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    FOLHA

    EXPLICA

    NIETZSCHE

    OSWALDO GIACOIA JNIOR

    PUBLIFOLHA

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    2000 Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. 2000 Osvaldo Giacoia JniorDiviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A.Editor: Arthur NestrovskiCapa e projeto grfico: Silvia RibeiroAssistente de projeto grfico: Marilisa von SchmaedelReviso: Mrio VilelaEditorao: eletrnica Picture

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

    Giacoia Jnior, OsvaldoNietzsche / Osvaldo Giacoia Jnior. - So Paulo : PUBLIFOLHA, 2000. (Folha explica)

    ISBN 85-7402-212-8

    1. Filosofia alem 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844 1900 I. Ttulo II. Srie

    00-2125 CDD-193

    ndices paro catlogo sistemtico:

    1. Nietzsche: Filosofia alem 193PUBLI FOLHADiviso de Publicaes do Grupo FolhaAv. Dr. Vieira de Carvalho, 40, II" andar, CEP 01210-010, So Paulo, SPTels.:(11) 3351-6341/6342/6343/6344 - Site.www.publifolha.com.br

    http://www.publifolha.com.br/http://www.publifolha.com.br/http://www.publifolha.com.br/
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    SUMRIO

    INTRODUO:

    POR QUE LER NIETZSCHE HOJE..................................9

    1. A CRISE DOS VALORES.......................................... 15

    2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA.....................21

    3. O JOVEM NIETZSCHE...............................................27

    4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES............41

    5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU

    COMO TORNAR-SE O QUE SE .................................53

    6. BREVE HISTRIA DA RECEPO

    DA OBRA DE NIETZSCHE.............................................71

    7. DADOS BIOGRFICOS.............................................

    SUGESTES DE LEITURA............................................89

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    para Rachel Cristina

    Todos esses pssaros audazes, que voam ao longe, ao

    mais longnquo certamente! em algum lugar no podero ir

    mais longe e pousaro sobre um mastro ou um msero recife ,

    e, alm do mais, to gratos por esse deplorvel pouso! Mas quem

    poderia concluir disso que adiante deles no h mais nenhuma

    descomunal rota livre, que eles voaram to longe quanto se pode

    voar. Todos os nossos grandes mestres e precursores acabaram

    por se deter, e no com o gesto mais nobre e mais gracioso que

    o cansao se detm: tambm comigo e contigo ser assim! Mas

    que importa isso a mim e a ti! Outros pssaros voaro mais

    longe!... E para onde queremos ir? Queremos passar alm do

    mar? Para onde nos arrasta esse poderoso apetite que para ns

    vale mais do que qualquer prazer? Mas por que precisamente

    nessa direo, para l onde at agora todos os seus cia

    humanidade declinaram? Talvez um dia diro de ns que tambm

    ns, navegando para o Ocidente, espervamos alcanar ninas

    ndias mas que nosso destino era naufragar no infinito? Ou,

    meus irmos! Ou?

    Aurora, aforismo 575

    (Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho)

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    INTRODUO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE

    Dentre os clssicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o

    pensador mais incmodo e provocativo. Sua vocao crtica cortante o levou

    ao submundo de nossa civilizao, sua inflexvel honestidade intelectual

    denunciou a mesquinhez e a trapaa ocultas em nossos valores mais

    elevados, dissimuladas em nossas convices mais firmes, renegadas em

    nossas mais sublimes esperanas. Essa atitude deriva do que Nietzsche

    entendiapor filosofia.

    Para ele, filosofar um ato que se enraza na vida e um exerccio de

    liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexo exige vigilncia

    crtica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de

    mistificao intelectual. Por isso, Nietzsche no poupou de exame nenhum

    de nossos mais acalentados artigos de f. O destino da cultura, o futuro do

    ser humano na histria, sempre foi sua obsessiva preocupao. Por causa

    dela, submeteu crtica todos os domnios vitais de nossa civilizao

    ocidental: cientficos, ticos, religiosos e polticos.

    Nietzsche um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia amoralidade e a poltica moderna como transformao vulgarizada de antigos

    valores metafsicos e religiosos, numa conjurao subterrnea que conduz

    ao amesquinhamento das condies nas quais se desenvolve a vida social.

    Nesse sentido, ele um dos mais intransigentes crticos do nivelamento e da

    massificao da humanidade. Para ele, isso era uma conseqncia funesta

    da extenso global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou

    a partir da Revoluo Industrial.Nietzsche se ope a supresso das diferenas, a padronizao de

    valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposio

    totalitria de interesses particulares; por isso, ele tambm um opositor da

    igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformao

    de pessoas em peas annimas da engrenagem global de interesses e a

    manipulao de coraes e mentes pelos grandes dispositivos formadores

    de opinio.O esforo filosfico de Nietzsche o levou a se confrontar com as

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    grandes correntes histricas responsveis pela formao do Ocidente: a

    tradio paga greco-romana e a judaico-crist; e o que resultou da fuso

    entre as duas.

    Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herana cultural de

    nossa tradio, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que athoje impregnam nosso vocabulrio e povoam nosso imaginrio poltico e

    artstico. Tais so, por exemplo, as noes de Apoio e Dionsio,

    transformadas em categorias estticas, os conceitos de vontade de poder,

    alm-do-homem (bermensch), eterno retomo e niilismoe a figura da morte

    de Deus.

    impossvel se colocar altura dos principais temas e questes de

    nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Atesta radical, eleatribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essncia e definir as

    metas de seu destino. Dele afirma o filsofo Martin Heidegger: "Nietzsche

    o primeiro pensador que, perante a histria universal pela primeira vez

    aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete

    internamente em toda a sua extenso metafsica. Essa pergunta reza: como

    homem, em sua essncia at aqui, est o homem preparado para assumir o

    domnio da terra?"1

    Nesse sentido, Nietzsche o pensador de nossas angstias, que no

    poupou nenhuma certeza estabelecida sobretudo as suas prprias

    convices e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna.

    Com a paixo que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos

    os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os

    desafios, as vertigens no fim do sculo 19. Dessa sua condio, postado

    entre o final e o incio de duas eras, Nietzsche esboou um quadro que, emtodos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milnio,

    em direo a um destino que ainda no se pode discernir.

    A despeito de sua viso sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo

    tempo, um arauto de novas esperanas. Sua mensagem definitiva a

    criao de novos valores, a instituio de novas metas para a aventura

    humana na histria tambm um cntico de alegria. Essa uma das

    razes pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinao paradoxal de1 Heidegger. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vortrge und Aufstze. Pfullingen: Neske Verlag,1954; p. 102.

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    elementos antagnicos: sombra e luz, agonia e xtase, gravidade e leveza.

    Isso explica por que, para ele, o riso e a pardia so operadores

    filosficos inigualveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas.

    Nietzsche, o impiedoso crtico das crenas cannicas, tambm um mestre

    da ironia. Sua ambio consiste em tomar superfcie o que profundidade,restituir a graa ao peso da seriedade filosfica.

    Opositor ferrenho da dialtica socrtica, Nietzsche reedita, no mundo

    moderno, o gesto irnico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo

    adversrio de Plato, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma

    inverso pardica do platonismo. Definindo-se como o mais intransigente

    anticristo, d, no entanto, sua autobiografia intelectual, escrita no final de

    sua vida, o ttulo Ecce Homo ("Eis o Homem") expresso empregada porPilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco antes da Paixo.

    Nietzsche, o filsofo-artista, um poeta que s acreditava numa

    filosofia que fosse expresso das vivncias genunas e pessoais, vendo na

    experincia esttica uma espcie de xtase e redeno, , por isso mesmo,

    um precursor da crtica a um tipo de racionalidade meramente tcnica, fria e

    planificadora. A despeito da profundidade e da gravidade das questes com

    que se ocupa, sempre as tratou em estilo artstico, poeticamente sugestivo;s acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a

    danar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrio:

    Moro em minha prpria casa

    Nada imitei de ningum

    E ainda ri de todo mestre

    Que no riu de si tambm.2

    Sem extravasar os limites dos livros desta srie, Folha Explica

    Nietzsche se prope a ser uma apresentao geral do homem e do filsofo

    Friedrich Nietzsche. Seu objetivo fazer com que o leitor se familiarize com

    os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche no para depois encerr-

    los em qualquer cmara da memria, mas sim para despertar seu interesse

    e estimul-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche implica,

    sobretudo, pensar independentemente; e por isso, s vezes, tambm contra2 Epgrafe deA Gaia Cincia; em Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col.Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p 195.

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    Nietzsche.

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    1. A CRISE DOS VALORES

    O pensamento filosfico de Nietzsche pode ser comparado a uma

    espcie de sensor que registra e antecipa questes e desafios de nosso

    sculo. Sua ambio realizar um diagnstico fiel da situao do homem

    moderno. Para ele, no resta dvida de que, herdeiro dos progressos do

    Iluminismo, julgamo-nos liberados das cadeias da ignorncia e da

    superstio. Confiantes nas possibilidades advindas da utilizao industrial

    da cincia e da tcnica, estamos certos de poder descobrir todos os

    segredos do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as

    formas de opresso, violncia, explorao. Afinal, somos devotos do deus

    Logos,3 confiantes em sua onipotncia.

    Nietzsche, porm, meditou sobre o lado obscuro, as conseqncias

    que poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convico.

    Esse otimismo representa, para ele, a face resplandecente de um avesso

    sombrio: o mesmo progresso conduz inexoravelmente exausto dos

    valores herdados da tradio, sua impossibilidade de dar sustentao a

    futuros projetos viveis, no campo quer do conhecimento, quer da tica,quer da poltica.

    Nietzsche se encontrava no limiar de uma experincia do mundo em

    que, como conseqncia dos progressos do conhecimento, noes como

    Verdade, Falsidade, Justia, Bem, Mal, Virtude tinham sido relativizadas, no

    podendo mais responder a nossa eterna pergunta pelo sentido da existncia.

    Para ele, no cabia ao filsofo justificar ou condenar esse estado de coisas,

    mas constat-lo; essa constatao seria, ento, o nico caminho que permitevislumbrar uma sada. Toda tentativa de negar essa condio representa no

    apenas uma desonestidade intelectual e moral, mas sobretudo o risco da

    catstrofe; ou seja, a possibilidade de que o esvaziamento de valores

    autnticos nos conduza de volta barbrie, destruio daquilo que de

    mais precioso a humanidade conquistou ao longo da histria: a dignidade da

    pessoa humana.

    3 Logos: palavra grega que significa "palavra", "discurso" e "razo"; termo que d origem palavralgica e que, em sentido amplo, equivalente racionalidade.

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    Por essa razo, Nietzsche dedicou sua vida a realizar trs tarefas

    principais: compreender a lgica desse movimento contraditrio ao longo do

    qual o progresso do conhecimento leva perda de consistncia dos valores

    absolutos; a partir da, denunciar todas as formas de mistificao pelas quais

    o homem moderno oblitera sua viso dos perigos de sua condio; por fim,destrudos os falsos dolos e esses so os valores mais venerados pelo

    homem moderno assumir corajosamente o risco de pensar novos valores,

    abrir novos horizontes para a experincia humana na histria.

    Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia

    sobre a Europa ao final do sculo 19. Filha de seu prprio tempo, sua obra

    submete a uma crtica impiedosa todas as esferas da cultura. Porm, ao

    exigir do homem moderno que tome conscincia das conseqncias, daspossibilidades e dos limites de seu saber e agir, Nietzsche coloca questes

    que at hoje prosseguem conosco. Num de seus mais belos e clebres

    textos, pe em cena o drama de nossa condio:

    "No ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manha

    clara, acendeu um candeeiro, correu para o mercado e gritava

    incessantemente: 'Procuro Deus! Procuro Deus?' E, como l se reunissem

    justamente muitos daqueles que no acreditavam em Deus, provocou eleento grande gargalhada. 'Perdeu-se ele, ento?', dizia um. 'Ter-se-ia

    extraviado, como uma criana?', dizia outro.'Ou se mantm oculto? Tem ele

    medo de ns? Embarcou no navio? Emigrou?' desse modo gritavam e riam

    entre si. O homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o oUiar.

    'Para onde foi Deus?', clamou ele,'eu vos quero dz-lo! Ns o matamos, vs

    e eu! Ns todos somos seus assassinos? Como, porm, fizemos isso? Como

    pudemos tragar o oceano? Quem nos deu a esponja para remover ohorizonte inteiro? Que fizemos ns quando desprendemos esta Terra de seu

    sol? Para onde se move ela, ento? Para onde nos movemos ns? Longe de

    todos os sis? No nos precipitamos sem cessar? E para trs, para o lado,

    para frente, de todos os lados? H ainda um alto e um baixo? No erramos

    como atravs de um nada infinito? No nos bafeja o espao vazio? No ficou

    mais frio? No vem, sem cessar, sempre a noite e mais noite? No se tem

    que acender candeeiros pela manh? Nada ouvimos ainda do rumor dos

    coveiros,que sepultam Deus? Nada sentimos ainda do cheiro da

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    decomposio divina? tambm os deuses se decompem! Deus morreu!

    Deus permanece morto! E ns o matamos! Como que nos consolamos, ns

    os assassinos de todos os assassinos? Aquilo de mais santo e poderoso que o

    universo possuiu at agora sangrou sob nossos punhais quem enxuga de

    ns esse sangue? Com que gua poderamos nos purificar? Que cerimniasde expiao, que divinos jogos teramos de inventar? A grandeza desse feito

    no demasiado grande para ns? No teramos que nos tomar, ns

    prprios, deuses, para apenas parecer dignos dele? Jamais houve um feito

    maior e sempre quem tenha apenas nascido depois de ns pertence, por

    causa desse feito, a uma histria mais elevada do que foi toda histria at

    agora!' Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus ouvintes.

    Tambm estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente,ele arrojou o candeeiro ao solo, de modo que este se estilhaou e

    apagou.'Chego cedo demais', disse ele ento; 'no estou ainda no tempo

    oportuno. Esse acontecimento formidvel est ainda a caminho e peregrina

    ele ainda no penetrou nos ouvidos dos homens. Relmpago e trovo

    precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, feitos precisam de

    tempo, mesmo depois de consumados, para serem vistos e ouvidos. Este

    feito est ainda mais distante deles do que os astros mais remotos , etodavia eles o consumaram'. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem

    louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu requiem

    aetemam Deo. Conduzido para fora e instado a falar, teria ele replicado

    sempre apenas isto: 'O que so, ento, as igrejas, se no criptas e

    mausolus de Deus? 4

    A passagem descreve o sentimento de abandono que, como vazio

    opressivo, esmaga a conscincia do homem moderno. Os cnicosescarnecedores, reunidos na praa do mercado, somos tambm ns,

    vencedores do combate da cincia contra as trevas da ignorncia. Apenas

    ns, homens modernos, no estvamos conscientes da dimenso pica de

    nosso prprio feito, nada sabamos da tragdia que desencaderamos, nela

    precipitando nosso mundo.

    Friedrich Nietzsche o pensador a quem coube apreender

    filosoficamente a experincia intelectual que marca nosso destino, ao tentar

    4 Nietzsche, Gaia Cincia; aforismo 125: O Homem louco

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    levar at suas conseqncias extremas o impulso crtico que anima o

    pensamento filosfico da modernidade. No se pode, porm, extrair as

    ltimas concluses desse impulso crtico sem retomar sua origem, isto ,

    para Nietzsche, metafsica de Plato. Por essa razo, uma das primeiras e

    mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui a de refutar e destruira metafsica platnica.

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    2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA

    Para Nietzsche, pode-se tomar a filosofia de Plato como modelo da

    metafsica. Esta se fundamenta numa concepo dualista do universo,

    estabelecendo uma oposio de valores entre duas esferas distintas da

    realidade ou do ser: de um lado, existe um domnio ideal, considerado como

    o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira, assim denominado por ser o

    plano das essncias, isto , aquilo que, em todo e qualquer fenmeno

    constitui sua pura forma ou conceito. Assim, por exemplo, a humanidade

    constitui a essncia de cada ser humano particular, ou a triangularidade

    determina a natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou

    traamos. Todos os indivduos humanos concretos so limitados e finitos,

    mas a humanidade uma entidade intelectual, que em nada se altera em

    virtude da sucesso dos indivduos singulares.

    Tais formas puras, denominadas tecnicamente idias por Plato,

    teriam sua origem na idia do Bem ou de Deus que a causa produtora

    de todas as outras idias que so as formas gerais do universo.Tais

    entidades so inacessveis a nossos rgos dos sentidos; e imutveis, uma

    vez que no esto submetidas s leis do espao e do tempo. Por serem asresponsveis pela realidade de todo real, foram tradicionalmente

    denominadas realidade inteligvel, em contraposio a uma segunda ordem

    de realidade, a realidade aparente ou sensvel, que aquela de que temos

    experincia ordinria.

    Contraposto s essncias inteligveis, o mundo sensvel

    tradicionalmente considerado um plano de realidade deficitria, enganosa,

    mera aparncia ou simulacro das formas puras, que so como originais oumodelos dos quais toda realidade emprica, sensvel, constitui uma cpia,

    necessariamente imperfeita e corruptvel. E a essa realidade degradada,

    sujeita s condies do espao e do tempo, que pertence nossa existncia

    terrena e corporal.

    Nossa alma ou esprito, nossa verdadeira essncia e princpio

    inteligvel, estaria como se prisioneira de nosso corpo, sendo por isso

    induzida ao erro e ao engano pelos sentidos, que nos arrastam para o planodas aparncias, desviando-nos do que seria nossa verdadeira destinao: a

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    3. O JOVEM NIETZSCHE

    Uma exposio geral do pensamento de Nietzsche constitui uma

    tarefa dificultada pelo variedade dos temas de que se ocupa, pela

    extraordinria multiplicao de pontos de vista por vezes dificilmente

    conciliveis -sobre um mesmo assunto, pela diversidade de estilos literrios

    presentes em sua obra e, sobretudo, pela natureza radicalmente crtica e

    polmica de seus escritos. Isso gerou a convico, quase unnime entre seus

    comentadores, de que o aspecto assistemtico constitui o trao essencial de

    seu pensamento.

    Um intrprete contemporneo da obra de Nietzsche, o americano

    Walter Kaufmann, escrevendo a respeito desse trao assistemtico, fez notar

    que Nietzsche seria mn pensador de problemas, e no pensador de

    sistemas; alis, de acordo com Kaufmann, o pensamento nietzscheano no

    poderia dar ensejo a um sistema. Em Nietzsche, "a investigao filosfica

    parte no de um feixe de pressupostos, mas de uma situao problemtica.

    Nela esto contidos alguns pressupostos, e outros so expressamente

    admitidos ao longo da investigao. O resultado final no tanto uma

    soluo do problema inicial, mas antes o discernimento de seus limites: emregra, o problema no resolvido; ns, porm, nos elevamos acima dele".5

    A despeito da diversidade temtica de seu contedo e da

    multiplicidade de seus estilos, pode-se facilmente reconhecer que as

    questes abordadas por Nietzsche remetem a um centro comum de

    preocupaes, que os conceitos e argumentos se renem em constelaes,

    que se arranjam e modificam ao longo de sua trajetria filosfica, sem,

    entretanto, jamais deixar de orbitar em tomo de um centro de gravidade."Com a mesma necessidade com que uma rvore d seus frutos, crescem

    em ns nossos pensamentos, nossos valores, nossos sins e nos e quandos e

    ses aparentados e referidos todos eles entre si e testemunhas de uma

    nica vontade, de uma nica sade, de um nico terreno, de um nico sol.6

    Na literatura secundria, costuma-se dividir cronologicamente em

    5 Kaufman, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, New Jersey: Princeton University,

    1974, p. 82.6 Para a Genealogia da moral. Prefcio, par. 2; em: Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. RubemRodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p. 305.

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    trs fases a produo filosfica de Nietzsche. O primeiro perodo estaria

    situado, aproximadamente, entre os anos 1870 e 1876. Um segundo

    momento vai de 1876 a I 882, sendo seguido pela derradeira fase, iniciada

    em 1882 e abruptamente interrompida em 1889. Essa periodizao

    sobretudo determinada pela seqncia das obras caractersticas de cadauma das fases.

    Contudo, essa diviso sempre foi objeto de debate entre os principais

    comentadores da obra de Nietzsche. Por um lado, no se pode negar que

    determinados grupos de idias se conservam presentes nos diferentes

    perodos, o que sugeriria uma idia de continuidade. Por outro, a trajetria

    filosfica de Nietzsche marcada por mudanas significativas, tanto de

    forma quanto de contedo. As principais vantagens dessa periodizao sosobretudo de ordem didtica, para fins expositivos.

    O primeiro momento se caracterizaria, sobretudo, pelos escritos do

    assim chamado "jovem Nietzsche" e coincidiria, em grande parte, com o

    tempo de docncia na Universidade de Basilia, como catedrtico de

    filologia clssica.Tal perodo marcado pela publicao de O Nascimento da

    Tragdia a partir do Esprito da Msica (1 872), Primeira Considerao

    Extempornea: David Strauss, o Devoto e o Escritor (1873), Da Utilidade eDesvantagem da Histria Para a Vida (1874), Schopenhauer como Educador

    (1874) e Richard Wagner em Bayrenth (1876).

    Entretanto, no se pode deixar de fazer meno a textos que

    permaneceram inditos durante a vida do autor, ou tiveram restrita

    circulao, uma vez que so de grande relevncia para uma interpretao

    do conjunto de seu pensamento. Dentre eles cabe citar: O Drama Musical

    Grego, Scrates e a Tragdia, A Cosmoviso Dionisaca, O Nascimento doPensamento Trgico (todos de 1 870); Scrates e a Tragdia G,rega (1871);

    Sobre o litnro de Nossas Instituies de Ensino (1872); Cinco Prefcios Para

    Cinco Livros No Escritos (1872); A Filosofia na poca Trgica dos Gregos

    (1873); e, talvez o mais famoso dos inditos do jovem Nietzsche, Sobre

    Verdade e Mentira no Sentido Extramoral (1873).

    A PRIMEIRA FASE

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    desenvolvido e por uma postura corajosa perante o drama da existncia.

    Para Nietzsche, havia algo em comum entre a situao dos gregos,

    poca do florescimento da tragdia, e a situao da Europa no sculo 19. Se

    Schopenhauer tinha razo, com sua metafsica da Vontade, ento o corao

    pulsante do universo era um mpeto cego, desprovido de finalidade,eternamente sofredor, porque eternamente carente. Por conseguinte, no

    haveria mais lugar para as iluses consoladoras, at aquela poca

    alimentadas pela tradio, de que a cincia, a religio ou a moral seriam

    capazes de responder a eterna pergunta pela razo de ser e pelo sentido da

    existncia humana no mundo.

    Assim, nem pela razo especulativa nem pela razo prtica nem

    pela via da cincia, nem pela da moralidade se poderiam justificar aexistncia do universo e a razo de ser da vida humana. O Nascimento da

    tragdia a Partir do Esprito da Msica alis toda a metafsica de artista,

    que caracteriza esse primeiro perodo da filosofia de Nietzsche encontra

    nesse diagnstico da situao cultural da Europa seu horizonte de

    compreenso: "s como fenmeno esttico toma-se justificada a existncia

    do mundo [das Dasein der Welt]7

    O NASCIMENTO DA TRAGDIA

    E nesse sentido que os gregos do perodo trgico seriam exemplares.

    Eles pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da

    existncia e as "dores do mundo",sem necessidade cie subterfgios

    moralistas. Prova disso a ferocidade de que do mostras os combates

    entre as cidades-estados, assim como as agruras materiais e espirituais queestavam na base do florescimento da cultura grega. Entretanto, mesmo

    compreendendo que o sofrimento e a violncia da guerra se incluem entre

    as condies inexorveis da vida, souberam dar sua existncia a elevao

    e a beleza que encontramos presentes em todos os setores do mundo grego,

    no nvel tanto das instituies materiais, quanto das esferas superiores da

    cultura espiritual. Em outras palavras, os gregos souberam, exemplarmente,

    dominar o caos de seus impulsos, atingindo um domnio de si que Uies

    7 Nietzsche, O Nascimento da tragdia, cap. V.

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    permitia transfigurar em beleza os horrores da existncia.

    O jovem Nietzsche ilustra essa sua teoria da "jovialidade" (Heiterkeit)

    grega8 recorrendo proverbial lenda de Sileno, sbio acompanhante do deus

    Dionsio.i. Apolodoro narra que o rei Midas empreendeu caa a Sileno, para

    que este lhe revelasse o maior de todos os segredos: o que seria paia ohomem o melhor e o mais digno de desejar. Finalmente apreendido e

    forado a falar, Sileno teria respondido: "Estirpe miservel e transitria,

    filhos do acaso e da fadiga, por que me foras a dizer o que para ti seria

    mais vantajoso no ouvir? O melhor de tudo totalmente inatingvel para ti:

    no ter nascido, no ser, ser nada. E o melhor, em segundo lugar, , para ti,

    morrer logo".

    Esta a lio deixada pela tragdia grega: arte e cultura tm comofinalidade a transformao desse horror em beleza, em poesia pica e lrica

    popular, em msica e ditirambos,9 em instituies tico-religiosas e polticas

    como a obra de arte do Estado grego. As narrativas mticas, em geral, so

    expresses de uma vivncia comum do mundo, fundamentadora da

    identidade de um povo. Esse , para Nietzsche, o mistrio de Apoio e

    Dionsio smbolos intuitivos das duas foras ou impulsos fundamentais da

    natureza, aos quais corresponde a dupla face da experincia grega domundo.

    Apolo e Dionsio

    Apolo representa o lado luminoso da existncia, o impulso para gerar

    as formas puras, a majestade dos traos, a preciso das linhas e limites, a

    nobreza das figuras. Ele o deus do principio de individuao, da

    sobriedade, da temperana, da justa medida, o deus do sonho das belasvises. Dionsio, por sua vez, simboliza o fundo tenebroso e informe, a

    desmedida, a destruio de toda figura determinada e a transgresso de

    todos os limites, o xtase da embriaguez. Apolo o patrono das artes

    figurativas, Dionsio o deus da msica.

    A tragdia a sntese dessas foras antitticas: nela se conciliam,

    por um lado, a fora cega e inexorvel do destino, que a tudo destri, e, por

    8 Serenojovialidade, na excelente traduo brasileira, feita por Jac Guinsburg, de O Nascimento datragdia. So Paulo: Companhia das letras, 1992, nota 2; p. 145.9 Gnero potico grego, sobretudo ligado ao cntico coral religioso em culto a Dionsio.

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    outro, a intensidade mxima do que resiste ao destino, a figura colossal do

    heri. Por essa reconciliao, a tragdia transfigura em drama artstico

    aquela sabedoria pessimista de Sileno, segundo a qual tudo o que nasce

    mesmo o que h de mais grandioso tem de perecer, para que o ciclo da

    vida se perpetue. Sem destruio, no h criao; sem trevas, no h luz;sem barbrie e crueldade, no h beleza nem cultura.

    Scrates e opensamento cientfico

    Em relao ao perodo herico da tragdia tica, a tendncia

    representada pela figura de Scrates significou uma ruptura radical. O

    surgimento da escola socrtica, com a extrema valorizao do pensamentolgico e da dialtica, representaria no um progresso em relao Grcia

    pr-socrtica, porm o contrrio disso. A racionalidade de tipo socrtico

    matriz cio cientificismo moderno tem como pressuposto a negao da

    experincia arcaica e genuinamente grega. Scrates e seus contemporneos

    j no estariam mais altura da experincia trgica do mundo, no

    conseguindo suportar o racionalmente incompreensvel o absurdo da

    existncia.Para poder viver, o homem terico busca refgio na mesma f

    ilusria que est na raiz da cincia moderna; isto , ele se nutre no otimismo

    metafsico que est na base da racionalidade dialtica: a crena na

    onipotncia do logos cientfico. O tipo de homem terico, encarnado por

    Scrates, acredita ser possvel, mediante o princpio de causalidade,

    desvendar os segredos mais abissais da realidade no somente conhec-

    los, como tambm corrigi-los. O otimismo terico considera a cincia umremdio universal, que cura a ferida eterna do existir, e identifica no erro e

    na ignorncia a fonte de todo mal.

    Uma cultura de tipo socrtico necessariamente iluminista e,

    portanto, hostil arte e ao mito, considerados uma forma de ignorncia e de

    iluso, unia vez que no explicam as verdadeiras causas das coisas.

    Entretanto, essa mesma cultura se converte em seu contrrio isto , abre

    espao para um renascimento da iluso artstica quando a conscincia do

    homem terico admite que nem tudo acessvel racionalidade lgica; mais

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    ainda, que o essencial em nossa existncia permanece envolto num mistrio

    impenetrvel a qualquer explicao racional. Tal experincia teria sido vivida

    na Grcia e estaria simbolizada no enigma de Scrates ao mesmo tempo

    sendo inimigo dos artistas e, no final da vida, compondo msica e pondo em

    versos algumas fbulas de Esopo. Isto : retomando ao mito. Essa seria,pois, a catstrofe da razo socrtica.

    Se, em O Nascimento da Tragdia, Nietzsche recorre Grcia como

    paradigma de cultura, no com o propsito de oferecer ao pblico um

    tratado erudito de filologia clssica. O retomo aos gregos tem os olhos

    postos no presente, na cultura alem de seu tempo. Esta representa, para o

    jovem Nietzsche, o prolongamento, mas tambm a agonia, de um modelo de

    cultura que tem em Scrates sua figura emblemtica. Trata-se de um tipo decultura essencialmente lgica e dialtica, que, como Scrates, deposita toda

    a sua esperana na onipotncia do conhecimento cientfico, no valor

    absoluto da verdade a qualquer preo. Tal como Scrates, a cultura moderna

    sucumbe sua catstrofe quando chega ao discernimento de suas prprias

    fronteiras e limites, isto , quando reconhece, a partir dos recursos e das

    exigncias mais avanadas da prpria cincia, que a razo tcnico-cientfica

    no onipotente. Mais ainda, que a confiana nessa onipotncia umaforma poderosa de iluso.

    O renascimento do esprito trgico

    Esse discernimento constitui, para Nietzsche, o principal resultado do

    desenvolvimento da filosofia alem desde Kant. A filosofia crtica culminaria

    com a descoberta de que os interesses essenciais da vida humana a

    crena em Deus, na liberdade e na imortalidade da alma - so racionalmenteinexplicveis. Por essa razo, Nietzsche espera, de uma aliana contrada

    entre a tradio espiritual da filosofia alem, simbolizada em Schopenhauer,

    e o poder irresistvel da msica alem, simbolizada em Wagner, um

    renascimento do esprito trgico, que dana novo alento e autenticidade a

    uma cultura depauperada, que vive do consumo da cultura de todos os

    povos e pocas, numa confuso brbara de todos os estilos; uma cultura

    consumida pela erudio vazia, desprovida de identidade prpria e de

    vitalidade.

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    Do mesmo modo que, na Grcia, foi a partir do solo sagrado da arte

    especialmente da tragdia nascida do esprito da msica que floresceu

    o melhor da cultura helnica, assim seria tambm, na Alemanha, o esprito

    da msica de Wagner o que redespertaria o vigor originrio dos mitos

    germnicos, fazendo renascer a cultura trgica alem e, com ela, como farolpara os outros povos da Europa, as possibilidades de elevar o ser humano

    bem acima do que eleja realizara ao longo de sua histria.

    CONSIDERAES EXTEMPORNEAS

    Esse constitui todo o sentido da vigorosa polmica que Nietzsche

    manteve com as principais correntes intelectuais de seu tempo, num

    programa com o ttulo Consideraes Extemporneas. Nestas, Nietzsche peimpiedosamente a nu a hipocrisia, o artificialismo, a aridez e a cndida auto-

    satisfao que caracterizam a moderna cultura europia, em todas as suas

    esferas. Justamente por ser privada de autntica conscincia de si, a

    moderna cultura europia , no mau sentido do termo, artifcio, "filistesmo".

    Em razo da hipertrofia do conhecimento histrico, a cultura

    moderna uma mistura catica das formas culturais de todas as pocas a

    que tem acesso; nesse sentido, o termo que a designa ,para Nietzsche,"barbrie civilizada". Falta-lhe, pois, a caracterstica que constitui o trao

    essencial de toda verdadeira cultura: "Cultura , sobretudo, a unidade do

    estilo artstico em todas as manifestaes da vida de um povo".10

    O projeto wagneriano de uma "obra de arte total" seria, portanto,

    essa fora geradora de uma nova cultura, expresso artstica das

    experincias fundamentais que do origem a uma conscincia de si. Esta,

    por sua vez, seria nutrida pela energia mgica do mito e da msica, atuando,na qualidade de potncia tica, como substituto da moderna religiosidade

    caduca, que restauraria os laos efetivos de solidariedade, imprimindo ao

    povo a unidade de um estilo. E a unidade desse estilo artstico, marcando

    todas as formas de manifestao da vida de um povo, desde a produo e

    reproduo da vida material at as esferas superiores da cultura, o que

    verdadeiramente constitui sua identidade.

    Essa a razo de ser da aproximao entre a tragdia grega e o10Consideraes Extemporneas III em: Nietzsche, Smtliche Werke, ed. G. Colli/M.Montinari (KritischeStudienausgabe doravante KSA). Berlin/New York?Mnchen: De Gruyter/DTV, 1890, vol. 1, 1; p. 163.

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    caos incandescente".11 Mas isso no implica uma justificao terica da fora

    bruta. Pelo contrrio: em sua opinio, a aposta fundamental no jogo da

    cultura sempre consistiu, e consiste ainda, na organizao do caos, na

    sublimao das foras vulcnicas que se agitam no interior do homem. No

    a apologia do monstruoso e do irracional, mas o reconhecimento semdisfarces de que, sem a energia poderosa desse caos pulsional, nenhuma

    elevao e grandeza teria sido possvel na Terra. Entretanto, a tarefa da

    cultura consiste justamente em transfigurar essa matria incandescente em

    esprito, transformar monstros selvagens em animais domsticos, com os

    quais belo e agradvel viver.

    11 Fragmento pstumo de 1883, nmero 9(48); em: KSA, vol. 10; p. 362.

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    4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES

    A ruptura com a metafsica de artista, descrita no captulo anterior,

    tambm um distanciamento crtico em relao filosofia de Schopenhauer e

    uma desiluso com as esperanas de renovao cultural depositadas no

    projeto wagneriano. Isso origina a nova configurao de temas e problemas,

    caracterstica do segundo perodo de sua filosofia, no qual h uma

    predominncia do estilo aforstico, inspirado nos moralistas franceses.12

    No vero de 1876, deu-se a inaugurao solene do Teatro Wagner,

    na cidade de Bayreuth, na Baviera, epicentro do projeto cultural denominado

    "obra de arte total". O quarto opsculo da srie Consideraes

    Extemporneas, tendo por ttulo "Richard Wagner em Bayreuth", foi

    escrito como artigo de apresentao, explicitando o significado cultural do

    empreendimento wagneriano. Contudo, a despeito dessa sua origem, o texto

    no deixa de sugerir avaliaes profundamente ambguas a respeito da obra

    de Wagner.

    Quanto a Schopenhauer, seu nome no sequer mencionado no

    prximo livro escrito por Nietzsche, a coletnea de aforismos que constituemos dois volumes de Humano, Demasiado Humano, publicado em 1878 e

    unanimemente considerado o marco inicial de seu segundo perodo de

    produo. E, no entanto, o livro inteiro um ajuste de contas definitivo com

    as idias fundamentais do sistema filosfico do autor de O Mundo Como

    Vontade e Representao.

    HUMANO, DEMASIADO HUMANO

    Dedicando o livro memria do filsofo francs Voltaire e escolhendo

    como epgrafe uma citao de O Discurso do Mtodo para bem conduzir a

    prpria razo e buscar a verdade na cincia, de Ren Descartes, Nietzsche j

    o insere simbolicamente na tradio da filosofia das Luzes, caracterizada

    12 Corrente filosfica francesa dos sculos 16 e 17 que se notabilizou pela capacidade de observaopsicolgica dos problemas da moralidade e dos costumes, expressos em estilo literrio

    caracteristicamente breve, denominado aforismo, ou em mximas e sentenas morais. Franois de IaRochefoucauld (1613-80) foi um de seus principais representantes. O aforismo tem extraordinriaimportncia no modo de pensar e escrever de Nietzsche.

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    Pouco mais tarde, em Aurora: Pensamentos Sobre os Sentimentos

    Morais (1881), Nietzsche desenvolveria e aprofundaria seu novo

    entendimento relativo ao papel da cincia e oposio entre esta e a arte.

    Contrapondo-se queles que valorizam apenas a imaginao e as obras-

    primas do disfarce esttico, que acreditam s reconhecer beleza noabandono da realidade nua e crua, Nietzsche nos fala de um frisson brotado

    do menor e mais seguro passo no progresso do conhecimento. O aforismo

    em questo tem como ttulo "Conhecimento e Beleza":

    "Eles pensam que a realidade horrvel; contudo, no pensam que o

    conhecimento at mesmo da mais horrvel realidade belo, do mesmo modo

    que aquele que conhece bastante e amide est, por fim, muito longe de

    considerar horrvel o grande todo da realidade, cuja descoberta lheproporciona sempre felicidade. A felicidade do homem do conhecimento

    aumenta a beleza do mundo e toma mais ensolarado tudo o que ; o

    conhecimento espalha sua beleza no apenas em tomo das coisas, como

    tambm, com o tempo, dentro das prprias coisas".14

    Data desse perodo intelectualista a valorizao da disciplina dos

    mtodos cientficos, que marcar daqui em diante toda a sua obra. Por essa

    razo, Nietzsche procurar desenvolver at o mximo de refinamento seusdotes de fillogo, de psiclogo a ponto de considerar a si mesmo, anos

    mais tarde, o primeiro psiclogo da Europa , de historiador-filsofo, de

    genealogista da moral. Tambm intensifica seus estudos de cincias

    naturais, de fisiologia e biologia, e procura tomar contato com os ltimos

    desenvolvimentos das disciplinas mdicas e neurolgicas.

    Em 1877, seu amigo Paul Re publica A Origem dos Sentimentos

    Morais. Pode-se afirmar que foi em oposio a esse livro que surgiram ashipteses genuinamente metzscheanas a respeito da gnese de nossos

    conceitos e sentimentos morais.

    E nessa curiosidade histrico-psicolgica a propsito do surgimento

    de nossos sentimentos e categorias morais que podemos surpreender em

    Humano, Demasiado Humano um procedimento caracterstico, que no

    abandonar mais a trajetria de seu pensamento. Trata-se de um tipo de

    explicao que passa a constituir para Nietzsche, desde ento, um modelo

    14Aurora, V, Aforismo 550.

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    fixas e permanentes. O conjunto inteiro dos fenmenos, seja no domnio da

    natureza, seja no do esprito, constitui-se como um universo em constante

    transformao, um vir-a-ser (ou "devir"). O carter especfico da abordagem

    histrico-genealgica nietzscheana constitudo pela direo de seu olhar

    investigativo: a perspectiva se orienta de cima para baixo, das figuras maissolenes e refinadas onde no se percebe a matria grosseira - a suas

    condies de possibilidade.

    A partir de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche passa a proceder

    metodicamente nesse sentido, sempre escavando os subterrneos das mais

    requintadas formaes culturais, especialmente da moral.

    "Quem contempla aqueles temveis despenhadeiros escarpados onde

    geleiras se acumulam considera impossvel que venha um tempo em que, nomesmo stio, se instale um vale de relvado e floresta, com regatos. Assim

    tambm na histria da humanidade: as foras mais selvagens abrem

    caminho, e, embora destrutivas, de incio a atividade delas foi necessria

    para que, mais tarde, um modo de vida mais suave a erguesse sua morada.

    As energias terrveis aquilo que se chama o Mal so os ciclpicos

    arquitetos e construtores de caminho da humanidade." 16

    Percebe-se atuando aqui um ideal de filosofia histrica que no podeprescindir da colaborao das demais cincias, na medida em que, para

    estar altura de seu tempo, o filsofo deve ser capaz de fazer uso dos mais

    avanados resultados das disciplinas cientficas, com o propsito de se

    elevar a uma concepo de mundo liberada das fantasias e supersties

    engendradas pela religio, pela moral e pela metafsica. Nesse sentido, o

    homem terico no representa apenas o desenvolvimento do artista, mas,

    sobretudo, a passagem da infncia religioso-metafsica, atravs do perodode adolescncia representado pela arte, para a plena maturidade conferida

    pelo esprito cientfico.

    Retomando uma metfora comum ao pensamento clssico, que pe

    em correspondncia as fases de desenvolvimento da cultura de cada

    indivduo com as etapas de evoluo histrico-cultural da humanidade,

    Nietzsche d a seguinte expresso sua prpria idia do desenvolvimento

    humano:

    16 ld..246; em: KSA vol. 2: p. 205.

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    "Os homens retomam cada vez mais rpido as fases costumeiras da

    cultura espiritual que foram alcanadas ao longo da histria. Eles atualmente

    comeam por fazer seu ingresso na cultura como crianas religiosamente

    motivadas e desenvolvem essa sensibilidade em sua suprema vivacidade at

    o dcimo ano de viela; passam, ento, por formas cada vez maisenfraquecidas (pantesmo), enquanto se aproximam da cincia; superam

    inteiramente Deus, imortalidade e coisas similares, mas sucumbem magia

    de uma filosofia metafsica; por fim, esta tambm se tona desacreditada; a

    arte parece, ao contrrio, cada vez mais confivel, de modo que, durante

    algum tempo, a metafsica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa

    espcie de transmutao em arte, ou numa disposio artstico-

    transfiguradora. Todavia, o senso cientfico se toma cada vez mais imperiosoe conduz o homem para a cincia natural, a histria e, nomeadamente, para

    os mais severos modos de conhecimento, ao passo que arte atribuda

    uma significao cada vez mais leve e despretensiosa. Isso tudo costuma

    ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem. E a recapitulao de

    uma tarefa para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30

    mil anos".17

    Pode-se afirmar, considerando o nvel de generalidade exigido poresta apresentao, que os dois livros publicados a seguir Aurora:

    Pensamentos Sobre os Preconceitos Morais (1881) eA Gaia Cincia (1882)

    permanecem sob a influncia do mesmo esprito intelectualista que

    descrevemos como caracterstico do segundo perodo da filosofia

    nietzscheana.18

    AURORA E A GAIA CINCIA

    EmAurora, Nietzsche lana mo cia penetrao psicolgica, do rigor

    de sua filosofia histrica, para escavar o campo da moralidade e da religio,

    com o propsito de examinar as fundaes sobre as quais foram erigidos os

    majestosos edifcios ticos da tradio ocidental. Esse trabalho de topeira no17 Id., 272; p. 224s.18 Aqui seria impossvel excluir o livro VA Gaia Cincia, escrito em 1886 e acrescido obra na segundaedio, ocorrida naquele ano. Tanto cronolgica quanto tematicamente, esse livro V A Gaia Cinciapertence ao terceiro perodo da filosofia de Nietzsche.

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    subsolo insalubre dos sentimentos morais visa trazer superfcie de um

    conhecimento livre de preconceitos as condies e os propsitos, as

    motivaes inconfessveis, que esto na origem dos valores ticos

    prctensamente absolutos. Trata-se de um livro marcado por uma disposio

    de nimo ao mesmo tempo grave e libertria: um livro das profundezassombrias, que aspira pela luz da superfcie.

    Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legtimo

    herdeiro da tradio metafsica ocidental; trata-se, porm, daquele herdeiro

    em cujo pensamento essa tradio tomou conscincia de si, por meio do

    conhecimento de sua prpria origem. For isso, ela no pode mais se furtar

    confisso franca das condies problemticas de surgimento de seus valores

    mais elevados. A honestidade intelectual, caracterstica da modernaconscincia cientfica, a instncia que impe, como um dever, a tarefa

    paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental. Aurora

    sugere, pois, o surgimento de uma nova luz para a humanidade, um novo

    tempo, que pode sonhar com a esperana brotada da liberdade espiritual.

    A Gaia Cincia (1882), por sua vez, pode ser considerado um livro

    que, mesmo ainda permanecendo no interior da "filosofia para espritos

    livres", j anuncia a transio para a terceira etapa do filosofar nietzscheano.Nele permanece dominante a perspectiva de valorizao da racionalidade

    cientfica, mas de uma cincia alegre ("gaia"), que pode se dar ao luxo

    intelectual de percorrer, com graa e leveza, os caminhos mais pedregosos,

    levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa tradio, sem

    negatividade ou rancor, esforando-se por multiplicar as perspectivas, para

    poder compor uma imagem mais plena das coisas, embora nunca total.

    EmA Gaia Cincia - ao lado dos temas sempre presentes na filosofiade Nietzsche, como a crtica do conhecimento, da arte, da religio, da

    metafsica e da moral , pode-se perceber claramente um aprofundamento

    e intensificao das preocupaes pedaggicas, a inteno de organizar o

    pensamento de forma tal que uma leitura conveniente da obra seja o

    caminho para a libertao suprema. Para esse leitor ideal, o livro no visa

    ensinar uma doutrina; sua lio fundamental a responsabilidade do

    pensamento independente. O mestre aqui, sobretudo, aquele que prepara

    o discpulo para abandon-lo, para que este empreenda por si mesmo a

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    aventura do esprito.

    A filosofia dos espritos livres se toma, em A Gaia Cincia, uma

    ascese e preparao para o surgimento da personalidade autntica que, pela

    disciplina crtica, aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspiraes

    que brotam de sua natureza singular e aquelas que lhe so impostas doexterior, afastando-a do caminho que a poderia conduzir a si mesma.

    Nietzsche acredita que esse caminho est reservado apenas para aqueles

    poucos que tm a ousadia de pensar e responder por si prprios.

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    5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU COMO TORNAR-SE O QUE SE

    Publicado em quatro partes, entre 1883 e 1885, Assim Falou

    Zaratustra: um Livro Para Todos c Para Ningum o trabalho de Nietzsche

    que mais dificuldades apresenta interpretao. Nele os ensinamentos e

    experincias do personagem-ttulo so apresentados como um drama em

    prosa, em cuja narrativa se combinam os mais variados elementos estticos

    de gnero, forma e estilo. Nietzsche explora ao infinito a rtmica, a

    sonoridade e os matizes da lngua alem, ao mesmo tempo que recorre encenao teatral, a formas diversas de narrao, poesia, ao canto,

    dana, stira e pardia, assim como, sobretudo, "intertextualidade".

    Esse procedimento consiste, no caso de Nietzsche, em criar novas e

    surpreendentes significaes, a partir da apropriao seletiva de textos

    consagrados pela tradio, ou at mesmo de argumentos de adversrios,

    deslocando-lhes o sentido original.

    Assim Falou Zaratustra condensa efetivamente todos os focos deinteresse que constituem o mago do pensamento de Nietzsche: a

    desconstruo da metafsica, a denncia da hipocrisia moral, as

    preocupaes com a educao, a poltica e o destino da cultura, a crtica do

    Estado.

    O livro contm passagens que, desde seu aparecimento, pertencem

    ao acervo clssico da filosofia moderna. Alguns fragmentos so o bastante

    para ilustrar sua riqueza; num deles, Nietzsche faz implodir o dualismometafsico que separa corpo e alma, matria e esprito:

    "O corpo uma grande razo, uma pluralidade dotada de um

    sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

    Instrumento de teu corpo tambm tua pequena razo, meu irmo,

    a que chamas 'esprito', um pequeno instrumento e um pequeno joguete de

    tua grande razo. Instrumentos e joguetes so o sentido e o esprito; por

    detrs deles est, porm, o si mesmo (Selbst). Por detrs de teuspensamentos e sentimentos, meu irmo, encontra-se um soberano

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    poderoso, um sbio desconhecido ele se chama si mesmo. Em teu corpo

    habita ele, ele o teu corpo".19

    Em outro fragmento, Nietzsche condensa suas idias acerca da

    vocao pedaggica, essencialmente crtica, de sua filosofia. Seus esforos

    devero confluir para o cultivo da personalidade autntica: "Meu irmo!Queres caminhar para a solido? Queres procurar o caminho que conduz a ti

    mesmo? Detm-te um pouco e escuta-me. 'Aquele que procura, facilmente

    se perde a si mesmo. Todo partir para a solido culpa assim fala o

    rebanho. E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo. A voz do

    rebanho continuar ressoando dentro de ti. Queres, porm, percorrer o

    caminho de tua tribulao, que o caminho para ti mesmo? Mostra-me,

    ento, teu direito e tua fora para faz-lo".20

    NoZaratustra, com a intransigncia do profeta, Nietzsche reedita sua

    crtica a todas as esferas da tradio cultural. O personagem central da obra

    se faz porta-voz de doutrinas fundamentais para o futuro do homem: a

    vontade de poder, o eterno retomo do mesmo e o alm-do-homem.21 A ao

    combinada desses trs ensinamentos dever produzir o desmascaramento e

    a runa da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna. Por essa razo, o

    livro pode ser compreendido como uma das mais estridentes recusas dosvalores e idias de que se orgulha o homem moderno. Para ele, Nietzsche

    cunha a denominao sarcstica "o ltimo homem".

    O ltimo homem simboliza a modernidade, que considera a si mesma

    o ponto mais avanado do desenvolvimento histrico da humanidade,

    acreditando que a finalidade dessa histria consistia precisamente na

    chegada do moderno. Orgulhoso de sua cultura e formao, que o elevaria

    acima de todo passado, o ltimo homem cr na onipotncia de seu saber ede seu agir.

    Para Zaratustra, entretanto, o ltimo homem representa o mais

    inquietante rebaixamento de valor do ser humano, a transformao do

    homem numa massa impessoal de seres uniformes. O bem supremo

    almejado pelo ltimo homem sua concepo de felicidade uma

    19Assim falou Zaratustra, I, "Dos desprezadores do corpo".20 Id . "Do Caminho do criador".21 O termo original empregado por Nietzsche bermensch, que tambm costuma ser traduzido por"super-homem". Preferimos a traduo proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho: ObrasIncompletas, op. cit., p. 236 s. As razes da escolha se esclarecero abaixo.

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    combinao de mediocridade, conforto, bem-estar, ausncia de sofrimento e

    grandeza:

    "Que amor? Que 6 criao? Que 6 nostalgia? Que estrela?

    ^Assim pergunta o ltimo homem, e pisca os olhos. A Terra se tomou

    pequena, ento, e sobre ela saltita o ltimo homem, que toma tudopequeno. Sua estirpe indestrutvel, como a pulga; o ultimo homem o que

    vive mais tempo. 'Ns inventamos a felicidade' dizem os ltimos homens,

    e piscam os oUios. Nenhum pastor e um s rebanho! Todos querem o

    mesmo, todos so iguais. Quem sente de outra maneira vai voluntariamente

    para o hospcio. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho

    para a noite, mas prezamos a sade. 'Ns inventamos a felicidade', dizem os

    ltimos homens, e piscam os olhos".22

    O alm-do-homem

    Alm-do-homem um conceito que s pode ser corretamente

    apreendido em antagonismo com a figura do ltimo homem, pois ele

    constitui um contra-ideal da tendncia ao nivelamento e uniformizao

    que, para Nietzsche, caracteriza a moderna sociedade de massa. Para ele, ohomem pode ser visto no como um fim como o deseja o ltimo homem

    , mas como um meio para conquistar possibilidades mais sublimes de

    existncia.

    "Eu vos ensino o alm-do-homem. O homem algo que deve ser

    superado. Que tendes feito para super-lo? Todos os seres at agora criaram

    algo acima deles prprios: quereis vs ser o refluxo dessa grande mar e

    retroceder ao animal, ao invs de superar o homem? Que o macaco para ohomem? Uma zombaria e uma dolorosa vergonha. E justamente isso o que

    o homem deve ser para o alm-do-homem: uma zombaria e uma dolorosa

    vergonha. O homem uma corda estendida entre o animal e o alm-do-

    homem uma corda sobre o abismo. Um perigoso passar para o outro lado,

    um perigoso caminhar, um perigoso olhar para trs, um perigoso estremecer

    e parar. A grandeza do homem est em ser ele uma ponte, e no um fim: o

    22Assim falou Zaratustra. Prlogo.

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    que se pode amar no homem que ele uma passagem e um crepsculo.23

    Essa perigosa travessia que conduz do animal ao alm-do-homem s

    pode ser empreendida pelo homem moderno renunciando ao conformismo

    de sua mediocridade e auto-satisfao. Fixar o alm-do-homem como alvo

    de sua nostalgia uma tarefa qual a humanidade s pode ser conduzidapor intermdio dos dois outros ensinamentos de Zaratustra: a vontade de

    podere o eterno retomo. Para Nietzsche, Schopenhauer tivera razo quando

    identificou na Vontade o elemento fundamental em todo o universo. Todavia,

    do ponto de vista de Nietzsche, ela no pode ser pensada, como ainda o

    fizera Schopenhauer, como um mpeto cego, desprovido de finalidade. Se a

    Vontade que determina o surgimento e a transformao de todo estado de

    coisas do universo, tal Vontade possui uma qualidade fundamental: ela vontade de poder.

    A vontade de poder

    "Onde encontrei um ser viveu te, l encontrei vontade de poder. E

    este mistrio segredou-me a prpria vida:'Veja', disse ela,'eu sou aquela que

    sempre tem de superar a si mesma'." Essa superao, a humanidade arealiza por meio das "tbuas de valor", que traam o rumo para o trabalho

    civilizatrio dos povos: "Muitos pases viu Zaratustra, e muitos povos: dessa

    maneira, ele descobriu de muitos povos o Bem e o Mal. Zaratustra no

    encontrou sobre a terra nenhum poder maior do que Bem e Mal. Uma tbua

    de valores est suspensa sobre cada povo. Olha, a tbua de suas

    superaes; olha, a voz de sua vontade de poder".24

    Para que o homem moderno possa ainda criar para alm delemesmo, necessrio que se aproprie dessa natureza, ou seja, de sua

    vontade de poder. Somente desse modo poder realizar aquilo que, por meio

    dele, constitui o fervoroso desejo da vida: superar-se a si mesmo, rompendo

    a camisa-de-fora em que a encerrou a moderna civilizao ocidental a

    rigidez da autoconservao a qualquer custo.

    Todavia, para que o homem moderno possa corresponder a esse

    23 Id. p. 14 e l6.24As duas citaes se referem, respectivamente a:. Assim Falou Zaratustra, segunda parte. "Da Auto-superaco", e primeira parte. "Das Mil Metas e da nica Meta".

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    desejo ntimo da vida e se colocar em sintonia com ela, antes de tudo

    necessrio que tenha se libertado daquele ressentimento que lhe foi

    inoculado pela tradio metafsica: o desprezo pela vida, pela terra, pelo

    mundo, pelo corpo, pelo vir-a-ser, por tudo aquilo que foi at agora

    caluniado em nome do "verdadeiro mundo". Somente quando sua existnciaterrena puder deixar de ser vivida sob a tica do juzo e da condenao,

    como padecimento e expiao, como ascese, pela qual se conquista a

    felicidade eterna; somente ento poder o homem instituir para si um ideal

    que seja tambm o sentido da terra, liberto da fantasia transcendente de um

    alm-do-mundo, com a qual ele entorpece a dor de sua finitude, tragdia de

    sua existncia.

    O eterno retorno

    Somente quando o sofrimento no for mais vivido como uma objeo

    contra a vida e um motivo para conden-la que o homem poder superar

    seu desejo de um alm metafsico e seu rancor contra a passagem do

    tempo. Somente dessa maneira a totalidade da vida poder ser assumida,

    sem acrscimos ou subtraes, com todas as suas misrias e xtasesfirmemente encadeados entre si, pois eles se condicionam mutuamente e

    aquele que deseja, de fato, as venturas no pode amputar as dores do

    mundo.

    O ensinamento que conduz a essa forma de superao o eterno

    retomo do mesmo. No se trata de mera aceitao resignada dos

    acontecimentos do destino, mas de afirmao incondicional, que aceita e

    bendiz cada instante vivido. For meio desse ensinamento, o homem deveaprender a agir como se a mais nfima de suas aes devesse se repetir

    eternamente, de maneira a dar sua prpria existncia a bela forma da obra

    de arte. O eterno retorno a lio que imprime ao instante o selo da

    eternidade.

    Se para seu grande precursor, o filsofo Baruch de Spinoza (1632-

    77), o conhecimento verdadeiro conduzia ao amor intelectual de Deus, para

    Nietzsche o ensinamento do eterno retomo leva ao amor do destino (amor

    fati).

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    "E se um dia ou uma noite um demnio se esgueirasse em tua mais

    solitria solido e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu a vives agora e

    como a viveste, ters de viv-la ainda uma vez e ainda inmeras vezes; e

    no haver nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e

    suspiro e tudo o que h de indizivelmente pequeno e de grande em tua vidah de retomar, e tudo na mesma ordem e seqncia - e do mesmo modo

    esta aranha e este luar entre as rvores, e do mesmo modo este instante e

    eu prprio. A eterna ampulheta da existncia ser sempre virada outra vez -

    e tu com ela, poeirinha da poeira!'- No te lanarias ao cho e rangerias os

    dentes e amaldioarias o demnio que te falasse assim? Ou viveste alguma

    vez um instante descomunal em que lhe responderias: 'Tu s um deus, e

    nunca ouvi nada mais divino!' Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti,assim como s, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante

    de tudo e de cada coisa:'Quero isto ainda uma vez e ainda inmeras vezes?',

    pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou ento, como terias

    de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para no desejarnada mais do

    que essa ltima, eterna confirmao e chancela?"25

    At ser completamente ensombrecido pelo colapso mental que o

    abateu no incio de 1889, Nietzsche no conseguiu se restabelecertotalmente da amarga experincia que significou, para ele, o silncio total

    que se seguiu publicao de Assim Falou Zaratustra. A obra no teve

    sequer a nfima parcela da repercusso que dela esperava seu autor, e no

    houve nem uma recepo negativa por parte de amigos e conhecidos nos

    quais o filsofo depositava ainda alguma esperana. Nietzsche a concebera

    em tal grau de expectativa que ele a considerava um "quinto Evangelho", ou

    Antievangelho. No entanto, a obra foi praticamente ignorada durante a vidade seu autor. Pode-se afirmar que o sofrimento causado por esse silncio

    constitui a raiz da preocupao obsessiva de Nietzsche para esclarecer e

    explicitar as idias fundamentais deAssim Falou Zaratnstra.

    PARA ALEM DE BEM E MAL

    As duas obras subseqentes, Para Alm de Bem c Mal (1886) e Para

    25Gaia Cincia. IV, 341

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    a Genealogia da Moral (1887), so os principais testemunhos da tentativa de

    divulgar, como uma espcie de glossrio conceitual, os temas e problemas

    do Zaratustra. No primeiro deles, Nietzsche expe sua hiptese de

    interpretao global da existncia com base na perspectiva fornecida pelo

    conceito de vontade de poder.Opondo-se ao mecanicismo e a todo positivismo26 que almeja

    explicar os fenmenos da natureza a partir de um conjunto de leis gerais,

    Nietzsche contesta at mesmo a legitimidade de pretender obter um

    conhecimento objetivo dos fenmenos da natureza.Todos os fenmenos do

    universo seriam explicveis a partir no de leis naturais, mas do conceito de

    vontade de poder. O mundo visto por dentro, dir provocativamente

    Nietzsche, seria vontade de poder, e nada alm disso. Sendo assim, tambmo prprio conhecimento seria expresso da vontade de poder e, portanto,

    nada de imparcial, de objetivo, de constatao e organizao lgica de uma

    lei natural.

    "Perdoem este velho fillogo, que no pode resistir maldade de pr

    o dedo sobre ms artes de interpretao: mas aquela 'legalidade da

    natureza de que vs fsicos falais com tanto orgulho s subsiste graas a

    vossa interpretao e 'filologia ruim no nenhum estado de coisas,nenhum 'texto', mas somente um arranjo ingenuamente humanitrio e uma

    distoro de sentido, com que dais plena satisfao aos instintos

    democrticos da akna moderna! 'For toda parte igualdade diante da lei

    nisso a natureza no cie outro modo, nem est melhor do que ns.' Mas,

    como foi dito, isso interpretao, no texto; e poderia vir algum que, com

    a inteno e a arte opostas, soubesse, na mesma natureza e tendo em vista

    os mesmos fenmenos, decifrar precisamente a imposio tiranicamenteirreverente e inexorvel de reivindicaes de potncia que, contudo,

    terminasse por afirmar deste inundo o mesmo que vs afirmais, ou seja, que

    tem um decurso 'necessrio' e 'calculvel', mas no porque nele reinam leis,

    mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potncia, a cada instante,

    tira sua ltima conseqncia. Posto que tambm isto seja somente

    interpretao - e sereis bastante zelosos para fazer essa objeo? -, ora,

    26 Doutrina filosfica que pretende rejeitar a metafsica e fundamentar o conhecimento unicamente emfatos e leis observveis.

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    interiorizao do homem: somente com isso que cresce no homem aquilo

    que mais tarde se denomina sua'alma'. "29

    Decadncia e niilismo

    Tambm em Para a Genealogia da Moral aflora um par de conceitos

    que ser de imensa importncia para o conjunto inteiro dos demais escritos

    de Nietzsche, todos de 1888. So os conceitos de decadncia e niilismo, que

    desempenham uma funo central no s em O Crepsculo dos dolos, O

    Anticristo e Ecce Homo, mas tambm nos dois ensaios psicolgicos sobre

    Richard Wagner: O Caso Wagnere Nietzsche contra Wagner.

    Nesses escritos, Nietzsche interpreta a histria da cultura modernacomo escalada do niilismo. Este, por sua vez, deve ser entendido como um

    sentimento opressivo e difuso, prprio s fases agudas de ocaso de uma

    cultura. O niilismo seria a expresso afetiva e intelectual da decadncia. Por

    meio dele, o homem moderno vivncia a perda de sentido dos valores

    superiores de nossa cultura. Por essa tica, niilismo seria o sentimento

    coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valorao, tanto no plano do

    conhecimento, quanto no tico-religioso, ou sociopoltico, ficaram semconsistncia e j no podem mais atuar como instncias doadoras de sentido

    e fundamento para o conhecimento e a ao.

    Sintomas desse estado de prostrao podem ser detectados,

    segundo Nietzsche, em todos os setores da moderna vida social: na arte,

    plenamente instrumentalizada para fins de entretenimento, ou, como o

    chamaramos atualmente, capturada nos circuitos da indstria cultural; na

    poltica e na educao, empenhadas em estabelecer e perpetuar um ideal dehomem completamente adaptado aos modos de produo e reproduo de

    uma sociedade de massas; na moral, na cincia e na filosofia, que se

    tomaram expresses ideolgicas desse desejo de rebaixamento e nivelao

    da humanidade, agenciado em escala planetria.

    Esse movimento de decadncia pode ser caracterizado no como um

    estado permanente, mas como um processo, que pode durar milnios. Um

    de seus traos mais caractersticos consiste em que ele inviabiliza a

    29 Id., II, 15.

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    instaurao de um contra-ideal, expresso de um movimento ascendente de

    vida. A decadncia se manifesta sobretudo como ausncia de coeso

    orgnica, como independncia e destruio recproca de elementos e

    funes, cuja ao conjunta constitui o princpio de unidade na vida de um

    povo ou cultura. Por essa razo, o trao caracterstico da sociedade moderna o dilaceramento e a autonomizao de seus segmentos constitutivos, o

    individualismo patolgico, que a toma incapaz de se integrar numa

    totalidade viva, a partir de um projeto tico comum.

    principalmente nos trabalhos regidos pelo par decadncia/niilismo

    que Nietzsche se prope fazer o diagnstico dessa condio enferma da

    moderna Europa. nesse contexto tambm que se explicita sua crtica da

    modernidade poltica. Nesses escritos, Nietzsche diagnostica os movimentossociais que marcam a histria recente da Europa tais como o

    desenvolvimento do socialismo e manifestaes mais violentas e radicais de

    anarquismo como aprofundamentos de um processo de decadncia de

    valores e instituies que teria tido origem na Reforma e na Revoluo

    Francesa, e aos quais ele contrape seu prprio entendimento de ao

    poltica. A este, Nietzsche d o nome "Cirande Poltica", pensada cm

    oposio ao acelerado processo de mediocrizao da humanidade ebanalizao da existncia ("pequena poltica").

    O termo "poltica" tem, nesse contexto, um amplo horizonte de

    significao. A tarefa consiste na criao das condies propcias ao

    surgimento de novos filsofos, que tenham fora e intrepidez suficientes

    para esculpir a figura futura do humano. Esses filsofos do futuro

    experimentados em todas as formas de auto-superao tero deixado

    para trs a impotncia do homem moderno em romper as amarras demoralismo e criar novos valores, como os "legisladores para os prximos

    milnios". A to discutida figura do aristocrata a que Nietzsche dedica um

    dos captulos de Para Alem de Bem e Mal - deve ser interpretada sobretudo

    na direo dessa tresvalorao30 do ideal platnico do filsofo legislador.

    Essa "Cirande Poltica" seria a legtima herdeira do que ainda restaria

    de foras vivas e potencialidades de grandeza em nossa civilizao

    30 Em suas tradues de obras de Nietzsche, Paulo Csar de Souza emprega o termo "tresvalorao"para traduzir Umwertung que significa inverso, reverso. A traduo sugere o movimento no apenasde inverter uma posio anteriormente dada, mas tambm de ultrapass-la, super-la.

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    ocidental, de que teramos exemplo na Grcia pr-socrtica e no

    Renascimento. Em oposio mediocridade dos nacionalismos polticos,

    blicos ou econmicos, essa "poltica" teria como alvo a unidade cultural da

    Europa; sua figura-smbolo seria, para Nietzsche, a dos bons europeus.

    Se, como perda de sentido e valor, o niilismo anuncia o crepsculo doprojeto sociocultural da modernidade, ento a tarefa que Nietzsche atribui

    sua "Grande Poltica" est necessariamente ligada a uma tresvalorao de

    todos os valores.

    O ANTICRISTO

    As formas de avaliao que sempre foram determinantes para o

    destino atual de nossa cultura se revelam como o contrrio do queaparentam ser: no degraus para o crescimento do homem, mas foras

    comprometidas com um projeto coletivo de amesquinhamento das

    condies nas quais poderia prosperar, mais uma vez, a vida humana na

    Terra. E por esse caminho que se compreende como a tresvalorao de

    todos os valores est essencialmente vinculada ao livro O Anticristo. Para

    Nietzsche, o cristianismo em sua associao com o platonismo constitui

    a matriz de onde procedem todos os valores cardeais da civilizaoeuropia. Se a condio atual de nossa cultura marcada pelo niilismo, a

    possibilidade de sua redeno seria vislumbrada a partir de uma inverso

    dos valores fundamentais dessa mesma cultura. Se ela se caracteriza,

    sobretudo, por ser uma cultura gerada e nutrida pelo cristianismo, sua

    superao seria a tarefa prpria de O Anticristo.

    Com essa autodesignao polmica e provocativa, Nietzsche se

    pretende definir menos como inimigo do Cristo do que inimigo docristianismo dogmtico, tomado instituio e secularizado como doutrina

    filosfica, moral e poltica. Por essa razo, praticamente s vsperas de sua

    sncope mental, Nietzsche reformulou inteiramente seus projetos editoriais,

    identificando O Anticristo com a prpria obra Tresvalorao de Todos os

    Valores, de que originariamente ele seria apenas a primeira parte.

    Nietzsche destinou duas obras concludas nesse mesmo ano de 1888

    para servir de preparao publicao de O Anticristo. O Crepsculo dos

    dolos e Ecce Homo teriam, antes de tudo, o objetivo de orientar o pblico

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    6. BREVE HISTRIA DA RECEPO DA OBRA DE NIETZSCHE

    A recepo da obra de Nietzsche, durante o perodo intelectualmenteativo da vida do filsofo, foi bastante modesta e, ainda assim, s se iniciou

    (significativamente) s vsperas da crise que o acometeu.

    O Nietzsche-Archiv: Nietzsche e o nazismo

    Uma primeira recepo, em grande estilo, coincide com os trabalhos

    do Nietzsche-Archiv, fundado pela irm do filsofo em 1894. Elisabeth

    Frster-Nietzsche, auxiliada por colaboradores (como, por exemplo, o fillogoRichard Oehler e o amigo e discpulo Peter Gast), ps em movimento uma

    intensa campanha de divulgao da obra de Nietzsche, com o propsito de

    trazer luz sua importncia decisiva para o pensamento mundial. Frster-

    Nietzsche e seus colaboradores, ento, procederam de forma injustificvel

    reunindo manuscritos de Nietzsche sob a rubrica de temas arbitrrios.

    So fragmentos e manuscritos oriundos de perodos e contextos

    heterogneos. Com base nesse procedimento, publicaram duas edies(uma em 1901 e outra em 1911) de um livro apcrifo, intitulado A Vontade

    de Poder, que deveria conter, segundo a verso oficial do Nietzsche-Archiv, a

    essncia e a verdade do pensamento definitivo de Nietzsche.

    Hitler ascende ao poder em 1933 e, desde ento, se intensifica a

    colaborao entre o Nietzsche-Archiv, em Weimar, e o programa cultural do

    Partido Nacional-Socialista. Do lado do Arquivo, a obra de Nietzsche

    mutilada e falsificada, para ser apresentada ao pblico como prenunciofilosfico do pangermanismo e do anti-semitismo. Do lado do Partido

    Nacional-Socialista, tratava-se de poder transformar o voluntarismo

    obscurantista e criminosamente totalitrio do nazifascismo numa espcie de

    destino de grandeza do povo alemo, com auxlio de um clssico da filosofia

    ocidental. Essa colaborao se estreitou a ponto de ter sido possvel pleitear

    financiamento, junto aos ministrios nazistas da educao e cultura, para

    uma megaedio dos escritos completos de Nietzsche.33

    33 Da imensa literatura a respeito dessa colaborao, podem-se indicar quatro textos de Grande

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    A histria do Nietzsche-Archiv e da singular trajetria de Elisabeth

    Frster-Nietzsche como sua idealizadora e gestora constitui um captulo

    curioso. Por meio dela, o filsofo acabou sendo transformado no que to

    intransigentemente combateu. O que restava do triturador de dolos, que a

    santo preferia ser considerado bufa o, tomou-se mistificado objeto deidolatria. Em 1933, por ocasio de seus 50 anos, Benito Mussolini recebeu da

    direo do Nietzsche-Arehiv o seguinte telegrama: "Ao magnfico discpulo

    de Zaratustra, sonhado por Nietzsche; ao genial restaurador dos valores

    aristocrticos, no esprito de Nietzsche, envia o Nietzsche-Arehiv, em

    profundssima venerao e admirao, os mais fervorosos votos de

    felicidades".

    Finda a Segunda Guerra, o Nietzsche-Arehiv foi fechado pelasautoridades da antiga Repblica Democrtica Alem, tendo passado a fizer

    parte, juntamente com a totalidade do esplio filosfico de Nietzsche, do

    patrimnio da fundao Wcimarer-Klassc. O Nietzsche-Arehiv permaneceu

    fechado, e a investigao dos manuscritos ficou proibida at 1954?''34

    Heidegger e outros comentadores

    Mas a recepo alem de Nietzsche nunca se deixou absorver

    inteiramente pela propaganda do Nietzsche-Arehiv. Mesmo na poca de sua

    plena atuao, no se poderia deixar de mencionar as interpretaes de Karl

    Loewith, Karl Jaspers e, sobretudo, Martin Heidegger, a qual foi e continua

    sendo extraordinariamente fecunda nas mais distintas vertentes de

    reflexo.

    Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche porum perodo que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50. A publicao

    de seus estudos constitui um divisor de guas e uma referncia obrigatria

    para qualquer interpretao da obra de Nietzsche. Segundo Heidegger,

    relevncia: H.. Ottmann. Philosophie und Politik bei Nietzsche (Berlin. New York: De Gruyter, 1987). B.Taureck, Nietzsche und der Faschismus (Hamburg, 1989). A. Munster, Nietzsche et le Nazisme (Paris:ditions Kim, 1995). M. Montinari, "Interpretaes Nazistas", trad. Dion David Machado: em:Cadernos Nietzsche, 7; p. 55-77.34 Com a reunificao alem em 1989, depois de longo trabalho de planejamento que envolveuespecialistas em Nietzsche de diversas partes do globo, consolidou-se a idia de um centro

    internacional de pesquisa. Inaugurado em outubro de 1999, o Friedrich Nietzsche-Kolleg tem comosede as dependncias do antigo Nietzsche-Arehiv. Dos escombros do Arquivo emerge, ento, emautentico esprito nietzscheano, uma casa para os espritos livres.

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    A edio histrico-crtica de Co/// e Montinari

    Coube a dois filsofos italianos o feito de ter mudado definitivamente

    os rumos dos trabalhos sobre Nietzsche. No final dos anos 60, Giorgio Colli e

    Mazzino Montinari comeam a publicar edio histrico-crtica de todos os

    escritos (pstumos e inditos) de Nietzsche. Guiados por rigorosos critrios

    histrico-filolgicos, os editores dispuseram em estrita ordem cronolgica a

    massa dos fragmentos pstumos inditos, filosoficamente relevantes, de

    maneira a restituir aos manuscritos a integridade que fora rompida pelasmanipulaes nas edies anteriores.

    Um trabalho editorial dessa magnitude jamais fora realizado nem

    mesmo pela memorvel edio das obras de Nietzsche organizada pelo

    filsofo Karl Schlechta nos anos 50, unia publicao notvel, a primeira a ter

    denunciado a fraude editorial deA Vontade de Poder. A edio de Nietzsche

    por Schlechta s foi suplantada pela edio histrico-crtica de Colli e

    Montinari. Estes recuperaram tambm um considervel acervo de textosimportantes que, por motivos inconfessveis, haviam sido subtrados

    publicao pelos diretores do Nietzsche-Archiv ou, ento, publicados apenas

    parcialmente.

    Como conseqncia desse trabalho, abrem-se novas e amplas

    perspectivas de interpretao para os escritos de Nietzsche, na medida em

    que se pode agora, a partir da revelao das deformaes, resgatar para a

    filosofia nietzscheana sua expresso autntica. Com base nos resultados daedio histrico-crtica de todos os escritos do filsofo inclusive das cartas

    recrudesce a polmica em tomo do livro apcrifo A Vontade de Poder.

    Para a maioria dos intrpretes atuais, esse livro editorial e filosoficamente

    irresponsvel.

    Existem duas verses da chamada edio Colli/ Montinari. Uma delas

    6 denominada Kritisclw Gesamtausgabe (KGW), edio ainda em curso,

    contando atualmente cerca de 40 volumes em nove sees. A KGWdever

    incluir, alm das obras publicadas pelo prprio Nietzsche, todos os escritos

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    pstumos filosoficamente relevantes, dispostos em ordem cronolgica e

    editados de acordo com o estudo dos manuscritos. A Kritische

    Studienausgabe (KSA), 15 volumes, reproduz literalmente a KGW, mas no

    inclui todos os pstumos inditos, apenas os escritos entre 1870 e 1889. A

    KSA existe tambm em CD-ROM.Em complemento edio histrico-crtica, devero ser lanados

    pela editora Walter de Gruyter, em meados de 2000, os dois primeiros

    volumes da publicao de todos os escritos e anotaes de Nietzsche. Desta

    feita, no se trata da ordenao cronolgica do material filosoficamente

    relevante, mas sim de todos os escritos, inclusive registros de ordem

    estritamente pessoal, como clculos, listas de compras, memorandos etc.

    Os Nietzsche-Studien

    Nietzsche-Studien o nome do mais importante peridico

    internacional que divulga artigos e ensaios escritos anualmente sobre a

    filosofia de Nietzsche. At o ano passado, eram 27 volumes, publicados

    desde 1972.

    Deve-se fazer meno tambm srie de monografias e textos dapesquisa sobre Nietzsche Monographien-Rcihc der Nietzsche-Forschung.

    Essa srie rene trabalhos de maior extenso, livros que, na produo

    terica internacional sobre a obra de Nietzsche, se destacam por sua

    qualidade.

    A essas duas linhas de publicao, vinculadas edio histrico-

    crtica das obras completas, esto associados os nomes de dois importantes

    filsofos contemporneos, estudiosos da obra de Nietzsche: o alemoWolfgang Mller-Lauter e o austraco Jrg Salaquarda.

    Nietzsche no Brasil

    A recepo de Nietzsche no Brasil permanece um captulo no escrito

    de nossa histria das idias filosficas. Nietzsche foi lido entre ns tanto por

    tericos do direito, quanto por mdicos, psiclogos, literatos e artistas. O

    certo que sua obra foi, desde cedo, objeto de ateno entre ns, nos

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    extremos opostos do espectro ideolgico. Se houve uma interpretao

    integralista, de Plnio Salgado, por exemplo, houve tambm a apaixonada

    recepo que lhe deram Monteiro Lobato e Oswald de Andrade e as

    vanguardas artsticas mais recentes, como, por exemplo, os tropicalistas e o

    artista plstico Hlio Oiticica.Meno especial deve ser feita ao ensaio pioneiro de Antnio

    Cndido, "O Portador", originariamente publicado em 1946 num suplemento

    literrio semanal de O Dirio de So Paulo. Esse ensaio um testemunho de

    que, mesmo em tempos da mais sombria detrao ideolgica do

    pensamento de Nietzsche, tambm houve no Brasil uma interpretao com

    horizontes ampliados, almejando recuperar o potencial libertrio de sua

    filosofia.Outra meno indispensvel cabe ao magistrio e produo

    filosfica de Gerard Lebrun, que foram de grande importncia para o estudo

    do pensamento de Nietzsche no Brasil. Dessa atividade resulta, em

    colaborao com Rubens Rodrigues Torres Filho, o volume dedicado a

    Nietzsche da coleo Os Pensadores, publicado era 1974 e at hoje

    instrumento indispensvel de consulta.

    Atualmente se encontra em curso, pela Companhia das Letras, umprojeto de traduo e publicao de todas as obras editadas durante a vida

    lcida de Nietzsche, ou por ele preparadas para publicao. A traduo est

    a cargo de Paulo Csar de Souza.

    Em 1996, vinha luz o primeiro nmero da srie Cadernos

    Nietzsche, publicao do Grupo de Estudos Nietzsche, do Departamento de

    Filosofia da Universidade de So Paulo. Trata-se de uni peridico semestral,

    que se prope a divulgar os melhores artigos e tradues produzidos nombito da pesquisa brasileira sobre a filosofia de Nietzsche, norteando-se

    pelos critrios editoriais dos Nietzsche-Stndien.

    Pode-se dizer que, no Brasil, o estudo aprofundado do pensamento

    de Nietzsche tem se desenvolvido consideravelmente nas ltimas dcadas,

    assim como tem se difundido o gosto pela leitura de seus textos. As

    circunstncias indicam que a pesquisa atual sobre Nietzsche no Brasil se

    aproxima dos padres acadmicos que vigoram na Europa e nos Estados

    Unidos.

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    Nietzsche estreita laos de amizade pessoal com Richard e Cosima Wagner.

    Durante um perodo relativamente longo de sua vida (at 1876), participaria,

    como militante filosfico, dos projetos artsticos de Wagner.

    Em 1872, Nietzsche publica sua primeira grande obra, O Nascimento

    da Tragdia, cujo prefcio dedicado a Wagner. No mesmo ano, comopresente de Natal, dedica a Cosima Wagner o texto Cinco Prefcios a Cinco

    Livros No Escritos (que permaneceu indito).

    A histria da recepo da obra de Nietzsche tem incio com o silncio

    um silncio que reinou em tomo de seus textos durante quase todo o

    perodo devida lcida do autor. Com efeito, excetuando-se O Nascimento da

    Tragdia, a publicao de seus livros no foi um evento cientfico que

    repercutisse muito. Mesmo O Nascimento da Tragdia, embora tenhacausado grande impacto na cena cultural alem quando de seu lanamento,

    em 1872, recebeu uma acolhida predominantemente negativa. O livro foi

    visto como uma aventura irresponsvel, uma mal disfarada panfletagem

    dos empreendimentos de Wagner.

    Mesmo a interveno em defesa de Nietzsche, vinda do prprio

    Wagner e de alguns de seus amigos acadmicos, teve pouca eficcia; e no

    evitou que ficasse arranhada a reputao cientfica do filsofo.A publicao de suas demais obras exerceu to pouca influncia

    sobre a discusso filosfica alem que Nietzsche sempre se considerou

    perseguido pela propaganda anti-semita, sobretudo proveniente dos arraiais

    wagnerianos, depois do rompimento com o compositor, a partir de 1878.

    Os prob