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    5Seria exaustivo arrolar as autores que, nos dois ultimos

    seculos, de uma forma ou de outra se engastaram nessas ten-

    dencias. Por outro lado, qualquer classifica9ao e , nao raro,

    arbitniria e seinpre simplificadora, perdendo-se a riqueza e

    complexidade de certas interpreta96es. Mas classificar e per-dmivel quando 0 objetivo e didatico.As teorias

    A bruxaria e concreta

    A grande sintese romantica da bruxaria foi feita por Mi-

    chelet, em 1862. Entretanto, cabe inserir 0 grande historia-

    dor frances na linhagem dos que, antes dele, acreditaram narealidade dos fatos magicos e da sociedade das bruxas: a his-

    toriografia alema, introdutora, no seculo XIX, da tese da bru-

    xaria como revivescencia paga.

    Ha nuan9as dentro dessa perspectiva. Em 1828, Ernst

    Jarcke via a bruxaria como religiao natural comum aos ger-

    manicos pagaos dos tempos antigos. Franz Joseph Mone

    (1839) introduziu varia9ao ao tema: afirmava que a bruxaria

    era culto derivado de' cultos anteriores ao Cristianismo, mas

    nao via sua origem na religiao germanica e, sim, em praticasubterranea e esoterica exercida pelos estratos mais baixos da

    popula9ao, nos quais, por caminhos varios, teria penctrado

    o clilto a Hecate e a Dioniso.

    Norman Cohn faz urn apanhado geral desse momenta

    da historiografia sobre bruxas:

    Para os demon610gos dos seculos XVI e XVII, as cau-

    sas da bruxaria se deviam it a9ao do Diabo sobre a Terra;

    auxiliavam-no discipulos humanos, e juntos visavam atingir

    o plano divino de organiza9ao do Universo. Esses asseclas

    demoniacos eram os bruxos, aficcionados de urn culto secre-

    to, 0 sabbat. Os demonios, os bruxos e suas pniticas consti-

    tuiam uma Contra-Igreja, que devia ser destruida para a

    maior gl6ria de Deus.No seculo XVIII, com 0 surgimento do racionalismo,

    essa explica9ao deixou de Ser unanimemente aceita, e a bru-

    xaria passou a ser identificada, com freqiiencia, it supersti-

    9ao e it ignorancia. Mas nao desapareceram de todo os que

    acreditavam em bruxas e no seu potencial virulento.

    Ceticismo e credulidade encontram-se na raiz de dois en-

    foques possiveis quanta it abordagem do fenomeno da bru-

    xaria, ambos surgidos no seculo XIX: 0 romantico e 0

    racionalista. 0florescimento da antropologia e 0 contata com

    as pniticas magicas de povos ditos primitivos permitiram, em

    rtossos dias, que urn terceiro enfoque, 0antropol6gico, se so-masse aos dois anteriores.

    Nenhuma dessas teorias e convincente (...) nem Jarcke nem

    Mone tem condigoes de demonstrar que 0 culto a08 deus.s

    antigos - germanicos ou gregos - tenha sldo realmente pra

    ticado por grupos clandestinos e organizados na Idade Media.Tambem nao conseguem explicar por que razAo esses grupos,

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    ap6s terem passado despercebidos durante quase urn rnilenio,

    lograram despertar a atengao nos seculos X V , X V I , X V l I l .

    .liarcke e Mone eram cat6licos fervorosos, tendo atuado jun-

    . 'to aos j01:naisda cpoca como p-orta-vozes de setores da Igre- ja. Suas tcorias se inserem 'num contexto de violentahostilidade it Revolu

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    cic/opediaBritiinica, reeditado sucessivas vezes ate 1966. Num

    perfodo de quase quarenta anos, muitos estudiosos apresen-

    taram interpretac;oes an;ilogas it sua, aproximando-se algu-

    mas vezes daque1as que a influenciaram: a de Michelet, ados

    historiadores alemaes do fim do seculo XIX, a de Frazer.

    Rouve interpretac;oes fanaticamente catolicas, como a de

    Montague Summers, Hist6ria da bruxaria e da demonologia

    (1926), adepto da ideia das sociedades secretas, da realidade

    do sabbat e inimigo ferrenho do Diabo, que, como os demo-

    nologos, acreditava atuante entre os homens. Rouve as as-

    sentadas em erudic;ao solida e em cuidadosa pesquisa

    folclorica, resgatando crenc;aspopulares europeias para rei-

    terar a ideia do culto da fertilidade, como a de Arno Rune-

    berg, Bruxaria, demonios e magia dafertilidade (1947). Rouve

    ainda as interpretac;oes que se voltaram contra Murray, mas

    continuaram polemizando com ela: foi 0caso de A raziorfor

    a goat, de Rose, que rechac;aa ideia dos cultos de fertilidade,

    mas insiste na existencia da seita das bruxas, ressaltando-Ihe

    o aspecto sexualizado e entendendo-a como experi(~nciaexta-

    tica tributaria da religiao dionisiaca da Grecia Antiga.

    Dois trabalhos mais recentes revigoraram aspectos das

    teses de Frazer, Murray e Michelet, modernizando-as: Bru-

    xaria na Idade Media, de Jeffrey Russell (1972) e I Benan-

    danti, de Carlo Guinzburg (1966). Neste, 0 historiador

    italiano revela a sobrevivencia de fertilidade apos mil anos

    de Cristianismo oficial. Com base em documentos da Inqui-

    sic;aodo Friuli, no norte da Italia, num periodo entre 1575

    e 1650, Guinzburg recria a historia de homens e mulheres que

    tinham nascido envolvidos pela membrana amniotica,

    traziam-na suspensa ao pescoc;o como amuleto e, por oca-

    siao das mudanc;as de estac;ao, imaginavam sair noite aden-

    tro para combater os bruxos que lhes desejavam destruir as

    colheitas. Essas pessoas se autodenominavam benandanti, e

    acreditavam que a abundancia das colheitas dependia dessas

    batalhas rituais. Apos longos perfodos de interrogatorio, a

    Inquisic;ao conseguiu convence-los de que eram bruxos e que

    freqiientavam sabbats. Naochegaram a ser condenados, pois

    na Italia de 1650 ja nao se condenavam bruxos. Guinzburg

    procurou incluir os benandanti do Friuli num conjunto fol-

    clorico mais abrangente, aproximando esses ritos dos comba-

    tes simbolicos entre inverno e verao,inverno e primavera. Seu

    trabalho abriu caminho para uma serle de investigac;oesque

    destacaram a persistencia de ritos, crenc;ase condutas religio-

    sas herdadas do paganismo e preservadas na vida cotidiana.

    Bruxaria na Idade Media, de Russell, apoia-se bastante

    na investigac;ao de Guinzburg, mas filia-se sobretudo a Mi-

    che1et. Muito bem fundamentado, procura demonstrar que

    a bruxaria constituia uma religiao anticrista organizada em

    seita e originada a partir de uma heresia. A repressao, sobre-

    tudo inquisitorial, teria sido a grande responsavel pela expan-sac da bruxaria. A hostilidade violenta da sociedade crista

    possibilitou, assim, que ritos de fertilidade dotados de forte

    conotac;ao erotica acabassem se metamorfoseando no temi-

    vel sabbat.

    Mais recentemente, Pierre Chaunu e Emmanuel Le Roy

    Ladurie ensaiaram adesoes urn tanto timidas it tese romanti-

    ca da crenc;anas bruxas. Em artigo denominado "Acerca do

    fim dos bruxos no seculo XVII", em que polemiza com Ro-

    bert Mandrou, Chaunu ve 0surto demonologico que se in-

    tensificou nos fins do seculo XVI como traduc;ao deresistencias camponesas acirradas ante 0 esforc;o missiona-

    rio de cristianizac;ao do meio rural: "Quando a Igreja se tor-

    na desastradamente missionaria nas franjas que tradicio-

    nalmente the opoem resistencia, ela obriga a opt;6es vergo-

    nhosas. A magia se torna bruxaria, os animistas tradicionais

    optam por Sata, contra Deus" 2 Em Camponesesdo Lan-

    guedoc, Ladurle retoma a velha ideia romantica de que

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    abruxaria integrava a revolta camponesa; mas avanl;a urn

    pouco nesse sentido, definindo tal pnitica como forma de eva-

    sac da realidade assentada na inversao dos valores da cama-

    da dominante. Recentemente, ele se aproximou do enfoque

    antropol6gico, como se vera adiante.

    imediatamente se tornaria chissico: Magistrados ejeiticeiros

    na Franfa do seculo XVII (1968).0 autor se preocupa basi-

    camente com a questao da crise, da ruptura verificada no se,

    culo XVII no tocante a rela((ao entre a bruxaria e 0universo

    mental dos franceses. Antes dessa epoca, a bruxaria tinha tra-90Sbasicamente rurais e populares, sendo perseguida com sa-

    nha e sem tregua pelos magistrados das provincias. A partir

    do seculo XVII tornou-se urbana e eHtista, passando a pro-

    vocar duvidas e indecisoes na magistratura, sobretudo na Cor-

    te de Paris. No meio rural, 0pacta demoniaco era pe9a basica

    para configurar crimes de bruxaria. Ja nos casos escandalo-

    sos do seculo XVII nao havia pacto, mas possessao, e sur-

    giam elementos novos: a rivalidade entre as ordcns religiosas

    - dos exorcistas, dos confessores -, a clausura em que vi-

    viam as freiras, a presen9a de medicos chamados a opinarsabre as possessoes. Estas se multiplicaram como se houves-

    se contagio entre as conventos, 0que poderia fazer supor uma

    intensifica9ao do satanismo. Entretanto, Mandrou mostra

    justamente 0 contnirio: os casos escandalosos marcaram a

    crise do satanismo, preconizando 0grande recuo de Sata: "es-

    tes processos rumorosos provocaram a tomada de conscien-

    cia decisiva, a do meio judiciario mais esc1arecido,informadoc audacioso,,3.

    Tomando contato com outros membros da intelligent-

    zia francesa -- sobretudo humanistas e homens de ciencia -,os magistrados passaram a enxergar a bruxaria com novas

    olhos. Foi nessa epoca que se constituiu urn universo regido

    pela Razao, em que a "onipresen9a sobrenatural" (de Deus

    ou do Diabo) nos acontecimentos foi substituida pela busca

    de uma explica9iio mais racional. 0estabelecimento de nova

    jurisprudencia para as crimes de feiti9aria integrou, assim,

    o Iento esfor90 do seculo XVII "para ultrapassar a obstacu-

    A bruxaria e uma construc;ao mental

    Murray, Chaunu, Ladurie e os demais autores acima exa-

    minados acreditam na existencia concreta de pniticas que, par

    motivos diversos, foram atraves dos tempos identificadas abruxaria. A posi9iio dos racionalistas e diametralmente opos-

    ta. Apresentando varia90es, ela se baseia na ideia de que a

    bruxaria foi uma elabora9iio mental - abstrata, portanto -dissolvida pdo racionalismo de fins do seculo XVII e do se-

    culo XVIII.

    Essa analise racionalista se firmou tambem na Alema-

    nha do seculo passado. Considerava a bruxaria como Husiio

    ou mito comum a epocas barbaras. A vanguarda da civiliza-

    9iioocidental cultuava entao a ideia de progresso, venda ne-

    Ie 0coveiro das persegui90es a bruxas. Em 1843, Wilhelm

    Soldan propunha uma interpreta9iio do fenomeno sob enfo-

    que puramente intelectual; olhando para as epocas anterio-

    res, considerava-as uma sucessiio de supersti90es submersaspela evolu9iio constante do progresso. Nos diversos paises eu-

    ropeus, multiplicaram-se trabalhos que giravam em torno des-

    sa tese, e seria enfadonho enumera-los.

    Cabe porcm citar os adeptos mais recentes dessa tenden-

    cia de inspira9iio positivista. No final da decada de 60, Ro-

    bert Mandrou publicou urn estudo sobre a bruxaria que

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    10 metafisico a constitui

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    indistin

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    e os sortilegios eram parte constitutiva. Conclui que as ten-

    soes internas da aldeia eram mais relevantes nesse assunto do

    que as pressoes externas de juizes e demon610gos. 0seculo .

    XVI Ingles conhecia entao a passagem da comunidade estru-

    turada e soiidaria para 0 individualismo oriundo do capita-

    lismo agnirio. A bruxaria achav.a-se associada as

    transforma

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    que tern de mais acentuadamente antropol6gico e desbas-

    tando-Ihe os tra