rival (YARED, 2008).

Já a transdisciplinaridade pode ser vista como uma macrodisciplina, um pensamento organi-zador que transcende as disciplinas, não como domínio sobre as mesmas, mas como busca pelo que atravessa e ultrapassa todas elas. Próxima da noção de transdisciplinaridade, está a idéia de pluridisciplinaridade, que abarca formas de relação entre disciplinas em diversos níveis, graus de cooperação e coordenação em sistemas de ensino-aprendizagem (YARED, 2008).

Para Fazenda (2008), inter e transdisciplinaridade estão intimamente relacionadas, ambas evocando palavras como diálogo, negociação, respeito, humildade, espera, desapego, gratidão, reconhecimento, coerência, olhar atento e multifacetado. Inter e transdisciplinaridade promo-vem a conexão entre o saber ser, o saber fazer (sentido prático) e o saber saber, reforçando, nas palavras da autora, a beleza da capacidade de abstração.

Não se pretende aqui explorar as diferentes visões sobre aproximações e distanciamentos entre multi, trans e interdisciplinaridade. Faz-se apenas essa breve exposição para caracterizar diferentes fases de aprendizagem na experiência analisada, um Programa de extensão univer-sitária.

A extensão universitária, um dos eixos do tripé de sustentação da universidade, é um tipo de atividade propícia à interdisciplinaridade. Embora haja ações extensionistas realizadas a partir de uma ou poucas disciplinas, nosso interesse está naquelas que exigem intervenção sobre um problema complexo ou um território, normalmente elaboradas em parceria entre universidades, governos e outras organizações da sociedade, nas quais as pessoas deparam-se com problemas concretos, complexos, que transcendem as disciplinas e exigem ir além do próprio conhecimen-to acadêmico.

Atividades como essas são desafiadoras, pois são menos institucionalizadas na estrutura aca-dêmica tradicional, contam com menos recursos e reconhecimento e costumam envolver riscos adicionais (em relação ao ensino, por exemplo) para os envolvidos. Por outro lado, em parte por conta desses desafios, são atividades que costumam constituir espaços de intensa aprendiza-gem para os que nela se envolvem. Na perspectiva da formação de estudantes para o exercício de suas profissões e para a cidadania, costumam ser enriquecedoras e marcantes, inclusive pelas frustrações que costumam gerar.

Além de requerer interdisciplinaridade, ao envolver intervenção em certo contexto, ativida-des extensionistas exigem aproximação com parceiros - técnicos, financiadores, institucionais - e com pessoas que vivem e atuam sobre esse contexto - suas histórias, repertórios, saberes, preconceitos e potencialidades, o que evidencia a ligação entre a interdisciplinaridade e a articu-lação entre saberes científicos e não-científicos.

É o que acontece no Marsol, um programa realizado a partir da universidade que, embora contemple atividades de ensino e pesquisa, é fundamentalmente caracterizado como atividade de extensão, envolvendo universitários e não-universitários em sua realização.

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3. A construção da interdisciplinaridade no Marsol

O propósito central do Marsol, um programa de Maricultura Familiar Solidária no Baixo Sul Baiano, é contribuir para a implantação da maricultura naquela região, por meio de projetos de extensão e de pesquisa, norteado pela concepção de gestão social e por princípios de economia solidária. Espera-se que a maricultura seja uma alternativa de renda complementar em comu-nidades pesqueiras tradicionais, gerida pelas famílias de produtores, em colaboração entre si e com os diversos agentes que integram a cadeia de valor da atividade. Um dos objetivos específi-cos do Programa é contribuir para a formação profissional de pessoas que venham a dedicar-se à maricultura, seja no âmbito das comunidades pesqueiras, na pesquisa, no apoio técnico ou na gestão dos empreendimentos.

Na trajetória de construção do Marsol, experiências anteriores serviram como base de co-nhecimentos sobre maricultura na região. Uma delas foi o projeto Cultivo de Camarões em Gaiolas, em Barra de Serinhaém (BA), em cooperação entre o Instituto Francês para Pesquisa e Exploração do Mar (IFREMER), a Bahia Pesca S/A (Empresa da Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia), a Universidade Federal da Bahia (Ufba) e empresas privadas. Os resultados definiram as linhas gerais do cultivo de camarão em gaiolas flutuantes (PAQUATTE et al, 1998). Outra experiência importante foi o programa Brazilian Mariculture Linkage Program (BMLP), em parceria entre governo e universidades brasileiras e a Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), que, entre 1996 e 2003, desenvolveu alternativas e introduziu atividades de cultivo em comunidades costeiras nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Bahia, Rio Grande do Norte e Maranhão. Na Bahia, as atividades concentraram-se na região do baixo sul, junto às comunidades pesqueiras de Barra dos Carvalhos e Taperoá, onde foram testadas al-ternativas de cultivo de camarões em gaiolas flutuantes, macroalgas e ostras (ACCIOLY; TOSTA; CORRÊA, 2002).

Dois outros projetos - Gestão dos Recursos Ambientais do Município de Cairu: projeto piloto na vila de Garapuá e Gestão dos Recursos Ambientais do Baixo Sul (BA), financiados pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA) e desenvolvidos em comunidades do baixo sul não inseri-das no BMLP, contribuíram para qualificar a experiência junto às comunidades.

Com a desativação do BMLP, em 2003, a maioria dos cultivos implantados não foi adian-te. Um dos pescadores participantes manteve a atividade de cultivo de ostras, sem qualquer subsídio. O cultivo cresceu sob seus cuidados, com base no que ele já sabia como pescador, o que aprendeu no projeto e o que foi testando ao longo do tempo. O trabalho desse pescador comprovou que era possível cultivar ostras na região, algo que motivou a elaboração de novos projetos.

Nessas primeiras iniciativas na Bahia, foram trabalhadas apenas questões biológicas da pro-dução. Percebeu-se que um entrave ao desenvolvimento da atividade na região dizia respeito à necessidade de adotar técnicas e princípios de gestão que contribuíssem para a sustentabilidade de empreendimentos dessa natureza, que exigiam não apenas a viabilidade ambiental e técnica produtiva, mas também questões legais, financeiras, institucionais, de organização dos trabalha-dores, produção, transporte, comercialização, bem como aspectos relativos a gênero e divisão social do trabalho.

Percebendo a necessidade de ampliar o foco de atuação e sua incapacidade para dar conta, a partir dos conhecimentos das ciências naturais, dessas várias dimensões, professores que

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coordenavam o projeto buscaram outro centro na universidade, dedicado à temática do de-senvolvimento e gestão social. Ao trabalharem juntos no delineamento de um projeto de pes-quisa e extensão em maricultura familiar, com princípios de economia solidária e gestão social, nascia o Marsol, em 2006. Com financiamento do CNPq, órgão federal de fomento à pesquisa, o Marsol desenvolveu suas atividades em cinco localidades do baixo sul baiano – Barra dos Carvalhos, Batateira, Galeão, Garapuá e Taperoá. O objetivo era contribuir para a construção de um processo produtivo e participativo de carcinicultura (cultivo de camarão) e ostreicultura (cultivo de ostra). A iniciativa alcançou resultados práticos, como tecnologias de produção e gestão, algumas delas apropriadas por pessoas da região, mas ainda com muitas limitações. A experiência vivenciada permitiu elaborar novo projeto, que representou um passo além na consolidação de empreendimentos produtivos de ostreicultura na mesma região. Desta vez com patrocínio da Petrobras, a partir de 2007, o Marsol ampliou sua capacidade de atuação com a implantação de empreendimentos de maricultura artesanal, a partir das bases técnicas e sociais dos projetos anteriores, buscando agora englobar toda a cadeia de valor - desde a produção até a comercialização.

Ao longo de mais de uma década de ações voltadas para o desenvolvimento da mari-cultura familiar na região, a composição da equipe de trabalho e o modo de atuação foram alterando-se, refletindo mudanças nas concepções do programa e na forma de intervenção junto às comunidades. Inicialmente, a equipe era composta de estudantes e profissionais de biologia e medicina veterinária, os quais não abordavam dimensões comerciais, políticas e so-ciais relativas ao cultivo. Já estavam ali presentes conhecimentos distintos, embora na mesma área de conhecimento, aproximando-se da atuação multidisciplinar, na concepção de Santo-mé (1998). Com a estruturação do Marsol, em 2006, perspectivas de gestão social e economia solidária foram incluídas, sendo incorporados profissionais e estudantes das ciências humanas e sociais aplicadas - administração, secretariado executivo, psicologia, ciências sociais, além dos de biologia e medicina veterinária. Esperava-se que a equipe assim constituída fosse capaz de atuar nas comunidades abordando diferentes dimensões.

A incorporação de pessoas de conhecimentos de natureza tão diversa gerou, ao mesmo tempo, conflitos e oportunidades de aprendizagem. Embora tenha havido diversificação de conhecimentos, a articulação entre eles continuava frágil, percebendo-se falta de contextu-alização e interação entre os saberes. A equipe trocava impressões dentro de uma estrutura organizacional pouco definida e experimental, que agregava conhecimentos variados, mas não os direcionava de maneira integrada e eficiente, que permitisse trocas generalizadas de informações e críticas, no âmbito de uma concepção unitária do processo.

Posteriormente, já com financiamento da Petrobras, o compromisso com a implantação de 30 cultivos de ostras em um ano exigiu estrutura organizacional mais funcional, que manti-vesse aspectos enriquecedores da multidisciplinaridade, mas que fosse além dela, construin-do-se a efetiva interdisciplinaridade, tão necessária para atender às expectativas geradas pelo projeto. Manteve-se a equipe com pessoas oriundas de várias disciplinas - biologia, oceano-grafia, administração, psicologia, economia, ciências sociais e comunicação, divididas em três coordenações: produção (pessoas da área de biologia e oceanografia), gestão social (pessoas de psicologia, ciências sociais e economia) e gestão do projeto (pessoas de administração e comunicação). Ocorreram conflitos e dificuldade de colaboração entre integrantes da coor-denação de produção e da coordenação de gestão, o que motivou mudança na estrutura, agrupando-se as duas coordenações em uma única equipe, não mais dividida por área de

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conhecimento, mas com foco no trabalho de campo, que precisava ser realizado em conjunto pelas duas equipes. Assim, foi facilitada a interação de conhecimentos que caracteriza a inter-disciplinaridade, fruto também do amadurecimento de integrantes da equipe, aproximação entre pessoas que estavam afastadas e capacidade mais apurada de compreender repertórios do outro, em função de compartilharem mais intensamente a realização das atividades. O princípio que passou a vigorar era de que toda atividade seria compartilhada por, pelo menos, uma pessoa de cada área de conhecimento.

As novas coordenadorias buscavam atuar de modo complementar entre: a) atividades de campo, enfocando produção e gestão social e; b) atividades de gerenciamento da estrutura do projeto. Procurava-se mediar conflitos de natureza diversa, que vão desde diferenças míni-mas, como postura em relação a prazos e horários, até objetivos e visões de mundo que nem sempre caminham num mesmo sentido. Não se pretendia eliminar conflitos e contradições, pois isso minaria a interdisciplinaridade e reduziria chances de aprendizagem, mas sim mediar e aproveitar estas experiências como oportunidades para refletir, aprender, avançar, o que exige instrumentos metodológicos para tal, algo sobre o que se buscava aprender na prática.

Além das atividades cotidianas, realizadas em conjunto, cursos e oficinas reuniram mari-cultores e a equipe acadêmica, a fim de estimular a interdisciplinaridade e a interação entre saberes científicos e não-científicos. No quadro a seguir, busca-se sumarizar as principais fases de construção do Programa e sua característica quanto à interdisciplinaridade.

BMLP (1996/2003) Marsol - CNPq (2006) Marsol - Petrobras (2007/2008)

Foco de atuação

Pesquisa e extensão – cul-tivo de moluscos bivalves, cultivo de camarões em tanques redes e testes com algas e peixes

Pesquisa e extensão - pro-cesso produtivo e partici-pativo de carcinocultura e ostreicultura

Instalação de empreendimentos sustentáveis de ostreicultura e consolidação de tecnologias de produção e gestão social

Tempo de financiamento e principais exigências do financiador

Financiador: CIDA (5 anos)Exigências: reuniões e relatórios técnicos, desen-volvimento de comuni-dades

Financiador: CNPq (1 ano)Exigências: Sistema-tização das pesquisas realizadas

Financiador: Petrobras (1 ano)Exigências: número de benefi-ciários - cultivos implantados, pessoal formado e técnicas disseminadas; veiculação da imagem da empresa

Composição da equipe

Pesquisadores, técnicos, extensionistas e bolsistas de ciências biológicas

Pesquisadores, estu-dantes e monitores e coordenador de ciências humanas, biológicas e sociais aplicadas

Pesquisadores, estudantes, monitores e coordenadores de ciências humanas, biológicas e sociais aplicadas

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Estrutura organizacional

Coordenação central (no Canadá), coordenação brasileira, coordenações regionais e grupos regionais de trabalho divididos em função do conteúdo de suas pesquisas no campo, na área de ciências biológicas

Coordenação geral e monitores da área biológica e social que acompanhavam ativida-des de campo

Coordenação geral e coor-denadores funcionais que orientam bolsistas dentro de uma esfera interdisciplinar de execução de atividades de campo e gestão

Interdisciplinaridade

Equipe menos diversa em termos de disciplinas, sem trabalhar de modo inter-disciplinar

Repertório (termos, metodologias, conceitos, maneiras de organizar o projeto etc) de várias áre-as do conhecimento, mas ainda pouco articulados

Equipe multidisciplinar traba-lhando a interdisciplinaridade nas atividades cotidianas; Repertório das diferentes áre-as mais visível de modo articu-lado, ainda com resistências e limites

Quadro 1: Configuração organizacional do Marsol em três diferentes fasesFonte: elaboração própria, com base em documentos do Marsol

A experiência evidencia que a formação multidisciplinar de uma equipe permite diversi-dade de repertórios, que podem ser interligados, desde o levantamento e reconhecimento de problemas até a definição de melhores soluções. Ao longo da construção do Marsol, no entanto, percebeu-se que a simples inserção de profissionais de diferentes áreas, sem intercâmbio de conhecimentos e detecção de pontos críticos, avaliações e novos encami-nhamentos, não contribui efetivamente para o fortalecimento do trabalho em equipe e o alcance dos objetivos propostos. É fundamental construir espaços, oportunidades e instru-mentos para promover a interdisciplinaridade, pois em função das arraigadas raízes discipli-nares e de outros tantos fatores, ela não tende a acontecer naturalmente. Nessa perspecti-va, entende-se que o Marsol é uma experiência multidisciplinar que apresenta potencial de exercício da interdisciplinaridade, na medida em que consiga avançar na sua compreensão e nos instrumentos para fazê-lo. Buscando trazer essa discussão para um contexto mais espe-cífico e avançar na construção desses instrumentos, são apresentadas e analisadas a seguir três “situações-problema”, vividas no âmbito do Programa.

4. Cenas da experiência vivida

As situações aqui apresentadas foram trabalhadas em duas oficinas promovidas no con-texto do Marsol, com o objetivo de capturar percepções e possibilidades para a construção da interdisciplinaridade. Foram utilizados recursos estéticos como desenhos, teatro e des-crições que funcionaram como catalisadores das discussões. As cenas escolhidas foram: a) “Quem viaja?”, interpretada durante o Seminário Interativo, promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da UFBa, em novembro de 2008, na oficina temática aberta ao público Instrumen-

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tos de Pesquisa Social e Aprendizagem em Experiências de Imersão e Interação; b) “Mudan-ça da Programação ou Avaliação Improvisada” e; c) “A comunidade precisa de...!?”. Estas duas cenas foram trabalhadas na oficina temática Aprendizagem e Interdisciplinaridade no Marsol, realizada com a equipe do programa, em fevereiro de 2009.

4.1 Cena 1 – Quem viaja?

Quem viaja? Foi esta a pergunta que, certa tarde, na sede do Marsol na universidade, fizeram-se integrantes da equipe do Programa que planejavam uma viagem a campo no final de semana seguinte, sabendo da limitação de recursos disponíveis para tal. A ilustra-ção abaixo, apresentada aos participantes da oficina, recriava a discussão que se seguiu a essa pergunta, envolvendo membros da equipe de áreas de conhecimento distintas, sobre a importância de cada um estar no campo naquele final de semana. O conteúdo central emergente estava relacionado à relevância que cada componente atribuía ao seu trabalho e ao trabalho do outro.

Ilustração 1: Cena 1 - Quem viaja?Por: Raquel Mei, integrante da equipe Marsol

A partir de concepções arraigadas de natureza disciplinar, percebia-se que cada integrante atribuía maior importância a sua presença em campo e das pessoas que faziam parte da mesma área de conhecimento. Os argumentos baseavam-se nos conhecimentos que possuíam, que os levava a eleger como prioritários os conhe-cimentos que lhes eram mais próximos. Julgavam que as comunidades necessita-vam saber mais sobre a área que faziam parte do que, necessariamente, àquelas

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dominadas por seus colegas. A equipe de viagem que afinal viajou foi definida a partir da compreensão da limitação de recursos e da necessidade de adequação do perfil de conhecimento da equipe de viagem às atividades que seriam desen-volvidas no final de semana.

O grupo que participou da oficina interpretou que a equipe do Marsol, naquela situação, passou por processos de dissenso e consenso. No primeiro momento, o dissenso instalou-se na medida em que havia desvalorização, associada ao desco-nhecimento, do trabalho do outro. O “eu viajo” e o “você não viaja”, definido de acordo com a distinção das áreas, expressou a idéia de que o que “eu sei”, para as comunidades, é mais importante do que o que “você sabe”. Num segundo momento, o grupo entra em consenso, percebendo que é parte da natureza de projetos sociais absorver aprendizagem que pode ser gerada pela diversidade e interação de conhecimentos: a interdisciplinaridade. Para tanto, uma iniciativa de intervenção que possui equipe multidisciplinar precisa desenvolver metodologias e instrumentos, além de definir prioridades que estimulem a complementaridade e a valorização de conhecimentos de áreas distintas. Esse processo foi considerado como um movimento difícil, pois nos conflitos permanecem idéias de especialida-de e emerge o poder do conhecimento que cada um possui. O grupo apontou para a necessidade de investir na formação dos estudantes, promover diálogo e evitar priorização das práticas mecânicas ou ativistas, sem reflexão sobre seu sentido.

Algumas posições (explícitas e implícitas) dos atores foram percebidas. De ma-neira explícita, os atores da cena expressaram que havia uma racionalidade que orientava as ações (evidenciada pela necessidade de planejar a viagem e pela definição do que era mais importante), baseada em critérios que priorizavam a ação individual, em detrimento da pluralidade que poderia ser proporcionada pela inter-relação das disciplinas. Por outro lado, de forma implícita, emergiram ques-tionamentos sobre a real importância de ser interdisciplinar, o valor que cada área assume e a marginalização de instrumentos de controle que não beneficiam, necessariamente, a área de conhecimento da qual se faz parte (evidenciado pela ênfase de uma das personagens à necessidade de cuidar das notas e recibos).

Em síntese, o comportamento dos atores aparece como eixo definidor dos ru-mos que a interdisciplinaridade pode tomar. Quando as posições e conhecimentos individuais e disciplinares predominam em contextos potencialmente interdisci-plinares, o processo de troca e construção de novos conhecimentos é ameaçado. Por outro lado, ainda que os atores não estejam habituados com a diversidade de conhecimentos, a abertura ao diálogo e a elaboração de posicionamentos coleti-vos são relevantes para a mudança de valores e a construção coletiva da interdis-ciplinaridade.

4.2 Cena 2 – Mudança da programação ou Avaliação improvisada

Esta cena foi escolhida por cinco integrantes da equipe que haviam vivido, al-guns meses antes, a situação representada. Eles fizeram um desenho para colocá-

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la em discussão com os colegas durante a oficina. O desenho mostrava três lugares (a capital Salvador, a região do Baixo Sul e a localidade de Barra dos Carvalhos), em três momentos. O primeiro retratava o atraso para partida de Salvador de uma das integrantes da equipe, que conduziria uma atividade de avaliação, em oficina no campo. No segundo, estão retratados os vários meios de transporte implicados nas viagens à região “ferry-boat, ônibus e canoa motorizada, que cos-tumam dificultar e exigir várias horas para acesso aos locais. Na canoa, está uma parte da equipe, que participaria da oficina e também estava atrasada em relação ao horário programado, pois a atividade em outra localidade havia se estendido além do previsto. Enquanto isso, na terceira parte da cena, integrantes da equipe, juntamente com maricultores de Barra dos Carvalhos que participavam da oficina, aguardavam a chegada dos demais. Em função dos atrasos dos colegas, decidiram improvisar uma atividade de avaliação, aproveitando a presença das pessoas e o tempo disponível. Entretanto, nenhum dos presentes conhecia metodologias de avaliação. Planejaram de modo improvisado, contando com sua intuição e seus co-nhecimentos prévios e realizaram a atividade.

Ilustração 2: Mudança da programação ou Avaliação improvisadaPor: Elaboração própria, com base em desenho elaborado pelo grupo que relatou a cena e foto de uma Oficina

A necessidade de improviso ocorreu em função de imprevistos que geraram atraso de pessoas que deveriam estar na oficina. Por um lado, o fato foi positivo, pois gerou

Planejando a avaliação

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necessidade de responder a esse imprevisto de modo criativo. Por outro, evidenciou que apenas uma ou duas pessoas da equipe tinham conhecimento sobre metodolo-gia de avaliação e a atividade havia sido antes planejada sem participação de outras pessoas. Embora tenha sido produtivo e interessante como espaço para improvisação, criatividade e aprendizagem, o grupo analisou que o engajamento de diferentes áreas poderia ocorrer de forma cotidiana no projeto, sem que isso configurasse uma emer-gência. “Poderia ter sido de outra forma, ainda melhor, caso outras pessoas já tivessem conhecimento sobre avaliação”, disse uma das participantes.

A cena vai ao encontro do que apontam Weick e Westley (2004) sobre aprendiza-gem organizacional que ocorre em momentos não previstos, improvisos, a partir de pequenos erros, pois são situações em que há justaposição de ordem e desordem, certo desequilíbrio entre o que se sabe e o que é necessário no momento, desafiando as pessoas a novas respostas, interpretações e ações.

As dificuldades de logística decorrentes da distância entre a sede do Programa no campus da universidade na capital (cidade em que residem os integrantes da equipe) e as comunidades trabalhadas pelo Marsol exige mais tempo, gera atrasos e torna mais oneroso o trabalho de campo, além de manter distanciamento entre equipe e pessoas nas comunidades. Essa e outras dificuldades em trabalhos que envolvem atividades de campo, sujeitas a inúmeras variáveis, evidenciam a necessidade de contar com planos “A, B e C” para cada etapa. A capacidade de improviso é essencial, pois são freqüen-tes mudanças de plano ao longo do percurso e a equipe é desafiada a adaptar-se a eles. Embora isso possa gerar desperdícios, atrasos e desmotivação, pode enriquecer as possibilidades de aprendizagem das pessoas envolvidas, que passam a perceber a necessidade de articulação entre atividades, etapas, planejamento e execução. As di-ficuldades logísticas exigem interdisciplinaridade, pois as pessoas das diferentes áreas não conseguem estar sempre presentes nas localidades e os colegas de outras áreas precisam atender a demandas diversas.

O grupo observou que, muitas vezes, existe a vontade de aprender com a experiên-cia do outro, de realizar parte do trabalho de outra área, mas nem sempre as pessoas estão qualificadas para tal: “existe um déficit de conhecimento”, disse uma participan-te. Ao atuar coletivamente em ações que envolvem a produção de ostras, outra par-ticipante percebe, no seu cotidiano, a importância da interdisciplinaridade, o quanto ela sente-se aquém para atender às necessidades concretas e o que precisa aprender.

Uma estudante lembrou da importância de associar os conhecimentos técnicos aos contextos nos quais seu uso faz sentido, pois, assim, as pessoas vão incorporando novos elementos a seu repertório, na medida em que são úteis. Como exemplo, ela contou sobre um dia em que usava aparelho de GPS para marcar pontos de localização de coletores de sementes de ostras, em uma das localidades. Um dos maricultores per-guntou sobre como funcionava e ela então explicou em detalhes, associando ao con-texto. Talvez o uso do GPS não fizesse sentido para ele em uma aula longe do contexto.

Essas percepções dos participantes evidenciam a importância dos conhecimentos situados, construídos coletivamente em torno de práticas, que instigam as pessoas a aprender (LAVE e WENGER, 1991; ARAUJO, 1998) e as estimula a perceber o sentido de suas atividades em relação ao todo. Como evidenciou a cena, é comum nas organiza-ções a visão fragmentada, em que cada um planeja a “sua” atividade. Por outro lado,

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quando uma pessoa consegue “perceber a cadeia toda, de diferentes modos, tem a visão do todo, deixa de pensar só no ”seu” produto”, declarou uma participante.

Embora se reconheça que há características e atitudes pessoais que podem influen-ciar a interdisciplinaridade, não se pretende aqui atribuir limitações às pessoas, en-quanto indivíduos, mas sim enfatizar os contextos sócio-históricos e os processos que condicionam interpretações e modos de agir, contextos e processos que podem ser reconstruídos e propiciar amadurecimento e ampliação de perspectivas, nos âmbitos individual, grupal e organizacional.

Com base na cena, apontaram-se condições que podem ser promovidas para se avançar na construção da interdisciplinaridade, as quais estão sistematizadas em qua-dro, adiante neste texto.

4.3 Cena 3 – A comunidade precisa de...?!

Esta cena foi representada por meio de esquete teatral por seis integrantes da equi-pe. A cena tinha como eixo a necessidade de produzir camisas com a estampa do pro-jeto para pessoas das comunidades. A cena ocorre em quatro momentos:

uma pessoa da comunidade pede a uma estudante que sejam trazidas mais cami-sas e ela diz que levará o pedido à pessoa responsável no Marsol;

a estudante transmite o pedido a outra pessoa na equipe, a qual pergunta sobre vários detalhes que a primeira não sabe responder (cor, tamanho, modelo, quantida-de), pois como ela nunca havia lidado com confecção de camisas, não sabia que tais itens precisavam ser definidos;

vários diálogos mostram a demora gerada pelos procedimentos necessários à con-fecção de camisas “ definição das cores, modelos, estampas, aprovação da estampa pelo financiador, cotação de preços, autorização da despesas pelos coordenadores etc.;

integrantes da equipe discutem sobre a real necessidade de distribuírem mais ca-misas aos participantes, a partir de visões diferentes sobre seu uso e significado.

Um aspecto marcante na cena é a burocratização e os excessos dos processos for-mais e gerenciais que dificultam as ações, fazendo com que uma tarefa envolva várias pessoas, cada uma fazendo uma pequena parte. E os dias passando...

Ficou evidente o poder associado ao conhecimento de uma atividade. Se somente uma pessoa sabe de cada etapa do processo, caso haja algum entrave com ela, todo o processo fica parado. Além disso, muitas vezes quem tem conhecimento técnico não detém o poder formal de gerir o processo, criando dependência de outra instância. Nessa equipe, a cena revelou que há, pelo menos, três níveis hierárquicos e a confec-ção de camisas passa por todos eles. A hierarquia, avaliou o grupo, pode gerar a não responsabilização nos níveis intermediários, uma vez que a responsabilidade por algo não ter sido feito pode ser atribuída ao escalão superior.

Outro aspecto observado é o valor da interdisciplinaridade para permitir avaliação mais apurada das necessidades de uma comunidade com a qual se trabalha e dos sen-tidos dos objetos. Ao discutir sobre a necessidade de fazer ou não mais camisas, se

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percebeu que estas tinham diferentes utilidades e significados para os maricultores, para a equipe da universidade e para o financiador. Para alguns, uma camisa represen-ta status na localidade ou uma roupa nova para ir à festa. Para outros, divulgação da marca de sua empresa, um instrumento de trabalho ou um símbolo de engajamento no projeto. Debateu-se, ainda, que muitas vezes reproduzimos demandas de outras pessoas, sem entender suas motivações e causas, sem refletir, discutir com outras pessoas, explorar diferentes possibilidades. Do mesmo modo, universitários fazem demandas a seus parceiros sem questionar sua pertinência.

Em trabalhos em localidades como as trabalhadas no Programa, diante de muitas “necessidades”, ocorre também que se deseje resolver problemas que vão além do escopo e das capacidades do projeto em questão, o que gera frustrações, como ob-servado por Thiollent (2004) em iniciativas de pesquisa-ação, que ampliam demais seu escopo, extrapolando expectativas e abrindo margem a frustrações. No Marsol, certa vez, estudantes queriam mobilizar-se para resolver problemas de regularização fundiária e fazer campanhas de educação sexual, pois percebiam dificuldades das co-munidades que julgavam deveriam contribuir para resolver. Independente do grau de importância dessas questões, não era possível, no âmbito do Programa tratar de to-dos os desafios latentes em certa localidade, algo que desafia nossa percepção trans-disciplinar dos problemas.

Lembrou-se, ainda, de aproveitar a identificação de demandas e problemas pelas comunidades para também responsabilizá-las pela solução, de modo compartilhado, combatendo posturas passivas, como a de apontar um problema e esperar por solu-ção. Apontou-se que há detalhes e nuances das práticas e contextos que só é possível perceber praticando, ou depois de feito, novamente enfatizando o engajamento na prática. Por fim, na linha do que foi discutido na cena anterior, foi apontado o dilema burocracia X interdisciplinaridade, simbolizado na pergunta: “como ser interdiscipli-nar sem ser “moroso”?”

5. O que os participantes sugerem incentivar para a construção da interdisciplinaridade

Nas oficinas realizadas, a partir das cenas e da reflexão sobre elas, solicitou-se que cada pessoa, a partir da aprendizagem com as experiências vividas, apontasse o que se pode incentivar para aprofundar a interdisciplinaridade e o que deve ser evitado para não minar suas potencialidades. Com base nas respostas, foi elaborado o qua-dro a seguir. As sugestões não são aqui analisadas ou elaboradas teoricamente, são apenas explicitadas como resultado de um momento de reflexão sobre interdiscipli-naridade compartilhado pela equipe do Marsol. Muitas delas se referem a questões pontuais vividas no Programa, mantidas aqui próximas da linguagem utilizada naque-le contexto, de modo a refletir a espontaneidade dos participantes e sua maneira de colocar as sugestões.

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Reflexão sobre o sentido das práticas Organização e coordenação das ativida-des

• Reforçar na equipe o entendimento do impacto pretendido do projeto; estimular foco nos objetivos, em per-guntas como: por que estou no proje-to? O que posso aprender com o pro-grama e na relação com cada pessoa?

• Exercitar a reflexão sobre os porquês de certos comportamentos, sem atri-buir os problemas, automaticamente, a outras pessoas ou áreas;

• Evitar atender demandas sem ques-tioná-las, discuti-las, entender seu sentido;

• Não reproduzir ordens ou comporta-mentos de colegas e/ou superiores, sem refletir e/ou questionar o funda-mento dos mesmos;

• Valorizar críticas, estimulando que se-jam colocadas, de modo respeitoso, e que se procure perceber seu fun-damento; entender porque surgiu o incômodo que levou à crítica, repen-sando os próprios posicionamentos e vícios;

• Realizar reuniões integradas entre as dife-rentes áreas de conhecimento;

• Reduzir níveis hierárquicos e evitar di-vidir a equipe por coordenadorias de caráter disciplinar, mas sim em torno de atividades ou tarefas;

• Descentralizar tarefas e decisões, evi-tando retenção de conhecimentos por poucas pessoas;

• Priorizar qualidade das práticas e não quantidade, evitando gerar sobrecar-ga e retrabalho;

• Compartilhar conhecimentos e evitar a especialização extrema na equipe;

• Incentivar cooperação entre as áreas e desestimular competição entre elas;

• Incentivar a autoconfiança e a auto-gestão, responsabilizando cada pes-soa que participa;

• Incentivar o intercâmbio com e entre os parceiros e comunidades que par-ticipam do Programa;

• Construir instrumentos de interven-ção de modo coletivo;

• Priorizar a formação de equipe multi-disciplinar;

• Orientar os mais novos, com a partici-pação dos mais experientes;

• Promover rodízio de áreas entre inte-grantes da equipe, periodicamente;

• Atuar de modo planejado, pensando o longo prazo;

• Trabalhar as dificuldades de relacio-namento das pessoas;

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Disposição para observação, diálogo e escuta Diversidade de repertórios

• Cultivar o interesse das pessoas em ob-servar atividades dos demais e perceber sua relação com o todo, facilitando en-tendimento do papel do outro em rela-ção a objetivos comuns;

• Aprender mais sobre outras áreas, so-bretudo pela disposição em observar;

• Observar de modo sistemático, em espa-ços dinâmicos e interativos;

• Abrir mão de suas próprias posições, dis-pondo-se a ceder em prol de alternativas definidas coletivamente;

• Reconhecer avanços e apontar falhas e equívocos dos que demonstram falta de interesse, pouca disposição para o diálo-go e para a aprendizagem;

• Demonstrar aos demais a importância de seu trabalho;

• Trabalhar em conjunto; estimular contatos mais próximos entre os participantes, for-mando vínculos de identidade que permi-tam compreender as falas (repertório);

• Promover espaços de interlocução en-tre os participantes, para que seja pos-sível conhecer o universo simbólico dos colegas;

• Utilizar, no cotidiano, termos e conceitos de cada área disciplinar, de modo que os demais tomem contato com novo reper-tório, também valorizando conhecimen-tos disciplinares. Ao usar vocabulário dife-rente, dar oportunidade para que outros perguntem, contextualizando os saberes e atribuindo significado a eles;

• Incentivar leitura e promover capacita-ções e atividades de campo que envolvam repertórios e pessoas diferentes, da uni-versidade e das comunidades;

Posturas dos integrantes da equipe Espaços e instrumentos de sistematização e reflexão

• Ousar, intrometer-se mesmo quando não é chamado; buscar conhecer as outras áreas, ser proativo;

• Abrir-se para críticas;• Trabalhar de modo integrado aos demais

colegas e parceiros;• Evitar concentrar-se nas próprias ativida-

des, sem compreender o todo;• Perceber relação entre os objetivos gerais

e os objetivos da sua área de atuação, identificando relação entre atividades de cada integrante e o todo;

• Engajar-se mais nas práticas cotidianas nas várias áreas, até para saber como não atra-palhar;

• Dedicar mais tempo ao trabalho de campo.

• Nas conversas informais, levantar pon-tos para discutir, posteriormente, de modo sistematizado;

• Usar instrumentos de sistematização de conhecimentos, como diários de campo e relatórios;

• Gerar oportunidade para que as pesso-as reconheçam, expressem e discutam seus preconceitos, refletindo sobre eles coletivamente.

Quadro 2 - O que incentivar para avançar na interdisciplinaridadeFonte: elaboração própria, com base nas oficinas realizadas

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Estas sugestões, baseadas em situações vividas no cotidiano do Marsol, podem orientar transformações no próprio Programa, referenciar o desenho de programas si-milares ou servir para análises de caráter acadêmico sobre interdisciplinaridade, gestão e aprendizagem.

Observa-se que, na primeira coluna, na qual aparecem os subtítulos Reflexão so-bre o sentido das práticas, Disposição para observação, diálogo e escuta e Posturas dos integrantes da equipe, sobressaem comentários relativos à aprendizagem de cada participante no sentido do saber ser e do saber saber que costumam ser propiciados em experiências como esta analisada. Na segunda coluna, nos subtítulos Organização e coordenação das atividades, Diversidade de repertórios e Espaços e instrumentos de sistematização e reflexão, predominam sugestões relativas à criação de espaços e ins-trumentos que propiciem diálogo/interlocução/articulação/intermediação de saberes/repertórios/conhecimentos no cotidiano das práticas compartilhadas pelas pessoas e situadas em certo contexto, o que nos remete à abordagem sócio-prática da aprendi-zagem, desenvolvida em outros trabalhos que integram esta publicação, com base em autores como Lave e Wenger (1991), Araujo (1998), Wenger (1998), Easterby-Smith e Araujo (2001).

6. Considerações finais

A experiência dos autores nesta e em outras iniciativas universitárias que se pro-põem à aventura da interdisciplinaridade mostra que estas costumam ser espaços de boas intenções, alguns avanços e muitas frustrações. Apesar disso, acredita-se que os caminhos para se construir algo novo, que desafie tradições e concepções arraigadas e atenda a necessidades complexas, só podem ser descobertos ao caminhar, na prática, no sentido de práxis, de ação e reflexão imbricadas, indissociáveis. Prática que pressu-põe conflitos, erros, desequilíbrios e contradições e os aproveita como oportunidade para aprender, para ir além do que se sabia ou julgava saber. Prática cotidiana em que o conhecimento exigido é interdisciplinar, transdisciplinar, integral, não hierarquizado, contextualizado, situado (ARAUJO, 1998; LAVE; WENGER, 1991; WEICK; WESTLEY, 2004).

A experiência do Marsol evidencia que é possível superar distâncias entre discipli-nas, promover interação entre as mesmas, e que não há “receita mágica” para fazê-lo. A interdisciplinaridade é construída no cotidiano, nas pequenas ações, com base, fun-damentalmente, na disposição para o diálogo e para a aprendizagem compartilhada.

A aproximação que se pretende em iniciativas como a deste Programa, embora com muitas dificuldades, vai ao encontro da expectativa de Santos (2003), de que a supe-ração da dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais contribua para superar a própria distinção entre sociedade e natureza. A ciência moderna, ao constituir-se sepa-rando disciplinas entre si e distanciando-se do senso comum, provocou ruptura ontoló-gica entre homem e natureza e, a partir desta, outras rupturas – entre sujeito e objeto, singular e universal, mental e material (SANTOS, 2003; RIBEIRO, 2003). Em uma expe-riência como o Marsol, o desafio concreto de viabilizar uma nova atividade produtiva exige a superação de todas essas dicotomias, sob pena de não alcançar seus propósitos, desperdiçar recursos e potencialidades e gerar frustrações em seu processo de forma-ção profissional. Em contextos sócio-práticos nos quais há compartilhar de diversos sa-

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beres, os envolvidos percebem rápida e claramente que, sozinhos, não conseguem dar conta das demandas, que precisam contar com conhecimentos de outras pessoas, e, ainda, produzir saberes novos, apropriados a cada contexto e necessidade específica, conhecimentos situados, contextualizados (ARAUJO, 1998; LAVE; WENGER, 1991).

Ressalta-se, por fim, o quanto esta experiência é significativa, em suas vicissitudes, contradições e conquistas, tanto no que se refere à gestão do programa em si, como na oportunidade que representa para testar metodologias de formação profissional em gestão. Metodologias essas que promovam o respeito e a valorização de diferentes sa-beres, a articulação entre ensino, pesquisa e extensão, o engajamento da universidade e dos acadêmicos em realidades contextualizadas, sintonizados com problemas do seu tempo e do lugar em que vivem. Metodologias que valorizam diálogo, reflexão, crítica, erros e conflitos como oportunidades para desequilíbrios que são motores da aprendi-zagem.

7. Referências

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Desafios da gestão intersetorial, interdisciplinar e internacional: aprendizagem na prática da maricultura familiar solidária em prol

do desenvolvimento sócio-territorial1

Paula Chies Schommer Iara Icó

Angélica Maria Araújo CorrêaMiguel da Costa Accioly

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar desafios da gestão em contextos de interação entre diferentes setores, países e áreas de conhecimento, articulando referenciais teóricos sobre gestão, desenvolvimento e aprendizagem em uma experiência que busca promover a maricultura familiar solidária e contribuir para o desenvolvimento sócio-territorial. A aná-lise é fundamentada em três dimensões de articulação, entre: 1) setores - universitário, governamental, empresarial e sociedade civil; 2) disciplinas do conhecimento científico - ci-ências biológicas, sociais aplicadas e humanas e; 3) países - Brasil e Canadá.

A experiência focalizada é o Programa Marsol - Maricultura Familiar Solidária, coor-denado pelo Laboratório de Ecologia Costeira e Maricultura (ECOMAR), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). No Ecomar, são desenvolvidas pesquisas e projetos de extensão, desde 1996, na região do baixo sul do estado da Bahia, no Brasil. O Programa é composto por variados projetos e conta com parcerias governamentais, empresariais, acadêmicas e com grupos e organizações da sociedade civil. Envolve uma diversidade de processos e instrumentos de gestão que buscam conciliar a diversidade de lógicas, exigências, in-teresses, visões de mundo e potencialidades das relações entre diferentes atores, o que constitui uma rica oportunidade de aprendizagem sobre gestão, ao tempo que suscita inúmeros desafios.

Por suas múltiplas dimensões de articulação, tal experiência constitui realidade desa-fiadora e propícia para aprendizagem sobre gestão. Por um lado, há o desafio de implantar uma atividade produtiva - a maricultura familiar, em conjuntura tradicional como a da pesca e da mariscagem, na qual há resistências culturais e políticas e limitações técnicas para uma nova atividade. Em paralelo, existe elevado potencial ambiental e econômico para maricul-tura, pelas características das localidades e crescente necessidade de produção pesqueira para alimentação, em função da redução dos estoques naturais mundiais de pescado.

Para viabilizar a nova atividade, é necessário desenvolver variados aspectos da cadeia de valor: estudo sobre melhores locais e condições para cultivo, monitoramente da qua-lidade da água e dos produtos, delimitação legal das áreas de cultivo, capacitação técnica e organização dos produtores, adaptação de instrumentos e técnicas de cultivo às condi-ções locais, processamento, armazenagem, transporte, financiamento, comercialização. Há também desafios relativos a questões de gênero, exploração e divisão social do tra-

1 Versão anterior deste trabalho foi apresentada na VI Conferência Regional da International Society for Third Sector Research (ISTR) para América Latina e Caribe, evento realizado na Cidade do México, em julho de 2009.

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balho. Além da institucionalização do Marsol enquanto Programa, o qual vem buscando estruturar-se em torno de projetos articulados, ainda em estágio inicial, vivendo fragili-dades quanto a sustentação e à capacidade de implantar a maricultura familiar na região.

A abordagem sócio-prática da aprendizagem, que prioriza a compreensão das interações sociais e dos contextos nos quais a aprendizagem ocorre (SOUZA-SILVA; SCHOMMER, 2009), fundamenta a análise da aprendizagem sobre gestão, no contexto no qual se insere o Mar-sol. A análise aborda: a) características, aproximações e distanciamentos entre conceitos de gestão pública e ges-

tão empresarial, chegando à concepção de gestão social como possivelmente apropriada para uma experiência que envolve diferentes níveis de articulação entre pessoas, seto-res, conhecimentos e países;

b) processo de construção da legitimidade institucional do Programa junto às comunidades envolvidas e parceiros, o que envolve a definição da identidade de uma iniciativa sedia-da na universidade e que se propõe a intervir em certa realidade social e promover o desenvolvimento sócio-territorial. A legitimidade passa pela geração de conhecimentos sobre cultivos e gestão da cadeia produtiva de maricultura familiar, e pela capacidade de articulação política com diversos atores, envolvendo reflexão sobre papéis e capacidades da universidade frente a demandas de ordem técnica, social e política. Existe também o desafio de articular diferentes linguagens, tempos e objetivos em prol de algo comum.

c) fatores de sustentabilidade (no sentido de viabilidade ou de sustentação) do Programa, ou seja, condições para atingir os objetivos a que se propõe e para dar continuidade às práticas para além da intervenção no âmbito de um ou outro projeto. Entre esses fa-tores, estão os: financeiros (mobilização de diferentes fontes de recursos); econômicos (demonstrando viabilidade econômica da atividade); técnicos (incorporação de conhe-cimentos existentes e desenvolvimento de novos, de acordo com características locais); ambientais (convivência da atividade com condições do ambiente e atividades existen-tes); cognitivos (capacitação de equipe para atuar em maricultura); culturais (introdução de nova atividade em contexto tradicional, tratando de questões de gênero e relações de trabalho); institucional (relacionada à mencionada legitimidade), fundamental para a sustentabilidade do Programa e para o desenvolvimento da maricultura na região.Considerando as reflexões sobre as concepções de gestão social e de aprendizagem que

fundamentam o Programa e seus fatores de legitimidade e sustentabilidade, analisam-se três dimensões de articulação presentes na experiência:

Intersetorial – há diversos setores e organizações envolvidas: unidades universitárias de pesquisa e extensão; governo estadual - órgão de fomento à pesca e maricultura; governo federal - secretaria dedicada à pesca e maricultura; agência de cooperação internacional e ONGs canadenses; empresas privadas e órgãos de fomento à pesquisa.

Internacional - a aprendizagem sobre maricultura no Brasil está fundamentada na re-lação entre pesquisadores, universidades, governos e ONGs, sobretudo brasileiras e cana-denses, no âmbito de uma parceria entre Brasil e Canadá iniciada nos anos 1990, ainda em curso.

Interdisciplinar - busca-se articular áreas do conhecimento envolvidas no projeto - ciên-cias biológicas, humanas e sociais aplicadas e saberes tradicionais sobre pesca e marisca-gem e sobre características naturais, políticas e culturais da região.

Em cada uma destas três dimensões, analisam-se desafios e oportunidades de aprendi-

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APRENDER SE APRENDE APRENDENDO: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade Desafios da gestão intersetorial, interdisciplinar e internacional: ...

zagem sobre gestão, identidade, legitimidade e sustentabilidade em processos complexos, que envolvem colaboração entre pessoas, organizações, setores e países, identificando-se alternativas para práticas mais articuladas.

O caminho para a construção deste trabalho foi calçado na ligação entre a base teórico-conceitual e a empiria. Conceitos e experiências, reflexões e ações, estiveram imbricadas ao longo do processo. Além de pesquisas bibliográficas e da participação em eventos acadê-micos, houve constante trabalho de campo, implicando produção, coleta e sistematização de dados. Entre as fontes para compreender a experiência, destaca-se: instrumentos de sistematização (atas, relatórios, site, publicações, projetos); observação pela participação em espaços de planejamento e construção (oficinas e reuniões); questionários e oficinas. O conjunto de dados analisado vem sendo produzido desde 1996, quando se iniciaram ati-vidades que levaram ao Programa, mas sua organização de modo sistemático para os ob-jetivos desta análise foi realizada entre 2006 e 2008. As experiências vividas no âmbito do Marsol vêm sendo sistematizadas e analisadas em relatórios, projetos e trabalhos acadêmi-cos, como ICÓ (2007), MORAIS (2007), SCHOMMER; SANTOS (2007; 2008), ESTEVES (2008), e SCHOMMER et al. (2009), entre outros, os quais podem ser acessados por meio do site institucional do Programa (www.marsol.ufba.br).

Entre as conclusões, destacam-se potenciais e limites dessas múltiplas dimensões de articulação em iniciativas que se propõem a introduzir uma nova atividade, em contexto considerado tradicional, a partir de instituições e projetos exógenos ao território no qual se atua.

2. Um pouco da trajetória do Marsol

O Marsol - Maricultura Familiar Solidária - é um programa de extensão universitária, ar-ticulado com pesquisa e ensino, que surgiu de experiências de maricultura artesanal viven-ciadas em projetos realizados por governos e universidades em comunidades pesqueiras tradicionais da região do baixo sul baiano, no nordeste do Brasil. O propósito central do Pro-grama é contribuir para viabilizar a maricultura familiar na região do baixo sul baiano, por meio de atividades de pesquisa e extensão. Espera-se que a maricultura familiar, norteada por princípios de gestão social e economia solidária, seja sustentável ambiental e econo-micamente e represente alternativa de renda complementar em comunidades pesqueiras tradicionais.

2.1 A região do baixo sul da Bahia, a maricultura e os primórdios do Marsol

O baixo sul é uma região distante entre 100 e 200 quilômetros ao sul da capital do es-tado da Bahia, Salvador. É caracterizada por uma costa entrecortada por estuários e baías, com extensos manguezais e várias ilhas. As comunidades ribeirinhas da região, algumas em lugares de difícil acesso, vivem principalmente da pesca de peixes e da coleta de mariscos, havendo também atividade de extrativismo de fibra de piaçava. Há na região empreendi-mentos turísticos, agrícolas e petrolíferos, porém os benefícios diretos oriundos dessas ati-vidades econômicas estão altamente concentrados, ao passo que problemas sociais e am-

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bientais decorrentes impactam toda a população local. Em especial, atingem comunidades mais tradicionais, dentre as quais, as comunidades pesqueiras, presentes em toda a região (ICÓ, 2007)

Essas comunidades, tradicionalmente, tiveram a sobrevivência baseada na extração ou exploração do ambiente marinho, por vezes associada a atividades agrícolas de subsistên-cia. Entretanto, estas têm assistido, nas últimas décadas, à diminuição da capacidade de re-novação de estoques marinhos naturais, situação visível também em outras partes do mun-do (MARSOL-PFZ, 2006). Diante disso, muitos trabalhadores passaram a utilizar técnicas predatórias para extrair o que ainda resta, enquanto outros migraram para cidades maiores (MARSOL-PFZ, 2006), ambos os fatos contribuindo para mudanças na cultura tradicional da região, ligada à pesca e à mariscagem artesanal.

Uma das alternativas que se coloca frente a tal panorama é a aqüicultura – o cultivo de alimentos em ambientes aquáticos (DONALDSON, 1997). Dentre as categorias de aqüicul-tura está a maricultura, praticada em ambientes marinhos. A região do baixo sul apresenta elevado potencial para a maricultura, pelas características climáticas e ambientais, como a forte presença de estuários, baías e manguezais. O Brasil, de modo geral, é considerado um país com elevado potencial para maricultura, atividade que é alvo de políticas específicas em alguns estados, como Santa Catarina e São Paulo, além de ser foco de trabalho da Secre-taria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP), criada em 2003, no âmbito do governo federal, e convertida em Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), em 2009.

A maricultura pode ser desenvolvida em sistemas fechados, como tanques escavados, mas para isso é necessária a disponibilidade de terras, que costumam ser de difícil acesso a produtores artesanais, por motivos como especulação imobiliária, turismo e legislação ambiental. Uma alternativa é a maricultura em sistemas abertos, no ambiente marinho, na qual se usam estruturas e técnicas simples e com custo relativamente baixo, por meios das quais podem ser cultivados ostras, camarões, sururus e outros animais aquáticos (MARSOL-PFZ, 2006). Os cultivos podem ser realizados por grandes empreendimentos - empresariais ou governamentais, ou por pequenos produtores, articulados ou não entre si.

No Marsol, a prioridade de trabalho é com potencias maricultores (pessoas da região do baixo sul que tenham alguma proximidade com atividades de pesca e mariscagem), que venham a desenvolver a atividade como complemento de renda, orientados pela solidarie-dade entre si e com outros agentes da cadeia de valor. A proposta é desenvolver e fomentar a apropriação de técnicas de maricultura por pessoas da região, combinando elementos de inovação no manejo e cultivo com características tradicionais de atividades produtivas nas localidades.

Muito antes da implantação do Programa Marsol, já na década de 1970, pesquisadores ingleses, em parceria com pesquisadores brasileiros, iniciaram estudos para a maricultura na Bahia, apostando no potencial natural para a atividade. A partir da década de 1990, foram iniciadas diversas experiências, a começar pela parceria entre a Bahia Pesca S/A (Em-presa da Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia) e o Instituto Francês para Pesquisa e Exploração do Mar (INFREMER), em torno de projeto de cultivo de camarões em gaiolas, na localidade de Barra de Serinhaém. Os resultados foram importantes para definir diretrizes técnicas para cultivo de camarão em gaiolas flutuantes (PAQUATTE, et al., 1998).

A partir dessa experiência, uma equipe de professores, pesquisadores e extensionistas da UFBA passou a integrar um programa entre dois países - Brasil e Canadá: o Brazilian Ma-

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riculture Linkage Program (BMLP), financiado pela Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), com a participação de universidades e organizações governamentais de vários estados brasileiros. No âmbito do BMLP, entre 1996 e 2003, procurou-se desen-volver alternativas em maricultura, a exemplo de cultivo de camarões em gaiolas flutuan-tes, macroalgas e ostreicultura (cultivo de ostras) no baixo sul baiano, nas localidades de Taperoá e Barra dos Carvalhos, situadas no município de Nilo Peçanha (ACCIOLY; TOSTA; CORRÊA, 1999; ACCIOLY, 2005; NASCIMENTO et al., 2000; SOUZA et al., 2000). No mesmo período, surgiu oportunidade de parceria entre a UFBA e o Fundo Nacional do Meio Am-biente (FNMA), nos projetos Gestão dos Recursos Ambientais do Município de Cairu: pro-jeto piloto na Vila de Garapuá e Gestão dos Recursos Ambientais do Baixo Sul - Bahia. Tais projetos foram realizados em localidades da mesma região que não estavam inseridas no BMLP, ampliando, assim, o número de localidades trabalhadas pela UFBA.

No âmbito dessas parcerias, a equipe técnica da universidade passou a vivenciar a expe-riência de gestão de um projeto complexo, que envolvia diversos atores – nas comunidades envolvidas, no estado da Bahia, em outros estados brasileiros e em outros países. As oportu-nidades de aprendizagem nesse período foram intensas e diversas, destacando-se o inter-câmbio de conhecimentos técnicos sobre maricultura entre produtores e pesquisadores do Brasil e do exterior envolvidos no BMLP, por meio de reuniões, eventos, visitas técnicas e sistematização de experiências.

Havia também oportunidade de aprendizagem sobre gestão de projetos em si, en-volvendo desde prestação de contas e acompanhamento quase diários de atividades de campo, por meio de sistemas informatizados gerenciados pela coordenação no Canadá, até a sistematização e intercâmbio de conhecimentos entre os envolvidos. Era preciso articular ações e recursos locais, nacionais e internacionais, sob a coordenação do BMLP no Brasil, de um comitê internacional e do coordenador do Programa na CIDA. O maior desafio, contudo, estava na relação com as comunidades da região do baixo sul envolvidas na iniciativa, já que a viabilização da maricultura familiar na região vai muito além das condições do meio ambiente e dos equipamentos e técnicas de cultivo.

2.2 Marsol: de projeto a programa

As abordagens relativas à maricultura levadas a cabo pela UFBA até 2003 focaliza-vam questões biológicas relativas aos cultivos. A experiência nos projetos foi revelando que era necessário trabalhar vários aspectos da cadeia de valor da maricultura, entre as quais: estudo sobre melhores locais e condições para cultivo, delimitação legal das áreas de cultivo, acompanhamento da qualidade da água e da qualidade dos produ-tos, capacitação técnica, adaptação de instrumentos e técnicas de cultivo às condi-ções locais, organização dos produtores, financiamento, processamento, armazena-gem, transporte, comercialização. Além disso, tornou-se evidente, à medida que havia aproximação entre as pessoas envolvidas nos contextos práticos em que se procurava viabilizar a atividade, que era preciso lidar com questões de gênero e de exploração e divisão social do trabalho.

Diante disso, parecia crucial encontrar um modo de gerir que fosse propício para a natureza peculiar da iniciativa, que envolvia aspectos técnicos, econômicos, culturais,

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ambientais e políticos. Foi quando a equipe do Instituto de Biologia/Ecomar conheceu o conceito de gestão social e o trabalho que vinha sendo realizado pelo Centro Inter-disciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), na própria UFBA. A idéia de gestão social parecia trazer alento às dificuldades vividas nas relações com as comu-nidades, enquanto o foco em desenvolvimento, também sublinhado pelo CIAGS, tinha relação com o propósito de contribuir para o desenvolvimento da região do baixo sul. Entre pesquisadores ligados ao CIAGS, por sua vez, a oportunidade de testar conceitos e construir na prática instrumentos de gestão social, economia solidária e gestão do desenvolvimento sócio-territorial era propícia para o avanço do conhecimento sobre os temas. Ao mesmo tempo, representava oportunidade de formação de gestores so-ciais, em contexto sócio-prático. Desse encontro, surgiu a proposta de um programa de pesquisa e extensão em Maricultura Familiar Solidária (Marsol), que levou à elabora-ção de um projeto, em 2004, submetido a edital do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto foi aprovado em 2005 e iniciado em 2006, ano este que marca o início da configuração do Marsol como Programa.

A proposta submetida na época ao CNPq pretendia integrar a maricultura de sis-tema aberto (típico das estruturas de cultivos em tanques-rede flutuantes) ao modo artesanal e familiar de produção, buscando enfrentar a tendência extrativista predató-ria por meio de um modelo de cultivo de organismos marinhos associado às tradições das famílias pesqueiras, em empreendimentos orientados pela noção de solidarieda-de, por meio de formas de organização cooperativa e/ou associada. Estes eram, pois, os pilares do que se denominou Maricultura Familiar Solidária, isto é, o cultivo de organismos marinhos realizados por famílias de comunidades pesqueiras, em um sis-tema produtivo adequado ambientalmente, que favorece as peculiaridades culturais dos envolvidos, além de integrar todos os participantes numa estrutura de geração e distribuição de riqueza que se pretende democrática e solidária (MARSOL-PFZ, 2006). Estavam presentes na proposta o incentivo a uma lógica de cooperação democrática e sustentável, ao fortalecimento dos vínculos entre as pessoas, nos contextos locais, (re)definindo identidades, promovendo inserção cidadã e gerando alternativas de traba-lho e renda.

De acordo com tais princípios e propostas, durante o ano de 2006, desenvolveram-se atividades de pesquisa e extensão em cinco localidades da região do baixo sul (Bar-ra dos Carvalhos, Batateira, Galeão, Garapuá e Taperoá), focalizando a carcinicultura (cultivo de camarão) e na ostreicultura (cultivo de ostra). Nesta etapa, houve avanços na interdisciplinaridade, pelo envolvimento de diversas áreas do conhecimento cientí-fico, e na relação entre universidade, comunidades e parceiros locais, mas em situação ainda distante das condições necessárias para a efetiva implantação e consolidação de empreendimentos produtivos. Uma das decorrências das experiências dessa fase foi a opção em focalizar a ostreicultura, em detrimento da carcinicultura, já que o cultivo de ostras mostrou-se mais viável do ponto de vista técnico, ambiental e econômico, embora muitos produtores preferissem o cultivo do camarão, por acreditarem em sua maior rentabilidade.

A vivência em 2006 embasou a elaboração de novo projeto, que pretendia final-mente consolidar cultivos de ostras por 30 famílias da mesma região, disseminando a tecnologia para outras 100 famílias. Desta vez patrocinado por meio de edital público

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da Petrobras, empresa brasileira de petróleo e gás, a partir de 2007, o Marsol ampliou seu escopo de atuação, propondo-se a trabalhar aspectos de toda a cadeia de valor, com objetivos e metas definidos, no que tange ao número de empreendimentos a via-bilizar e pessoas a envolver. Os resultados pretendidos foram parcialmente atingidos, gerando novas oportunidades de aprendizagem, inclusive com os equívocos cometi-dos, e evidenciando a necessidade de continuar o trabalho.

Em 2008, o Marsol voltou a aproximar-se de produtores, técnicos e pesquisadores de Brasil e Canadá, no inicialmente chamado “Projeto de Desenvolvimento de Comuni-dades Costeiras do Nordeste Brasileiro”, com apoio financeiro da CIDA, sob a coorde-nação da ONG canadense World Fishery Trust e da SEAP/MPA, pelo governo brasileiro. Tal projeto, que passou a ser chamado Gente da Maré (GDM), tem gerado novas opor-tunidades de aprendizagem e articulação de saberes para o Marsol, sobretudo por pro-porcionar intercâmbio e ações conjuntas com órgãos governamentais e técnicos que atuam na área de pesca e aqüicultura no estado da Bahia, em outros estados brasilei-ros e no Canadá, os quais pretendem fazer convergir interesses e saberes voltados para o desenvolvimento da maricultura no Brasil, valorizando o desenvolvimento social.

Em função da integração do Marsol à rede de organizações que participa do pro-jeto Gente da Maré (GDM), tem surgido novas oportunidades de financiamento para atividades específicas relacionadas à maricultura, a exemplo da chamada pública em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) direcionado para apoio a or-ganização produtiva de mulheres rurais. Atendendo a um dos objetivos do GDM, o de promover a eqüidade através da redução da pobreza e aumento da cidadania em comunidades tradicionais costeiras de estados do nordeste brasileiro, o Marsol elabo-rou o projeto Beiradeiras da Maré: maricultura familiar solidária de grupos produti-vos femininos e quilombolas na região do baixo sul baiano. Seu objetivo é contribuir para a promoção da autonomia econômica e social de mulheres articuladas em grupos produtivos de maricultura familiar solidária, fortalecendo as organizações produtivas, buscando adaptações nas estruturas e técnicas de cultivo, com o intuito de viabilizar a participação de mais mulheres. Tudo isso com envolvimento de novos parceiros nacio-nais e internacionais.

Ao longo desse processo em que o Marsol passou de um único projeto para um programa composto por uma série de atividades inter-relacionadas, que convergem para o objetivo de desenvolver a maricultura no baixo sul baiano, a equipe de trabalho passou por intensas alterações. Até 2003, a equipe era composta por estudantes e pro-fissionais de biologia e medicina veterinária, ocupados basicamente com pesquisas e coletas, sem desenvolver trabalho que abordasse sistematicamente dimensões sociais. A partir de então, dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas da atividade foram ganhando espaço, demandando incorporação de profissionais e estudantes das ciências humanas e sociais aplicadas. A equipe passou a contar com estudantes, técni-cos e pesquisadores de áreas como administração, secretariado executivo, sociologia, economia, psicologia, além de veterinária, oceanografia e biologia.

Nesses anos, muitas pessoas passaram pela equipe do Marsol, sobretudo estudan-tes e jovens pesquisadores, o que revela outra característica de um projeto como este, desenvolvido no âmbito da universidade, que é a da formação de profissionais que podem vir a atuar profissionalmente na maricultura, o que pode contribuir para a via-

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bilidade da atividade na região.

3. Aprendizagem sobre gestão a partir da experiência no Marsol

Nesta seção, apresentam-se reflexões relativas à aprendizagem sobre gestão pro-piciada pela experiência do Marsol. Antes disso, cabe apresentar um pouco da abor-dagem que fundamenta a análise, a aprendizagem sócio-prática da aprendizagem (ou abordagem social), na qual se destaca a noção de comunidades de prática.

3.1 Abordagem sócio-prática da aprendizagem e comunidades de prática

De acordo com a abordagem sócio-prática (ou abordagem social) da aprendizagem, para se compreender como a aprendizagem acontece - seja por um indivíduo, um grupo ou uma organização - mais importante do que analisar processos cognitivos envolvidos, é analisar o contexto e as interações sociais que permitem que a aprendizagem ocorra. A aprendizagem é vista como prática social que é parte do processo de construção social da realidade, entre-laçada com a cultura e a política, presente em cada comportamento cotidiano (EASTERBY-SMITH; ARAUJO, 2001; LAVE; WENGER, 1991).

Abordagens mais tradicionais tendem a partir dos processos mentais e psicológicos envol-vidos na aprendizagem para compreender como ela ocorre e para sugerir como estimulá-la. Já na abordagem sócio-prática (ou social), embora se reconheça que elementos individuais e psi-cológicos estão sempre presentes, o foco está nas práticas que as pessoas compartilham e que geram oportunidade para que a aprendizagem aconteça. O conhecimento é visto como algo conectado a situações específicas, contextualizadas no tempo e no espaço, e não como um estoque armazenado no cérebro, em bibliotecas ou em computadores e que pode ser aces-sado quando se deseja. O que alguém sabe está profundamente ligado ao que esse alguém pratica, ao que lhe é útil ou necessário saber em cada situação específica (SCHOMMER, 2005).

Para analisar a aprendizagem sobre gestão no âmbito do Marsol, cabe observar o cotidia-no das ações e relações entre estudantes, pesquisadores, técnicos, maricultores e parceiros, nos contextos sócio-práticos nos quais interagem e compartilham práticas, visando à supera-ção de desafios concretos e relevantes para os envolvidos. Entende-se que para desenvolver uma nova atividade, como a maricultura familiar, que exige engajamento de pessoas, recursos e habilidades variadas, a orientação da gestão deve ser a de forjar contextos enriquecedores em termos de oportunidades de aprendizagem, aproveitando o conhecimento que cada um traz de seu contexto de origem e estimulando para que haja construção conjunta de novos saberes, com base no diálogo, no respeito mútuo e nas práticas que as pessoas compartilham.

Para identificar o que se tem aprendido no âmbito do Marsol, não basta, pois, efetuar a soma de aprendizagens individuais, mas sim observar em que medida as pessoas intera-gem entre si, o quanto são respeitadas pelos saberes que já trazem - quer sejam científicos, técnicos, tradicionais, populares ou políticos -, além de observar o que tem sido construído coletivamente, o que se reflete nos processos e instrumentos metodológicos e gerenciais de-senvolvidos e incorporados em cada prática.

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Na abordagem social da aprendizagem, um conceito fundamental é o de comunida-des de prática - grupos de pessoas que interagem regularmente, engajadas em ativi-dades compartilhadas, em função de um propósito comum, de um empreendimento coletivo. As comunidades de prática surgem naturalmente nos contextos nos quais as pessoas interagem. Na medida em que certo grupo desenvolve um domínio de co-nhecimento que lhe é próprio (algo que aquele grupo conhece profundamente e que o singulariza), seus membros criam um repertório próprio, aprendem uns com os ou-tros e vão desenvolvendo capacidades para lidar com problemas ou desafios de modo particular. A idéia de comunidades de prática enfatiza o caráter relacional, coletivo da aprendizagem e sua íntima relação com a prática, com aquilo que se faz de modo com-partilhado com outros (SCHOMMER, 2005).

As comunidades de prática estão em toda a parte e cada pessoa integra muitas delas, ao longo da vida, porém é difícil identificar uma comunidade de prática como um objeto, como algo a ser observado. Conhecer uma comunidade de prática exige envolver-se no grupo, participar das atividades com outras pessoas. Em geral, somente quem é parte da comunidade conhece sua especificidade, seu repertório (por exem-plo, uma expressão, uma piada que tem sentido apenas para os que viveram uma situ-ação juntos), o que a faz ser uma comunidade.

Embora as comunidades de prática surjam espontaneamente e, portanto, não pos-sam ser planejadas pelas organizações (SCHOMMER, 2005), é possível estimular inte-rações entre as pessoas, em torno de práticas e objetivos compartilhados, de modo que surjam comunidades entre as mesmas. Uma vez engajadas, as pessoas estabele-cem vínculos entre si e com o contexto sócio-prático no qual interagem, motivando-se a superar obstáculos e a construir novos conhecimentos, contribuindo para a aprendi-zagem – de si mesmas, das suas comunidades de prática e das organizações nas quais se inserem.

Uma das concepções que orienta a gestão do Marsol é a de propiciar interações entre os vários atores que podem contribuir para a viabilização da maricultura - produ-tores nas comunidades, técnicos governamentais, estudantes e pesquisadores ligados a UFBA, técnicos e produtores com experiência em maricultura em outros lugares no Brasil e no exterior. A partir das interações regulares entre os atores, em situações nas quais compartilham práticas e saberes, podem ser formadas comunidades de prática, que sigam em interação e contribuam para a institucionalização da maricultura. Em outros termos, a intenção é de “aprender fazer fazendo”, em situações nas quais os diferentes tipos de sujeitos envolvidos participam das decisões e compartilham saberes tradicionais, políticos e científicos, contribuindo para a formação dos envolvidos e permitindo a apropriação de co-nhecimentos por todos os sujeitos.

Para que essa intenção se realize nas inúmeras práticas que fazem o dia-a-dia de um pro-grama ou uma organização, os processos e instrumentos gerenciais utilizados, os estilos de li-derança, a qualidade e a intensidade da participação das pessoas nas decisões, os sistemas de controle e de avaliação, dependendo de como são utilizados, podem facilitar a aprendizagem e o alcance de objetivos coletivos ou gerar obstáculos e contradições que inibam a aprendiza-gem e dificultem a realização dos propósitos almejados.

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3.2 O que aprendemos sobre gestão social

A gestão do Marsol enquanto Programa - e as relações com múltiplos atores - é algo que ocupa a atenção da equipe há alguns anos. Quais os princípios que devem orientar a gestão? Quais os instrumentos mais apropriados para esse tipo de iniciativa? Como conviver com mo-dos de gestão burocráticos e tradicionais, priorizados por alguns financiadores e pela própria universidade? Como viabilizar a ênfase a metas e resultados trazida por certos financiadores? Como compatibilizar prazos exíguos dos projetos e tempos exigidos para a institucionalização de uma nova atividade produtiva? Como lidar com a complexidade das relações sociais, po-líticas, de gênero etc. nas comunidades pesqueiras envolvidas com a nova atividade? Como articular a diversidade de atores a ser envolvida na cadeia produtiva da maricultura? Como propiciar a formação de estudantes e técnicos que tenham base científico-metodológica e, ao mesmo tempo, participem da execução das atividades no campo?

Essas e outras questões fazem parte do repertório do Marsol, repertório este que vem sendo enriquecido com as parcerias forjadas no processo de conversão de projeto a programa. Uma das noções que vem se destacando é a de gestão social, introduzida como resultado da apro-ximação entre o ECOMAR e o CIAGS, a partir de 2004, acompanhada de outros termos como economia solidária e desenvolvimento sócio-territorial, próprias do repertório do CIAGS.

Para explorar a pertinência da noção de gestão social no contexto do Marsol, nos orienta-mos por três perguntas: 1) o que se entende por gestão social? 2) qual a relação entre gestão social e gestão de projetos que envolvem articulação interseto-

rial, interdisciplinar e internacional? 3) o que a experiência do Marsol tem permitido aprender sobre a construção da gestão social?

3.2.1 O conceito de gestão social

Gestão social é um termo ainda impreciso, uma noção em construção, um rótulo sob o qual estão diversas práticas sociais. Gestão social pode ser pensada em dois sentidos principais: 1) no sentido da finalidade da gestão, que corresponde ao tipo de demanda ou de objetivos a que está voltada; 2) no sentido do modo de gerir, ou seja, das maneiras como são construídos os processos gerenciais (SCHOMMER; FRANÇA FI-LHO, 2007).

No primeiro sentido, a gestão social prioriza as demandas e necessidades do social, da esfera social da vida, entendida como esfera de ação que se diferencia de outras, como a esfera econômica, a política ou a ecológica. Nesse sentido, a gestão social se diferencia da gestão privada, pois esta prioriza o econômico-mercantil e desenvolve seus próprios instrumentos e processos de gestão dando prioridade às finalidades de ordem econômica, sobretudo mercadológicas.

Ainda quanto à finalidade, gestão social se aproxima de gestão pública, já que o Estado moderno também tem como atribuição a gestão de necessidades do social, principalmente por meio das chamadas políticas públicas e políticas sociais. O que o termo gestão social sugere é que, para além do Estado, a gestão das demandas e ne-cessidades do social pode se dar pela própria sociedade, por meio das diversas formas

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de auto-organização, em maior ou menor articulação com o Estado. Isso não significa substituir o Estado, mas afirmar que a dimensão política da vida humana associada não se restringe ao âmbito estatal.

Gestão social corresponde, assim, a um modo de gestão originário de contextos sociais e organizacionais que não os do mercado ou do Estado, mas sim de uma esfera de ação pública não-estatal, no espaço de organização da sociedade civil e de suas in-terações com o Estado e o mercado. Nesse contexto de atuação, embora possa haver objetivos econômicos, estes costumam ser encarados como meios para atingir fins sociais. É precisamente esta inversão de prioridades entre o econômico e o social que define a especificidade da gestão social. Já o político ganha centralidade, uma vez que a noção de gestão social pressupõe ação política entre pessoas, organizações e inte-rorganizações - agentes públicos e privados que se articulam e complementam, num espaço compartilhado, em torno de objetivos coletivos (FRANÇA FILHO, 2004).

No que se refere à dimensão processual da gestão social, o foco está nos modos de exercer processos gerenciais e nos conteúdos desses processos, privilegiando dimen-sões e lógicas coletivas e autônomas, em relação a dimensões e lógicas instrumentais e econômicas. Gestão social teria como características centrais a construção coletiva de objetivos, processos e instrumentos de gestão, por meio do diálogo, da participação dos sujeitos, da autoridade para decidir compartilhada pelos envolvidos na ação, valo-rizando diferentes vozes e saberes em cada contexto específico. Nesse sentido, se di-ferencia da gestão privada, já que esta, ao orientar-se para uma finalidade econômica-mercantil, fundamenta as ações num “cálculo utilitário de conseqüências”, em função de objetivos privados, que costumam ser definidos de cima para baixo e em relação a um adversário. E se diferencia da gestão pública na medida em que esta se orienta prioritariamente por uma racionalidade técnica, instrumental, burocrática (SCHOM-MER; FRANÇA FILHO, 2007).

A noção de gestão social permitiria, tanto no que se refere às finalidades quan-to aos processos de gestão, não reduzir o político ao governamental e não reduzir o econômico ao mercantil. A gestão social teria potencial, ainda, para contribuir para avanços em termos de cidadania e de cultura política na sociedade, repelindo práticas de poder despóticas ainda vigentes, heranças de uma cultura política clientelista e personalística (SCHOMMER; FRANÇA FILHO, 2007).

Em meio a esse potencial, há também desafios colocados à gestão social enquanto modo e enquanto campo de gestão. É crucial a abertura para mecanismos gerenciais inovadores, que favoreçam o diálogo entre vozes múltiplas, a participação das pessoas, a transparência, a visibilidade, a avaliação das práticas e a articulação entre Estado, empresas e organizações da sociedade civil (TENÓRIO, 2004). A própria definição dos objetivos ou fins sociais e dos meios para alcançá-los exige a participação de diversos atores, visões e interesses, em interação por meio de relações dialógicas, esta uma característica central da definição de gestão social.

Nesse sentido, o adjetivo social pode ser entendido, basicamente, como espaço de relações sociais onde todos têm direito à fala (GONDIM; FISCHER; MELO, 2006). Tenó-rio (2004), com base no conceito de racionalidade comunicativa, de Jürgen Habermas, concebe a gestão social como processo gerencial dialógico, no qual os participantes da ação compartilham a autoridade para decidir. Este autor acredita que ações baseadas

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na racionalidade comunicativa desenvolvem a capacidade dos homens para o diálogo, ampliando a intersubjetividade e contribuindo para a evolução social. A ação comuni-cativa seria, portanto, a base da gestão social. Tal ação se efetiva na articulação de va-lores, no agir intersubjetivo e na definição coletiva de normas por todos os implicados, em lugar de articular pessoas para atingir objetivos já definidos, em prol de interesses privados ou individualizados.

3.2.2 Gestão social em uma iniciativa que envolve articulação intersetorial, internacional e interdisciplinar

A noção de gestão social nos parece oportuna em iniciativas que envolvem articula-ção entre setores, entre países e entre disciplinas do conhecimento científico, sobretu-do considerando o objetivo de implantar uma nova atividade - a maricultura, praticada por famílias, orientada por princípios de cooperação e solidariedade na cadeia produ-tiva. Embora o fundamento da proposta esteja na dimensão econômica, não se resume a ela, ou melhor, evidencia que o econômico está totalmente imbricado com o técnico, o social, o ambiental, o cultural, o político.

Para viabilizar a atividade, é preciso trabalhar com todas essas dimensões ao mes-mo tempo, o que exige diferentes conhecimentos, competências e disposição para a cooperação. Ao recuperar a relação entre o econômico, o social e o político e funda-mentar-se no diálogo e na articulação de diferentes saberes, a noção de gestão social parece propícia para implantar a nova atividade, já que é preciso contar com o engaja-mento de distintos setores e organizações, em diferentes escalas de atuação.

Entre os setores e atores envolvidos, temos: na universidade (UFBA), ECOMAR e CIAGS, além do Instituto de Biologia como um todo, a Escola de Administração, labo-ratórios de pesquisa, o setor de convênios, a reitoria, a pró-reitoria de extensão, entre outros; em outras universidades, pesquisadores dedicados à maricultura e à gestão de projetos de extensão; no âmbito governamental, órgãos técnicos, políticos e de fomen-to, com diferentes características e âmbitos de atuação, como SEAP/MPA, CNPq, Bahia Pesca, órgãos ambientais, secretarias do governo estadual e prefeituras dos municípios abrangidos pelo Programa; do setor empresarial, desde financiadores como a Petro-bras, até fornecedores de equipamentos e matérias-primas e clientes para os produtos cultivados; o SEBRAE - organização brasileira de apoio a micro e pequenas empresas que atua nos municípios do baixo sul baiano; a fundação de apoio por meio da qual são intermediados recursos financeiros do projeto; ONGs parceiras e cooperativas na região do baixo sul.

Essa diversidade de relações exige capacidade de articulação, de diálogo, de res-peito aos saberes e às competências de cada organização, de modo que possam com-partilhá-los em prol de objetivos comuns. A gestão dessas relações é algo desafiador, complexo e, por vezes, revela-se além da capacidade de uma organização situada na universidade, como argumentaremos mais adiante.

Outro âmbito de articulação no qual a noção de gestão social pode ser apropriada é o da relação entre as diferentes disciplinas do conhecimento científico e destas com os saberes não-científicos (leigos, populares, tradicionais). A experiência do Marsol

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evidenciou, ao longo do tempo, a necessidade de contar com conhecimentos de dife-rentes áreas - ciências naturais, humanas e sociais e articulá-los entre si e com conheci-mentos não-científicos, dos estudantes, técnicos e parceiros envolvidos no Programa.

Outra linha de análise é a da relação entre instrumentos e processos de gestão pública e empresarial na gestão de projetos intersetoriais. Nos primórdios do Marsol, ao integrar uma iniciativa que envolveu dois países - Brasil e Canadá, universidades e órgãos de governo, os instrumentos de gestão obedeciam tanto à lógica da administra-ção pública quanto a uma lógica de gestão de projetos em rede, que exigia a interação, a troca de experiências, a aprendizagem compartilhada entre os vários integrantes. Era preciso estimular interações entre os parceiros da rede e com as comunidades locais, sem deixar de obedecer a princípios tradicionais de eficiência, transparência, accoun-tability, equidade, cumprimento de prazos e compromissos e responsabilidade no uso dos recursos.

Foi um período de intensa aprendizagem, tanto pelos métodos de planejamento e controle introduzidos pela unidade gestora do projeto, que ficou localizada no Cana-dá, como pelo modo com que a própria rede local foi aprendendo a se relacionar, a compartilhar conhecimentos sobre maricultura e sobre gestão. No que tange à relação com as comunidades locais, no entanto, a equipe vivia dificuldades, o que a motivou a buscar parceria com um centro dedicado à gestão.

Na fase seguinte, em que se iniciou uma relação intensa entre duas áreas da uni-versidade - ciências biológicas e humanas, o desafio principal da gestão estava em aproveitar o potencial de contribuição de cada área, os repertórios, os modos de per-ceber e gerir relações sociais e projetos. Foi um momento rico, de intensa troca e de muitos conflitos. Havia dificuldade de compreender as funções e capacidades de cada pessoa envolvida. A gestão obedecia, em grande parte, à lógica do financiador - CNPq - órgão de fomento à pesquisa do governo federal brasileiro, intensamente focalizada na prestação de contas financeira. Embora fossem utilizados instrumentos de avaliação de resultado e de processo, a prestação de contas era orientada por uma racionalidade técnica instrumental.

Outro tema de debates intensos nesse período foi o papel da liderança. O projeto era coordenado por um professor da área de ciências biológicas, e por três graduados - um de ciências biológicas e dois de ciências sociais. Havia dificuldades de se estabe-lecer claramente papéis, funções, objetivos e métodos de trabalho que aproveitassem a riqueza de conhecimentos trazidos por cada pessoa. Em relação a instrumentos de planejamento, controle e avaliação, não havia uma linha clara, gerando dubiedade e contribuindo para frustração de expectativas. Havia ali muitas pessoas “bem-intencio-nadas”, potencialmente dispostas a contribuir para uma causa comum e com a apren-dizagem de todos, porém se observava que sem contar com uma base metodológica e gerencial a partir da qual essa aprendizagem pudesse ocorrer, a sensação era de desperdício de potencial dos conhecimentos e experiências ali presentes.

Em diversos momentos, integrantes da equipe desejavam postura mais firme da coordenação, até pela dificuldade de definir e assumir os próprios compromissos. Uma das observações naquela situação é que, muitas vezes, é mais cômodo obedecer, aten-der a uma norma sem questioná-la, sem assumir o ônus da participação e da respon-sabilidade pelas escolhas. Aprendeu-se, também, que gestão dialógica, democrática e

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na qual o econômico não é o fim principal, não significa que esteja ausente a necessidade de de-finição de metas, de responsabilidades e de instrumentos de controle; processos compartilhados exigem elevado grau de comprometimento e responsabilização dos envolvidos.

Na fase seguinte, que envolveu parceria entre a Petrobras e a UFBA, houve inúmeras, quase insuperáveis, dificuldades de ordem legal-burocrática, ao articular estas duas gran-des organizações, cada qual com procedimentos próprios, que resultaram no retardo de mais de um ano na liberação de recursos já aprovados. É quase inacreditável a quantidade de entraves, idas e vindas de papéis, declarações, assinaturas etc. que pode acontecer entre duas ou três organizações, para viabilizar a liberação de recursos.

Esses fatos mostram como diferentes lógicas e procedimentos de gestão se interpene-tram, na medida em que se lida com diferentes parceiros. Por mais que se pretenda avançar na gestão social, parâmetros de racionalidade técnica-instrumental se fazem presentes, seja pelo reconhecimento de sua contribuição, seja por imposição associada aos contextos insti-tucionais em que se atua, nem sempre agregando valor à qualidade da gestão.

3.2.3 Aprendizagem sobre a construção da gestão social com base na experiência no Marsol

Procurou-se evidenciar como a noção de gestão social parece oportuna para um programa como o Marsol e como esta vem sendo acolhida como referência importante no Programa, ressaltando que isso não significa que sua construção prática seja um processo simples. Com base no que foi mencionado e nas avaliações realizadas por participantes do Programa, com base em situações vividas por eles, são delineados a seguir alguns dos aprendizados sobre gestão social que a experiência tem permitido, além de outros já citados.

Autonomia e responsabilização coletiva

• O respeito aos saberes de cada pessoa e o estímulo a que os sujeitos sejam autônomos não significa que cada pessoa pode fazer, isoladamente, o que acha correto, em cada situação. Significa que cada pessoa deve ser estimulada a manifestar-se, a participar das decisões e a responsabilizar-se pelo cumprimento do que foi acordado, respeitando os saberes dos demais e os processos coletivos.

Marcas de modelos tradicionais de gestão e sua possível transformação

• Disposição para o diálogo, para o compartilhamento e para assumir responsabilidade in-dividual e coletiva são características que costumam ser minimizadas em processos mais tradicionais de gestão, de cunho burocrático, centralizador, autoritário ou paternalista ou, ainda, que priorizam o desempenho financeiro e os resultados individuais. As marcas dessas características de modelos tradicionais de gestão são profundas nas pessoas e nas organizações. Transformá-las exige criatividade e ousadia, ao mesmo tempo em que exige humildade, dedicação, disciplina e reflexão contínua.

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A partilha do poder é exigente

• Compartilhar poder é algo exigente, não apenas para quem abre mão dele, mas para quem passa a exercê-lo. Obedecer a uma liderança autoritária ou a uma norma rígida sem questioná-la pode ser mais cômodo do que a possibilidade de decidir e responsa-bilizar-se pelas escolhas. Ao participar das decisões, cada um leva os próprios saberes e é chamado a respeitar e considerar o saber do outro, a abrir mão de concepções arraigadas e a comprometer-se genuinamente com o processo. Embora a gestão social tenha vocação democrática, a efetivação desse potencial depende de cada contexto específico. Depende da maneira pela qual cada sujeito envolvido em uma ação exerce a capacidade de expressar e defender seus interesses, ao mesmo tempo em que este-ja disposto a aprender, a compartilhar, a construir novas possibilidades, assumindo a responsabilidade que o processo compartilhado exige.

Gestão social também se faz com metas, padrões e controle

• Praticar gestão social não significa abrir mão de resultados concretos, de metas e pro-cedimentos claros, de sistemas de planejamento, transparência, avaliação e responsa-bilização. Tais instrumentos, processos e objetivos devem ser definidos coletivamente, aproveitando as visões de cada participante e comprometendo-os em todas as etapas. O desafio é construir instrumentos que façam sentido em cada contexto, que sirvam aos propósitos a que se destinam e que sejam coerentes com valores e princípios da organização ou projeto no qual são utilizados.

• Instrumentos da gestão empresarial e da gestão pública não devem ser desprezados na gestão social. Em certa medida, é preciso conviver com eles, sobretudo na relação com parceiros, ao mesmo tempo em que se aproveita o que podem trazer de contri-buição ao contexto em que se pretende fomentar a gestão social, adaptando-os.

Conciliação de diferentes características e tradições de gestão

• O desafio de conciliar características institucionais, culturais e organizacionais de cada um dos parceiros envolvidos, oriundos de diferentes regiões e setores, condicionados por lógicas administrativas distintas, é desafiador. As dificuldades parecem instrans-poníveis, em algumas situações. Na prática, tende-se a priorizar o atendimento a cri-térios daqueles que tem mais poder para impor prioridades e procedimentos, quer sejam os financiadores ou os órgãos intermediários que viabilizam (ou não) a liberação de recursos.

3.3 O que aprendemos sobre as bases de sustentação de um programa

A sustentabilidade de qualquer iniciativa social, aqui entendida no sentido de sus-tentação, de bases para a sobrevivência e desenvolvimento, equilibra-se na confluência de diversos elementos, os quais variam em função de seu propósito central. No caso do

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Programa Marsol, o qual tem como objetivo central o desenvolvimento da maricultura familiar na região do baixo sul da Bahia, as condições para sustentação reúnem fatores de natureza distinta: político-institucionais, financeiros, técnicos, sócio-práticos e cognitivos, eco-nômicos, ambientais e culturais.

Oriundo de um conjunto de iniciativas ou projetos, pode-se dizer que o Programa, enquan-to tal, ainda não alcançou estágio avançado em sustentabilidade, assim como ocorre com seu propósito, a maricultura familiar no baixo sul. Embora sejam constantes esforços e estratégias para mobilizar e articular recursos diversos, construir parcerias e buscar aprimoramento na gestão, sobretudo para assegurar o acompanhamento técnico junto aos produtores, as bases de sustentação ainda são frágeis. Reconhecido isso, cabe analisar o trabalho que vem sendo feito para fortalecê-las.

O ponto de partida, neste sentido, respalda-se na questão institucional. As ações que in-tegram o conjunto do Programa foram idealizadas e pleiteadas no âmbito de uma unidade de pesquisa da UFBA e, aos poucos, geraram institucionalidade própria, sob o rótulo Marsol, articulando diferentes formas de atuação, sempre com forte viés universitário.

No âmbito das articulações intra-institucionais que conformam o Marsol, destaca-se aque-la entre o ECOMAR, do Instituto de Biologia da UFBA e o CIAGS, sediado na Escola de Admi-nistração da UFBA. No âmbito das relações inter-institucionais, muitas foram concretizadas ao longo do tempo, envolvendo diferentes setores de atuação e capacidades: CIDA (agência canadense para o desenvolvimento), CNPQ (órgão governamental de fomento à pesquisa), Petrobras (empresa de petróleo e gás que investe recursos em questões coletivas), SEAP/MPA (órgão do governo federal voltado à aqüicultura e à pesca, MDA (Ministério do Desenvolvi-mento Agrário), Bahia Pesca (empresa estadual na área de pesca e aqüicultura), vários outros órgãos estaduais e federais, além de prefeituras, colônias de pescadores e associações na re-gião do baixo sul, com relação direta e indireta com pesca e mariscagem. A idéia que orienta a gestão do Programa é de que a diversidade de articulações, envolvendo diferentes setores e âmbitos de atuação, é necessária para fortalecer o próprio Marsol e, assim, contribuir para seu propósito. Porém, manter essas articulações e torná-las efetivas para se atingir metas comuns é algo desafiador.

A introdução e consolidação de uma nova atividade (maricultura familiar) em certo ter-ritório (baixo sul) evidencia a pertinência das estratégias de ação social em rede. Pensando a cadeia de valor da atividade como um todo, desde as questões ambientais e técnicas da produção, até a comercialização, passando pelo financiamento, organização de produtores, logística etc., é necessário trabalhar cada articulação da grande rede que conforma a ativi-dade.

Realizar um trabalho social em rede é um grande desafio, o qual deve ser pautado por princípios de descentralização, participação social e intersetorialidade (Bourguignon, 2001). Se isso é verdadeiro inclusive para atividades de caráter produtivo-econômico mais tradi-cional, mostra-se ainda mais pertinente em contexto que envolve exclusão social. Nesse sentido, Ckagnazoroff et al. (2005) ressaltam que a intersetorialidade constitui um tipo de integração que demanda articulação de saberes e experiências no planejamento, na realiza-ção e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações complexas visando ao desenvolvimento social. Isso corrobora afirmações de Inojosa (2001) no sentido de que os resultados integrados definam o princípio da integração entre diferentes setores.

São muitos os desafios para articular vários parceiros em torno de um interesse comum,

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sem perder de vista a cultura e realidade da comunidade local e de cada instituição envolvi-da. Nesse sentido, Magalhães e Corrêa (2004) pontuam que, nas estratégias intersetoriais, deve-se procurar respeitar especificidades de cada público e situação, o que exige diferen-tes estratégias de inclusão dos envolvidos, respeitando vulnerabilidades e potencialidades.

Outro eixo de sustentação é o da mobilização de fontes diversas de recursos financeiros, eixo este atrelado, em parte, ao das articulações institucionais. Na sua história de configu-ração enquanto Programa, o Marsol foi composto de diversos projetos sociais, elaborados de acordo com oportunidades surgidas, seguindo exigências e padrões de cada fonte finan-ciadora, as quais diferem quanto ao grau de publicidade exigido, ao grau de intervenção esperado sobre certa realidade e quanto à ênfase a resultados qualitativos ou quantitativos.

Na gestão dos recursos financeiros que contribuem para a sustentação de um programa e da causa que defende, uma das principais limitações se refere aos prazos para aprovação, liberação e gasto dos recursos. Muitos financiadores definem prazos relativamente curtos (12 ou 24 meses) frente aos propósitos grandiosos que se espera obter. A definição dos prazos costuma ser feita a priori, sem considerar a complexidade dos objetivos, o curso das ações enquanto ocorrem, a natureza das instituições envolvidas e do contexto sobre o qual se pretende intervir. Outro desafio costuma ser o tempo decorrido entre a data de apro-vação do projeto e a efetiva liberação dos recursos, geralmente por entraves burocráticos, inexperiência dos envolvidos, entre outros fatores, o que acarreta desgastes nas relações entre pessoas e instituições e compromete o encadeamento das ações.

Mais um pilar de sustentação do Programa e de seus propósitos é o da viabilidade eco-nômica da maricultura familiar. Comprovar que a maricultura familiar efetivamente gera renda para as comunidades envolvidas é elemento crucial para manter a credibilidade e continuidade das ações. O discurso dos vários agentes envolvidos está pautado, em gran-de medida, na idéia de que essa atividade pode constituir alternativa de complemento de renda de populações afetadas pela redução dos estoques pesqueiros e por outros fatores já descritos. A despeito das inúmeras dificuldades na viabilização da cadeia de valor da ativida-de, algo que demanda trabalho continuado em longo prazo, é fundamental que se evidencie o potencial de geração de renda da atividade, o que ainda não ocorreu integralmente no Baixo Sul.

A viabilidade técnica da atividade, por sua vez, é condição para sua implantação na re-gião. Essa viabilidade depende de condições propícias ao cultivo de certo marisco - ostras, neste caso. Mas isso não é suficiente. É preciso que instrumentos e técnicas de cultivo e o conhecimento sobre como utilizá-los sejam construídos coletivamente por pessoas do lo-cal, considerando tradições e saberes sobre o ambiente da região, combinadas aos saberes trazidos de outros contextos – da universidade, de iniciativas similares em outros países (Canadá, por exemplo) ou regiões brasileiras.

Nesse sentindo, aspectos cognitivos e sócio-práticos da aprendizagem são levados em consideração, o que passa por modelos de capacitação da equipe técnica universitária e dos potenciais maricultores que propiciem a interação em torno de práticas compartilhadas, nas quais se trabalham conhecimentos não apenas do cultivo em si, mas de todas as etapas da cadeia de valor - organização dos produtores, financiamento de equipamentos e insumos, áreas e estruturas de cultivo, tratamento, armazenagem, transporte, comercialização etc, orientados por princípios de solidariedade em toda a cadeia. Para tanto, um dos aspectos fundamentais é o da linguagem, do repertório que cada envolvido traz para a relação, bem

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como o repertório que vai sendo construído em cada contexto de interação, mesclando refe-renciais prévios de uns e de outros e, sobretudo, palavras, histórias, modos de fazer ou técni-cas que fazem sentido em seu contexto específico de aplicação, na própria prática.

O respeito às questões ambientais é outro elemento importante para a sustentação do Programa e da atividade. Deste modo, o apelo à sustentabilidade ambiental aparece de ma-neira transversal em todas as atividades desenvolvidas, considerando as condições de des-gaste do ambiente e, paradoxalmente, reconhecendo a necessidade de convivência com as atividades de extração realizadas historicamente na região.

Em complemento, a noção de respeito e valorização cultural é outra que define a possibi-lidade de sustentação do Marsol. Ao propor o desenvolvimento da maricultura familiar (em especial da ostreicultura) em um contexto tradicional, introduz-se uma nova atividade que contradiz com a prática do trabalho extrativista e as relações sociais que o acompanham. É necessário considerar, observando e aprendendo a cada dia, questões de gênero, relações de trabalho e modos de relação entre pessoas e entre estas e o meio ambiente, em cada contexto específico.

Figura 1: Natureza dos fatores de sustentação do Programa MarsolFonte: Elaboração própria

Em síntese, a construção da sustentabilidade de um programa como o Marsol per-passa por várias dimensões, constituindo-se como um conjunto integrado de elementos a serem considerados na gestão e que podem contribuir para o desenvolvimento da maricultura familiar solidária no baixo sul baiano.

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3.4 O que aprendemos sobre construção da legitimidade

A maneira como cada um desses elementos de sustentação do Programa e da ativi-dade da maricultura familiar na região são trabalhados influencia diretamente a cons-trução da identidade do Marsol - o que é, qual seu propósito, sua finalidade, como se configura - e da legitimidade que sustenta tal identidade.

Apesar de o Marsol estar sustentado em articulações intersetoriais, é inegável seu forte viés universitário, o que implica em certo modo de perceber o mundo e agir sobre ele e define também as expectativas dos parceiros em relação ao Marsol. Cada um dos envolvidos - produtores, governos, ONGs, empresas - ao entrar em contato com uma iniciativa sediada na universidade, tende a esperar certo tipo de contribuição, notada-mente a contribuição técnica, metodológica e de formação profissional para viabilizar a atividade. No escopo de cada projeto que compõe o Programa, no entanto, muitas vezes estão incluídas atividades que vão muito além das capacidades e competências típicas de uma instituição de caráter universitário.

O conjunto de ações e articulações que é necessário para trabalhar cada aspecto da cadeia de valor de uma atividade produtivo-econômica (envolvendo elementos am-bientais, culturais, políticos, sociais e econômicos) exige combinação de capacidades técnicas e políticas. Tradicionalmente, da universidade se espera a contribuição técni-ca. É este tipo de competência que costuma ser enfatizado na pesquisa, no ensino, na extensão, embora já se admita, no campo da administração, que técnica e política são dimensões totalmente imbricadas na construção do conhecimento e na atuação profis-sional. Na prática de uma atividade como a do Marsol, fica evidente que a técnica, isola-damente, não viabiliza a nova atividade. Assim, é necessário, por um lado, desenvolver capacidades políticas no âmbito da universidade (e do Programa, em especial), e contar com parceiros que, tradicionalmente, agem pautados em competências políticas.

A legitimidade do Marsol e da nova atividade, a longo prazo, tende a depender, também, do grau de êxito na formação de quadros técnicos que dêem sustentação à ati-vidade no futuro, incluindo-se aí não apenas aqueles que passaram pelos bancos mais tradicionais das salas de aula, mas também os maricultores envolvidos nas atividades em campo. Nesses quadros técnicos, podem estar profissionais oriundos das ciências naturais, humanas e sociais aplicadas que (re) conheçam o valor de cada um deles e saibam os meios para articulá-los.

Outro conceito importante na sustentação e construção da legitimidade do Marsol re-fere-se ao território, ou ao recorte territorial dos problemas e demandas da sociedade. A experiência no Marsol vem gerando aprendizagem no sentido da importância de trabalhar de modo consistente, ao longo do tempo, em um mesmo território, envolvendo as mesmas pessoas e agregando outras, construindo relações de confiança, gerando compromisso dos envolvidos e mais proximidade. Isso propicia o surgimento de comunidades de prática que envolvam tanto universitários como produtores e parceiros locais, comunidades essas que tendem a ser essenciais para a aprendizagem, para a legitimidade e para a sustentação dos processos de desenvolvimento propostos, a partir da maricultura familiar.

A continuidade do trabalho em uma mesma região tende a reduzir o desgaste gerado por inúmeros projetos sobrepostos em uma mesma localidade, conduzidos por diferentes instituições, e minimizar efeitos decorrentes dos prazos curtos dos financiamentos. Ao tra-

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balhar nas mesmas localidades ao longo do tempo, o Marsol consegue dar um mínimo de continuidade às ações, embora longe do que seria ideal, ou do que é necessário para garan-tir o desenvolvimento da maricultura familiar no baixo sul.

3.5 O que aprendemos sobre articulação interdisciplinar

Aqui buscaremos comentar brevemente sobre como a articulação entre disciplinas, se-tores e países pode contribuir para que uma experiência como a do Marsol propicie avan-ços na interdisciplinaridade. Partimos da observação de Luck (1995) sobre o processo de construção da interdisciplinaridade, no qual se procura estabelecer o sentido da unidade na diversidade, superando a visão restritiva de cada área de conhecimento e propiciando meios e formas de diálogo que permitam ultrapassar a barreira estanque do conhecimento de cada área.

As experiências em torno da maricultura familiar solidária têm constituído campo pro-pício para a construção da interdisciplinaridade, a partir das interações entre as instituições parceiras, tanto por seus avanços como por seus entraves, considerando que se aprende também com os equívocos. Observa-se a mútua influência entre intedisciplinaridade e in-tersetorialidade, na medida em que as competências tradicionalmente “disciplinarizadas” são visíveis também no perfil de cada instituição parceira. Ao estarem em contato, diferen-tes áreas de competência têm oportunidade de interação e avanços compartilhados.

A interação internacional propiciada por projetos que compõem o Marsol representa mais uma oportunidade de interdisciplinaridade. Do Canadá, por exemplo, vêm avançados conhecimentos sobre técnicas de cultivo, bem como incentivo por se desenvolver conheci-mentos sobre gestão de conflitos, gestão social, relações de gênero, entre outros.

Como foi visto, são várias as áreas do conhecimento científico envolvidas no Marsol - ci-ências biológicas, humanas e sociais aplicadas. Além da importância de estarem articuladas entre si, é fundamental que se articulem com saberes tradicionais das pessoas envolvidas nos locais (saberes sobre pesca e mariscagem, sobre características naturais da região, so-bre elementos políticos e culturais da região) e com os conhecimentos específicos trazidos por cada parceiro. A experiência no Marsol vem demonstrando que a articulação entre sa-beres científicos e não-científicos contribui diretamente com a construção da interdiscipli-naridade, conforme analisam Schommer et al., 2009). As práticas no contexto produtivo, en-volvendo diferentes sujeitos, exigem conhecimentos relativos a questões sociais, políticas, culturais, ambientais, econômicas. Estas dimensões não separadas na realidade, exigindo conhecimentos integrais.

Nessas relações de intermediação, um dos desafios é o da linguagem, dos repertórios que cada sujeito e cada campo do conhecimento trazem para a cena. Outro desafio é o da valorização do saber do outro, a disposição para o diálogo e para a aprendizagem com o outro. Algo aparentemente natural, mas profundamente comprometido por anos, décadas, séculos de fatiamento do conhecimento científico em disciplinas e de cisão entre os saberes científicos e os saberes populares ou leigos. Há, ainda, desafios de ordem institucional e me-todológica, no sentido de propiciar a efetiva articulação de saberes e o equilíbrio de poder entre sujeitos, algo analisado por Schommer e Santos (2007).

Entre as atividades por meio das quais se busca construir a interdisciplinaridade, estão:

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reuniões e visitas técnicas, grupo de discussão, oficinas, capacitações e seminários. São tam-bém importantes os intercâmbios - entre pessoas das diferentes localidades do baixo sul en-volvidas no Programa, bem como entre pessoas de diferentes regiões do Brasil e entre Brasil e Canadá. Intercâmbios esses entre maricultores, técnicos, pesquisadores e estudantes.

Dentre essas atividades, destacam-se no Quadro 1, como exemplo, algumas delas, pro-movidas por diferentes parceiros, com o intuito de proporcionar a prática da interdisciplina-ridade entre os diversos parceiros que compõem a equipe.

Tipos de práticas de interdisciplina-

ridade

Local de Execução

Participantes do Marsol

Parceiro Proje-to/programae financiador

Ano

Intercâmbio de ostreicultores canadenses - baixo sul

Taperoá-BaBarra dos Carvalhos-Nilo Peçanha-Ba.

ProdutoresTécnicosEstudantesPesquisadores

BMLP-CIDA 2001

Intercâmbio de tecnologia entre produtores do Bai-xo Sul: de Taperoá, Barra dos Carva-lhos e Batateira

Batateira

Produtores TécnicosEstudantesPesquisadores

Projeto de Ges-tão de Recursos Ambientais do Município de Cairú – FNMA

2002

Oficina Instrumen-tos de Pesquisa Social e Aprendiza-gem em Experiên-cias de Imersão e Interação; Seminá-rio de Extensão da UFBA

Salvador-Ba

TécnicosEstudantesPesquisadores

Projeto Marsol-Petrobras 2008

I Seminário Tecno-lógico:Biologia, Pesca e Cultivo de Molus-cos de Areia

Recife-Pe

ProdutoresTécnicosEstudantesPesquisadores

Projeto Gente da Maré – CIDA 2009

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Intercâmbio mari-cultora do Baixo-Sul - comunidades de ostreicultores canadenses

Vancouver-Canadá

Produtora de Barra dos Carvalhos-Ba

Projeto Gente da Maré – CIDA 2009

Quadro 1 - Exemplos de práticas de interdisciplinaridade e intersetorialidade envolvendo diferentes parceiros do Marsol.Fonte: elaboração própria.

Desde o Programa BMLP, procurou-se introduzir a prática da integração de saberes, pro-porcionando atividades que permitissem a troca de experiências entre os vários componen-tes das equipes dos projetos, no âmbito regional, nacional e internacional. A partir dessas experiências, os projetos seguintes têm se preocupado em introduzir como rotina a prática da interdisciplinaridade e desenvolver junto aos parceiros maior adesão na intersetorialida-de, embora haja muito a avançar nesse sentido, conforme se aponta neste trabalho e em outros textos já publicados sobre o Marsol.

4. Considerações finais

A análise do Programa Marsol relativa a aspectos da gestão intersetorial, interdisciplinar e internacional em prol do desenvolvimento sócio-territorial evidencia uma experiência fértil em oportunidades de aprendizagem. Experiência esta que engloba diferentes projetos, parcerias locais e de outras regiões do País e do mundo, integrando insti-tuições e profissionais de diferentes áreas. Tudo isso tem gerado avanços de cunho interdisciplinar e intersetorial, o que deve contribuir, pelo menos no campo das ex-pectativas, para a consolidação da maricultura familiar no baixo sul baiano.

Há, porém, inúmeras dificuldades que permeiam o cotidiano das práticas pelas quais se pretende avançar na aprendizagem sobre gestão social, interdisciplinaridade e intersetorialidade, como se procurou aqui relatar.

Ao finalizar, recuperam-se pontos aqui tratados e sugerem-se outros que emergem das reflexões e constituem possíveis linhas de investigação no futuro.

Um elemento relevante no contexto estudado é o da influência internacional, es-pecialmente do Canadá, para disseminação da maricultura no Brasil, bem como da intersetorialidade e da interdisciplinaridade potencializadas pela articulação interna-cional. Isso é evidenciado pela integração entre universidades e governos, no Brasil, e universidades, governos, agências de desenvolvimento e cooperação e ONGs, no Canadá, em diferentes áreas de conhecimento.

Ao observar as contribuições e os potenciais das relações internacionais e inter-setoriais, é evidente, também, que há dificuldades persistentes em compartilhar co-nhecimentos, recursos e experiência profissional de diferentes setores, as quais são influenciadas por fatores como: indefinição de papéis de cada parceiro, falta de po-der de decisão de representantes de cada instituição nas atividades em conjunto, rotatividade de pessoas envolvidas em cada instituição (sem alguma estratégia de

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continuidade quando há mudança de gestores). Além disso, entraves relativos a trâ-mites burocráticos de cada instituição parceira, bem como falta de experiência e de institucionalização de certos procedimentos, gera atrasos para liberação de recursos e para execução de atividades, tornando lento o andamento dos processos e afetando sua legitimidade e sua sustentabilidade.

Esta observação nos remete à reflexão sobre as temporalidades de iniciativas como esta que foi analisada. As mudanças sociais muitas vezes esperadas a partir de projetos e/ou programas de intervenção em certo contexto não costumam ocorrer em curto espaço de tempo, exigindo amadurecimento, relações de confiança, dedicação, persistência, recursos e metodologias apropriadas. Os limites de prazos dos projetos, de acordo com critérios de cada financiador, não costumam ser compatíveis com os resultados que pretendem, exigindo articulação entre mais de um projeto na mesma região e temática. Além disso, as pessoas envolvidas nos projetos, como os universi-tários, por exemplo, nem sempre dispõem do tempo necessário para o engajamento que seria ideal para a própria formação e para a sustentabilidade do Programa.

Todos estes fatores devem ser considerados em processos que pretendem contri-buir para o desenvolvimento sócio-territorial, o que nos leva a reforçar a importância da avaliação de programas similares ao Marsol. A avaliação deve ser parte inerente ao processo, articulando o tempo todo reflexão e ação, de modo mais sistematizado ou menos, mas sempre presente, promovendo correções de rumo, revisão de pressupos-tos e adaptação de procedimentos.

Nesse sentido, reforçamos a percepção de que a gestão social pode ser um modo de gerir plausível em programas dessa natureza, embora tenhamos constatado, a par-tir da experiência no Marsol, que gestão social não é um tipo ideal, com característi-cas perenes em qualquer situação. Sua pertinência e suas características dependem do contexto em que é exercida. A gestão é um fenômeno sempre contextualizado, situado na prática e relativo aos significados de instrumentos e processos para cada sujeito envolvido.

Para discussão futura, um ponto importante no contexto estudado é a capacidade e a legitimidade que processos endógenos podem alcançar diante das possibilidades de ação para a mudança social, em processos de desenvolvimento sócio-territorial. Parece-nos que modelos exógenos, oriundos de contextos distantes do território “sobre” o qual se pre-tende agir, continuam fortes. Possivelmente, sirvam mais para garantir certo status quo e a idéia de que a intermediação institucional é importante para mudanças em certo contexto específico, do que para efetivamente desencadear mudanças. Muitas vezes, na condução de projetos e programas, são desconsiderados ou manipulados indicadores que negam mo-delos que se insiste em propor e indicam a necessidade da participação direta das bases.

Outro risco evidente em processos como o que foi aqui analisado, de extensão acadê-mica, é “confundir” pobreza, desigualdade, exclusão ou opressão com tradição. Isso pode contribuir para negar o processo natural de transformação social e de (re) significação das práticas diante de novas situações, ao tempo em que mantém um discurso romântico e cultural da pobreza e das desigualdades existentes.

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A Residência Social como experiência de aprendizagem situada e significativa em cursos de gestão social e gestão pública

A Residência Social como experiência de aprendizagem situada e significativa em cursos de gestão social e gestão pública

Rosana de Freitas BoullosaMariana Leonesy da Silveira Barreto

1. Introdução

A busca por uma “dimensão prática” parece orientar muitas das atuais propostas pedagógicas de cursos pós-graduação, lato e stricto sensu, e, mais recentemente, de cursos de graduação no País. Parte desta busca pode ser atribuída ao crescente apelo provocado por expressões como “formação profissionalizante”, “formação tecnológica” ou mesmo “alta aderência ao mercado” junto ao potencial alunado, que vê em tais cursos a possibilidade de obter oportunidades junto a um mercado a priori considerado como de alta competitividade e de pouca abertura para com aqueles que desejam a temida primeira chance.

Outra parte dessa busca por uma dimensão prática, todavia, pode ser atribuída a um movi-mento antigo, mas que agora começa a ganhar novos contornos no País, de novas experimenta-ções na relação entre ensino e aprendizagem, a partir do reconhecimento da confluência de múl-tiplos saberes, de origem multiatorial, e da importância do contexto social em que tal confluência aconteceria, o que determinaria a profundidade e largura da expansão ou revisão de saberes individuais. Estas novas experiências vêm conquistando adeptos e começam a propor-se como elementos distintivos de cursos que reconhecem o caráter de subjetividade contido na formação desejada do egresso, muitas vezes traduzida em um “sistema de competências” para o (bom) exercício da profissão buscada.

Grande parte dessas experiências busca distinguir-se do estágio discente tradicional, no qual alunos seriam inseridos em estruturas produtivas, atuando mais como elos substitutivos ou com-plementares de referidas cadeias, com a vantagem do baixo-custo para quem os assume, do que como aprendizes ou praticantes que deveriam encontrar oportunidades para exercitar ou aplicar o conhecimento obtido com a formação teórica aprendida em sala de aula. Esta procurada distin-ção revela-se na construção de experiências que propõem diferentes papéis para o aluno, mais (cri)ativos e, muitas vezes, menos operativos, cujo ponto em comum residiria na sua imersão em contextos prático-organizacionais que privilegiariam a integração de saberes. Deste modo, o alu-no teria a oportunidade de “situar-se” em um contexto de ação, com uma maior liberdade para reconhecer, integrar e construir velhas e novas competências e saberes profissionais e pessoais.

São, portanto, experiências que reconhecem diferentes dimensões da aprendizagem e da sua relação com o ensino e privilegiam, ou buscam privilegiar, as oportunidades de interação social como fundamentais na formação das estruturas cognitivas que, de certa forma, caracterizariam, ainda que de modo frouxo, diferentes grupos profissionais.

Um campo privilegiado para estas novas experimentações de caráter pedagógico parece ser a oferta de estruturas de formação acadêmico-profissional em Gestão Social. A Gestão Social vem se consolidando rapidamente no País como um campo de práticas e conhecimentos que agrega modelos mais democráticos e plurais de gestão de problemas considerados de alta relevância social, quase sempre ancorados nos conceitos de desenvolvimento sócio-territorial ou desenvol-

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vimento local. Tal aceleração foi acompanhada de uma crescente oferta de estruturas de formação, assim com de espaços de interação entre os profissionais que iniciavam a reconhecer-se como gestores sociais, o que teria provocado certa precocidade na ins-titucionalização de tal campo (BOULLOSA; SCHOMMER, 2008; 2009). Todavia, aquela mesma aceleração parece ter funcionado como terreno fértil para a inovação da rela-ção entre ensino e aprendizagem em tais cursos, carentes, por dizer, de um passado, ainda que recente. De fato, até mesmo um olhar panorâmico sobre a oferta de forma-ção em gestão social pode revelar a multiplicidade de interpretações, não da temática em si, mas de diferentes explorações de componentes curriculares e estratégicas de ensino-aprendizagem que buscam relacionar teoria e/com prática, ensino e/com vi-vência, aprendizagem individual e /com aprendizagem social.Tratando-se de experiências que são, ao mesmo tempo, recentes e comuns em suas buscas, mas diferentes em suas fisiologias, observa-se ainda uma compreensível lacu-na de estruturas de análise que possam de alguma forma interpretar os seus resulta-dos junto a sua comunidade de ação. Este artigo busca oferecer alguns primeiríssimos passos em direção a uma desejada avaliação e revisão de, pelo menos, uma destas experiências, a Residência Social, que vem acontecendo, desde 2001, junto aos cursos de especialização e mestrado profissionalizante em gestão social oferecido pelo Centro Interdisciplinar em Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em alguns casos pontuais em projetos de extensão que envolvem alunos provenientes de diferentes curso de graduação da mesma Universidade.A Residência Social (RS) é uma tecnologia de ensino, desenvolvida por Fischer (2001) no âmbito do Programa em Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA, que busca pro-porcionar ao aluno um espaço de aprendizagem prático-reflexiva a partir da sua imer-são continuada em contextos práticos organizacionais diferentes dos seus contextos habituais de ação. Tal imersão buscaria dar condições para que o estudante desenvol-vesse capacidades e competências inerentes à função de gestor (SCHOMMER; FRANÇA FILHO, 2001), a partir da articulação de três dimensões de ação prático-reflexiva: so-cialização de diferentes saberes, compreensão mais complexa da realidade e; conexões entre ensino, pesquisa e extensão. A estrutura de análise para interpretar a experiência de Residência Social do CIAGS/UFBA foi construída à luz das contribuições advindas do campo da aprendizagem so-cial (John Dewey), em particular com os desenvolvimentos propostos pelas teorias da aprendizagem situada (Jean Lave) e da aprendizagem significada (David Ausubel), para então lançar algumas primeiras hipóteses avaliativas sobre o seu desenvolvimento, assim como algumas primeiras sugestões sobre o seu futuro.

2. As diferentes aplicações de Residência Social (RS) na formação em Gestão Social

A Residência Social é uma metodologia de ensino, desenvolvida por Fischer (2001) no âmbito do Programa em Desenvolvimento e Gestão Social da UFBA, com financia-mento do Fundo Verde-Amarelo da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos – Minis-

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tério da Ciência e Tecnologia), que objetiva proporcionar ao aluno um espaço para a aprendizagem prático-reflexiva, no qual ele possa potencialmente integrar e aprimorar conhecimentos desenvolvidos ao longo do curso, assim como correlacioná-los ao seu background cultural, profissional e pessoal. Este espaço de aprendizagem se concreti-zaria em uma experiência de imersão continuada em contextos prático-organizacionais diferentes dos seus contextos habituais de ação, que podem ser organizações, institui-ções, empresas ou mesmo projetos ou programas interorganizacionais, desde quando interessadas em acolher experiências de compartilhamento de saberes.

Esta metodologia vem sendo experimentada e aplicada desde 2001 em projetos de extensão desenvolvidos pelo CIAGS/UFBA, assim como incorporada desde 2002 aos desenhos curriculares dos cursos de Especialização em gestão social e responsabilida-de social, do Mestrado multidisciplinar e profissionalizante em desenvolvimento e ges-tão social e, mais recentemente, incorporada ao curso de Graduação tecnológica em gestão pública e social (em implantação desde 2009), todos da mesma Universidade e promovidos pelo CIAGS, no âmbito da Escola de Administração (EAUFBA). Além destas experiências no ensino presencial, desde 2008 o Programa de Residência Social do CIAGS vem testando esta metodologia junto a um curso de especialização a distância em desenvolvimento regional sustentável promovido por um consórcio de diferentes instituições para um alunado específico formado por funcionários do Banco do Brasil e da Caixa1.

Na sua concepção inicial, a Residência Social inspirava-se nas experiências de resi-dência médica, explorando situações que poderiam se assemelhar a experiências de aprendizagem que aconteceriam em comunidades de prática (SCHOMMER; FRANÇA FILHO, 2001). Além disto, de um lado, a Residência Social assumia as premissas da ad-ministração contemporânea, que valoriza tanto os aspectos sociais quanto os aspectos culturais nas atividades de identificação de problemas e de proposição de intervenção/solução, aproximando-se de alguma forma da atividade de consultoria em gestão. Do outro, o conceito de Residência Social acabou recebendo influências das ciências so-ciais e humanas, sobretudo no que diz respeito às metodologias de pesquisa-ação e de pesquisa etnográfica que se constituem as bases para a compreensão do residente social como um observador-participante que age e, ao mesmo tempo, reflete sobre a intervenção em curso (SCHOMMER; FRANÇA FILHO, 2001).

Em tal perspectiva, o aluno-residente seria inserido dentro de um contexto que fo-mentasse condições necessárias para que ele desenvolvesse capacidades e competên-cias inerentes à função de gestor social, a partir da articulação de três dimensões de ação prático-reflexiva: socialização de diferentes saberes, compreensão mais complexa da realidade e; conexões entre ensino, pesquisa e extensão.

Desde a sua criação, muitos alunos vivenciaram a atividade de Residência Social em diferentes escalas e contextos, dentro e fora do País. No ensino presencial, os núme-

1 Esta especialização foi oferecida em 2007/2008 para uma turma de 2.000 alunos formada por funcionários do Banco do Brasil, por um consórcio entre as Universidades Federal da Bahia (UFBA), Federal de Lavras (UFLA), Fe-deral do Mato Grosso (UFMT), Nacional de Brasília (UNB) e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD). Em 2009, deu-se início a uma segunda turma, desta vez composta por 1.000 alunos, igualmente distri-buídos entre funcionários do Banco do Brasil e funcionários da Caixa Econômica Federal, promovida pelo mesmo Consórcio, sem a presença da UNB. Também para esta nova turma está prevista a experiência de Residência Social.

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ros são mais modestos do que no ensino à distância: cerca de 45 alunos de graduação realizaram experiências como residente social por períodos médios de seis meses em projetos de extensão (entre 2001 e 2008), 20 alunos de duas turmas de especialização (entre 2005 e 2009) e 23 alunos de duas turmas do mestrado profissional (entre 2007 e 2009), perfazendo um total de 88 ex-residentes sociais. Além destes, aproximada-mente 40 alunos da terceira turma do mestrado estão se preparando para vivenciar tal experiência e outros 40 alunos da graduação estão por entrar na fase de planejamento. Já no ensino à distância, quase 2000 alunos vivenciaram experiências de Residência Social e outros 1000 estão por entrar na fase de planejamento de tal experiência. Mas, sem dúvida, é no ensino presencial que a Residência Social expressa todo o seu poten-cial criativo.

Sem deixar de lado suas características principais, a metodologia da Residência Social foi amoldada a diferentes contextos de aplicação, ou melhor, a seus diferentes públicos. Para cada um deles, as adaptações foram desenvolvidas para melhor dialogar com a proposta pedagógica do curso em questão, como apresentado nos pontos abaixo.

2.1 A RS no Mestrado Multidisciplinar e Profissionalizante em Desenvolvimento e Gestão Social

A Residência Social (RS) no Mestrado está prevista para acontecer entre a terceira e a última das quatro sequências de ensino que estruturam o desenho curricular do curso. O período previsto para a imersão é de um mês completo, com carga horária total de 160 horas, e deve ser realizada no seio de uma estrutura prático-organizacional localizada em outro País, sempre de modo a complicar o deslocamento cognitivo desejado para os resi-dentes sociais, assim como para potencializar a troca de diferentes saberes buscada por este tipo de experiência, levando o aluno a correlacionar conteúdos construídos durante o curso com o seu background pessoal, profissional e cultural e com as estruturas cognitivas que encontrará no seu período de vivência da Residência Social.

No Mestrado é onde provavelmente a metodologia da RS pode ser realizada com maior plenitude, pois a experiência não deve necessariamente vincular-se à construção da disser-tação final de curso, mas, sim, permitir explorá-la em todo o seu potencial de reestruturação cognitiva, de integração de velhos saberes e produção de novos, além da formação de redes profissionais e pessoais. A experiência pode ser planejada com o orientador da dissertação ou somente pelo aluno, possivelmente com a assistência da coordenação do Programa de Residência Social. Espera-se que o aluno, ao final da experiência, apresente um relatório técnico, ensaio, roteiro de avaliação ou alguma forma de sistematização e/ou reflexão sobre o que foi vivenciado.

2.2 A RS na Especialização lato sensu em Gestão e Responsabilidade Social

A experiência de Residência Social na Especialização busca propiciar ao aluno um perío-do de imersão em uma realidade prático-organizacional por um período de quinze dias, com

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carga horária total de 80 horas. Tal carga costuma ser distribuída em duas semanas de 40 horas, quando o aluno se afasta do seu tradicional contexto de atuação profissional para inserir-se em uma estrutura cognitiva diferente da qual estava habituado. Este desloca-mento cognitivo normalmente tem sido aproveitado para a elaboração da monografia de final de curso, aproximando a experiência de Residência Social da atividade de cam-po empírica da monografia. Para forçar um pouco o deslocamento cognitivo, solicita-se que a experiência de RS seja desenvolvida em uma realidade prático-organizacional localizada em outro Estado da Federação, a fim de complicar um pouco mais as lacunas ou contradições dos quadros de referências pessoais e profissionais, devido às diferen-ças culturais entre as regiões do País. Esta experiência deve ser organizada pelo aluno, com a assistência do programa de Residência Social, e, a princípio, combinada com o professor-orientador da monografia. As organizações acolhedoras de tais experiências devem indicar um profissional de referência na sua estrutura para acompanhar esta breve, mas, espera-se, intensa experiência, que também pressupõe propiciar um con-texto de aprendizagem sociointeracional para o Residente Social.

2.3 A RS no curso de Especialização a Distância em Desenvolvimento Regional Sustentável

A metodologia da Residência Social foi completamente adaptada para esta experi-ência de ensino a distância que aconteceu entre os anos de 2006 e 2008, envolvendo 2000 alunos funcionários do Banco do Brasil. Nela, os alunos foram reunidos virtual-mente em grupos de 3 a 5 componentes para planejar seus trabalhos aplicativos de conclusão de curso (TACC), definindo os objetivos, problema de pesquisa e hipóteses, assim como a experiência de desenvolvimento regional sobre a qual iriam trabalhar (eles deveriam necessariamente propor como TACC um diagnóstico, uma avaliação ou um projeto de intervenção). A partir disso, juntos ou em grupo, partiriam para realizar as vivências de Residência Social, tendo já em mente quais eram os objetivos de tal breve experiência. A Residência Social pressupunha um período de imersão descontí-nua de 80 horas totais – ou seja, os alunos poderiam realizá-la de acordo com as suas agendas pessoais e profissionais.

Vale a pena ressaltar que esta era a única atividade substancial realizada em moda-lidade presencial em todo o curso e aconteceu sob a supervisão de um tutor de Resi-dência Social, que nem sempre orientava o TACC, não obstante o vinculo metodológico obrigatório. As vivências de Residência Social foram necessariamente sistematizadas nos conteúdos do TACC, desenvolvidos e apresentados em grupo. A segunda edição do curso teve início em março de 2009 e a metodologia da Residência Social está em fase de revisão pelo Comitê Pedagógico devido, sobretudo, às novas diretrizes para TACC publicadas pelo MEC.

2.4 A RS no curso de Graduação Tecnológica em Gestão Pública e Gestão Social

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A metodologia de Residência Social está sendo discutida pelo colegiado de professores antes de ser implementada junto à primeira turma de Graduação tecnológica em gestão pú-blica e gestão social. A princípio, a Residência Social está prevista para acontecer durante o quarto semestre acadêmico do curso, cuja duração prevista é de sete semestres (graduação curta). As discussões atuais indicam que a variante metodológica da Residência Social a ser utilizada será próxima daquela usada nos projetos de extensão e pesquisa que envolve o público da graduação tradicional.

2.5 A RS em cursos de graduação tradicional (longa duração ou duração plena)

A experiência pode abrigar alunos de diferentes cursos de graduação da Universidade Federal da Bahia e de outras universidades ou faculdades, sempre acolhidos como Residen-tes Sociais em projetos de pesquisa e ou de extensão, desenvolvidos pelo ou em parceria com o CIAGS/UFBA. A Residência Social consiste em um período de imersão de, no mínimo, seis meses, com carga horária de 20 horas semanais (atividade paralela e complementar ao percurso formativo) em tais projetos, os quais necessariamente estão ligados ao tema do desenvolvimento territorial ou desenvolvimento local. Os Residentes Sociais devem partici-par do cotidiano do projeto, assumindo tarefas junto ao grupo, podendo especializar-se em algumas delas, mas incentivados a assumirem uma postura de observador-participante em tais contextos. Os Residentes Sociais da graduação seriam, portanto, vistos como aprendi-zes-pesquisadores, inseridos em uma estrutura cognitiva que lhes permitisse experimentar novos percursos na compreensão dos diferentes saberes que se complementam em situa-ções práticas (sobretudo de problematização e tomada de decisão), assim como lhes permi-tisse experimentar diferentes percursos na construção de saberes em relação aos percursos mais lineares vivenciados em sala de aula. Esta experiência deve ser acompanhada por um dos professores responsáveis pelo projeto de pesquisa e/ou de extensão, que deve orientar o aluno tanto na sua vivência prática quanto na compreensão da sua posição de observa-dor-participante ou de aprendiz-reflexivo. Espera-se, ainda, que ao final da experiência, o Residente Social apresente relatórios técnicos ou artigos científicos que discorram sobre a situação vivenciada.

3. O quadro analítico: aprendizagem situada e aprendizagem significada como contexto da RS

A teoria da aprendizagem situada de Lave (1988) defende que o aprendizado é uma função “da atividade, do contexto e da cultura onde ele se dá”. O reforço deste “localismo” que resulta em algo imprevisível, mas também único, legitima o uso do termo “situada” para definir tal tipo de aprendizagem. A teoria da aprendizagem situada encontra raízes na Teoria dos Recursos de Gibson, na Teoria do Aprendizado Social de Vygotsky (1988) e na Teoria da Aprendizagem Significativa de Ausubel (1968). E todos estes podem ser remetidos sem maiores dificuldades à conexão aprofundada por John Dewey entre aprendizagem e interação social, pois o sujeito que indaga o faz dentro de um contexto de interação que

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pode ser interpretado como uma comunidade de indagadores. Por isto, podemos dizer que a aprendizagem é sempre subproduto das relações que acontecem entre sujeitos que inte-ragem em situações estabelecidas sobre e sob diferentes vínculos e propósitos, tratando-se, assim, de um êxito compartilhado, mas não comum, não intencional e não orquestrado.

A compreensão do aprendizado como subproduto, e não como produto direto e inten-cional das relações humanas, nos permite explorar as dificuldades inerentes ao desejo de criação de contextos de aprendizagem que possam garantir aos fruidores ou participantes a apreensão de conhecimentos ou mesmo a produção de novos deles, mesmo que em es-tágio anterior a sua consolidação em práticas compartilháveis e reproduzíveis de saberes estruturados. Em outras palavras, nos permite indagar quais as fronteiras ou conteúdos mí-nimos em que um dado contexto funciona como “situado” para que a aprendizagem ocorra. O desafio de prever o imprevisível, de planejar o não orquestrado, de fomentar relações que deveriam ser espontâneas, se deparam com o desejo de produzir conhecimento e a consciência do atributo do acaso na conformação do “situado” gerador da aprendizagem, explorado e explicado por Lave nas dimensões de atividade, contexto e cultura.

Ainda nesta mesma perspectiva, é importante explorar os modo e o tempo com os quais o sujeito que busca a aprendizagem entra em contato com o contexto social que lhe per-mitirá o alcance de tal objetivo, sobretudo quando este é buscado dentro de um tempo limitado, como no caso da Residência Social. Lave e Wenger (1991) modelizaram esta pene-tração de sujeitos em comunidades de prática a partir do conceito de participação periférica legítima. Para estes autores, o acesso a este tecido social viscoso, relativamente restrito e frouxamente amarrado por saberes práticos se daria pelas bordas e, à medida que o sujeito penetrasse neste tecido, galgaria diferentes posições dentro da estrutura social construída sobre e sob uma estrutura de saberes. Esta viscosidade, por certos aspectos autofágica, nos leva a crer na existência de dinâmicas de legitimação próprias com reverberações e vínculos sobre o modo como o sujeito busca penetrar tal viscosidade, ou seja, como ele se apresenta (mas também por onde o faz), a sua disponibilidade em sujeitar-se às regras da viscosidade e, provavelmente, aos tempos requeridos para tal acesso.

A aprendizagem em adultos parece acontecer com maior propensão quando os par-ticipantes sentem-se co-autores do processo de ensino. Em outras palavras, quando os programas de ensino tiram partido das experiências profissionais e pessoais que estes carregam consigo. Cross (1981), estudando a aprendizagem em diferentes grupos etários, propôs um modelo chamado “Características dos Adultos como Aprendizes” (CAA) para interpretar o contexto das aprendizagens cotidianas típicas do desenvolvimento humano. Segundo este modelo, é possível compreender a aprendizagem através de duas classes de variáveis: as características pessoais e as características situacionais.

A primeira classe de variáveis inclui as seguintes dimensões: idade, fases de vida e os estágios de desenvolvimento. As características de cada dimensão se apresentam de for-ma diferente no decorrer da vida do indivíduo. Na medida em que um sujeito envelhece, ele tende a perder as capacidades motoras e sensoriais (dificuldade em enxergar, ouvir, em responder imediatamente a um estímulo – tempo de reação etc.) e, em contraparti-da, competências associadas à inteligência tendem a ser desenvolvidas com o processo de envelhecimento (tais como, capacidade de tomar decisões, aumento progressivo do vocabulário, entre outras). As fases da vida e os estágios do desenvolvimento envolvem uma série de dilemas que não necessariamente correspondem à idade cronológica do

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indivíduo.A segunda classe de variáveis, a das características situacionais, explora as tensões

entre aprendizado em tempo parcial e aprendizado em tempo real, assim como entre aprendizado voluntário e aprendizado compulsório. E é provavelmente esta última tensão que poderia nos dar maiores subsídios para a compreensão do que acontece quando um programa de formação insere um aluno adulto, com seu background pessoal, profissional e cultural em uma estrutura prático-organizacional, na esperança que esta funcione como “situação” fomentadora de aprendizagem.

O background do aluno, que no nosso caso é chamado de residente social (pelo perío-do em que vivencia a experiência de residência social), pode ainda ser compreendido no seu âmago como o que Piaget (1971) chamou de estruturas do pensamento, lembrando que, para ele, tais estruturas são as que preparam o indivíduo para a assimilação do co-nhecimento (gênese das estruturas). Se assim for, o percurso formativo no qual a expe-riência de imersão ou de vivência estaria prevista para acontecer, ou seja, nos desenhos curriculares dos cursos que pressupõem tais tipos de experiência, deveríamos encontrar a preocupação do trabalho transversal das chamadas formas superiores de comportamento consciente, ou, pelo menos, da sua discussão. Explorar este background como estrutu-ras do pensamento poderia ajudar os participantes destes contextos de aprendizagem a compreenderem as limitações e potencialidades de aprendizagem que o modelo de CAA propõe discutir através das suas classes de variáveis.

Ao lado da aprendizagem situada, a estrutura de análise proposta neste artigo tam-bém busca raízes no que David Ausubel chamou de aprendizagem significativa, quando um novo saber é capaz de ancorar-se em uma estrutura de saberes de um indivíduo, res-significando, ainda que parcialmente, a trama cognitiva anterior deste sujeito. Esta trama cognitiva (estruturas hierárquicas de conceitos) seria formada por conceitos relevantes, chamados de subsunçores, que funcionariam como ganchos para novos conceitos. A ine-xistência de subsunçores, portanto, deixaria escorregar conceitos recém-aprendidos ou mesmo impossibilitar qualquer tipo de ancoragem, mesmo que precária. Nesta segunda e complementar perspectiva, as experiências dos residentes sociais aconteceriam sobre estruturas hierárquicas de conceitos que também ajudariam a modelar as possibilida-des e desafios da imersão destes sujeitos em diferentes conjuntos de outras estruturas hierárquicas de saberes (dos indivíduos com os quais interagirão), assim como poderão predispor a base cognitiva dos saberes que serão aprendidos e/ou construídos com a experiência. A ancoragem, porém, não deve acontecer somente no espectro temporal da experiência, mas pode, pelo contrário, ser explorada ao longo de um tempo maior que possa ainda manter-se de algum modo associado à vivência, como, por exemplo, a elaboração de uma dissertação ou o confronto com uma segunda e posterior experiência.

4. Primeiras hipóteses avaliativas sobre a experiência de Residência Social

A experiência de Residência Social representa um grande desafio para a formação em gestão social, sobretudo no que concerne à tão desejada integração de saberes, novos e velhos, externos e internos, explícitos e implícitos, individuais e coletivos de um público

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discente muito específico, que nem sempre consegue explorar as oportunidades de uma aprendizagem sócio-prática. Parte desta lacuna parece residir em uma dificuldade estrutu-ral de compreensão das potencialidades e dos limites que experiências deste tipo carregam consigo, que acaba envolvendo ou perpassando principalmente os atores que podem ser chamados de “acadêmicos” do processo de vivência da experiência: discentes, docentes, orientadores e coordenadores dos cursos em questão e do programa como um todo.

Para explorar algumas destas lacunas e dificuldades, a partir do quadro analítico desen-volvido, foram identificadas algumas das principais tensões que ainda regem a experiência. Tratando-se de uma proposta inovadora, sem receitas ou caminhos pré-definidos, imagina-se que a construção de cada experiência de Residência Social seja fruto de uma alquimia única, onde atores e contextos conseguem “situar-se” culturalmente, numa interação de práticas, que “localiza-se” no tempo e no espaço. Tal alquimia pode ser vista como uma metáfora para a construção de uma experiência que resolva, ao seu modo, as principais tensões que atravessam e desafiam a metodologia da Residência Social. São tensões que podem revelar-se como detentoras de um grande potencial inovador, pois estimulam em todos a busca por equilíbrios tênues, precários e, por isto mesmo, transformadores e aglu-tinadores do ponto de vista da aprendizagem. Estas mesmas tensões podem criar oportu-nidades de ancoragem e desenvolvimento de saberes socialmente construídos para estes mesmos atores, lembrando que, não obstante o protagonista da atenção do Programa de Residência Social, assim como deste artigo, seja o residente social, é indubitável que todos os envolvidos aprendem.

4. 1. A tensão entre planejamento e aprendizagem situada

Os alunos que realizam a atividade de Residência Social, sobretudo em cursos de pós-graduação, cumprem, via de regra, um ciclo de aprendizagem composto pelos momentos de planejamento, vivência e síntese. Durante o momento de planejamento, o aluno pesquisa organizações que possam eventualmente acolher a sua experiência de Residência Social, buscando conhecer os referidos ambientes de ação, estrutura organizacional etc. 2, para então entrar em contato com algum membro da organização e formalizar o seu pedido. Vale a pena lembrar que a Residência Social é uma atividade obrigatória dos cursos aqui tratados e sua não realização implica na não obtenção do título de formação pretendido.

O futuro residente social, ciente das limitações de tempo para a realização da atividade e, sobretudo, pressionado pelo ideal de uso racional deste tempo, freqüentemente investe muito esforço na fase de planejamento, imaginando que quanto mais “planejada” for a ex-periência, mais proveitosa será. Esta dificuldade de imaginar-se, mesmo que levemente, à deriva os faz, quase sempre, buscar o porto seguro do planejamento. A principal pergunta que lhes vem em mente poderia ser resumida nestas palavras: “o que devo trazer de volta para “casa” deste um mês que transcorrerei fora?”. Na prática, quase todos buscam alguma relação com a construção da dissertação ou da monografia final, correndo o risco de reduzir a experiência de Residência Social à realização do campo empírico do trabalho que está sendo escrito.

2 Os mestrandos devem preocupar-se, ainda, com as limitações relativas ao eventual domínio da língua das possí-veis organizações acolhedoras da sua Residência Social.

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O planejamento excessivo, pressionado pelo tempo fixado pelo Programa e não pelo residente, pode chegar aos detalhes da elaboração de roteiros de entrevistas estruturadas, que serão realizadas a determinados atores, em momentos-chave e com finalidades bem precisas. Tal rigidez, porém, pode levar a uma perda significativa das possibilidades e rique-za da experiência em si. Há algum tempo, o Programa de Residência Social vem trabalhando com o “mapa provisório” como metáfora para uma compreensão mais ampla e menos rígi-da do planejamento. Imagina-se que através desta metáfora seja possível romper, ou ajudar a romper, esta tensão que existe entre o planejamento e as características da aprendizagem situada, que não acolhe a completa orquestração do jogo que será ainda jogado durante a experiência de Residência Social, cujo contexto e cultura são pouco previsíveis.

O acúmulo de experiência dos Residentes Sociais parece mostrar, diversamente, que quando estes adotam uma postura menos rígida na busca por produção explícita de conheci-mentos utilizáveis (sobretudo quando não direcionados a trabalhos finais de curso), acabam por vivenciar experiências que lhes provocam uma transformação “mais existencial”. Se, de um lado, a atividade pode proporcionar articulação entre os membros em uma comunidade de prática, do outro, os inserem em contextos culturais complexos que exigem “desloca-mentos” e “realocamentos” que carregam consigo o gérmen da aprendizagem socialmente situada. Interagindo, o residente social imerso em um novo grupo social, vendo-se como um explorador ou um observador-participante, aumenta suas chances de reconfiguração de novos esquemas de aprendizagem e, como conseqüência direta para a sua formação como gestor social, há a criação de estratégias de gestão. Sem perceber, estes alunos atuam como gestores, desenvolvem competências, habilidades, confrontam experiências e contextos, entram em conflitos e solucionam problemas. Não é raro que estes residentes que se con-sideram “mais perdidos” acabem reestruturando o seu objeto de pesquisa, objetivo antes não delineado, integrando vivência e atividade de pesquisa.

4.2 A tensão entre produção explícita e produção implícita da RS

O sistema de ensino ao qual os programas estão submetidos pressiona cada vez mais pela produção de materiais resultantes das atividades curriculares. Por este sistema, os alunos são incentivados e avaliados pelo que conseguem efetivamente produzir como algo concreto, com uma etiqueta reconhecível, com nome, limites e reconhecimento des-te mesmo sistema. Esta demanda por produtos tem levado os alunos, mas também todos os participantes do Programa, professores e coordenadores, a incentivar vivamente que a experiência de Residência Social resulte em “alguma coisa”. Este desejo pode restringir a experiência da Residência Social leve a uma produção autorizada de algo que pode vincular excessivamente o aluno, não permitindo a ele explorar as potencialidades da experiência. O residente social pode acabar criando um filtro cognitivo que só lhe permite fruir ou produzir conhecimentos que são ou podem ser explicitados.

É preciso reconhecer, e talvez defender com maior afinco, que uma das principais rique-zas da experiência de Residência Social consiste na sua infindável carga de subjetividade, cuja grande parte pode ser considerada como uma produção implícita (ou difícil de ser expli-citada, formalizada em um primeiro momento), pois acontece sobretudo na reestruturação do mundo de significados e significantes do residente social. Além do mais, a experiência do

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residente, quando bem explorada, pode ser registrada em diferentes formatos, e não neces-sariamente nos formatos tradicionais dos relatórios ou apresentações tradicionais.

Quando mal resolvida, esta tensão entre produção explícita e conhecimento implícito pode ainda impedir que o processo de bricolagem, essencial na experiência de Residência Social, simplesmente ocorra. Nesta perspectiva, o residente não cria espaço para que dúvi-das surjam, não vivencia períodos de crise ou conflito ou desequilibração, como defendia Piaget (1976). Também quando não enfrentada, esta tensão dificulta a construção de um objetivo comum, ou um leque deles, entre alunos e demais atores, sobretudo professores-orientadores. Com o risco, ainda, de minar o caráter existencial da atividade de Residência Social, pois os vícios profissionais do residente social, por certos aspectos um aprendiz adul-to, podem direcioná-lo de tal forma para a produção de conhecimento explícito que não conseguem despir-se da estrutura cognitiva associada ao seu habitual contexto de ação para experimentar novas estruturas de conhecimento.

É possível traduzir esta realidade no seguinte esquema: quanto mais sistemático o indi-víduo se apresenta, maior a chance de realizar a Residência Social como uma extensão da sua pesquisa, ou simplesmente como o tradicional campo empírico, e de não vivenciar o contexto de diversidade sociocultural que o ambiente organizacional em que ele está tem-porariamente inserido o proporciona. Por outro lado, alunos mais flexíveis tendem a se aprofundar na realidade vivenciada, o que pode eventualmente refletir em um reajuste do seu tema de pesquisa.

4.3 A tensão entre o “residente-bricoleur” e o “residente-colecionador”

A experiência de residência social, pensada como experiência de aprendizado siginifica-tivo-situacional, posiciona o residente social como uma espécie de bricoleur (LEVI-STRAUSS, 1976), uma espécie de manipulador criativo de contribuições advindas de diferentes cam-pos ou contextos. A nova e criativa síntese de tais contribuições, “originárias” de diferentes atores sociais, recebe o nome de “bricolagem”, que designa a noção de criar ou construir algo – um conhecimento, uma alternativa, uma idéia – com materiais informações, referên-cias, etc. que estejam ao alcance do indivíduo-bricoleur. A partir desta inspiração, o “resi-dente-bricoleur” se contraporia, assim, ao “residente-colecionador”, aquele que busca levar para casa o máximo de informações possíveis, sobretudo quando a utilidade ou aplicabili-dade estejam garantidas, minando a potência inovadora da experiência de residência social.

Na “bricolagem da gestão social”, diferentes atores sociais oferecem, voluntária ou invo-luntariamente, diferentes contribuições – o que, num certo sentido, é uma ferramenta per-tencente ao grupo – e, da união dessas contribuições, surgem soluções ou alternativas para a elaboração de modelos de gestão. A noção de território acaba reforçando esta matriz um pouco anárquica. A aprendizagem pode ser desenvolvida durante a imersão continuada do estudante em uma realidade concreta, significada em um contexto em que há senso, pelo menos a princípio, para os atores que conformam a organização acolhedora da experiência de residência social do aluno, esteja ele em qualquer nível de formação. Senso e significado para o residente social vão sendo criados à medida que ele experencia a desequilibração (PIAGET, 1976).

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Esta tensão explicita-se com maior força nos conflitos velados entre diferentes interpre-tações da matriz de valores da metodologia da Residência Social, quando enriquecida pelos tanto atores envolvidos. Entre os alunos, aqueles de especialização, por exemplo, acabam sucumbindo à pressão, às vezes deles mesmos, de “usar” a Residência Social como um “lugar” para buscar dados, como um jogo no qual vence quem recolher mais “produtos”. Os alunos de mestrado, por sua vez, conseguem assumir com maior leveza as vestes do residente-bricoleur. No que concerne à experiência de residência social no universo do ensino a distância, é possível perceber desde residentes que assumem a postura de brico-leur, e passam a ver-se, segundo palavras da primeira turma do curso de desenvolvimen-to regional do Banco do Brasil, do “outro lado do balcão”, experimentando e propondo “novidades”, até residentes-colecionadores que usam o seu pouco tempo de residência para prospectar dados úteis que comprovem “o que já sabiam” antes de dar início à ex-periência.

O residente-colecionador elabora previamente um planejamento extremamente de-talhado e sistemático do que vai realizar, e não do que vai vivenciar, pois seria impossível. No outro extremo, o residente-bricoleur “radical”, espera o acaso definir a experiência, e alguns chegam a viajar até mesmo sem estar seguro da organização potencialmente aco-lhedora da sua atividade. E assim, constroem e delimitam a sua Residência Social à medi-da que entram em contato com a realidade vivenciada. Entre estas duas formas extremas de posicionar-se frente à experiência, ou seja, na tensão entre o residente-bricoleur e o residente-colecionador, encontram-se naturalmente diferentes e criativos equilíbrios.

É preciso compreender, porém, que a Residência Social busca proporcionar ao aluno um contexto de aprendizagem diferente do percurso linear, ou quase, da formação disci-plinar, buscando inseri-lo em um contexto relativamente desconhecido. Todavia, muitas vezes a postura assumida pelo residente, como a de encontrar ou colher, na “realidade pesquisada”, dados úteis a um projeto previamente delineado, acaba levando-o a “sair de casa” já com o seu arcabouço de hipóteses e objetivos preparados, o que reflete no planejamento de agendas razoavelmente fechadas. Além do grande risco de desilusão, pla-nejamentos como estes contêm um sistema de códigos, uma linguagem repleta de signos e significados que, longe de compor ou dialogar com o cenário da organização acolhedora da experiência, podem restringir-se exclusivamente ao universo do pesquisador, impedindo-o de interagir com a “realidade pesquisada”. O residente-colecionador só consegue integrar, de modo restrito, a “realidade pesquisada” à sua realidade inicial. E a “realidade pesquisada” não consegue transformar-se em “realidade vivenciada”.

4.4. A tensão entre a necessidade de avaliação, o objeto de avaliação e foco da avaliação

A Residência Social é uma atividade obrigatória em todos os cursos aqui relatados, po-rém não conta com um sistema de valoração avaliativa. Em outras palavras, o aluno deveria, pelo menos a princípio, somente “realizar” a atividade, sem necessidade de submeter-se a qualquer tipo de avaliação de desempenho ou mesmo alguma avaliação que validasse ou não a sua experiência. Todavia, esta obrigatoriedade de realização, destituída de qualquer sistema de valoração, vinha impedindo que a metodologia da Residência Social pudesse ser,

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pelo menos, discutida, quando não revisada. Os residentes voltavam de suas experiências, se envolviam com a elaboração dos trabalhos finais de curso e acabavam restringindo-se a uma conversa ou relato vivencial e informal com a coordenação do Programa, mesmo que o mesmo solicitasse algum “registro” da experiência.

Todavia, diante das poucas contribuições e da crescente pressão pela avaliação de tais experiências, o Programa começou a solicitar aos residentes sociais que eles compilassem, mesmo que esquematicamente, um roteiro de avaliação, bastante simples, cuja intenção era colher as impressões dos residentes, assim como alguns aspectos da relação que ele tinha conseguido desenvolver com a organização acolhedora, dos instrumentos de pesquisa social utilizados e das eventuais redes sociais ou profissionais eventualmente fomentadas, para que a experiência metodológica da Residência Social pudesse ser discutida, e eventu-almente revista, com a comunidade docente, discente e, posteriormente, com as organiza-ções acolhedoras.

Esta dificuldade de sistematizar de algum modo a experiência de residência social re-side, em grande parte, na tensão entre a necessidade de avaliação, o foco da mesma e o seu possível objeto. Apoiando-se no quadro de análise desenvolvido, é plausível defender a não pertinência de qualquer tipo de avaliação de desempenho da experiência em questão. Avaliar a aprendizagem significativa significaria conhecer a trama cognitiva anterior de cada sujeito-residente, além da sua capacidade, e timing, em ancorar a nova experiência em sua estrutura de saberes. Em outras palavras, a aprendizagem é significativa quando consegue ancorar novos saberes em prévias estruturas hierárquicas de conceitos, chamados de sub-sunçores por Ausubel, ressignificando estas mesmas estruturas. Uma avaliação tradicional de desempenho dificilmente colheria tal riqueza.

Por outro lado, é extremamente importante que o conjunto das experiências seja avalia-do, para que a metodologia utilizada possa ser compartilhada e repensada por um número maior de atores. Talvez a saída resida justamente em uma avaliação compartilhada entre diferentes residentes sociais, pois o objeto da avaliação deveria ser a própria metodologia e não as experiências separadamente. Outro possível caminho é a implementação do Jornal Virtual da Residência Social, chamado NAU, alinhado ao universo metafórico das grandes viagens de descoberta, que convida o residente social a contribuir com explorações, diários, sistematizações e registros em diferentes e inusitados formatos, buscando enfrentar a ten-são em questão.

5. Conclusão

A Residência Social nasceu como um experimento metodológico que buscava construir uma nova relação entre ensino e aprendizagem, a partir da valorização de alguns aspectos inerentes ao processo de desenvolvimento profissional de adultos, tais como integração de saberes e experiências anteriores com novas, construídas ao longo da formação oferecida, um maior diálogo entre conhecimento prático e conhecimento teórico, além de oferecer uma oportunidade para que o aluno, estimulado por uma demanda cognitiva (inusitada), ativasse, em uma síntese criativa, algumas das competências que o curso defendia (e con-tinua defendendo) como essenciais para um (bom) gestor social, tais como capacidade de mediar conflitos e facilitar processos de construção de estratégias desenvolvimento sócio-

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territorial. Trata-se de competências que dificilmente poderiam ser afrontadas diretamente em

sala de aula, sobretudo com o uso de métodos tradicionais de ensino, visto as dificuldades de se fomentar contextos de aprendizagem em que diferentes saberes possam ser legiti-mados e, sobretudo, inter-relacionados de modo não orquestrado, acolhendo a casuali-dade das realidades prático-organizacionais. Alguns passos foram dados em tal direção, alguns desafios foram vencidos, mas resta ainda uma conspícua lacuna de reflexão sobre a experiência como um todo, sobre a qual este artigo se debruça.

As questões e tensões enfrentadas neste artigo buscam reavivar uma insistente per-gunta: quais os ganhos de aprendizagem os residentes têm obtido com este tipo de ex-periência e os demais envolvidos? As hipóteses avaliativas desenvolvidas procuraram apontar alguns dos entraves, limites, potencialidades e desafios que ainda não puderam ser enfrentados ou que acabam sendo contornados no decorrer da experiência, numa perspectiva de avaliação que busca aumentar as chances de que esta experiência venha a revelar-se situada e potencialmente significativa para o residente. Levou-se ainda em consideração que a ocorrência desta busca metodológica que é a residência Social vem acontecendo no âmbito de um programa de formação em gestão social, o que acaba tam-bém funcionando como um terreno fértil para a reflexão sobre a formação de gestores sociais do desenvolvimento.

A partir de uma perspectiva complementar, e levando em consideração que os ges-tores sociais cada vez mais se consolidam no grande mercado da gestão e da adminis-tração, inclusive pela recente aproximação com a gestão pública, a residência social poderia “funcionar” como locus privilegiado para a reflexão sobre a dimensão sócio-prática da formação de tais gestores. A residência social, à luz das contribuições da aprendizagem significativa situada, parece ser capaz de ajudar a revelar e a enfrentar alguns dos desafios inerentes aos desenhos curriculares das estruturas de formação em gestão social.Com a convergência de ambas as perspectivas, emergem algumas perguntas que po-deriam orientar ou mesmo estruturar um percurso avaliativo da metodologia da Resi-dência Social, tais como:• Que conceitos de aprendizagem vêm sendo praticados pelos atores envolvidos nas ex-

periências de Residência Social, levando ou não em consideração os seus princípios meto-dológicos?

• Como a Residência Social tem efetivamente explorado as dimensões de intervenção e pes-quisa nas experiências dos alunos?

• Quais são os reflexos da Residência Social na formação do aluno, levando em consideração os diferentes níveis de formação? Em que medida ela tem se relacionado com o seu percur-so formativo, com a sua experiência e com seus desejos e vínculos pessoais e profissionais?

• Que relações o residente tem buscado construir entre a Residência Social e o seu trabalho final de curso e qual a sua percepção sobre tais relações? E a dos demais atores?

• Como tem se dado o planejamento para tal experiência e em que medida o mesmo tem contribuído para tal?

• Com tem se dado o processo de acompanhamento? Como o residente social tem se sentido ao longo da experiência? Ele tem realmente assumido o papel de observador participante?

• Como tem se dado o processo de avaliação da experiência? Em que medida os pou-

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cos produtos apresentados se relacionam com a experiência em si ou trazem ganhos (e de que tipo) para o aluno?

• Qual a função da obrigatoriedade da residência em apresentar “produtos”, tais como relatos, relatórios, diários de campo etc.?

• Quais as competências que o residente tem desenvolvido (ou ajudado a desenvolver) com esta experiência de Residência Social?

• Como o curso poderia ter contribuído para uma preparação mais adequada à experiência vivida? Quais as principais dificuldades que o residente social tem enfrentado na Resi-dência Social e como as tem enfrentado?

É inútil construir critérios que determinem o êxito ou fracasso da experiência, pois, em certo sentido, todas elas trazem ganhos para a formação do aluno. Mas, vale a pena insistir que os residentes que exploram a realidade prático-organizacional que os acolheu, se per-mitam “vivenciá-la” e não somente “pesquisá-la”, aumentando as possibilidades de vazios, ressignificações, acasos e inovações. A reestruturação das suas estruturas ou matrizes cog-nitivas parece ser o grande triunfo de experiências de formação como a Residência Social, a partir da imersão do aluno em novos grupos e em novas comunidades de prática, onde passam a compartilhar mesmo que temporariamente uma mesma história, alguns valores e a interagir no mundo das práticas, que favorecem o aprendizado e a capacitação (WENGER, 2003). Deste modo, o residente-bricoleur segue criando e experimentando novos saberes, novas práticas e novos comportamentos surgidos em meio a outros já consolidados e ainda inercialmente em uso.

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Projetos interinstitucionais e formação de comunidades de prática: ...

Projetos interinstitucionais e formação de comunidades de prática: aprendizagem em uma experiência de

desenvolvimento institucional e gestão social

Siegrid GuillaumonTacilla da C. e S. Siqueira Santos

1. Introdução

O amanhecer no vale já apontava para os bons dias que viriam entre a magia dos morros e o desvendar da prática do Instituto. Se a paisagem e os sorrisos dos nativos demonstravam a riqueza do lugar, a ex-periência desbravadora do Instituto encorajava a crença na possibilidade de um processo educacional diferente e transformador. Nossa missão naqueles dias: discutir, provocar, estimular os colaboradores do Instituto a refletir sobre a organização e a sua sustentabilidade. Nesse breve relato dos intensos dias em que convivemos, não temos a pretensão de apresentar respostas ou ensinamentos. Assim como não o tivemos lá no encontro denominado “oficina”. São pistas, provocações, pensamentos [...]. (SIQUEI-RA SANTOS, 2008)1

O “tom” de encantamento e de construção coletiva do conhecimento presente no trecho acima traduz um pouco da condução do Projeto de Extensão em Desenvolvi-mento Institucional e Gestão Social que este ensaio irá apresentar. No trajeto percor-rido ao longo dos anos de 2008 e 2009 para o desenvolvimento do Projeto, vínculos e comunidades foram se formando em torno de um mesmo propósito. Relações foram se construindo e fortalecendo. No compartilhar de saberes, experiências, histórias e prá-ticas foi delineando-se a parceria que envolve um Instituto de educação2 e um Centro Interdisciplinar de pesquisa3.

Se o encantamento pode ter inspiração na beleza impactante presente na região da Chapada Diamantina, a construção e o compartilhar do conhecimento estão relacio-

1 Trecho do documento referente à Oficina de Sustentabilidade, denominado “Oficina de Sustentabilidade - Um breve Relato”2 Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) localizada na Chapada Diamantina, na Bahia. A região é formada por mais de 50 municípios, cuja história está relacionada à extração de diamantes para exportação, ao longo do século XIX. Atualmente, as principais atividades econômicas da região são o turismo e a agricultura, e suas belezas naturais contrastam com dificuldades no campo da educação.3 Sediado na escola de administração de uma universidade federal, o centro articula saberes teóricos e práticos em desenvolvimento e gestão social, e promove a aproximação entre discentes, professores, pesquisadores, e gestores sociais do Estado, sociedade civil e empresas.

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nados à forma como o Instituto conduz sua atividade fim4 – que consiste em “formar formadores para a melhoria da alfabetização em escolas municipais da região rural da Chapada Diamantina e Semi-Árido”, e a crença dos consultores-pesquisadores5 de que ensinando estão, sobretudo, aprendendo.

Com o Projeto e as relações estabelecidas entre os consultores-pesquisadores - responsáveis por conceber e facilitar as oficinas – e os membros colaboradores do Instituto, novos saberes foram sendo construídos coletivamente, a partir daqueles pré-existentes, seja pela prática comunitária do Instituto, ou pela atuação profissional de cada um dos componentes da equipe mobilizada pelo Centro Interdisciplinar. Co-nhecimentos sobre gestão social e desenvolvimento sócio-territorial. Conhecimentos sobre aprender, ensinar, compartilhar.

Se, para o Instituto, o desvendar da lógica e dos instrumentos da gestão organiza-cional foi o elemento mobilizador para a efetivação da parceria, para os consultores-pesquisadores o compartilhar de uma prática comunitária bem-sucedida, com efetivo potencial de transformação, aliado à consciência da importância da causa da educa-ção, e a relação afetiva com a própria Chapada Diamantina, região que é o “berço” das atividades do Instituto, fortaleceram ainda mais esses novos laços. Assim, um a um, os participantes do Projeto de Extensão foram estabelecendo laços e formando uma rede onde o ensinar e o aprender caminham em sintonia, com passos e ritmos diversos, mas em uma mesma direção.

No âmbito da reflexão contínua sobre esse processo, onde se alternam as posições de diferentes aprendizes, nasce este ensaio. Como parte do caminho trilhado, e do que ainda há para trilhar, buscamos aqui uma reflexão sobre essa experiência. Uma experiência que implica o diálogo entre o saber acadêmico e a prática comunitária, entre indivíduos diversos que, juntos, compartilham o desejo do fortalecimento orga-nizacional do Instituto e do desenvolvimento da região onde a organização atua em prol da melhoria da educação pública. No relato aqui exposto, focalizamos três das oficinas que fizeram parte do Projeto – Sustentabilidade, Planejamento Estratégico e Mobilização de Recursos -, e tentamos responder a duas questões:

O que foi possível aprender através do Projeto de Extensão? O que a equipe de consultores-pesquisadores envolvida no Projeto de Extensão

aprendeu sobre possibilidades e limites nas contribuições ao processo de gestão do Instituto?

2. Encontro, identificação, cooperação e aprendizagem: nasce o Projeto de Extensão

Os momentos de transformação, embora por vezes desgastantes, costumam chegar carregados de novas possibilidades, como a ampliação dos horizontes de atuação e a

4 Costuma-se denominar “atividades-fim” aquelas que se referem diretamente ao cumprimento da missão orga-nizacional, e “atividades-meio” aquelas que se relacionam às ações de suporte ou de gestão, tais como: comunica-ção, mobilização de recursos, gestão financeira, dentre outras.5 Consultores-pesquisadores é o termo que utilizaremos aqui para designar os diversos professores e pesquisado-res envolvidos no Projeto de Extensão para facilitar as oficinas que foram realizadas.

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expansão das redes, por meio da inclusão de novas pessoas que agregam seus univer-sos. Para a experiência aqui apresentada, uma oportunidade de transformação se deu quando, no ano de 2007, provocado pelo parceiro financiador, o projeto de educação configurou-se em pessoa jurídica, tornando-se uma OSCIP. O trabalho hoje empreendi-do pelo Instituto nasceu na década de 1990 e foi inicialmente realizado por um grupo de professores que atuavam nas escolas públicas municipais da região e que se mobili-zaram em favor da qualidade da alfabetização.

Em 1997, o projeto obteve apoio de um amplo programa de fomento da educação no Brasil. Ao longo do tempo, o grupo investiu na articulação da rede de educação em favor da melhora da qualidade do ensino público em municípios da Chapada Diamanti-na e do Semi-Árido baiano. No ano de 2000, expandiu-se, passando a articular 12 muni-cípios em favor da alfabetização. Em 2007, a transformação do projeto de educação em OSCIP trouxe reflexos para toda a rede que envolvia6.

Com esta transformação, começaram a surgir desafios organizacionais antes inexis-tentes. As dúvidas e inquietações sobre os mecanismos de gestão uniram o Instituto e o Centro Interdisciplinar: uma nova relação de identificação, um novo elo na rede, um novo espaço de aprendizagem, um novo campo de cooperação – a rede expande em favor da qualidade da alfabetização.

O encontro entre as duas instituições se deu mediado pelo parceiro financiador que, somado ao incentivo à transformação do projeto social em organização, sugeriu o am-paro de pesquisadores da universidade com atuação em gestão social. Este novo laço se estabeleceu com a finalidade de auxiliar no fortalecimento da gestão institucional: uniram-se as duas instituições através do Projeto de Extensão Universitária.

Em meio à convergência de interesses, afinidades e coincidências, a aproximação entre ambos foi crescendo. A partir de sugestão do Centro Interdisciplinar, o Instituto e seu parceiro financiador inscreveram-se no Prêmio Parcerias7, pelo qual foram con-templados na categoria “Parcerias Consolidadas”. Com o caminhar, agregaram-se a esta outras histórias, construíram-se novos caminhos. O Projeto foi incorporando consulto-res-pesquisadores, todos ligados de algum modo ao Centro Interdisciplinar, mobilizados por questões diversas que convergiam, em última instância, para o desejo de contribuir e de aprender. Deste modo, a rede foi se ampliando por meio de laços relacionais-profissionais, e, principalmente, pela forma como a temática do projeto tocou cada um.

A primeira equipe de consultores-pesquisadores que se deslocou para conhecer o Insti-tuto enfrentou uma viagem de ônibus com duração de seis horas a partir de Salvador, e mais uma hora de “rural”8 até o vale onde se localiza o Instituto, onde foi possível desfrutar do amanhecer que iluminava os morros da Chapada e desenhava seus contornos. Foram dias de imersão na sua história, nos quais cada um dos colaboradores da equipe administrativa foi ouvido, contribuindo para a compreensão das dificuldades de gestão que enfrentavam

6 Atualmente, a rede mobilizada pelo Instituto está constituída por 925 escolas, 5.377 professores, 405 coorde-nadores pedagógicos, 432 diretores escolares, 23 diretores pedagógicos e 35 supervisores técnicos, a serviço da formação de 124.741 estudantes, em 25 municípios (FAJARDINI; DAVEL, 2009).7 O Prêmio Parcerias é organizado pela Aliança Interage e pelo Instituto Ação Empresarial pela Cidadania, com o apoio da AVINA, Instituto C&A, Plan e Arcor Brasil. O objetivo da premiação é estimular parcerias entre empresas e organizações da sociedade civil, na região Nordeste, que contribuam para o cumprimento dos Objetivos do Mi-lênio. (www.avina.net)8 O melhor transporte para enfrentar quase 30 km de estradas de terra.

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enquanto indivíduos, grupo e organização. Ali, “in loco”, começou a se desenhar a construção do Plano de Sustentabilidade Organizacional do Instituto, ao passo que aumentava o encan-tamento com os feitos da organização – seu potencial de articulação em rede surpreendia.

Deste primeiro momento, concebeu-se o Projeto de Extensão em Desenvolvimento Ins-titucional e Gestão Social, com o objetivo de apoiar a gestão do Instituto e o desenvolvi-mento de tecnologias de gestão social para o desenvolvimento institucional. Permeando tal objetivo estava o anseio dos pesquisadores, ligados através do Centro Interdisciplinar, em aprender sobre gestão social - natureza, instrumentos, práticas e relações com outros modos de gerir - a partir de uma experiência tão instigante. O Projeto adotou como pontos de partida os diagnósticos realizados ao longo de 2007, que revelaram aspectos a serem melhorados na forma de gestão e que estavam trazendo implicações para seu planejamen-to, desempenho e sustentabilidade.

Os principais elementos a partir dos quais foi desenhado o Projeto de Extensão podem ser resumidos em três esferas: a esfera de gestão operacional; do processo de planejamen-to; e da mobilização de recursos, e estão resumidos no quadro a seguir.

Esfera Pontos a serem melhorados

Gestão operacional do Instituto

- delimitar os campos de atuação de cada colaborador;- promover a integração dos processos administrativos e o diálogo entre as áreas administrativas;- melhorar e definir os fluxos de informação, promovendo uma maior autonomia de trabalho;- melhorar as formas de armazenamento e processamento de da-dos institucionais;- melhorar as habilidades na utilização de instrumentos de apoio à gestão, como os oferecidos por programas informatizados de pro-cessamento de dados; - fortalecer a sinergia do grupo;- promover uma maior compreensão das relações entre as ati-vidades desenvolvidas individualmente e a gestão do Instituto como um todo.

Processo de planejamento do Instituto

- melhorar os mecanismos de planejamento nas diversas áre-as administrativas;- desenvolver mecanismos de planejamento estratégico;-identificar forças, fraquezas, oportunidades e ameaças para a sustentabilidade do Instituto.

Mobilização de recursos

- ampliar a visibilidade do projeto;- desenvolver plano de mobilização de recursos;- diversificar fontes de recursos financeiros.

Quadro 1: Diagnóstico prévio para elaboração do projeto de Extensão em Desenvolvimento Institucional e Ges-tão Social. Fonte: Elaboração própria

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O diagnóstico realizado apontou que a parceria entre o Instituto e o Centro Interdisciplinar era promissora para ambos. Por um lado, ampliar-se-ia a rede de parceiros do Institu-to, especialmente no que tange à área de gestão, o que poderia contribuir para sua sustentabilidade e fortalecer sua atuação na rede de educação que articula. Por outro, elucidar-se-iam práticas inovadoras de gestão social com potencial para promoção do desenvolvimento local, o que tem relação com os temas de pesquisa e ensino do Cen-tro Interdisciplinar. As atividades na área fim do Instituto já vêm sendo sistematizadas e avaliadas por diferentes organizações, contudo, ainda havia pouca sistematização das suas atividades de gestão organizacional.

Vale assinalar que os enfrentamentos para viabilizar o Projeto não foram poucos. Logo no início, pouco após sua concepção, foi dada a notícia de que somente 30% dos recursos solicitados ao financiador seriam disponibilizados. Com recursos reduzi-dos, foi necessária uma dose extra de criatividade, dedicação e engajamento para que o Projeto fosse viabilizado. Uma das soluções encontradas foi constituir uma equipe multidisciplinar, em que os componentes tivessem conhecimentos complementares e, ao mesmo tempo, competência e vivência em mais de uma área de atuação, de forma que um número menor de consultores-facilitadores pudesse comprometer-se com um número maior de oficinas, e também, envolver-se de maneira mais “inteira” com o Projeto de Extensão e com o próprio Instituto.

Todas as etapas do Projeto, suas conquistas e suas limitações, foram compartilha-das com o grupo de consultores-pesquisadores. Era necessário que todos tivessem clareza do trabalho intenso que havia pela frente, que incluía, dentre outros: grandes distâncias a percorrer até a Chapada; tempo de elaboração de materiais para as ofici-nas; remuneração apenas pela carga horária da oficina - desconsiderando-se o tempo referente aos deslocamentos, concepção das oficinas, elaboração de material e de re-latório. Dentre os consultores-pesquisadores inicialmente contatados, um diferenciou-se por sua trajetória a partir dali: aceitou o convite para fazer parte da equipe admi-nistrativa do Instituto. O fato de um pesquisador ter migrado do Projeto de Extensão para a estrutura do Instituto afinou o diálogo entre as instituições, possibilitando que o processo de aprendizagem fosse mais intenso para ambos, reforçando mais ainda os laços da parceria.

Outros fatos ocorreram no mesmo sentido. Incentivada pela parceria, a diretora do Instituto inscreveu-se no processo seletivo do Mestrado em Gestão Social oferecido pelo Centro Interdisciplinar e foi aprovada. Aproximaram-se os saberes da prática e os da ‘Academia’. Além deste, novos laços teciam esta rede: uma das mestrandas do Cen-tro Interdisciplinar escolhera o Instituto como organização a ser estudada para elucidar seu tema de pesquisa: paixão e gestão social. Era mais uma forma de reflexão sobre a prática, e a prática da reflexão sobre a gestão. Estes novos fios foram tecidos, gerando aprendizagem para cada envolvido a partir do compartilhar de seus próprios repertó-rios e da transformação de seus saberes, que acrescentaram pequenas mudanças na suas trajetórias de vida e contextos de ação.

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3. As oficinas

As diversas idéias e perspectivas que surgiram na concepção do Projeto de Exten-são traduziram-se nas seguintes oficinas: planejamento estratégico organizacional; diagnóstico e planejamento das áreas administrativas, para desenho de um sistema de gerenciamento de informações; sustentabilidade; mobilização de recursos; gestão em rede; capacitação para utilização do sistema de dados; estruturação de processos administrativos (financeiro, operacional, gestão de pessoas, comunicação, secretaria); novos diagnósticos e mapeamento de novas linhas de ação. Neste ensaio, apresentare-mos três dessas oficinas – Sustentabilidade, Planejamento Estratégico Organizacional e Mobilização de Recursos –, escolhidas por trazerem oportunidades de aprendizagem e reflexões representativas da natureza daquelas presentes em todas as outras, nas diversas dimensões do Projeto de Extensão.

3.1. Sustentabilidade

A primeira oficina realizada como parte do Projeto de Extensão foi a de sustenta-bilidade. Compreendendo três dias de trabalho na sede do Instituto, a oficina contou com a participação de quatro consultores-pesquisadores e toda a equipe de gestão do Instituto, composta por sete pessoas. A escolha dessa oficina para a abertura do Programa não se deu por acaso, mas pela consciência de que essa é uma temática que engloba todas as demais, devendo, portanto, ser trabalhada como um momento inicial de reflexão geral sobre diversos aspectos organizacionais.

O primeiro dia do encontro teve como objetivo buscar os diferentes olhares dos colaboradores do Instituto referentes à organização, refletindo sobre as relações que se estabelecem entre a organização e os indivíduos, levando, conseqüentemente, a uma reflexão sobre a relação dos indivíduos entre si. O trabalho foi conduzido a partir de atividades lúdicas e da discussão coletiva, permitindo o despertar da consciência sobre a importância dessa teia de relações, práticas e sentimentos que interferem dire-tamente na sustentabilidade organizacional. Os colaboradores do Instituto precisaram, inicialmente, buscar respostas para duas questões provocadoras: O que me encanta no Instituto? O que me incomoda no Instituto?

Abria-se, assim, o caminho para a compreensão da organização e das relações que se estabelecem dentro dela e no seu entorno, aspectos fundamentais na discussão da sua sustentabilidade, conceituada para efeito desse trabalho como a capacidade de sobrevivência da Organização, através do tempo, garantida pela inter-relação de dife-rentes dimensões que, associadas, possibilitam a execução da missão organizacional e o enraizamento dos seus princípios e valores na sociedade (SIQUEIRA SANTOS, 2006, p. 136).

Já no início da oficina, emergiram questões que alertavam para um descompas-so entre as atividades diretamente relacionadas ao cumprimento da missão organi-zacional e as atividades concernentes a sua gestão. Misturavam-se, por um lado, os sentimentos de crença na importância da causa e de insegurança e impotência dian-te das tarefas cotidianas individualmente distribuídas; e, por outro, a clareza sobre a

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pertinência de um modelo de gestão participativo que pode ser ilustrado como uma “ciranda”, contrapondo-se à afirmação de uma estrutura piramidal, na qual ficariam explícitas e reforçadas as relações hierárquicas.

No segundo dia do encontro, a reflexão sobre a sustentabilidade do Instituto brotou a partir de uma série de questões inter-relacionadas, que buscaram trazer à tona as-pectos da compreensão do grupo sobre: o que seria sustentabilidade; o papel e impor-tância das contribuições individuais para a sustentabilidade da organização; a produ-ção e o legado do Instituto para a sociedade; o cumprimento da missão organizacional e a relação com o público beneficiário; a legitimidade da organização na atuação pela causa social que representa e; a relação com parceiros financiadores.

Como elementos de provocação das reflexões e debates, foram lançadas questões ao grupo, tais como: Quais as minhas características pessoais que contribuem para o Instituto? O que eu gostaria de desenvolver melhor? Em qual lugar da organização eu gostaria de estar atuando? O que o Instituto produz e deixa de legado para a socieda-de? O Instituto sistematiza e socializa a sua produção? O público beneficiário do Insti-tuto participa efetivamente do processo de construção? O trabalho é feito com eles ou para eles? O projeto social do Instituto está difundido na sociedade? O projeto social do Instituto pode continuar independente do Instituto? Como o Instituto é visto pela sociedade? De quais espaços políticos o Instituto participa? Quais os indicadores de re-conhecimento do trabalho do Instituto? O Instituto consegue dialogar com diferentes setores da sociedade? Quantos parceiros/financiadores colaboram com o Instituto? O que aconteceria se o atual parceiro financiador deixasse de financiar o Instituto? Como o Instituto é visto pelos seus parceiros? Porque alguém se torna/se tornaria parceiro do Instituto?

O terceiro e último dia teve como objetivo a construção coletiva da matriz referen-cial da sustentabilidade do Instituto. O processo de construção da matriz teve envolvi-mento mais intenso de alguns membros do grupo em detrimento de outros, refletindo, sobretudo, o conhecimento mais localizado sobre a organização e um sentimento diferen-ciado no que se refere à legitimidade de falar sobre o Instituto ou em nome dele.

Dimensão Critérios Indicadores

Pedagógica / Cognitiva Construção de metodologia de

formação continuada.

Eficiência/eficácia na formação de educadores.Reestruturação técnica das Se-cretarias Municipais de Educação (SMEs).

Produção e sistematização de saberes específicos.

Sistematização do Projeto Chapa-da.

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Política

Promoção da mudança cultural no âmbito da educação.

Mudança nos planos de cargos e salários com inclusão de horas de trabalho para educação continuada.Permanência da fiscalização pelas comissões de educação em cada município.Concursos públicos para coordena-dores pedagógicos.Institucionalização da educação continuada nas políticas públicas municipais de educação.

Comprometimento dos municípios e das sociedades locais.

Criação de comissão de avaliação para acompanhamento dos proces-sos educacionais, em especial as propostas elencadas no Fórum de Educação.Continuidade e ampliação da res-ponsabilidade do município. Diversidade e nº de participantes nos Fóruns de Educação.

Comprometimento do comitê estratégico.

Nível de participação nas reuniões.Registro (qualitativo) logo após reuniões.

Reconhecimento pela sociedade da transformação social promovi-da pelo Instituto.

Premiações.Nº de doadores (projeto futuro).Diversificação de financiadores (projeto futuro).Nº de acessos ao site (projeto futuro).

Metodologia de construção coleti-va de projetos.

Construção do plano institucional com participação dos diferentes atores que se relacionam com o Instituto.Participação da sociedade civil nas decisões e planejamento do Instituto (ONGs, Associações, Conselhos etc.).

Sentimento de pertencimento da rede de educadores em relação à causa da educação.

Nº de educadores na rede em cada município.Mobilização espontânea dos edu-cadores de Mucugê para realiza-ção do Fórum de Educação.

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Político/Afe-tiva

Sinergia da equipe. Afirmação de pertencimento ao grupo.

Transparência e credibilidade.

Relação diferenciada com forne-cedores.Rede de relacionamento dos inte-grantes da equipe.Bom relacionamento do Instituto com parceiros e sociedade.

Comprometimento da equipe téc-nica e pedagógica com a missão da organização.

Nível de participação nos encon-tros de formadores em torno de 80%.

Técnica Eficiência e eficácia nas atividades no trabalho.

Otimização dos recursos financei-ros, a partir da redução de gastos desnecessários.Investimento em capacitação da equipe.Planejamento e organização das ações.

Diversidade e qualidade dos instrumentos de comunicação.

Quantidade e qualidade dos mate-riais produzidos.Sistematizações das práticas. Plano de comunicação.Reportagens na mídia.

Sinergia da equipe Produtividade.

EconômicaMonetário Montante de recursos recebidos.

Quadro 2. Matriz-Referencial: as dimensões da sustentabilidade do Instituto na sua visãoFonte: Elaboração própria, com base no que foi construído com os participantes da Oficina

A proposta da oficina, de realizar uma reflexão acerca da sustentabilidade do Institu-to, originando, ainda, uma matriz referencial para auxiliar a organização na construção cotidiana de sua sustentabilidade, foi cumprida. É necessário salientar, entretanto, que não se trata de uma matriz acabada, que contemple todos os aspectos relacionados à sustentabilidade do Instituto. Certamente, muita coisa poderia ser incluída, agregada, articulada, aprimorada. Essas inclusões são parte constitutiva do processo de compre-ensão e fortalecimento da própria sustentabilidade organizacional, e não se findam com o Projeto de Extensão.

Ao tratarmos da sustentabilidade do Instituto, importa afirmar que essa é essen-

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cialmente dinâmica, mutante, assim como cada organização da sociedade civil, que precisa se reinventar a cada dia para “dar conta” do cumprimento e enraizamento da missão na sociedade, da incorporação de ferramentas de gestão, da escassez dos re-cursos e de tantos outros aspectos.

Da discussão sobre a sustentabilidade do Instituto emergiram questões relevantes no que diz respeito à compreensão dessa organização e de sua gestão. Do ponto de vista do cumprimento da missão organizacional e do comprometimento da equipe, ficou perceptível que a paixão move e mobiliza os colaboradores do Instituto, sen-do esse um elemento importante da sua sustentabilidade. Nas falas dos diferentes atores evidencia-se uma forte dimensão afetiva movendo as ações e entrelaçando as relações. É perceptível a admiração e a importância dada pelo grupo ao trabalho fim da organização, admiração essa refletida na crença em um retorno concreto, e que se traduz na contribuição de cada um e de todos para com um processo de transformação social através da educação.

No que diz respeito ao preparo técnico da equipe de trabalho, alguns membros do grupo afirmaram o sentimento de despreparo para lidar com atividades concernentes a sua função. Porém, o desejo de aprender e contribuir mais com a Organização é recorrente para a maioria. Nesse sentido, salientou-se a importância da capacitação contínua em relação às atividades de gestão. Foi ressaltada a rotatividade da equipe e a dificuldade de encontrar profissionais com conhecimentos específicos no campo da gestão, comunicação, finanças, dentre outros, na região ou com disponibilidade para residir lá.

Ao tratar dos recursos econômico-financeiros e parcerias organizacionais, ficou cla-ra a necessidade de fortalecimento da dimensão econômica da sustentabilidade do Instituto, uma vez que a dependência dos recursos do “inanciador master” pode im-plicar um risco para o Instituto, tanto do ponto de vista econômico/financeiro quanto político. Desse modo, a necessidade de diversificação das parcerias e financiamentos aparece como um elemento fundamental para a sustentabilidade do Instituto.

Aspectos concernentes ao planejamento e à gestão organizacional também foram considerados como pontos nevrálgicos para a sustentabilidade do Instituto. A necessi-dade do planejamento das atividades específicas de cada colaborador, com a compre-ensão de que cada parte afeta diretamente o todo, foi uma das questões colocadas. Discutiu-se a necessidade de a diretoria delegar ações, confiando que as mesmas serão realizadas a contento. Ponderações sobre autonomia e confiança deram o tom à dis-cussão.

3.2. Planejamento Estratégico

A oficina de planejamento estratégico foi realizada em dois momentos: o primeiro, de cunho teórico e com caráter de provocação para reflexão; o segundo, de caráter prático, em que algumas questões foram retomadas e elaborou-se em conjunto (co-laboradores, rede de formadores e sócios-fundadores) o documento “Planejamento Estratégico do Instituto para 2009”. Esta oficina foi importante do ponto de vista da trajetória da organização, dado que seria a primeira vez que realizavam o planeja-

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mento de forma coletiva; e complexa, por sensibilizar para elementos abstratos do Instituto localizados na dimensão da sua essência, e por permitir aflorar controvérsias, fragilidades e conflitos que se constituiriam em impulsionadores da transformação.

No primeiro momento – teórico, o método que conduziu a oficina foi pautado em sugerir ao grupo reflexões sobre si mesmo (suas atividades, objetivos e missão) -e somos? Como gostaríamos de ser? Quais são nossos valores mais profundos? Em se-guida, foi sinalizado para o grupo que o processo de planejamento implica em falar de futuro, e, portanto, falar de mudanças, compreender a necessidade de aprender a mudar. Nesse contexto, o grupo foi orientado a refletir sobre: O que queremos ser? O que queremos mudar? O que podemos mudar? O que não pode ser mudado, devendo permanecer, por estar na essência do trabalho desenvolvido pelo Instituto? No último momento dessa atividade, a oficina provocou a reflexão sobre as limitações do plane-jamento: planejar é algo possível? É algo que ajuda? Em qual contexto é possível an-tever o futuro, e o que é impossível antecipar? Quais as limitações internas e externas no que tange ao planejamento? Há limitações contextuais? Há limitações no que tange à relação entre indivíduos? Como mudar?

O grupo esteve bastante à vontade para reconhecer e compartilhar com os consul-tores-pesquisadores as controvérsias9, dualidades e conflitos que emergiam desse pro-cesso reflexivo. Em certa medida, a efervescência de opiniões e posicionamentos sobre aquilo que deveria permanecer e aquilo que deveria mudar no Instituto foi mediado pela equipe do Centro Interdisciplinar. A mediação se deu não no sentido de orientar para a realização de escolhas e novos pactos naquele momento, mas no sentido de reconhecê-los como elementos importantes a serem recuperados na ocasião de elabo-ração do documento de planejamento estratégico.

A tônica dessa oficina foi traduzida pelo grupo da seguinte forma: “naturalizemos o conflito”. A idéia consistia em assumir contradições como algo inerente, e saudável para o processo de reflexão, de aprendizagem, de melhoria, e, portanto, também de planejamento10. Isto, na prática, não seria fácil “- implicaria em construções e descons-truções do indivíduo sobre si mesmo, e nas suas relações com o grupo.

No segundo momento da oficina de Planejamento Estratégico, ocorreu a elaboração de um documento que sistematizava as idéias do grupo sobre o futuro do Instituto. Conforme pactuado, este momento foi liderado pela diretoria do Instituto. Entendia-se a importância da legitimação da diretoria através da condução deste processo institucional. Um consultor-pesquisador do Projeto de Extensão apenas amparou a oficina no que tangia a elementos

9 Em outro momento, decidiu-se que nem sempre seria saudável compartilhar os conflitos internos com a equipe do Centro Interdisciplinar, pois se incorria no risco de perda do foco das oficinas. Assim, entendeu-se que essa exposição deveria ser feita com limites, compreendendo que nem sempre o grupo do Centro Interdisciplinar seria capaz de “ajudar” com os conflitos, e talvez não fosse esse o seu papel. A diretoria do Instituto e a Coordenação do Projeto de Extensão acordaram: tornamo-nos “zeladores” dos focos e objetivos das oficinas.10 Do ponto de vista conceitual, importa esclarecer que, ao assumir a terminologia “mobilização de recursos” ao invés da comumente utilizada “captação de recursos”, buscamos enfatizar o elemento central do conceito de mobi-lização de recursos que é o desenvolvimento de uma ação educativa dirigida a todos os setores da sociedade. Desta forma, educar, dialogar e reconhecer o papel de cada um dos atores no enfrentamento dos graves problemas so-ciais brasileiros são elementos importantes para se estabelecer um ambiente propício a ações éticas e sustentáveis de mobilização de recursos. Conforme afirma Iório (2004): “mobilização de recursos é, em sua essência, o trabalho permanente de educar a sociedade, educar o próprio Estado e demais setores. Não se trata apenas de arrecadar dinheiro a qualquer custo, não se trata de substituir papéis”.

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instrumentais ou conceituais do planejamento estratégico. Ficou decidido que o grupo sis-tematizaria as “vontades” do Instituto, a princípio sem pensar nas limitações de recursos disponíveis. No futuro, as vontades seriam repensadas em termos de disponibilidade de recursos e prioridades. Assim, embora tenha se realizado inicialmente um levantamento de oportunidades, ameaças, forças e fraquezas do Instituto, o planejamento foi realizado diante da consideração prioritária das oportunidades e forças. Decidiu-se que as fraquezas e ameaças seriam trabalhadas de forma particularizada, à medida que aflorassem na execu-ção do planejado, nas práticas cotidianas. Esta era a escolha do grupo.

Seria então uma característica deste grupo traçar o “ideal”, e caminhar em busca dele? Pensar a situação ideal seria o laço mais forte de mobilização neste grupo? Quais seriam as conseqüências deste perfil do grupo no caso do planejamento que requer um esforço de racionalização? Teriam emergido conflitos por conta de um estímulo externo no sentido da racionalização para o planejamento? Como isto traz conforto/desconforto para o Instituto na relação com outras organizações com que dialoga? O que teria sido possível para o Insti-tuto apreender sobre si mesmo, e sobre si na relação com outras organizações?

A oficina de planejamento estratégico, nesses dois momentos, não foi suficiente para que o documento “Planejamento Estratégico 2009” do Instituto fosse finalizado. Seria re-discutido e revisto ao longo do ano. O grupo pôde aprender ao realizar o exercício de pla-nejamento, ao enfrentar a complexidade que está relacionada a tal processo. Ao planejar coletivamente, desmistificou-se a idéia de que planejamento é algo que envolve somente a diretoria - aproximaram-se as áreas administrativa e pedagógica. Os laços entre todos os participantes do Instituto foram fortalecidos com a vivência da interdependência promovi-da no planejamento de seu futuro. Limites e poderes que emergem do processo de planeja-mento também ficaram mais explícitos e, com isto, o grupo pôde aprender sobre si mesmo. Ficaria evidente como a aprendizagem neste grupo estaria relacionada à prática cotidiana, às ações e relações em torno de cada indivíduo, e como estes momentos de reflexão inten-siva em grupo seriam espaços complementares de aprendizagem fundamentais.

Para o grupo de consultores-pesquisadores, a aprendizagem estaria relacionada à ges-tão. Ficava evidente como a construção coletiva (no processo de planejamento) dependia da construção de um sentido para todo grupo, um sentido conectivo. Idéias não modeladas em grupo permanecem sem sentido para o grupo e têm sua sustentação fragilizada. Mode-lar idéias envolve negociar fronteiras pessoais, estabelecer regras no grupo, para o grupo.

Outro fator que incitou reflexões no grupo de pesquisadores foi a dúvida sobre a neces-sidade de racionalização para possibilitar planejamento. Os laços que reúnem indivíduos em torno do Instituto são laços de afetividade, de emoção. A afetividade foi um dos fatores de sustentabilidade apontado pelo grupo. Até que ponto o processo de racionalização facilita o diálogo do Instituto com outras organizações? Até que ponto ameaça sua sustentabilidade? Quanto a isto, atentou-se ainda para o fato de que o grupo tenha feito a opção de planejar diante de uma situação ideal. Ainda que reconhecessem “ameaças e fraquezas”, julgaram pertinente traduzir ‘sonhos’ no documento de planejamento. Sendo o sonho outro grande fator de mobilização do grupo para a causa, aquilo que mantém o Instituto com vida, quais seriam os postulados teóricos para afirmar que ameaças e fraquezas deveriam ganhar mais importância?

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3.3. Mobilização de Recursos

A oficina de Mobilização de Recursos foi realizada em dois dias. A programação seguiu uma orientação teórico/prática, privilegiando, no primeiro momento, a apresentação e a discussão de conceitos e o debate de casos práticos para, posteriormente, se trabalhar com a realidade específica do Instituto. No segundo momento, em um trabalho coletivo, foi construído o Plano de Mobilização de Recursos do Instituto para 2009, com base no Plane-jamento Estratégico Organizacional.

O escopo teórico/conceitual da oficina retomou a discussão da sustentabilidade de or-ganizações e projetos sociais; discutiu conceitos, princípios e objetivos da mobilização de recursos; analisou os cenários local, nacional e internacional da mobilização de recursos; a prática de mobilização de recursos; as diferenças na mobilização de recursos junto a empre-sas, indivíduos, ONGS e governos; e o planejamento de mobilização de recursos.

A discussão referente à mobilização de recursos no âmbito do Instituto mostrou-se abso-lutamente relevante na perspectiva do seu fortalecimento organizacional, com a incorporação de lógicas que se relacionam diretamente às atividades concernentes à gestão, fragilidade já identificada anteriormente na Organização.

Para tratarmos da mobilização de recursos e dos desafios que estão colocados para o Insti-tuto neste âmbito, foi preciso localizar a Organização no contexto relativo à temática. É inegá-vel que, ao longo dos últimos anos, inúmeras mudanças têm ocorrido: redefinições temáticas e geográficas das agências de cooperação internacional que, tradicionalmente, financiavam projetos sociais no Brasil; flutuação de fundos públicos; crescimento do número de organiza-ções atuando na área social - e competindo pelos mesmos recursos; maior exigência para com as organizações no que se refere à gestão, à transparência na utilização dos recursos e nos di-recionamentos políticos institucionais; profissionalização do trabalho; visibilidade das ações e serviços oferecidos por estas organizações, inclusive na grande mídia; dentre outros aspectos.

Para o Instituto, apenas recentemente configurado enquanto organização formal, os de-safios são ainda mais significativos, se considerarmos que os recursos financeiros para a re-alização de suas atividades, até pouco tempo, originavam-se de uma única parceria. Deste modo, ao mesmo tempo em que procura adaptar-se ao novo contexto que está posto para as organizações da sociedade civil, o Instituto parte para a busca da diversificação de suas parcerias, com vistas a sua sustentabilidade enquanto organização e a execução da sua missão.

Ciente da necessidade de “expandir horizontes” e construir novas alianças e parcerias, a equi-pe do Instituto começou a estruturar sua mobilização de recursos futura elencando necessidades, públicos potenciais para o estabelecimento das parcerias / financiamentos / doações, e as estra-tégias de mobilização a serem desenvolvidas. Nessa perspectiva, foi ressaltada a parceria com as prefeituras que, apesar de estratégicas, precisam ser revistas no que tange à instauração de procedimentos no repasse dos recursos, para que não haja prejuízos à realização das atividades.

A discussão acerca do Plano de Mobilização de Recursos do Instituto e a sua construção con-sideraram a idéia de que tratar da questão da mobilização de recursos está para além da mera obtenção de recursos financeiros, podendo a busca de apoio se dar em diversas instâncias, seja o apoio político, apoio técnico, apoio financeiro, apoio em forma de doação de recursos materiais e em trabalho voluntário.

Nesse sentido, foi necessária a compreensão de que mobilizar recursos é, antes de tudo, cons-

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truir alianças. A idéia de construir alianças é bem mais ampla do que, simplesmente, ir atrás de um doador para os projetos a serem desenvolvidos. Construir alianças significa unir esforços de pessoas e organizações com interesses comuns. Desta forma, trata-se de unir esforços de pessoas e organizações em prol da educação pública de qualidade. Nessa perspectiva, houve um consenso sobre a importância de envolver a sociedade, em especial a local, com a causa e a sustentabilida-de da organização.

Apesar de localizada enquanto “atividade-meio” e, portanto, diretamente relacionada à ges-tão da organização, a mobilização de recursos, do modo como foi abordada na oficina, tem es-treita convergência com a missão do Instituto, conquanto seu caráter eminentemente educativo. Assim, mobilizar recursos é um processo estratégico no qual a organização assume o papel de educar a sociedade, tentando torná-la parceira e co-responsável pelos projetos sociais empreen-didos, os quais, em última instância, contribuem para a transformação social mais ampla alme-jada por todos. Mobilizar recursos, antes de qualquer coisa, é ampliar a base social de apoio da organização, na sociedade, enraizando a sua missão. Assim, recursos são consequência última de uma missão fortalecida e de um trabalho bem realizado por uma organização que possui credibi-lidade e legitimidade na sociedade na qual atua.

4. Compartilhando o processo de aprendizagem

Os projetos de extensão são um rico espaço de construção do conhecimento, principalmente por seu objetivo de aproximar o saber teórico, acadêmico, da prática cotidiana das organizações. Há aí a promoção e o compartilhamento do conhecimento, através do envolvimento de equipes multidisciplinares que colocam em diálogo professores, pesquisadores e membros da sociedade civil.

Importa ressaltar que o início de cada oficina era quase a opção por um mergulho no incerto. Embora algumas linhas gerais sejam estabelecidas, o grupo do Instituto é sempre surpreendente nas dicotomias que faz emergir e combinar: conflito e pacto; maturidade e imaturidade; poder coletivo e poder individual; coerência e contradição; razão e emoção; real e ideal. Facilitar oficinas nesse grupo exige disposição para ruir por dentro e reconstruir, novamente demolir e remodelar. Ora, se não reside aí a riqueza potencial da aprendizagem, num contexto em que a única certeza que temos é de que tudo vai mudar o tempo todo?

Ao falarmos de mudanças, também fazemos referência à própria equipe do Instituto, que teve configurações e atores diversos no decorrer do Projeto. Ao lidarmos com um grupo como esse, deparamo-nos com um grande dinamismo que finda por exigir extrema sensibilidade do facilita-dor. É certo que aí nada pode chegar pronto, tudo o que foi previamente construído deve permitir adaptações ao longo da própria oficina. Adaptações essas que serão construídas com o grupo. Desse modo, afirmamos ser esse um processo em ebulição, onde a mudança e a improvisação têm lugar privilegiado. Métodos e saberes científicos são questionados e precisam de adaptação às práticas que encontramos.

Outro aspecto que surpreende, desconstruindo um pouco aquilo que está posto tradicional-mente no campo da administração, é a idéia de que a excelência na gestão condiciona a plena realização da “atividade-fim” da organização. No Instituto, a excelência da “atividade-fim” não depende da excelência das “atividades-meio”, levando-nos a refletir sobre a possibilidade de uma inversão da crença organizacional, já que as “atividades-meio” no Instituto vem revelando fra-

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gilidades que, até então, não desqualificam a plena realização das atividades-fim. No Instituto, atividades meio e fim estão fortemente entrelaçadas, já que a motivação da equipe das ativi-dades meio, em grande medida, está pautada na importância da atividade fim - a qualidade da educação.

Sobre a natureza da aprendizagem através do Projeto de Extensão, ficou evidenciado um me-canismo particular. Entendendo que a característica principal do grupo do Instituto é de laços tecidos através da afetividade e da crença em algo ideal, os estímulos externos no sentido da racionalização, seja para o planejamento, seja para estabelecer critérios de sustentabilidade, seja para o grupo fazer uma leitura sobre si mesmo, percorreram a seguinte trajetória: os estímulos fo-ram inicialmente questionados, em seguida houveram iniciativas de compreender a pertinência da racionalização, e, por fim, foi construída coletivamente uma forma intermediária que permitis-se “certa dose” de racionalidade amalgamada com “certa dose” de afetividade. Encontramos aí a construção coletiva de um ‘caminho do meio”, de uma síntese da dualidade.

Assim, a natureza da aprendizagem que se deu no âmbito do Projeto de Extensão parece ser a da construção coletiva, que reforça/confirma/evidencia a abordagem sócio-prática da apren-dizagem, a qual focaliza os processos de interação de pessoas, em torno de práticas comparti-lhadas (SOUZA-SILVA; SCHOMMER, 2008). A experiência evidencia o potencial de compartilhar conhecimentos ou saberes em torno de uma prática na qual se engajam pessoas com diferentes repertórios e trajetórias, que desenvolvem um modo de fazer, um repertório próprio do projeto, daquela prática que compartilham, que passa a ser muito significativa para a aprendizagem de cada envolvido e das organizações das quais participam.

5. Reflexões finais

Embora conscientes do fértil caminho trilhado na elaboração e execução deste Projeto de Extensão e do conhecimento construído e compartilhado, percebemos que esse foi apenas um novo passo para o fortalecimento do Instituto enquanto organização. Por outro lado, en-quanto consultores-pesquisadores, reafirmou-se a idéia de que fomos e somos essencial-mente aprendizes. Aprendemos, sobremaneira, com a lógica do Instituto que nos desafiava a cada instante, a cada nova oficina, a cada encontro. Aqui, tentamos resumir brevemente a aprendizagem, as novas vivências da gestão, os novos contextos e os novos rumos que se constituíram através da experiência apresentada.

Essas reflexões, distantes da pretensão de esgotar o conteúdo da aprendizagem neste Pro-jeto de Extensão, traduzem apenas o início de um processo de sistematização das vivências, percepções, observações e construções que se deram ao longo do Projeto, entendido como base para a formação de uma comunidade de prática que agrega diferentes pessoas, seus universos de atuação e trajetórias de vida. O Projeto segue, transformando, sendo transfor-mado, ampliando horizontes organizacionais e pessoais, incentivando o constante “aprender a aprender”. Algo que a experiência mostra é que a aprendizagem é um processo sempre aberto, em curso, com idas e vindas, em que, a cada passo, se (re)constrói o significado de algo que já se julgava sabido, sendo importantes os valores que orientam as interações entre as pessoas em torno das práticas que compartilham.

Do ponto de vista individual, a aprendizagem está relacionada ao movimento de constru-ção, desconstrução e reconstrução. No âmbito organizacional, este movimento também pode

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traduzir a aprendizagem, mas acrescentaríamos aí a percepção de que a este movimento se associa outro: o de aceitação e resistência. A organização, no momento em que recebe estímu-los de aprendizagem externos através de seus diálogos interinstitucionais, parece selecionar um conjunto de práticas e valores que escolhe proteger das transformações decorrentes de estímulos externos - uma essência a ser mantida; um conjunto de crenças fundamentais que não quer ser transformado e que está associado à sustentabilidade organizacional. Trata-se de um “tesouro” a ser protegido pelos laços estabelecidos entre os indivíduos na organização.

Assim como o Instituto acredita na alfabetização como potencial de transformação da rea-lidade social, crença refletida no seu lema “lendo o mundo para escrever a vida”, entendemos que essa experiência contribuiu e contribui para a “alfabetização” de ambos os grupos no que concerne à gestão, à realidade local diversa, ao contexto específico no qual a prática se realiza, e, sobretudo, a compreensão da aprendizagem como processo contínuo, no qual indivíduos e grupos tornam-se interdependentes.

6. Referências

ALIANÇA INTERAGE. Prêmio Parcerias. Disponível em: <www.interage.org.br/novo/index.php?sessid=23>. Acesso em: 20 jun. 2009.FAJARDINI, Z. O.; DAVEL, E. Paixão e Gestão Social: o caso de um projeto educacional baiano. IN: Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social, ENAPEGS 2009. Anais do III ENA-PEGS. Juazeiro (BA), Petrolina (PE), 2009.IÓRIO, C. Mobilização de recursos: algumas idéias para o debate. 2004. Disponível em: <http://www.lead.org.br/article/view/198/1/155>. Acesso em: 04 out. 2004.SOUZA-SILVA, J. C.; SCHOMMER, P. C. A pesquisa em comunidades de prática: panorama atual e perspectivas futuras. Organizações & Sociedade, 15 (44): 105 - 127, jan./mar. 2008.SIQUEIRA SANTOS, T. C. S. Oficina de Sustentabilidade – Um breve relato. Mimeo. Salvador, 2008. ________ . As diferentes dimensões da sustentabilidade em uma organização da sociedade civil brasileira: o caso do Gapa-Bahia. Salvador, NPGA/UFBA, 2005. (dissertação de mestrado).

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Aprendizagem feita à mão: a experiência do Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares

Aprendizagem feita à mão: a experiência do Projeto Maestria em Artes e Ofícios

Populares

Rodrigo Maurício Freire SoaresSilvia Maria Bahia Martins

Tânia Fischer

1. Introdução

Antes da invenção da máquina a vapor, fruto da Primeira Revolução Industrial, na Inglaterra, os objetos de uso comum – como tecidos, peças de vestuário, móveis e utensílios – eram produzidos por artesãos. As oficinas eram o locus privilegiado de pro-dução e reprodução do ofício manual por conta própria, com emprego de ferramentas forjadas e ajuda de aprendizes. Após ser o principal processo de produção na Idade Média, o artesanato sofreu, no seu uso, uma série de mudanças em virtude, sobretu-do, da progressiva produção fabril em massa.

Na contemporaneidade, como expressão estético-funcional, o artesanato pode ser situado como uma matriz de resistência às tentativas substancialmente homogenei-zantes. Mesmo quando repetida através de numerosos exemplares, uma obra de ar-tesanato nunca chega a ser absolutamente igual à outra, o que lhe confere uma indi-vidualidade impossível de ser obtida na produção industrializada. Por mais cópias que tenham, as peças artesanais são sempre peças únicas.

O processo imperativo de globalização vivido nos dias de hoje, aparentemente po-deria nos conduzir a um processo de “destradicionalização” (GIDDENS, 1991) e de pou-ca referência em aspectos locais. Contudo, embora se perceba esse aspecto de homo-geneização, se observa também a valorização do local, de conhecimentos tradicionais e da partilha de códigos de conduta específicos e singulares.

O saber tradicional não existe de forma desconectada de uma esfera mais ampla, que ultrapassa o âmbito local e individual. Como afirma Hall, “a identidade (...) costura (...) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 1998, p.10). O saber tradicional constitui-se em um dos elementos responsáveis por conferir uma dada identidade ao local, o que o distancia ainda mais de uma lógica positivista que sinaliza verdades ou leis que sejam aplicáveis em qualquer contexto. O artesanato, tratado neste artigo, é uma expressão local, inserida numa lógica global de acirramento de diferenças em que a “dimensão cultural do local atua na globalidade como um fio invisível que vincula os indivíduos ao espaço, marcando uma certa idéia de diferença ou de distinção entre comunidades” (ALBAGLI, 1999, p.186-7).

Este artigo busca explorar as dimensões existentes na transmissão de saberes tra-

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dicionais. Para tal, foi utilizado como objeto de estudo a maestria artesanal pesqui-sada no âmbito do projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares: Mapeamento dos mestres-artesãos e seus saberes populares no Território do Sisal/BA1. O Projeto tem como objetivo mapear mestres artesãos, caracterizando os saberes populares para re-conhecer, valorizar e difundir, à sociedade, as artes e ofícios populares nos territórios de identidade2 do semi-árido baiano (região sisaleira3). Prevê a sistematização de for-mas de transmissão dos saberes visando contribuir para a preservação de tecnologias sociais ligadas à cultura e à identidade baiana.

A metodologia utilizada no projeto subdivide-se em quatro grandes etapas:1. Mapeamento e caracterização de mestres-artesãos, suas redes e cadeias de pro-

dução;2. Construção de indicadores, critérios e formas avaliação dos saberes;3. Construção de formas de sistematização dos saberes populares por meio de pro-

postas de extensão e difusão social;4. Proposição de museu contemporâneo de artesanato do território do Sisal.

Este artigo estrutura-se em três momentos. Primeiramente, a aprendizagem é abordada como um fenômeno artesanal. Em seguida, são tratados os desafios para a transmissão dos saberes e, por fim, apontadas possíveis dimensões de aprendizagem existentes na atividade artesanal. Entre as perguntas que orientam a exploração estão: como se dá o processo de aprendizagem de um conhecimento tradicional? Que desa-fios estão presentes neste processo de aprendizagem? Como se difundem os conheci-mentos? Quais os desafios para seu repasse a futuras gerações?

2. Aprendizagem como fenômeno artesanal

É o “fio invisível” que liga o desenvolvimento da pedagogia nos últimos dois sécu-los, como Rugio (1998) identifica com propriedade. Buscando origens em Rousseau e Locke, em Pestalozzi e, especialmente, em John Dewey e nos movimentos da New Education, traduzidos no Brasil pela Escola Nova dos anos 30 aos 60, sob a liderança de Anísio Teixeira, a aprendizagem artesanal é, fundamentalmente, a aprendizagem do learning by doing, do aprender fazendo, do aprender pela experiência.

Muitos são os conceitos e as perspectivas sobre aprendizagem como fenômeno

1 Projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, realizado pelo Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS), sediado na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, com término previsto para dezembro de 2009.2 Com o objetivo de identificar prioridades temáticas definidas a partir da realidade local de cada Território, o Governo da Bahia passou a reconhecer, em seu Planejamento, a existência de 26 Territórios de Identidade, cons-tituídos a partir da especificidade dos arranjos sociais e locais de cada região. Sua metodologia foi desenvolvida com base no sentimento de pertencimento dos moradores, sua economia e cultura local. (Fonte: www.seplan.ba.gov.br).3 O Território do Sisal (BA), inserido na região do semi-árido baiano, é composto por 20 municípios e possui 552.713 habitantes, dos quais 348.222 (63%) vivem na área rural. O Sisal tem 64.350 agricultores familiares, 2.344 famílias assentadas, 413 famílias de pescadores, uma comunidade quilombola e uma terra indígena. O IDH médio do território é 0,60 (Fonte: www.sei.ba.gov.br ).

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referido ao indivíduo ou às comunidades humanas. Do mito da caverna de Platão à aprendizagem em rede com recursos digitais, o conceito de aprendizagem varia confor-me os tempos e os espaços em que ocorre. A aprendizagem é uma ação ou fenômeno que transforma quem a pratica ou vive, pela reelaboração de significados anteriores, criando um novo sistema de significações, geradas pela necessidade de dar respostas de diversas naturezas a problemas contextualizados.

Jean Piaget (1970), Lev Vygotsky (1987), John Dewey (1973) e Paulo Freire (1997) criaram conceitos e conexões que permitem significar a aprendizagem como constru-ção social a partir da colaboração humana. Assim, há paralelo permanente entre a realidade social e a sua apreensão pelo indivíduo, explicitando o quanto a aprendiza-gem remete-se a movimento também conflituoso e de embate entre perspectivas, mo-delos, ideologias. Per se, a aprendizagem implica escolhas, com objetivos conscientes.

A passagem da informação - nível de recepção de dados novos - para conhecimento - estágio de compreensão e re-invenção do saber - é dependente de elementos como motivação, interesse, necessidade do sujeito em aprender, além dos condicionantes simbólico-culturais, ambientais e sociais circundantes. Essas prerrogativas da aprendi-zagem no artesanato estão presentes nas comunidades tradicionais.

Comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais podem ser definidas como “grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida de forma mais ou menos isolada com base em cooperação social e for-mas específicas de relacionamento com a natureza” (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p.27). Inserido na concepção de um conhecimento tradicional, o artesanato integra o leque de produtos culturais e é determinante para a expressão da identidade de uma cole-tividade. A definição de artesanato proposta pelo Conselho Mundial de Artesanato realizado na Colômbia em 1996, e utilizada também pelo SEBRAE Nacional, o conceitua como “toda atividade produtiva que resulte em objetos e artefatos acabados, confec-cionados manualmente ou com a utilização de meios tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, qualidade e criatividade” (SEBRAE, 2004, p.21). De forma ainda mais contundente, Santos afirma que o artesanato deve ser entendido como “modo de aprendizagem e de vida que se entretecem alimentando uma cultura incor-porada de reprodução e preservação” (SANTOS, 1997, p.6).

O artesanato, como um tipo de conhecimento tradicional, apresenta duas carac-terísticas na feitura dos seus objetos: a liberdade e a manualidade. Primeiramente, o artesão deve gozar de liberdade para definir a sua produção, seja na tecnologia em-pregada, na matéria prima e, sobretudo, no tempo (ritmo da produção). Um segundo aspecto, e este mais importante para nossa análise, refere-se à manualidade. Há de se ressaltar que o artesanato se dá por meio da atividade manual, porém nem toda manualidade pode ser considerada artesanato. A destreza e a habilidade artesanal de fato se expressam através das mãos e tecem caminhos criativos às vezes impensáveis.

A maestria no processo artesanal é observada em um grupo de pessoas que con-jugam no seu fazer técnica e sensibilidade. Definir um mestre-artesão é tarefa das mais difíceis. Uma definição possível, ainda em construção no âmbito do Projeto, é a de que mestres-artesãos são indivíduos reconhecidos localmente e que detêm grande experiência e conhecimento de saberes e fazeres tradicionais. Estes desenvolvem ati-vidades que possuem relevância para a cultura popular, as quais podem ser entendidas

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como matriz para várias manifestações culturais. Dessa forma, é atribuída a condi-ção de mestre àquele que tem os conhecimentos e as habilidades necessárias para a produção, preservação e repasse de artes e ofícios enraizados no cotidiano de sua comunidade, sendo reconhecido no local onde vive e por outros setores culturais. Por maestria entende-se o domínio de um campo de saberes e práticas relativamente de-finido enquanto natureza e estrutura conceitual, ou seja, um campo disciplinado pela própria estrutura do saber e com ritos de passagem que garantem a sua permanência e renovação (FISCHER, 2007, p.4).

A pesquisa identificou, até então, sete critérios que determinam a maestria no ar-tesanato. São eles: I) Comprovada existência e relevância do saber ou do fazer para a localidade; II) Relevância da vida e obra voltadas para a cultura tradicional do local; III) Reconhecimento público; IV) Vivência dos costumes e tradições culturais; V) Tempo de atuação do artesão; VI) Conhecimento sobre todo o processo de fabricação do artefato; VII) Efetiva transmissão dos conhecimentos.

Sobre este último critério, nos deteremos de forma mais cuidadosa. Importa-nos aqui, essencialmente, identificar como se dá o processo de aprendizagem de um co-nhecimento tradicional e quais os desafios existentes para seu repasse a futuras gera-ções.

3. Os desafios para a transmissão de saberes populares artesanais

O repasse de conhecimentos tradicionais é comumente tratado como algo espontâ-neo e natural. Tal percepção mostra-se duvidosa, pois, se assim o fosse, não seriam ne-cessárias políticas de salvaguarda e preservação de memória, tão em voga atualmente e orientadoras de ações no âmbito federal, estadual e municipal. Todavia, as dificul-dades existentes nesta transmissão do “saber” e “fazer” tradicional, mais especifica-mente do artesanato, ultrapassam a dimensão das políticas públicas e se estabelecem em nível individual, na relação entre mestre e aprendiz. A abordagem que coloca este processo como algo “habitual” desconsidera aspectos pedagógicos e culturais especí-ficos envolvidos.

Um dos desafios referentes ao repasse de saberes populares artesanais encontra-se no próprio modelo cultural vigente em nossa sociedade. Com a tentativa de homoge-neização de manifestações culturais pela indústria cultural, as práticas artesanais são percebidas com menor capital simbólico porque não podem ser apropriadas e/ou con-troladas em sua totalidade. Aqui entra em cena o campo do implícito, como elemento substancial do processo de aprendizagem.

O processo convencional de aprendizagem geralmente se depara com um problema

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decorrente de premissas pré-estabelecidas. A figura do mestre como detentor de co-nhecimento e do aprendiz como um receptor passivo fixa papéis limitantes para ambos os lados. No artesanato, estes papéis não são tão diferentes. A expectativa de que o aprendiz absorva as lições do mestre de forma natural nem sempre é alcançada. O mes-tre transmite ao aprendiz a sua chave, porém a engrenagem dentro da fechadura, que possibilita a abertura da porta, pode permanecer implícita. Há um hiato entre o ensino que vai instrumentalizar o indivíduo (lhe dar a chave) e a peça artesanal pronta (por-ta aberta). Entre estes dois pólos há uma engrenagem que possibilitou a abertura da porta, implícita ao indivíduo que girou a chave. No campo do artesanato, como se tem observado no Projeto, poderíamos dizer que este campo “oculto” é composto pela sen-sibilidade, destreza e raciocínio do artesão, sendo difícil explicitá-lo de forma objetiva.

Observa-se que a aprendizagem no artesanato comumente segue uma lógica de imitação da forma correta. O mestre, em algumas situações, se mostra incapaz de de-monstrar o erro do aprendiz, ocupando-se apenas em repetir a forma certa. As ativi-dades no projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares nos mostram que a responsa-bilidade de reprodução de uma prática incorre muito sobre o aprendiz, o que dificulta o processo de aprendizagem. A busca pela maestria na produção das peças artesanais é algo sempre presente, mas pouco se discute a maestria no processo de ensino da técnica. A maestria é comumente associada ao “saber fazer” e pouco ao “ensinar”.

Por outro lado, observa-se que o mestre “escolhe” o seu aprendiz, como forma de preservar uma tradição identitária e perpetuá-la ao longo do tempo. O que o sen-so comum chamaria, coloquialmente, de “pulo do gato”, não é repassado a qualquer pessoa. O repasse de saberes segue um rito de parentesco, sendo transmitido no seio familiar, como forma de garantir sua permanência e o controle da prática repassada.

Outro elemento de reflexão é a necessidade de convencer o aprendiz sobre a importân-cia da continuidade daquela prática artesanal, em vista do reforço intenso de um padrão cultural que panfleta a transitoriedade como motor das relações e das práticas. A sociedade atual vivencia, em grande parte, um estilo de vida que prioriza relações superficiais, uma flexibilidade crescente nas relações de trabalho e a presença, nos meios de comunicação, de um discurso que reforça o individualismo e o estado transitório das relações sociais. Por outro lado, uma idéia de continuidade de modelos e padrões sociais, de forma inevitável, se configura em um desafio cuja validade ao processo de transmissão de saberes pode ser questionável. Como trabalhar com o jovem que viu seus antecessores, a exemplo de pai, tios, vizinhos, no trabalho com artesanato por toda uma vida e se sentir impelido a fazer o mesmo, como se fora um destino irreversível?

Outro ponto é o de garantir a sobrevivência fisiológica, mas sem que isso implique na reconfiguração desmesurada das técnicas e da estética em favor de padronização para o mercado consumidor. Como interagir com os processos macro-sociais sem que estes sejam imperativos? Como e o que re-significar?

4. Tecendo a aprendizagem: dimensões possíveis

Paulo Freire faz uma crítica à formação como um exercício de transferência de in-formação entre pólos: “formar é muito mais do que puramente treinar o educando no

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desempenho de destrezas (...) ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as pos-sibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1997, p. 26). O processo de aprendizagem no artesanato detém os desafios de uma pedagogia tradicional, em que se observe uma relação de ensino e aprendizagem, conjugados à especificidade da área temática propriamente dita.

A realidade pesquisada evidencia a inadequação de uma visão simplista que pode ser observada na pesquisa de mapeamento dos mestres artesãos, a qual nos dá indi-cativos de alguns níveis de aprendizagem necessários e fundamentais ao processo de transmissão de saberes.

4.1 Aprender a ensinar

Uma das contribuições trazidas por Sennett (2009) para a análise da aprendiza-gem no campo dos conhecimentos tradicionais refere-se ao princípio da instrução. O autor coloca as limitações de se transpor à linguagem a transmissão de um saber que depende de aptidões físicas, neurológicas e imaginativas. O repasse do conhecimento pelo mestre-artesão não é uma tarefa meramente descritiva. Dizer como se deve mo-delar uma peça e quais caminhos devem ser seguidos processualmente (primeiro este ponto, depois aquele) nos remete à linearidade pouco explicativa do positivismo. Há o que o autor chama de “denotação inerte”, ou seja, a tentativa de se descrever o “como fazer” imprimindo uma série de orientações físicas sobre como segurar, cortar ou mo-delar uma peça, o que pouco ajuda ao interlocutor. Neste caso, os verbos designam atos ao invés de orientarem a ação.

A ilustração se mostra útil ao transpor uma dada situação de destreza e habilidade ao campo da imagem. O posicionamento correto das mãos registrado por desenho ou foto se torna um recurso comparativo importante, ao passo que expõe detalhamentos de difícil verbalização. Por outro lado, uma narração que explique o contexto em que aquela peça foi ou está sendo produzida torna-se um elemento de reforço cultural importante, capaz de efetuar uma aproximação entre o artesão e a sua produção sim-bólica.

Os artesãos observados no projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares utilizam com freqüência a narrativa e as metáforas em seus trabalhos. Isso se explica pela forte componente da oralidade nestas comunidades. Para cada objeto produzido, o mestre detinha uma história, descrevendo desde a dificuldade em se encontrar a matéria pri-ma até mesmo o motivo pelo qual estava criando determinado objeto.

Em Wenger (1998), são citadas dois tipos de memória possíveis, as quais nos au-xiliam a entender o processo de aprendizagem que se desenrola neste Projeto. A pri-meira delas seria a memória “reificativa”, a qual se constitui na busca de informações e recuperação de dados para uma melhor delimitação do objeto. Observa-se, com bas-tante força, a incidência desta tipologia no Projeto Maestria em Artes e Ofícios Popu-lares, uma vez que se buscou dados de pesquisas já realizadas e informações sobre artesanato e maestria junto a um conjunto variado de parceiros, com a finalidade de identificar sobreposições e reconstituir uma memória histórica sobre o tema.

Um segundo tipo de memória citada por este autor refere-se à tipologia “partici-

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pativa”, cuja construção se dá em decorrência de encontros entre diferentes gerações, sistemas de aprendizagem, trajetórias paradigmáticas e a prática de contar histórias. A oralidade é, portanto, primordial no Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares, pois, aliada à memória reificada, ambas serão capazes de propiciar a continuidade necessária à atividade artesanal local. Nas comunidades visitadas, foram observadas condições de baixa escolaridade, o que consequentemente nos leva a uma situação de pouco uso de escrita como ferramenta de aprendizagem. A pouca ocorrência de recur-sos tecnológicos (máquina fotográficas, vídeo etc.) e a pouca tradição de registros por meio de desenhos tornaram o recurso da ilustração não condizente com a realidade local, reforçando-se, portanto, a importância da oralidade como campo privilegiado de análise e abordagem do Projeto.

4.2 Aprender a manusear

Na relação ensino–aprendizagem devem ser levados em conta aspectos como lin-guagem, observação, processos de imitação, desmanche e refazer para alcançar a ex-pertise da técnica.

O artesão tem nas mãos a capacidade imaginativa que se viabiliza por meio de fer-ramentas e utensílios que auxiliam a produção. A ferramenta possibilitará a precisão cirúrgica e a tensão necessárias na criação de uma determinada peça. A técnica em seu uso, associada à sensibilidade, será responsável pela criação de formas irregulares diametralmente perfeitas.

Os estudos sobre aprendizagem observados em Argyris e Schön (1974; 1978) tra-zem as idéias da “teoria em uso” (como as pessoas desempenham a atividade) e da “teoria esposada” (forma como o indivíduo age ou pensa estar agindo). O manuseio correto dos instrumentos situa-se entre estes dois campos. Ao fazer uso dos instru-mentos, o artesão desempenha uma ação individual, própria (o seu fazer), sobre como reproduzir a peça da forma imaginada. Este agir pode, em alguns casos, estar distante do caminho sugerido pelo mestre artesão.

No município de Valente, a mestre-artesã Lídia relatou que cria os seus próprios moldes e ferramentas. Este foi o caminho utilizado pela artesã como forma de tan-gibilizar a sua produção e criar uma representação fiel à sua idéia. Esta prática pode auxiliar o processo de aprendizagem na medida em que, partindo-se do conceito da teoria esposada (como o indivíduo pensa estar agindo), o mestre pode guiar o aprendiz na feitura das peças e evitar que este trilhe outro caminho que imagina ser o correto.

4.3 Aprender a apreender

Outro aspecto a ser contemplado na dimensão artesanal refere-se à harmonia en-tre mãos e olho, fundamentada na capacidade de concentração do indivíduo. O ritmo da produção do artesão é algo bastante pessoal e variável, porém, independente do tempo utilizado para a feitura de uma peça, sempre estará presente a atenção do in-divíduo no desempenho da atividade. Uma vez que consigamos nos concentrar em

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determinada atividade, conseguiremos internalizar os caminhos e passos necessários para realizá-la. O exercício é de aprender a apreender determinada realidade, e isso depende de atenção e prática.

Sennett (2009) coloca que o tempo necessário para que uma pessoa se torne espe-cialista em dada atividade se aproxima, em média, de quase 10 mil horas (cerca de três horas por semana durante 10 anos). De forma análoga, observa-se que, geralmente, os mestres artesãos são pessoas com mais idade e que desenvolvem o artesanato desde a juventude. Nas comunidades visitadas, esta foi uma característica bastante observada, e, da mesma forma, o quão internalizada estava a atividade artesanal nestas pessoas. Neste caso, há quase um automatismo em sua práxis, determinado neste caso pelo próprio tempo biológico.

4.4 Aprender a difundir

A difusão dos conhecimentos se insere numa dimensão simbólica mais abrangente que uma simples relação de professor-aluno, mestre-aprendiz. Trata-se de uma com-ponente familiar. Mais que uma relação unicamente espontânea ou mesmo de garantia da continuidade de geração de trabalho e renda para a família, o rito de passagem leva em conta o registro para a posteridade de um saber que faz do artesão-mestre signo de pertencimento local, de identificação com atividade artesanal, de dedicação. Aqui entra em questão o sentimento humano de imortalizar sua obra, e quiçá a si próprio, situado num tempo e espaço específicos, dotado de habilidades específicas. Um dos objetivos do Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares refere-se justamente a esta difusão, uma vez que foi observada a pouca visibilidade e o alcance da produção artesanal, restringindo-se a um espaço micro-local, geralmente da família. Essa apren-dizagem não se restringe aos artesãos, mas a todos os envolvidos nesta pesquisa aca-dêmica. Ou seja, trata-se de um processo de aprendizagem e desafio mútuos: artesãos reconhecem a importância de difundirem seu trabalho e a Universidade busca extra-polar a divulgação dos resultados alcançados nas pesquisas para a sociedade em geral.

O desenho do Projeto contempla a disseminação dos saberes por meio dos cursos de extensão e oficinas para as comunidades da região sisaleira e disponibilização dos bancos de dados elaborados, bem como de todos os registros audiovisuais produzidos. A partir da articulação entre os diversos atores que lidam com a temática no estado da Bahia, objetiva-se que o Projeto forneça subsídios para a instalação de um museu contemporâneo de artes e ofícios populares, vivo e interativo, visando:a) O resgate das tradições culturais do semi-árido baiano e para a manutenção e recria-

ção do patrimônio imaterial do estado da Bahia;b) A valorização dos mestres-artesãos e de seus discípulos como criadores de arte popu-

lar, guardiões de tradições culturais e gestores dos processos de criação e produção;c) A inclusão social de mestres e aprendizes por meio da valorização dos saberes e da

sistematização e passagem das tecnologias sociais presentes nas artes e ofícios, de forma a se criar e integrar cadeias de produção;

d) O desenvolvimento social e econômico do território sisaleiro enquanto produtor de arte e cultura popular;

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e) O incremento do turismo cultural, considerando ser o artesanato da região um fator de atração turística.

Estas dimensões da aprendizagem apresentadas se interrelacionam, permeando a interação entre mestre e aprendiz, como se observa na figura seguinte:

5. Aprendizagem artesanal: um ofício compartilhado

Apesar de serem processos de baixa capilaridade e visibilidade, tendências relativas à valorização do artesanato vem ganhando espaço, a exemplo da difusão e do registro de bens culturais, além da criação de espaços multifuncionais de salvaguarda nas dife-rentes esferas (institucionais e de origem de recursos), como museus, e o incremento da pesquisa por parte das instituições de ensino superior. Necessitamos, portanto, “estudar o artesanato como um processo e não como um resultado, como produtos inseridos em relações sociais e não como objetos voltados para si mesmos” (CANCLINI, 1983, p. 53). Da mesma forma, o processo de aprendizagem característico do artesa-nato requer um olhar específico, dada as relações sociais envolvidas e como se efetua a transmissão do saber. Percebe-se que, assim como a identidade de uma produção artesanal demarca as diferenças de uma dada comunidade, a aprendizagem aparenta não seguir um padrão comum entre as comunidades observadas.

Ao falarmos de aprender a “ensinar”, “manusear”, “apreender” e “difundir”, esta-mos nos referindo a um processo de resignificação da realidade e das práticas existen-

Figura 1: Dimensões da aprendizagem na interação entre mestre e aprendizFonte: elaboração própria.

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tes. O artesão aprende com o seu mestre assim como este também aprende com o seu aluno, evidenciando uma relação recíproca e biunívoca.

O Projeto Maestria em Artes e Ofícios Populares encontra-se em andamento, até a finalização deste artigo. Ainda que alguns dos resultados estejam sendo alcançados, tais como a criação de um banco de dados de mestres-artesãos e a identificação de tipologias nos municípios do território do Sisal, merece especial atenção a percepção sobre as especificidades existentes relacionadas a ensino-aprendizagem no artesana-to. Ao invés de se buscar elementos conclusivos sobre tal processo, objetivou-se aqui abrir perspectivas para uma releitura sobre a transmissão de saberes e fazeres no arte-sanato, além de fornecer subsídios que auxiliem este entendimento.

A partir de construções e desconstruções, tradição e inovação, a aprendizagem no campo da maestria artesanal é tecida fio a fio, com uma dinâmica própria de resigni-ficação típica da própria cultura. A aprendizagem é, pois, um fio que se tece gradati-vamente na relação entre aprendizes e mestres, com pontos e formatos imprevisíveis.

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