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1042 Anais do XX Congresso da ANPPOM 2010 Comunicação - MUSICOLOGIA / ESTÉTICA MUSICAL Menu realismo musiCal no Primeiro movimento da sÉrie Brasileira de alberto nePomuCeno Norton Dudeque UFPR – [email protected] Resumo: O texto aborda Realismo em música. A Série Brasileira de Nepomuceno é freqüentemente classiicada como uma das obras precursoras do nacionalismo na música brasileira. No entanto, outras vertentes de entendimento da obra podem ser consideradas. Neste texto, Realismo em música é abordado com o propósito de prover uma alternativa no entendimento da narrativa musical da obra de Nepomuceno. Para tal, realiza-se uma breve revisão de literatura incluindo em particular o entendimento de Carl Dahlhaus sobre o assunto. Ademais, ilustra-se os objetivos gerais do Realismo na literatura brasileira e a possível inluência destas idéias na obra de Nepomuceno. Finalmente, tenta-se demonstrar uma aplicação de tais idéias em uma descrição analítica da obra de Nepomuceno. Palavras-chave: Nepomuceno, Série Brasileira, Realismo em música Ao procurar o verbete Realismo no New Grove Dictionary of Music and Musicians 2a edição (2001), o pesquisador é remetido rapidamente a um lacônico: vide Verismo. Deinições de Realismo musical ou o que pode representar o Realismo em música são parcas. Talvez a obra mais importante sobre o assunto seja a monograia de Dahlhaus Musikalischer Realismus: Zur Musikgeschichte des 19. Jahrhunderts (1982), traduzido para o inglês como Realism in Nineteenth-Century Music (1985). No seu texto Dahlhaus não alcança uma deinição sobre o termo, mas sim levanta uma série de questões que serão discutidas a seguir. Na música brasileira a Série Brasileira de Alberto Nepomuceno tem sido classiicada como precursora do nacionalismo, no entanto, esta obra pode ser considerada como ilustrativa de tendências estéticas provindas do pensamento europeu, que adotadas na literatura e na estética brasileira, engendraram uma obra ilustrativa do Realismo em música. Neste texto, Realismo em música é ilustrado em uma análise do primeiro movimento da Série Brasileira, “Alvorada na Serra”, de Alberto Nepomuceno. Uma das primeiras tentativas no séc. XX de deinição sobre Realismo em música é elaborada por Cazden, que deine Realismo em música como sendo “a totalidade de referências concretas às experiências comuns dos seres humanos como incorporadas em todos os elementos formais da arte musical” (CAZDEN, 1951, p. 150). Cazden propõe distinções importantes no seu texto entre “realismo”, “naturalismo”, “pictorialismo”, mas ao igualar Realismo ao conteúdo da música, todas suas distinções se esvaem. Assim, ele entende Realismo de uma forma abstrata onde os elementos musicais mais diversos podem expressar experiências próprias da realidade humana. A classiicação costumeira da música do séc. XIX, das primeiras décadas às últimas, como Romântica, por vezes parece ser equivocada. Na história da literatura e das artes visuais observa-se na segunda metade do séc. XIX uma tendência a ser classiicada como a época do Realismo, ou no mínimo dominada pelos ideais realistas. O que nos leva a questionar a classiicação homogênea do Romantismo musical. Dahlhaus, por sua vez, aborda a impossibilidade de associação entre o Realismo predominante na literatura e artes visuais (germânicas) do século XIX com o romantismo musical. De fato, o que ele chama de postulado materialista e sua forma oposta, a idealista, têm uma suposição em comum: “a noção de que todas as coisas ou eventos contemporâneos possuem uma unidade de substância, ou no mínimo um Zeitgeist comum, contra o qual a não-contemporaneidade pode ser medida” (DAHLHAUS, 1983, p. 125), ainal de contas a noção de uma arte romântica originada na era realista contradiz a idéia de um Zeitgeist comum (DAHLHAUS, 1985, p. 12).

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    realismo musiCal no Primeiro movimento da

    srie Brasileira de alberto nePomuCeno

    Norton DudequeUFPR [email protected]

    Resumo: O texto aborda Realismo em msica. A Srie Brasileira de Nepomuceno freqentemente classiicada como uma das obras precursoras do nacionalismo na msica brasileira. No entanto, outras vertentes de entendimento da obra podem ser consideradas. Neste texto, Realismo em msica abordado com o propsito de prover uma alternativa no entendimento da narrativa musical da obra de Nepomuceno. Para tal, realiza-se uma breve reviso de literatura incluindo em particular o entendimento de Carl Dahlhaus sobre o assunto. Ademais, ilustra-se os objetivos gerais do Realismo na literatura brasileira e a possvel inluncia destas idias na obra de Nepomuceno. Finalmente, tenta-se demonstrar uma aplicao de tais idias em uma descrio analtica da obra de Nepomuceno.Palavras-chave: Nepomuceno, Srie Brasileira, Realismo em msica

    Ao procurar o verbete Realismo no New Grove Dictionary of Music and Musicians 2a edio (2001), o pesquisador remetido rapidamente a um lacnico: vide Verismo. Deinies de Realismo musical ou o que pode representar o Realismo em msica so parcas. Talvez a obra mais importante sobre o assunto seja a monograia de Dahlhaus Musikalischer Realismus: Zur Musikgeschichte des 19. Jahrhunderts (1982), traduzido para o ingls como Realism in Nineteenth-Century Music (1985). No seu texto Dahlhaus no alcana uma deinio sobre o termo, mas sim levanta uma srie de questes que sero discutidas a seguir. Na msica brasileira a Srie Brasileira de Alberto Nepomuceno tem sido classiicada como precursora do nacionalismo, no entanto, esta obra pode ser considerada como ilustrativa de tendncias estticas provindas do pensamento europeu, que adotadas na literatura e na esttica brasileira, engendraram uma obra ilustrativa do Realismo em msica. Neste texto, Realismo em msica ilustrado em uma anlise do primeiro movimento da Srie Brasileira, Alvorada na Serra, de Alberto Nepomuceno.

    Uma das primeiras tentativas no sc. XX de deinio sobre Realismo em msica elaborada por Cazden, que deine Realismo em msica como sendo a totalidade de referncias concretas s experincias comuns dos seres humanos como incorporadas em todos os elementos formais da arte musical (CAZDEN, 1951, p. 150). Cazden prope distines importantes no seu texto entre realismo, naturalismo, pictorialismo, mas ao igualar Realismo ao contedo da msica, todas suas distines se esvaem. Assim, ele entende Realismo de uma forma abstrata onde os elementos musicais mais diversos podem expressar experincias prprias da realidade humana.

    A classiicao costumeira da msica do sc. XIX, das primeiras dcadas s ltimas, como Romntica, por vezes parece ser equivocada. Na histria da literatura e das artes visuais observa-se na segunda metade do sc. XIX uma tendncia a ser classiicada como a poca do Realismo, ou no mnimo dominada pelos ideais realistas. O que nos leva a questionar a classiicao homognea do Romantismo musical. Dahlhaus, por sua vez, aborda a impossibilidade de associao entre o Realismo predominante na literatura e artes visuais (germnicas) do sculo XIX com o romantismo musical. De fato, o que ele chama de postulado materialista e sua forma oposta, a idealista, tm uma suposio em comum: a noo de que todas as coisas ou eventos contemporneos possuem uma unidade de substncia, ou no mnimo um Zeitgeist comum, contra o qual a no-contemporaneidade pode ser medida (DAHLHAUS, 1983, p. 125), ainal de contas a noo de uma arte romntica originada na era realista contradiz a idia de um Zeitgeist comum (DAHLHAUS, 1985, p. 12).

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    neste sentido que Geck (2001, p. 94-100) prope a distino entre discursos de Realismo na literatura e na msica. Uma das primeiras referncias ao Realismo em msica aparece em uma srie de artigos de Ftis 1853, onde ele emprega o termo ralit. O termo, neste caso, associado imitao da natureza e ao conceito esttico onde a verdade sobrepuja a beleza. Ademais, Ftis tambm parece atribuir uma importncia ao conceito como um movimento poltico, uma conseqncia artstica do movimento social e poltico francs de 1848.1 Depreende-se, portanto, que o termo Realismo, como entendido por Geck, adquire uma conotao scio-poltica, mesmo quando aplicado msica. Ademais, Geck tambm aborda este assunto enfatizando que, depois de 1830, o termo utilizado em textos sobre esttica na Alemanha, com uma conotao de imitao da natureza em contraste com idealismo artstico. A partir de 1850 o termo tambm passa a conotar uma programa artstico (vide tambm GARRATT, 2003, p. 460-462).

    Dahlhaus, por sua vez, nos remete a questo de imitatio naturae como uma das premissas da arte nos sculos XVII e XVIII. No entanto, no sculo XIX estas concepes se tornam: 1. Tonmalerei sempre designado como realista ou naturalista. Muito embora a viso conservadora adotasse uma postura negativa em relao ao Realismo, Tonmalerei foi visto como polmico, uma rebelio contra a esttica do belo na msica; 2. A proclamao da objetividade como uma forte reao esttica do Gnio que dominou a era do romantismo; 3. A teoria dos afetos passa a ser reinterpretada. Para os apologistas do Realismo os movimentos da alma podiam ser detectados e revelados atravs de um meio a msica e assim ser descritos como pertencentes uma natureza visvel (DAHLHAUS, 1985, p. 16-29). Uma conseqncia bvia destas observaes a relao que Hatch (1986, p. 189) aponta sobre como Dahlhaus percebe e explica a ligao entre realismo musical e nacionalismo. Dahlhaus escreve que

    realismo musical e nacionalismo esto inextricavelmente associados no sculo XIX, ao ponto que entonaes musicais as quais sempre so as entonaes de uma lngua nacional representam um critrio para o estilo realista...a nica maneira da msica alcanar o realismo se apropriando da substncia musical de uma linguagem, e a idia que a originalidade de um compositor deva ser baseada no esprito popular se for para ter alguma substncia, so, no sculo XIX, a era de ambos realismo e nacionalismo, dois lados da mesma moeda (DAHLHAUS, 1985, p. 101-102).2

    A vertente realista na literatura italiana, adotada no movimento opertico do Verismo, procurava uma abordagem que lidasse com uma realidade contempornea do seu tempo. A estria e o sucesso da Cavalleria rusticana de Pietro Mascagni em maio de 1890 em Roma, certamente chamou a ateno de Nepomuceno, ento estudante no Liceo Musicale Santa Ceclia. No Liceo, Nepomuceno teve como professor de piano Giovanni Sgambatti (1841-1914), um defensor e incentivador da msica no opertica italiana. A deciso de Nepomuceno em deixar Roma em agosto de 1890 e matricular-se na Academia Meister Schulle, em Berlim, para estudar com Herzogenberg, j mostra a tendncia de se aceitar a esttica germnica como norteadora. Tambm ilustrativo deste ponto de vista o relatrio elaborado em 1897 por Miguez aps sua viagem de visita aos conservatrios musicais europeus. Naturalmente, as instituies italianas so tachadas de conservadoras e ultrapassadas em relao s suas contrapartes alems (vide PEREIRA, 2007, p. 75-76; e VERMES, 2004). Nas palavras de Miguez:

    Verdade que nas escolas oiciais italianas predomina um conservatorismo impertinente, os mesmos antigos e obsoletos mtodos so ainda estritamente observados; ao aluno veda-se toda a liberdade para desembaraar-se de uma ininidade de peias sem utilidade, e, contrariamente

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    ao que se faz em outros pases, notoriamente na Alemanha, persiste-se em condenar a priori todo e qualquer mtodo evolutivo...Sgambatti, o eminente pianista e compositor discpulo de Liszt, Verdi nas suas ltimas obras, e de alguma forma Puccini, Giordano e outros, volverem-se para a Alemanha e a beberem sofregamente os mais salutares exemplos. (MIGUEZ, 1897, p. 30, in VERMES, 2004)

    Os ideais estticos germnicos e franceses do inal do sculo XIX, voltados para a objetividade da cincia, do positivismo e do Realismo literrio, o abolicionismo e o Republicanismo, dominam as opes ideolgicas no Brasil a partir de 1870. A primeira transposio dessa realidade em termos de conscincia cultural se deve Escola do Recife, em particular Tobias Barreto (BOSI, 2006, p. 164-165). Romero sumariza:

    Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crtica religiosa, naturalismo, cientiicismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crtica e histria literria, transformao da intuio do Direito e da poltica, tudo ento se agitou e o brado de alarma partiu da Escola de Recife (ROMERO, 1926, p. XXIII-XXIV, in BOSI, 2006, p. 166).

    A ligao de Nepomuceno com Tobias Barreto, o lder da Escola do Recife, nos remete a uma conexo com as novas idias surgidas a partir de 1870. Em 1881 Nepomuceno passa a freqentar a Faculdade de Direito do Recife e a ter um contato direto com Tobias Barreto, estudando com ele ilosoia e alemo (CORRA, 1996, p. 12; vide tambm PEREIRA, 2004, p. 75). As atividades abolicionistas e republicanas de Nepomuceno, entre 1882 e 1885, so bem conhecidas. Mas para a presente argumentao, torna-se importante a relao entre Nepomuceno e os irmos Bernardelli, e com Machado de Assis em 1886, j no Rio de Janeiro.3

    As tendncias realistas que Nepomuceno deve ter observado na literatura da sua poca so sumarizadas por Bosi, que aponta dois nveis onde o realismo na literatura brasileira teorizado de maneira mais contundente:

    distanciamento do fulcro subjetivo a norma proposta pelo Realismo literrio. A atitude de aceitao da existncia tal qual ela se d aos sentidos desdobra-se, na cultura da poca, em planos diversos mas complementares:1. no nvel ideolgico, isto , na esfera da explicao do real, a certeza subjacente de um Fado irreversvel cristaliza-se no determinismo (da raa, do meio, do temperamento...);2. no nvel esttico, em que o prprio ato de escrever o reconhecimento implcito de uma faixa de liberdade, resta ao escritor a religio da forma, a arte pela arte, que daria ainal um sentido e um valor sua existncia cerceada por todos os lados. O supremo cuidado estilstico, a vontade de criar um objeto novo, imperecvel, imune s presses e aos atritos que desfazem o tecido da histria humana, originam-se e nutrem-se do mesmo fundo radicalmente pessimista que subjaz ideologia do determinismo (BOSI, 2006, p. 167-68).

    Na seguinte descrio analtica de Alvorada na serra, 1 movimento da Srie Brasileira de Nepomuceno, datada de 1891, observa-se e enfatiza-se elementos de Realismo em msica, considerando-se que pelo ttulo, descritivo, que Nepomuceno d sua pea, tem-se um direcionamento rpido para uma representao pictrica, imitao da natureza (imitatio naturae) atravs da imitao dos sons no musicais (canto do sabi); movimento espacial e temporal, analogia entre o amanhecer e a passagem do tempo; pintura musical (Tonmalerei ou Wortbildung aus Naturlauten); e a natureza criativa.

    O primeiro movimento da Srie Brasileira inicia com uma representao pictrica do alvorecer nas montanhas. A descrio que, talvez, Nepomuceno tenha almejado representar atravs de vrios parmetros

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    musicais, muito bem delimitados, os elementos sonoros capazes de reletir uma imitao da natureza criativa, ou como Dahlhaus se refere, natura naturans.

    c. 1 -13: apresentao da primeira frase do tema (Sapo cururu) no obo acompanhado de uma interveno nas lautas e de uma nota pedal nas trompas. A melodia desenvolvida brevemente no obo entre os c. 7-13. A melodia contempla no seu segundo compasso (c. 8) a introduo de uma sncope que j nos remete para um elemento folclrico nacional, no entanto esta sensao interrompida ao apresentar-se os intervalos de 4a justa entre L e Mi, com sua inalizao por grau conjunto descendente, em Sol. A repetio deste ltimo motivo, refora o carter buclico da melodia, e tambm o carter serrano do incio da obra. Pela sua terminao, esta primeira apresentao da melodia chega a apresentar um carter mais modal do que tonal, mais primitivo.c. 14-21: A segunda apresentao da melodia inteiramente na 1a lauta solo, torna-se mais tonal pelo acompanhamento das cordas, mas uma terminao tonal (L-F#-L-Sol), nos c. 20-21, decisiva no carter desta apresentao da melodia. Um pedal de tnica nas violas tambm apresenta a tendncia de centralizar a tnica. Aqui a textura tambm muda, o acompanhamento nas cordas apresenta a melodia devidamente harmonizada na tnica e a textura de contraponto de nota contra nota prov outra sonoridade para a melodia. c. 21-29: Um processo imitativo inicialmente entre clarinetes e obos, culminar em uma primeira e airmativa apresentao do tema em ff. O processo para chegarmos at esta apresentao inicia-se no c. 21, com as imitaes nos sopros, at que nos c. 25-29 a melodia completa apresentada no clarinete imitada no obo. c. 29-43: O prximo estgio adensamento da textura com a entrada dos trompetes com uma igurao de mnimas, sobre o pedal de dominante nos violoncellos, e as imitaes do incio do tema, nos sopros (clarinetes e obos) e nas cordas (1os e 2os violinos). A partir do compasso 38 ocorre um reduo progressiva do motivo inicial at sua completa liquidao e transformao em trinado no c. 43.c. 44-93: Ao atingir uma apresentao forte do tema (c. 44), inicia-se um processo de preparao para a apresentao de um ponto importante dentro da narrativa elaborada por Nepomuceno: o canto do sabi. Este processo inicia-se com a apresentao da melodia inicial com uma textura orquestral mais densa (c. 44-47), (cordas, trompetes, trompas, fagotes, clarinetes, obos e lautas). Um processo semelhante de reduo motvica (c. 48-51) tambm elaborado at o ponto de modulao de D maior para L maior (c. 52), que por sua vez conduzir, atravs de uma linha do baixo cromtica ascendente (LL Si), a R maior, a tnica temporria do incio da seo de apresentao do canto do sabi. Um processo semelhante de liquidao motvica ocorre entre os c. 67-74. Segue uma breve passagem por R maior, enfatizando arpejos na harpa e a subseqente apresentao do canto do sabi, primeiramente em L menor, passando por R menor e, inalmente, em D maior.

    At este ponto a narrativa musical de Nepomuceno extremamente clara e de fcil percepo. Uma narrativa com elementos que remetem natureza em criao (o amanhecer), elementos do folclore (sapo cururu), pintura musical (Tonmalerei), imitao de sons no musicais (canto do sabi), e a um deslocamento temporal (o avanar do amanhecer). O cuidado estilstico, a vontade de criar um objeto novo, imperecvel, a que Bosi se refere, ocorre na segunda seo da pea.

    A seo B da pea, Molto Moderato, reaproveita o material do canto do sabi para uma elaborao motvica. Assim Nepomuceno consegue associar sons no musicais (o canto do sabi) elaborao musical e dar sua obra uma conotao esttica de arte pela arte, de elaborao soisticada do material musical.

    c. 94-107: a transformao motvica com reaproveitamento do material do canto do sabi, ocorre por pouco tempo, no se ixando como material principal da seo. No entanto, este reaproveitamento de material temtico representa a inventividade do compositor e, portanto, seu esmero esttico e tcnico.c. 108-165: o material temtico principal da seo um tema novo, inicialmente apresentado no registro grave dos violinos. A melodia apresentada nos c. 108-115, e sofre uma variao em seguida, com um processo de elaborao prximo ao de variao progressiva juntamente com

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    conexo motvica a qual assegura a ligao com o material seguinte (c. 116-136). O movimento de registro do grave para o agudo e move-se de D maior (c. 108-124) para Sol sustenido maior (c. 129-142). Uma breve interrupo em D maior reapresenta o tema principal da seo, mas novamente segue uma sub-seo, a tempo, que inicia o retorno tnica inicial, D maior, e Seo A.

    A seo A (c. 166-190), bastante abreviada em relao seo inicial. No entanto, todos os elementos marcantes da primeira seo esto presentes: 1. O incio da cano folclrica; 2. A apresentao da melodia inicial sem uma deinio muito clara da tnica; 3. Uma citao do canto do sabi.

    Concluso

    A Srie Brasileira de Nepomuceno freqentemente classiicada como uma das obras precursoras do nacionalismo na msica brasileira. No entanto, outras vertentes de entendimento da obra podem ser consideradas. No presente texto Realismo em msica prope um novo entendimento de uma narrativa musical que por vezes se confunde com nacionalismo. Com o desenvolvimento desta pesquisa, poder-se- observar como Nepomuceno se utiliza de Realismo em msica em todos os movimentos da obra, cada qual com seu foco realista distinto, natureza, urbanidade, aspectos sociais e polticos, at mesmo a ponto de sugerir uma obra de carter nacionalista, no no sentido modernista mas sim no sentido de contemplar aspectos scio-polticos da realidade da sua poca.

    notas

    1 Em 23 de fevereiro de 1848 a monarquia, representada pela disnastia Orleans, foi deposta e a Segunda Repblica declarada. Em 23 de junho do mesmo ano foram levantadas barricadas no leste de Paris e trabalhadores combateram as autoridades contra o fechamento de instituies de caridade. Alm disso, eclodiram revolues na Europa central e oriental em funo de regimes governamentais autocrticos e de crises econmicas. Surge tambm um movimento nacionalista engendrado pelas minorias da Europa central e oriental e a destituio de monarquias europias.2 Por outro lado as crticas s idias de Dahlhaus sobre realismo musical e sua associao com conceitos da sociologia, mais especiicamente o conceito de tipo ideal de Weber, pe as questes levantadas por Dahlhaus em dvida (vide Gosset 1989).3 Henrique Bernardelli (1857-1936) e Rodolfo Bernardelli (1852-1931), este ltimo tem suas obras consideradas como realistas. importante lembrar que Memrias Pstumas de Brs Cubas data de 1881 e um marco no Realismo machadiano.

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