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#212 EDIÇÃO OÁSIS CLIMA EXTREMO A natureza dá suas respostas O SEGREDO DO BOTÃO DE ROSA O que o faz desabrochar? O PODER DA SOCIEDADE CIVIL Quatro lições da guerra contra as drogas e a violência armada POR DENTRO DA MAIOR CAVERNA DO MUNDO, NO VIETNÃ RAINHA SUBTERRÂNEA

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#212

EDIÇÃO OÁSIS

CLIMA EXTREMOA natureza dá suas respostas

O SEGREDO DO BOTÃO DE ROSAO que o faz desabrochar?

O PODER DA SOCIEDADE CIVILQuatro lições da guerra contra as drogas e a violência armada POR DENTRO DA MAIOR CAVERNA

DO MUNDO, NO VIETNÃ

RAINHA SUBTERRÂNEA

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OÁSIS . EDITORIAL

POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

HANG SON DOONG, CAVERNA NO VIETNÃ, REVELA SEUS SEGREDOS COM UMA GALERIA DE MAGNÍFICAS FOTOGRAFIAS

E UM VÍDEO INÉDITO GIRADO A PARTIR DE UM DRONE

H á poucos anos, no Vietnã central, foi descoberta por acaso uma das entradas da maior caverna do mundo, Hang Son Doong, “a caverna com um rio dentro”. O nome é mere-

cido. Realmente, no interior desse incrível monumento geológico, passa um rio bem caudaloso, de águas limpíssimas que vão formando remansos, corredeiras e cachoeiras as longo dos 5 quilômetros de extensão da cavidade.

Mas a presença de um rio não é a única característica dessa caver-na. Ela possui estalagtites e estalagmites altíssimas, com mais de 80 metros de altura! Algumas são tão grandes que permitem escaladas até o cimo. Dentro, nos trechos onde a luz consegue entrar através de aberturas desabadas no teto, a caverna apresenta uma flora e fauna próprias, verdadeiras mini florestas que despertam agora a curiosidade e o interesse de dezenas de biólogos e geólogos. Hang Son Doong é o tema da nossa matéria de capa, e embora os dados da reportagem

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POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

sejam muito interessantes, são as fotos do interior da caverna que nos deixam pasmos pela sua beleza e imponência. No final da matéria há um vídeo feito a partir de material visual colhido por drones: um método revolucionário de filmagem que nos revela ângulos dos sítios geológicos antes impossíveis de serem apreciados.

Oásis neste número oferece também extenso estudo de Eduardo Araia sobre os desacertos climáticos atualmente em curso, suas con-sequências e riscos. O número se completa com um singelo – porém belo e profundo – poema sufi, sobre a importância da aceitação do próprio destino, e com uma conferência da ativista política e social carioca Ilona Szabó de Carvalho, que ressalta a questão do poder in-suspeitado da sociedade civil. Confira.

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ERAINHA SUBTERRÂNEAPor dentro da maior caverna do mundo, no Vietnã

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o coração do Parque Nacional Phong Nha Ke, patrimônio da hu-manidade pela Unesco, localizado no centro do Vietnã, fica a maior caverna do mundo,

Hang Son Doong. Ela só foi aberta ao público em 2013. Até hoje, mais pessoas estiveram no cume do monte Everest do que nessa monu-mental caverna vietnamita. Uma cavidade tão grande que um Boeing 747 poderia voar em

algumas partes do seu interior. Seu espaço é fascinante e que os que a visitaram relatam todos a mesma sensação: Será que isto está mesmo no planeta terra?

As paisagens internas de Hang Son Doong não são encontradas em nenhum outro lu-gar, pelo menos não nessas dimensões. Enormes estalagmites se elevam do chão e permitem inclusive escaladas. Estalactites esculturais pendem dos tetos e parecem es-pécies alienígenas. Em certos pontos você tem a impressão de estar entrando numa floresta, em outros nuvens aparecem e en-volvem todo o cenário – resultado das condi-ções meteorológicas especiais que reinam no local.

Passagens adornadas com fósseis antigos, oriundos da pré-histórica, atestam a evidên-cia de uma idade geológica que chega a mi-lhões de anos.

Descoberta quase por acaso

Parece incrível que um monumento natural de tamanha importância tenha permanecido escondido até 1990, ano em que foi desco-berta por Ho Khanh, um morador da região. Desde menino ele costumava passar sema-nas a fio embrenhado na selva do Parque Na-cional, fazendo treckings. Buscava alimentos

NEla é a rainha das cavernas. Poucas outras se comparam pelo tamanho e esplendor. Hang Son Doong fica no Vietnã, foi descoberta recentemente, e pode ser visitada. Um drone a filmou do alto, e permitiu a produção de um vídeo tira-fôlego que apresentamos no final da matéria

POR: EQUIPE OÁSISVÍDEO: RYAN DEBOODT

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e madeiras de lei para incrementar a sua renda bastante magra. Em 1990, durante uma caçada, Ho Khanh trope-çou numa abertura que existia na superfície de um pe-nhasco de calcário, e decidiu investigar o que era aquilo. Ele se aproximou ainda mais da abertura e percebeu nu-vens de vapor que saiam dela. Vindos lá de dentro, ou-viu os sons das águas de algum rio caudaloso que corria. Sentiu também um forte vento que soprava através da abertura. Ele tentou gravar na memória a localização da caverna, e voltou para casa sem fazer uma inspeção mais aprofundada.

Na mesma época, dois membros de uma entidade espeleológica inglesa, a British Cave Research Association (BCRA), Ho-ward e Deb Limbert, estavam baseados em Phong Nha para realizar expedições a cavernas da área. Durante conversa com Ho Khanh, certo dia, ele mencionou aos especialistas que tinha encontrado uma caverna com nuvens e um rio dentro. Howard e Deb ficaram intrigados e insis-tiram para que Ho Khanh voltasse com eles ao local para tentarem redescobrir a caverna. Depois de muitas tentativas frustradas – Ho Khanh esquecera a loca-lização exata – o vietnamita a reencon-trou sozinho, em 2008, novamente por acaso. Em 2009, ele levou Howard, Deb e uma equipe de profissionais de volta à caverna para a primeira expedição des-

tinada a desvendar os mistérios daquela que mais tarde se tornaria conhecida como Hang Son Doong, “A caverna da montanha do rio”.

Geologia da caverna Hang Son Doong

O Parque Nacional Nha-Ke, no Vietnã central, possui o sistema mais antigo de toda a Ásia, com idade entre 400 e 450 milhões de anos. Sistemas cársticos constituem um tipo de relevo geológico caracterizado pela dissolução química (corrosão) das rochas, o que leva ao aparecimen-to de uma série de formações físicas, tais como cavernas, rios subterrâneos, paredões rochosos, dolinas, etc. Ape-

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sar disso, a caverna Hang Son Doon é relativamente jovem: a análise dos sedimentos nela acumulados revela uma idade de apenas 3 milhões de anos.

Formada na borda de uma zona de falhas, essa caverna foi esculpida pelo poderoso rio Rao Thuong. Foi ele que, através das eras, corroeu o calcário e formou o gigantesco túnel situado sob as montanhas Anna-mite. Buracos gigantes, conhecidos como dolinas, entraram em colap-so em algum momento até 300 mil anos atrás, criando enormes abertu-ras para o mundo exterior.

Hang Son Doong é hoje a maior caverna conhecida do mundo. Com mais de 5 quilômetros de comprimento, com seções que podem chegar a 200 metros de altura e 150 metros de lar-gura, ela é grande o suficiente para abrigar um quarteirão inteiro da cidade de são Paulo, com 40 arranha-céus! Seu volume total, já medido, é de 38,5 milhões de metros cú-bicos. As mais altas estalagmites do mundo, com até 80 metros de altura, nela foram encontradas.

Apesar das enormes dimensões, o espaço interior da ca-verna Hang Son Doong pode ser visitado sem excessivas dificuldades. Algumas agências internacionais especiali-zadas em viagens de aventura já a oferecem como desti-no.

O vídeo abaixo mostra a beleza da caverna Hang Son Doong. Boa parte dele foi filmada por um drone coman-dado pelo fotógrafo Ryan Deboodt. Na gravação, temos a impressão de embarcar em uma excursão aérea e ter-restre por essa deslumbrante caverna, com suas incríveis formações rochosas e sua flora exuberante. Hang Son Doong é parte de uma galeria de 150 cavernas no Parque Nacional Phong Nha-Ke Bang, a cerca de 500 quilôme-tros de Hanoi, a capital do Vietnã.

Veja o Vídeo aqui e a galeria à seguir

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Com mais de 200 metros de altura em certos trechos, 150 metros de largura e 5 quilômetros de comprimento, Hang Son Dong é a maior caverna do mundo

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A caverna Hang Son Doong possui o seu próprio rio, florestas e clima

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O fotógrafo australiano John Spies passou uma semana na caverna fotografando as suas maravilhas naturais

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‘Com seus tetos de mais de 200 metros de altura, essa caverna é uma experiência de humildade que não pode-mos menosprezar’, declarou o fotógrafo John Spies

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A entrada da caverna é muito pequena, e a névoa dentro dela é causada pelo choque entre o ar frio do interior e o ar quente de fora

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Em certas partes os visitantes devem descer 80 metros por uma parede íngreme, com o uso de arreios e de cordas

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Em alguns pontos a luz penetra através das aberturas das dolinas, revelando a incrível geologia de Hang Son Doong

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A grande diferença de temperatura entre o exterior e o interior da caverna cria movimentos de nuvens e de neblina

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Acampar no interior dessa caverna pode ser a experiência aventurosa de uma vida

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Certos trechos parecem pertencer a um outro planeta

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As janelas cársticas conferem à caverna vietnamita a sua atmosfera mágica surreal

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A caverna foi formada ao longo de milhões de anos, e so há pouco foi descoberta, graças a um acaso

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O rio interno que formou a caverna ainda corre, formando várias lagoas e pequenas cascatas

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Catedral da natureza, a imponência da caverna em certos pontos chega a assustar

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aneiro de 2015 foi o 4º mês mais quente da história em São Paulo, diz o Inmet. A média das temperaturas máximas ficou em 31,5 graus centí-grados no primeiro mês do ano.Medições foram feitas no Mirante

de Santana, na Zona Norte, desde 1943. Mas, no dia 19 de janeiro, a temperatura máxima chegou a 36,5 graus, a mais alta do ano.

Um ano antes, o mês de janeiro de 2014 di-ficilmente vai ser esquecido por dezenas de milhões de brasileiros. Sempre segundo da-dos do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a temperatura média enfrentada pelos paulistanos, por exemplo, foi de 31,9 °C, a mais elevada desde que a cidade co-meçou suas medições, em 1943. No Rio de Janeiro, a média foi de 36,2 °C, a maior das últimas três décadas, e em Porto Alegre, de 33,1 °C, a maior desde 1916. A prolongada e severa estiagem faz com que até hoje, quan-do já avançamos pelos meses mais frescos do outono, a maior parte dos reservatórios pau-listanos ainda estejam quase vazios, anun-ciando a possibilidade de racionamentos se a situação de seca verificada no ano passado ocorrer também neste ano.

O impacto do aquecimento global será “gra-ve, abrangente e irreversível”, segundo um relatório do Painel Intergovernamental so-bre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês) recentemente divulgado. Autoridades e cientistas reunidos no Japão afirmam que o documento é a avaliação mais completa já feita sobre o impacto das mu-danças climáticas no planeta.

Integrantes do IPCC dizem que até agora os efeitos do aquecimento são sentidos de for-ma mais acentuada pela natureza, mas que

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Eventos climáticos extremos, como enchentes, secas, tornados, ondas de calor e frio, têm aumentado em frequência ou intensidade em todo o mundo. A maioria dos cientistas confirma: essa tendência é um sintoma das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global

POR EDUARDO ARAIA

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haverá um impacto cada vez maior sobre a humanidade. Mudanças climáticas vão afetar a saúde, a habitação, a alimentação e a segurança da população no planeta, se-gundo o relatório. O texto afirma que a quantidade de provas científicas do impacto do aquecimento global do-brou desde o último relatório, lançado em 2007.

“Ninguém neste planeta ficará imune aos impactos das mudanças climáticas”, disse o diretor do IPCC, Rajendra Pachauri, a jornalistas. O secretário-geral da Associação Mundial de Meteorologia, Michel Jarraud, disse que se no passado as pessoas estavam destruindo o planeta por ignorância, agora já não existe mais esta “desculpa”.

Enchentes e calor

O relatório foi baseado em mais de 12 mil estudos publi-cados em revistas científicas. Jarraud disse que o texto é “a mais sólida evidência que se pode ter em qualquer disciplina científica”.

Nos próximos 20 a 30 anos, sistemas como o mar do Ár-tico estão ameaçados pelo aumento da temperatura em 2 graus Celsius. O ecossistema dos corais também pode ser prejudicado pela acidificação dos oceanos.Na terra, animais, plantas e outras espécies vão começar a “se deslocar” para pontos mais altos, ou em direção aos polos.

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Volta ao tempo dos baldes e das cisternas

A enchente levou muitos sonhos

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Um ponto específico levantado pelo relatório é a inse-gurança alimentar. Algumas previsões indicam perdas de mais de 25% nas colheitas de milho, arroz e trigo até 2050.

Enquanto isso, a demanda por alimentos vai continuar aumentando com o crescimento da população, que pode atingir nove bilhões de pessoas até 2050.“Na medida em que avançamos [as previsões] no futuro, os riscos só aumentam, e isso acontecerá com as pessoas, com as colheitas e com a disponibilidade de água”, disse Neil Adger, da universidade britânica de Exeter – outro cientista que assina o relatório.

Enchentes e ondas de calor estarão entre os principais fatores causadores de mortes de pessoas. Trabalhadores que atuam ao ar livre – como operários da construção civil e fazendeiros – estarão entre os que mais sofrerão. Há também riscos de grandes movimentos migratórios relacionados ao clima, além de conflitos armados.

Quem paga a conta?

Em lugares como a África, as pessoas estarão particular-mente vulneráveis. Muitos que deixaram a pobreza nos últimos anos podem voltar a ter condições de vida mise-ráveis.

Os Estados Unidos, principalmente a sua costa leste, vão se lembrar muito também deste inverno que se finda no Hemisfério Norte. Tempestades de neve de força inco-mum atingiram o país, causando o cancelamento de mi-lhares de voos, inúmeros acidentes de trânsito, interrup-ção de aulas e muitas atividades profissionais, e baixando as temperaturas a marcas árticas. Na Inglaterra, o pro-blema maior foi um tanto diferente: grandes partes do

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Aumento exponencial do consumo de águas minerais

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país viveram o seu janeiro mais úmido desde 1910, com um recorde histórico de chuvas na cidade de Oxford, que superou uma marca alcançada em 1852.

“Os extremos estão ficando mais extremos”, observa o pesquisador José Marengo, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eventos extremos são aquelas ocorrências que ficam nos 10% superiores ou inferiores de uma variável particular – por exemplo, um volume de chuvas pode ser inferior a 10% da média, o que configura seca severa, ou 90% acima da média, o que vai resultar numa enchente histórica. É exatamente nessas pontas da tabela que as novidades climáticas têm aumentado nos

últimos tempos – e seu impacto, em termos de vidas hu-manas e danos às propriedades, torna-as motivo de enor-me interesse.

Se uma alteração no clima desse porte começa a ser sen-tida, a pergunta se torna inevitável: isso seria apenas resultado das variações climáticas normais ou consequ-ência do aquecimento global? Para um bom número de especialistas, a tendência a flertar com a última hipótese é perceptível. O rigoroso inverno de 2010-2011 no norte e no noroeste da Europa, por exemplo, foi ligado a uma redução da área de gelo marinho nos mares de Barents e Kara (no norte da Escandinávia e da Sibéria) resultante do aquecimento do clima local e causadora de mudanças no padrão de ventos na região, de acordo com uma pes-

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Neste verão, São Paulo transformou-se em uma ilha de calor

O barquinho agora navega no seco

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quisa de Vladimir Petoukhov, do Potsdam Institute for Climate Impact Research, da Alemanha. Enquanto a re-dução de gelo nos polos tem sido documentada por fotos de satélite, a Rússia tem apresentado invernos mais frios e verões mais quentes.

Temperaturas mais elevadas dos oceanos

Segundo a Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla em inglês), ligada às Nações Unidas, 13 dos 14 anos mais quentes aconteceram no século 21. O recorde são os anos de 2010 e 2005 (0,55 °C), seguidos por 1998, anos marcados pelo aquecimento muito poderoso provo-cado pelo fenômeno El Niño.

Nos oceanos, em 2013 foram registradas temperaturas excepcionalmente elevadas na Grande Baía Australiana, assim como em partes do nordeste e no centro-sul do Oceano Pacífico e em grande parte do Oceano Ártico. A temperatura na superfície dos mares foi a maior desde 2010. Acompanhando 2004 e 2006, 2013 foi o sexto ano mais quente dos registros, 0,35°C acima da média de 1961-1990 e igual à média mais recente de 2001-2010, segundo a WMO.

“Seja em frequência ou intensidade, virtualmente todo ano tem quebrado recordes, e em algumas ocasiões por várias vezes numa única semana”, declarou Omar Ba-

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O calor recorde do ano em São Paulo, os termômetros atingiram os 36,6 graus e, ao sol, alguns chegaram a marcar 42ºC

O Sistema Cantareira ficou praticamente vazio

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ddour, pesquisador da WMO, vinculada à ONU, à agência AFP. O secretário-geral da instituição, Michel Jarraud, acrescenta: “A temperatura média de 2014 confirma a tendência de aquecimento a longo prazo. A taxa de aque-cimento não é uniforme, mas a tendência subjacente é inegável. Dadas as quantidades recordes de gases de efei-to estufa na nossa atmosfera, as temperaturas globais continuarão a subir para as próximas gerações.”

Mas, embora reconheçam que as alterações nos eventos extremos seriam um indício inicial de que o clima está de fato mudando, e que as projeções sobre os efeitos do aquecimento global implicam modificações nos eventos extremos, os cientistas têm sido extremamente cautelosos em admitir que o que está acontecendo tem mesmo rela-

ção com o aquecimento global (o primeiro docu-mento mais contundente a esse respeito deve ser o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima, o IPCC, a ser divulgado em abril). O motivo é simples: faltam registros sufi-cientes, que cubram grandes regiões do globo de forma regular e por longos períodos de tempo, para compor esse quadro com a precisão científi-ca exigida e dele extrair as devidas conclusões.

“O IPCC, em sua primeira avaliação sobre mu-dança climática (1992), não considerou se os eventos climáticos extremos haviam aumenta-do em frequência e/ou intensidade globalmen-te porque as informações eram muito esparsas para fazer disso um exercício válido para todo

o mundo”, afirmou o climatologista australiano Neville Nicholls em um estudo apresentado na reunião do IPCC em Oslo (Noruega), em 2009. “Em 1995, em sua segunda avaliação, o IPCC examinou a questão e concluiu que ‘no todo, não há evidência de que os eventos climáticos ex-tremos, ou a variabilidade climática, tenham aumentado, em sentido global, através do século 20, embora dados e análises sejam pobres e não compreensíveis’.” Nicholls salientou a seguir que mudanças em extremos haviam sido observadas em algumas regiões, mas que a ausência de dados climáticos confiáveis em todas as áreas relacio-nadas a tais eventos – sobretudo nos países em desenvol-vimento – ainda impede que as pesquisas avancem nesse setor.

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Piscinas cheias no Sesc Belenzinho

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No Brasil há deficiência de dados

“Ninguém pode concluir 100% que nada como isso (casos de eventos extremos do porte atual) tenha acontecido nos últimos 200 anos, mas a suspeita está aí – mesmo que seja apenas uma suspeita”, declarou Jean-Pascal van Ypersele, vice-presidente do IPCC, à agência AFP. É esse, de certa forma, o pensamento de Marengo (inte-grante da equipe brasileira no IPCC). De acordo com ele, eventos extremos mais frequentes e/ou intensos já estão sendo ob-servados nas últimas cinco ou seis décadas. “Para afirmarmos algo nessa área, tem de haver antes muitos estudos”, ressalta.

O Brasil é uma amostra da deficiência de dados que os estudiosos ressaltam nessa questão. “No Sul e no Sudeste, as chuvas aumentaram nas décadas de 1990 e 2000, na comparação com 50 a 60 anos atrás”, observa Marengo. “Há também mais noites quentes no inverno, o que indi-ca tendência de invernos mais quentes.” Mas a precisão vai-se reduzindo conforme a região muda. Em partes do Nordeste e da Amazônia, houve um aumento de verani-cos, com estiagem, na estação chuvosa, afirma o pesqui-sador, mas no Centro-Oeste e no Pantanal há poucas in-formações disponíveis. “Existem ali anos com enchentes, outros com seca, tudo seguindo uma dinâmica própria.”

Detectar o momento em que as alterações nos eventos climáticos extremos estarão indiscutivelmente ligadas

ao aquecimento global vai ser um trabalho de monitora-mento exaustivo, ano após ano, diz Marengo. Amenizar o impacto desses fenômenos implica seguir o roteiro já conhecido de mitigação do aquecimento global na par-te em que o homem interfere: adotar princípios de uma economia com baixa emissão de gases-estufa, usar mais fontes de energia renováveis e reflorestar bastante, por exemplo. Esforços mundiais nesse sentido até existem, mas caminham a passos ainda vagarosos demais para as necessidades do planeta. Enquanto isso, resta a seus ha-bitantes adaptar-se ao que vier – às secas, às chuvas, ao calor e/ou ao frio extremados, enfim, às vontades de um tempo cada vez mais caprichoso e surpreendente.

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Seca no rio Piracicaba

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O SEGREDO DO BOTÃO DE ROSAO que o faz desabrochar?

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erto dia, um jovem discípulo estava andando com seu xeique pelo jardim. Sentindo-se um tan-to inseguro sobre as tarefas que Alá reservara para si, ele pedia conselhos ao xeique. Este foi até uma roseira, colheu um botão de rosa e o entregou ao rapaz, pe-

dindo para que o abrisse sem remover nenhu-ma pétala.

O jovem olhou incrédulo para o xeique, ten-tando imaginar o que um botão de rosa teria a ver com seu desejo de conhecer a vontade de Alá para sua vida e seu ministério.

Mas, por seu grande respeito pelo xeique, ele se pôs a tentar abrir a rosa mantendo cada pétala intacta. Não demorou muito para ele perceber que era impossível fazer aquilo. No-tando a incapacidade do jovem aluno para abrir o botão sem despedaçá-lo, o xeique começou a recitar o seguinte poema:

É apenas um pequeno botão de rosa,Uma flor por Alá criada;Mas não posso abrir as pétalasCom minhas mãos desajeitadas.O segredo de abrir as floresNão é conhecido, assim como eu.Alá abre esta flor tão suavemente,Então ela morre em minhas mãos.Se não posso abrir um botão de rosa,Esta flor por Alá criada,Como posso ter a sabedoriaPara abrir a minha vida?Então confio em Alá para conduzirCada momento do meu dia.Eu me voltarei para Alá e Sua orientaçãoEm cada passo do caminho.A trilha que está à minha frenteApenas Alá conhece.Confiarei n’Ele para abrir os momentos,Assim como Ele abre a rosa.

CUm singelo poema da sabedoria sufi (corrente mística e esotérica do islamismo) encerra uma grande sabedoria: É preciso ter fé no próprio destino, até mesmo quando não conseguimos desvendar os desígnios que o teceramPOR: EQUIPE OÁSIS

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TEN

DÊN

CIAO PODER DA SOCIEDADE CIVIL

Quatro lições da guerra contra as drogas e a violência armada

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ativista social e política ca-rioca Ilona Szabó de Carvalho entendeu que o consumo e o tráfico de drogas e a violência homicida cada vez mais trans-formavam o Brasil num país à

parte. Decidiu então participar ativamente da criação de uma organização, o Instituto Iga-

A

Quando desenvolvia uma carreira na rede bancária, a “transformadora política” carioca Ilona Szabó de Carvalho nunca imaginou que estaria um dia na cabeça de um movimento social. Mas morando no Brasil, campeão mundial em índices de violência homicida, ela percebeu que não poderia continuar apenas como espectadora desse processo

VÍDEO: TED – IDEAS WORTH SPREADINGTRADUÇÃO: TÚLIO LEÃO. REVISÃO: LEONARDO SILVA

rapé (en.igarape.org.br), no Rio de Janeiro, cujo foco principal é a segurança do cidadão e a política do desenvolvimento. Nesta pales-tra, Ilona Szabó de Carvalho revela quatro li-ções cruciais que ela aprendeu quando aban-donou o seu emprego confortável e assumiu um postura destemida contra o status quo.

A ATIVISTA SOCIAL E POLÍTICA ILONA SZABÓ DE CARVALHO

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Tradução integral da palestra de Ilona Szabó de Carvalho

Há cerca de 12 anos, eu desisti de minha carreira bancária para tentar tornar o mundo um lugar mais seguro. Isso envolveu uma jornada em advocacia global e nacional e encontros com algumas das pessoas mais extraordinárias do mundo. No pro-cesso, me tornei diplomata da sociedade civil.

Diplomatas da sociedade civil fazem três coisas: expressam as preocupações do povo, não são influenciados por interesses na-cionais e motivam mudanças através de redes de cidadãos, não apenas redes estatais. E se quisermos mudar o mundo, precisa-mos de mais deles.

Mas muitos ainda perguntam: “Será que a sociedade civil pode fazer tanta diferença? Será que os cidadãos podem influenciar e moldar a política global e nacional?” Nunca achei que fosse me perguntar isso, mas cá estou para compartilhar algumas

lições sobre os poderosos movimentos da sociedade civil em que me envolvi. Eles defendem questões pelas quais sou apaixonada: controle de armas e política de drogas. E essas são questões que importam aqui. A América Latina é o marco inicial para ambas.

O Brasil, por exemplo, este lindo país sediando o TEDGlobal tem o recorde mundial mais feio. Somos o campeão, o número um, em violência homicida. Uma em cada dez pessoas mortas ao redor do mundo é brasileira. Isso resulta em mais de 56 mil pessoas morrendo violen-tamente a cada ano. A maioria delas são jovens garotos negros, mortos a tiro. O Brasil também é um dos maiores consumidores de drogas do mundo, e a Guerra às Drogas tem sido especialmente dolorosa aqui. Cerca de 50% dos homicídios nas ruas brasileiras são relacionados à Guer-ra às Drogas. O mesmo vale para 25% dos presos. E não é só o Brasil que é afetado pelos problemas irmãos de dro-gas e armas. Praticamente todos os países e cidades das Américas Central e do Sul estão em apuros. A América Latina tem 9% da população mundial, mas, globalmente, 25% das mortes violentas.

Esses não são problemas dos quais podemos correr. Eu certamente não poderia. Então a primeira campanha com a qual me envolvi começou aqui, em 2003, para mudar a lei brasileira de porte de armas e para criar um programa de desarmamento. Em apenas alguns anos, não apenas mudamos a legislação nacional, que dificul-tou o porte de armas por civis, mas também coletamos e destruímos quase meio milhão de armas. Esse foi um dos maiores programas de desarmamento da história. (Aplausos) Mas também lidamos com contratempos.

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Tradução integral da palestra de Ilona Szabó de Carvalho

Perdemos um referendo em 2005 que proibiria a venda de ar-mas a civis.

A segunda iniciativa também foi caseira, mas é hoje um mo-vimento global para reformar o regime de controle de drogas. Sou a coordenadora executiva de algo chamado: A Comissão Global de Política de Drogas. A comissão é um grupo de alto nível que reúne líderes globais para identificar abordagens mais humanas e efetivas à questão das drogas. Desde que co-meçamos em 2008, o tabu das drogas está quebrado. Por toda a América, desde EUA e México até Colômbia e Uruguai, a mu-dança está pairando.

Mas em vez de contar a vocês toda a história desses dois movi-mentos, quero compartilhar quatro pontos-chave. Eu os chamo de lições para mudar o mundo. Há certamente muitas mais, mas essas são as que se destacam para mim.Então a primeira lição é: mude e controle a narrativa. Pode parecer óbvio, mas o principal ingrediente para a diplomacia da sociedade civil é primeiro mudar e então controlar a narra-tiva. Isso é algo que políticos veteranos sabem, mas que grupos da sociedade civil normalmente não realizam direito. No caso da política de drogas, nosso maior sucesso foi mudar a discus-são de realizar uma Guerra às Drogas para colocar a saúde e segurança das pessoas em primeiro lugar. Num relatório ino-vador que acabamos de lançar em Nova Iorque, mostramos que os grupos que mais se beneficiam desse mercado de 320 bilhões de dólares são as quadrilhas e cartéis. Então para que possamos tirar o poder e lucro desses grupos, temos de mudar a conversa. Temos de legalizar as drogas ilegais. Mas, antes de deixá-los animados demais, não quero dizer que as drogas de-vem ser um vale-tudo. O que estou falando, e o que a Comissão Global advoga, é criar um mercado altamente regulado, onde

diferentes drogas seriam reguladas com diferentes seve-ridades.

Já para o controle de armas, tivemos sucesso em mudar, mas não muito em controlar a narrativa. E isso me leva à próxima lição: nunca subestime seus oponentes. Se qui-ser ser bem-sucedido em mudar o mundo, você tem de saber quem está enfrentando. Tem de aprender as mo-tivações e pontos de vista deles. No caso do controle de armas, subestimamos muito os nossos oponentes. Após um programa de desarmamento extremamente bem-su-cedido, estávamos exultantes. Tínhamos o apoio de 80% dos brasileiros, e acreditávamos que isso nos ajudaria a ganhar o referendo para banir a venda de armas a civis. Mas estávamos completamente errados. Durante a trans-

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Tradução integral da palestra de Ilona Szabó de Carvalho

missão de um debate público de 20 dias, nosso oponente usou nossos próprios argumentos contra nós. Acabamos perdendo o voto popular. Foi terrível. A Associação Nacional de Rifles, sim a NRA americana, veio ao Brasil. Eles inundaram nossa campanha com seus próprios ideais, que, como vocês sabem, relacionam o direito de portar armas com ideias de liberdade e democracia. Eles simplesmente usaram tudo contra nós. Eles usaram nossa bandeira nacional, nosso hino de independência. Eles invocaram os direitos da mulher e usaram impropriamen-te fotos do Mandela, da Praça da Paz Celestial e até do Hitler. Eles ganharam ao brincar com o medo das pessoas. De fato, as armas foram quase que completamente ignoradas na campa-nha deles. Seu foco era em direitos individuais. Mas pergunto a vocês qual direito é mais importante: o direito à vida ou o di-reito de ter uma arma que a tira? (Aplausos)

Pensávamos que as pessoas votariam em defesa da vida, mas em um país com histórico recente de ditadura mi-litar, o recado antigovernamental de nossos oponentes ressoou, e não estávamos preparados para reagir.

Lição aprendida. Nós tivemos mais sucesso no caso da política de drogas. Se há dez anos você perguntasse às pessoas se o fim da Guerra às Drogas era possível, a maioria teria achado graça. Afinal, há enormes prisões militares policiais e estabelecimentos financeiros se be-neficiando dessa guerra. Mas hoje, o regime internacio-nal de controle de drogas está desabando. Governos e sociedades civis estão tentando novas abordagens. A Co-missão Global de Política de Drogas realmente conhece a oposição e, em vez de lutar com ela, nosso presidente, o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, dialogou com líderes de todo o espectro político, desde liberais até conservadores. Esse grupo de alto escalão concordou em discutir honestamente os méritos e falhas das políticas de drogas. Foi essa discussão fundamenta-da, informada e estratégica que revelou a triste realidade da Guerra às Drogas. A Guerra às Drogas falhou catastro-ficamente em cada métrica. As drogas estão mais baratas e acessíveis do que nunca, e o consumo global aumentou. Mas, pior ainda, também gerou massivas e indesejadas consequências negativas. É verdade que algumas pessoas já levantaram esses argumentos antes, mas fizemos a di-ferença ao antecipar os argumentos de nossos oponentes e ao potencializar as vozes poderosas que há alguns anos teriam resistido à mudança.

Terceira lição: use dados para conduzir os seus argu-mentos. Armas e drogas são questões emotivas, e como

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Tradução integral da palestra de Ilona Szabó de Carvalho

aprendemos de forma dolorosa no referendo sobre armas no Brasil, algumas vezes é impossível se libertar das emoções e enxergar os fatos. Mas isso não significa que não devamos ten-tar. Até recentemente, simplesmente não sabíamos quantos brasileiros eram mortos a tiro. Incrivelmente, foi uma novela chamada “Mulheres Apaixonadas” que deu o pontapé para a campanha de controle de armas no Brasil. Em um episódio muito assistido, a protagonista da novela foi morta por uma bala perdida. Avós e donas de casa ficaram enfurecidas, e em um caso de arte imitando a vida, esse episódio incluiu uma filmagem real de uma marcha sobre o porte de armas que haví-amos organizados bem aqui, na praia de Copacabana. As mar-chas e morte televisionadas tiveram grande impacto na opinião pública. Em algumas semanas, nosso Congresso aprovou a lei de desarmamento que estava tramitando há anos. Fomos então capazes de mobilizar dados para mostrar o resultado positivo das mudanças na lei e no programa de desarmamento. Eis o que quero dizer: pudemos provar que, em apenas um ano, sal-vamos mais de 5 mil vidas. (Aplausos)

E no caso das drogas, para amenizar o medo e o preconceito em torno dessa questão, conseguimos coletar e apresentar da-dos que mostram que essas políticas de drogas causam muito mais danos que o uso de drogas, e as pessoas estão começando a entender.

Minha quarta lição é: não tenha medo de reunir pessoas anta-gônicas. O que aprendemos no Brasil, e isso não se aplica ape-nas ao meu país, é a importância de reunir pessoas diversas e ecléticas. Se quiserem mudar o mundo, é de grande ajuda ter uma boa amostra da sociedade ao seu lado. Em ambos os ca-sos, das drogas e das armas, reunimos uma maravilhosa com-binação de pessoas. Mobilizamos a elite e conseguimos apoio

massivo da mídia. Juntamos vítimas, heróis dos direitos humanos e ícones culturais. Também reunimos as classes profissionais, médicos, advogados, acadêmicos e mais.O que aprendi ao longo dos anos é que precisamos de apoio dos dispostos e dos relutantes para ter mudanças. No caso das drogas, precisávamos dos libertários, legali-zadores, antiproibicionistas e políticos liberais. Eles po-dem não concordar em tudo. Na verdade, eles discordam em quase tudo. Mas a legitimidade de uma campanha é baseada nesses diversos pontos de vista.

Há mais de uma década, eu tinha um futuro confortável trabalhando em um banco de investimentos. Eu estava o mais longe possível da diplomacia da sociedade civil que você pode imaginar. Mas eu abracei uma oportunidade. Eu mudei minha rota e, no caminho, ajudei a criar mo-vimentos sociais que acredito terem feito suas partes em deixar o mundo mais seguro. Cada um de nós tem o po-der de mudar o mundo. Não importa qual a questão, nem a dificuldade da luta; a sociedade civil é o cerne do plane-jamento para a mudança.Obrigada.

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