22 a 24 de março de 2017 CECULT/UFRB Santo Amaro, BA A ...

15
22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA A produção da viola machete e a política de salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo Baiano 1 La producción de la viola machete y la política de salvaguarda del Samba de Roda do Recôncavo Baiano Andressa Marques Siqueira (Programa de Doutorado em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo) Resumo O samba de roda do Recôncavo Baiano, registrado como patrimonio cultural imaterial do Brasil da Humanidade, tem a viola machete como instrumento de destaque dentre os elementos de sua base material de suporte, essenciais a sua salvaguarda. Esse instrumento quase foi extinto devido à falta de produtores e tocadores e, desta forma, sua conservação é fator relevante na salvaguarda da expressão cultural e, na última década, diversas ações foram executadas neste sentido, dentre elas a retomada da produção do instrumento. No entanto, os machetes produzidos na atualidade diferem em estrutura, materiais e técnica produtiva se comparados aos tradicionais, sendo necessária maior investigação para avaliar se as alterações são apenas parte da dinâmica cultural ou se inferem na perda do tradicional colocando o patrimônio em risco. Palavras-chave: salvaguarda; patrimônio cultural imaterial; samba de roda; viola machete Palabras claves: salvaguardia; patrimonio cultural inmaterial; samba de rueda; viola machete Introdução O Samba de Roda, decretado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan em 2004 e proclamado Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2005, está presente em todo o estado da Bahia, mas muito particularmente na região do Recôncavo (IPHAN, 2006). Constitui-se da reunião de grupo de pessoas para performance de um repertório musical e coreográfico e tem como características gerais a disposição dos participantes em círculos (roda); a presença de instrumentos musicais como pandeiro, prato e faca, viola, entre outros; o emprego de cantos estróficos e silábicos, além de palmas; e a dança chamada miudinho. 1 Trabalho apresentado no GT 5 - Diálogos interdisciplinares: política, cultura e desenvolvimento.

Transcript of 22 a 24 de março de 2017 CECULT/UFRB Santo Amaro, BA A ...

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

A produção da viola machete e a política de salvaguarda do Samba de Roda

do Recôncavo Baiano1

La producción de la viola machete y la política de salvaguarda del Samba

de Roda do Recôncavo Baiano

Andressa Marques Siqueira

(Programa de Doutorado em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo)

Resumo

O samba de roda do Recôncavo Baiano, registrado como patrimonio cultural imaterial do

Brasil da Humanidade, tem a viola machete como instrumento de destaque dentre os

elementos de sua base material de suporte, essenciais a sua salvaguarda. Esse instrumento

quase foi extinto devido à falta de produtores e tocadores e, desta forma, sua conservação é

fator relevante na salvaguarda da expressão cultural e, na última década, diversas ações foram

executadas neste sentido, dentre elas a retomada da produção do instrumento. No entanto, os

machetes produzidos na atualidade diferem em estrutura, materiais e técnica produtiva se

comparados aos tradicionais, sendo necessária maior investigação para avaliar se as alterações

são apenas parte da dinâmica cultural ou se inferem na perda do tradicional colocando o

patrimônio em risco.

Palavras-chave: salvaguarda; patrimônio cultural imaterial; samba de roda; viola machete

Palabras claves: salvaguardia; patrimonio cultural inmaterial; samba de rueda; viola machete

Introdução

O Samba de Roda, decretado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan em

2004 e proclamado Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco

em 2005, está presente em todo o estado da Bahia, mas muito particularmente na região do

Recôncavo (IPHAN, 2006). Constitui-se da reunião de grupo de pessoas para performance de

um repertório musical e coreográfico e tem como características gerais a disposição dos

participantes em círculos (roda); a presença de instrumentos musicais como pandeiro, prato e

faca, viola, entre outros; o emprego de cantos estróficos e silábicos, além de palmas; e a dança

chamada miudinho.

1 Trabalho apresentado no GT 5 - Diálogos interdisciplinares: política, cultura e desenvolvimento.

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

As primeiras referências históricas a manifestações culturais diretamente assemelhadas

ao samba de roda datam do início do século XIX e o primeiro registro conhecido da palavra

“samba” na Bahia, encontrado pelo historiador João José Reis, data de 1844, em Salvador. No

entanto, é só na segunda metade do século XIX que se passa a encontrar referências ao samba

na Bahia com características ainda hoje presentes no samba do Recôncavo Baiano (IPHAN,

2006).

Atualmente, não há ocasiões exclusivas para a realização do samba de roda, mas há

aquelas nas quais ele é indispensável, são: a festa de Cosme e Damião (Caruru de Cosme), a

Festa dos Caboclos (LODY, 1977) e a festa de Nossa Senhora da Boa Morte (MARQUES,

2003). No Caruru de Cosme o samba de roda ocorre ao final do ritual que consiste na refeição

do caruru, onde primeiramente são servidas as crianças, seguida das rezas e encerrando com o

samba de roda. Na Festa dos Caboclos se observa a presença do samba de viola, que ocorre

após os festejos públicos de culto aos caboclos (toques). Na festa de Nossa Senhora da Boa

Morte o samba também se faz presente após os rituais.

O samba de roda do Recôncavo Baiano apresenta inúmeras modalidades que podem

ser observadas em diferentes regiões, mas podem-se elencar dois tipos principais: o samba

corrido e o samba chula (samba de parada, amarrado, de viola). Esses dois sambas têm como

principal diferença a relação entre música e dança e podemos afirmar que o samba corrido é

mais livre, enquanto o samba chula é mais “regrado”. No samba chula dança e canto não

ocorrem ao mesmo tempo, devendo-se respeitar o momento de entrar na roda apenas quando

os cantadores cessam o canto, entrando uma mulher de cada vez para sambar o miudinho,

diferente do samba corrido onde dança, canto e toques ocorrem simultaneamente, podendo

mais de uma pessoa entrar na roda para sambar, ao mesmo tempo.

Em relação aos instrumentos também se pode observar algumas diferenças, em

especial se destaca que no samba chula a presença da viola é essencial e deveras marcante a

ponto dessa modalidade também ser conhecida como samba de viola, pois o instrumento tem

um papel de protagonismo no conjunto musical dessa modalidade de samba, uma vez que não

há canto enquanto há a dança e, neste momento a viola se destaca nos toques e solos.

O samba de roda, de acordo com o Iphan (2006), teve sua prática em declínio no curso

do século XX e, em particular, o enfraquecimento do samba chula se deve ao quase completo

desaparecimento das violas de samba (três quartos e machete) produzidas de maneira

artesanal, com utilização direta de recursos naturais como matéria prima (LIMA, 2008), o que

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

ocasionou na perda do conhecimento tradicional ligado aos modos de fazer a viola, uma vez

que o último artesão conhecido de violas de samba, Clarindo dos Santos, faleceu em 1980,

colocando em risco o conhecimento sobre produção artesanal desses instrumentos e, de modo

geral, sobre a preservação da cultura do samba de roda.

Há algumas décadas, era possível encontrar no Recôncavo Baiano três modelos de

viola de dez cordas: a viola industrializada (viola paulista, regra inteira ou simplesmente

chamada viola) e as violas artesanais - três quartos e machete. No entanto, mais recentemente,

observa-se o desaparecimento das violas artesanais e sua substituição pela viola

industrializada (LIMA, 2008; IPHAN, 2006), o que levou a uma demanda sobre a ampliação

do conhecimento acerca das violas artesanais, bem como ao incentivo na sua execução e

produção, principalmente no âmbito da salvaguarda do samba de roda com patrimônio

cultural imaterial do Brasil e da humanidade, tema de responsabilidade não apenas dos seus

detentores, que já mantiveram o samba de roda como cultura viva ao longo dos séculos, mas

também do Estado.

Considerando a responsabilidade do Estado na salvaguarda do samba de roda, tem-se

que sua conservação demanda a elaboração de políticas públicas e a efetivação das mesmas

que, por sua vez, devem ser norteadas pelo conceito de patrimônio cultural imaterial. Assim,

de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura –

Unesco, o patrimônio cultural imaterial pode ser definido como:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto

com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são

associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os

indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.

(UNESCO, 2003, art.2º)

Essa definição, por si só, apresenta o patrimônio cultural imaterial como elemento que

vai muito além dos aspectos intangíveis, estando o imaterial interligado com a dimensão

material da cultura que é a base de apoio à sua expressão. Nesse sentido, se pode afirmar que

mesmo o samba de roda sendo registrado como um patrimônio cultural imaterial, sua

salvaguarda passa pela conservação não só da sua imaterialidade, representada pelos saberes e

fazeres, mas também da sua base material de suporte, onde a viola machete desponta como

protagonista, uma vez que consiste em um instrumento essencial na pratica do samba chula e,

mais que isso, se apresenta como elemento símbolo desse tipo de samba, que também é

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

conhecido como samba de viola, além de ser um instrumento que foi quase extinto, estando

em risco de desaparecimento e colocando essa modalidade de samba também em risco, ao

menos na sua forma tradicional.

A viola machete no samba de roda

A viola é o símbolo mais forte da “tradição” dentre as manifestações do samba de

roda do Recôncavo Baiano e a viola machete é considerada um tipo de viola de grande

importância para o samba chula, de acordo com seus praticantes.

Então, a dificuldade que nós temos, é porque não existe mais quem faz o

instrumento desse tipo. Porque só serve desse tipo, o machete, porque é a

tradição, e não é só a tradição: porque só serve mesmo para o samba é o

machete, viola grande não serve pra samba. Porque pra gente cantar com a

viola grande tem que ser sol maior e o samba fica feio (depoimento de Zeca

Afonso de São Francisco do Conde, IPHAN, 2006, p. 78).

No Recôncavo a viola machete é mais característica da região que se estende de Santo

Amaro, ao norte e ao leste em direção a Salvador (IPHAN, 2006). É uma viola de dez cordas,

que são dispostas no corpo do instrumento em cinco duplas de cordas. Possui um tamanho

menor e um timbre mais agudo que o violão, sendo suas dimensões aproximadas:

comprimento (76 cm), diâmetro do bojo superior (17 cm), diâmetro do bojo inferior (22 cm),

cintura (12 cm), altura da caixa (6 cm), regra (18 cm) divida em 10 trastos (WADDEY, 2006).

O instrumento apresenta algumas características peculiares, como por exemplo, a

presença de cravelhas e não de tarraxas, e a maneira de se fixar as cordas no instrumento que

não são presas a um cavalete colado ao tampo, mas sim na lateral oposta ao cravelhal, na base

do bojo mais largo do corpo do instrumento (figura 1).

Segundo autores como Lima (2008) e Pinto e Graeff (2012) essa forma de “encordoar”

é semelhante a outros instrumentos cordofones de certas regiões da África Ocidental e Central

e, em outras regiões do Brasil, até meados do século XX, ainda era possível encontrar violas

feitas de forma artesanal seguindo as mesmas linhas desses padrões de construção.

De acordo com Lima (2008) é notável a intensidade com que a viola foi assimilada por

descendentes de africanos na região no Recôncavo, no entanto, a introdução da viola no

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

samba de roda pode não ter sido decorrência do processo da escravidão, uma vez que não se

sabe ao certo de que maneira populações mestiças e de descendência africana teriam

assimilado e incorporado elementos musicais que estavam foram dos limites da sua cultura de

origem.

Figura 1 – Detalhe do encordoamento na viola de Clarindo dos Santos e

craveiras na viola tocada por Mestre Zé de Lelinha

Fonte – Veras (2014)

Neste sentido, a origem da viola machete e sua introdução no samba de roda do

Recôncavo Baiano ainda é tema de estudo entre especialistas, considerando que a cultura

popular muitas vezes se constituiu em processos híbridos e complexos, mas a denominação

“machete” tem provável origem em Portugal, mais especificamente na Ilha da Madeira e, por

esse motivo, Campos e Doring (2006) citam que a viola machete foi possivelmente trazida

para o Brasil por colonizadores oriundos da Ilha de Madeira.

Autores como Lima (2008) e Waddey (2006) reforçam a ideia de que a viola

portuguesa, muito difundida no Brasil, possa ter substituído instrumentos africanos como

pluriarcos, lamelofones, xilofones ou cordofones, uma vez que no Recôncavo usa-se a viola

de uma maneira africana. Para esses autores, os africanos trazidos para o Brasil se

encontravam sem seus instrumentos e utilizavam a viola portuguesa como um instrumento

“substituto”, pela sonoridade semelhante às manifestações sonoras africanas originais.

Acredita-se, portanto, que um dos possíveis “ecos” da antiga música dos

lamelofones e xilofones brasileiros sejam exatamente as violas do

Recôncavo Baiano. E mais especificamente a viola machete e a viola três

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

quartos, pelo seu caráter artesanal, mais próximo de como eram feitas e

tocadas pelos antigos construtores, sambadores e violeiros (LIMA, 2008, p.

65).

No que se refere aos “modos de fazer”, não há muita documentação disponível acerca

das técnicas construtivas tradicionais do machete, mas essa viola pode ser considerada de

fabricação artesanal, “violas de marceneiros”, e sua cadeia produtiva tradicionalmente

consistia no processo que ia desde a escolha da madeira, passando pelo corte, entalhe,

acordoamento, etc. Pesquisadores do tema como Waddey (2006) e Lima (2008), citam que as

madeiras mais utilizadas para a caixa de ressonância do machete são: pinho, paraíba,

jacarandá e cedro. Para o tampo são utilizados pinho e paraíba, e o cedro e jacarandá são

utilizados para os fundos e laterais. O jacarandá também é utilizado para confecção da regra

(braço), cravelhas e cavalete e para a ornamentação é usado fio de piaçava, madeira também

usada no cavalete.

A produção de viola machete no Recôncavo Baiano foi quase extinta, uma vez que o

ultimo grande produtor de machetes, Clarindo dos Santos, faleceu em 1980 e, em parte, por

não haver mais disponibilidade do instrumento, nas últimas décadas essas violas foram

deixando de ser utilizadas nos grupos de samba do Recôncavo Baiano, sendo substituídas

pelas violas industrializadas, chamadas “violas paulistas”.

Hoje em dia nós não temos a viola principal como era antigamente: era o

machete, era a viola pequenininha de pau. Ela era necessária pra esse samba

da gente. Hoje em dia tem aquela viola [paulista] que não vai dar a mesma

tonalidade que vai dar aquela viola antiga [...] (depoimento de Augusto Lopes

de São Braz, IPHAN, 2006, p. 77)

De acordo com o levantamento feito para o Dossiê do Samba de Roda do Recôncavo

Baiano (IPHAN, 2006) foram encontradas apenas cinco violas machetes nas localidades de

Saubara, São Francisco do Conde, Maracangalha e Mar Grande (llha de Itaparica). Destas,

uma viola estava danificada, outra em uso e quatro guardadas como relíquia ou lembrança.

Frente a essa situação de quase extinção da viola machete no samba de roda,

instrumento essencial para prática do samba chula, guardião da “tradição” do samba de roda

do Recôncavo Baiano, o instrumento foi foco de atenção das ações de salvaguarda do samba

de roda como patrimônio cultural imaterial e o empenho em transmitir o conhecimento acerca

dos “modos de fazer” implicou em ações de revalorização da tradição do samba de roda e da

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

viola machete, que contribuíram para que novos artesãos de viola surgissem na região do

Recôncavo Baiano e que a produção artesanal fosse retomada e incentivada.

A viola machete na salvaguarda do samba de roda

Quando abordamos o Patrimônio Cultural Imaterial e sua salvaguarda, de acordo com

diversos pesquisadores do assunto (FONSECA, 2000; SANT'ANNA, 2003; GALLOIS, 2006

e TIEMBLO, 2013) é impossível separar o material a partir do imaterial no contexto da

cultura, sendo a conservação da base material um pré-requisito para a salvaguarda dos bens

imateriais, pois o material é concebido como um suporte físico “culturizado” no qual

repousam os significados e informações, e o imaterial não existe de forma independente, mas

sim em função dos referenciais materiais.

Desta maneira, qualquer alteração na base material das culturas imateriais retira a

manifestação de suas características fundamentais. Mais ainda, qualquer alteração nas

dimensões de espaço, tempo e matéria, que não provenham dos próprios criadores, pode por

em risco as manifestações intangíveis.

Nesse sentido, os objetos tradicionais que compõe a base material dessas

manifestações e que acabam se convertendo em símbolos das mesmas, têm sua preservação

como fator de grande relevância, com especial atenção aos instrumentos musicais e às

indumentárias (SANT' ANNA, 2003; TIEMBLO, 2013). A preservação das formas, do

desenho e confecção, assim como a conservação dos modos de fazer artesanais e a garantia

dos materiais de confecção são de grande importância, dentro do dinamismo inerente ao

patrimônio imaterial.

Considerando a importância da viola machete para a prática do samba chula, de acordo

com a comunidade detentora do bem cultural que cita que esse samba não é o mesmo sem o

machete (IPHAN, 2006) em consonância com os apontamentos de diversos autores como

Lima (2008), Iphan (2006), Pinto e Graeff (2012), que reafirmam a essencialidade do machete

para a prática do samba chula, pode-se ressaltar que a conservação dessa viola é condição

necessária para a salvaguarda do samba de roda do Recôncavo Baiano na sua diversidade.

Neste sentido, dois aspectos podem ser destacados como fatores relevantes para

salvaguarda do samba de roda no que tange à viola machete. O primeiro recai sobre os

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

“saberes” relacionados à produção artesanal da viola machete, que envolve técnicas

construtivas, materiais, entre outros, além da necessidade de que esses “saberes” sejam

recuperados, conservados e transmitidos. O segundo recai sobre os “saberes” relacionados à

execução do machete e sua aplicação no samba chula, que envolve a conservação e

transmissão dos “modos de tocar” e dos “tons” do instrumento, fatores também dependentes

do primeiro, uma vez que é essencial ter o machete disponível para prática.

Em relação aos dois fatores elencados, o levantamento feito para o Dossiê do Samba

de Roda do Recôncavo Baiano (IPHAN, 2006) apontou que após o falecimento de Clarindo

dos Santos, em 1980, não havia no Recôncavo Baiano nenhum outro produtor de viola

machete, o que colocava em risco a existência desse instrumento, com consequente perda das

características tradicionais do samba chula na sua prática, além da perda dos “saberes”

relacionados à produção artesanal da viola machete.

Também foi apontado no referido documento a dificuldade de transmissão dos

“saberes” relacionados aos toques do machete no samba chula, inicialmente devido à falta de

instrumentos disponíveis, seguido da falta de interesse dos jovens que comumente se voltam

mais ao aprendizado do violão e do cavaco, instrumentos que permitem tocar outros estilos

musicais além do samba de roda, e do fato dos “tocadores de machete” existentes para

transmissão dos conhecimentos sobre a execução do instrumento já estarem em idade

avançada.

Neste sentido, o Iphan (2006) apontou no Plano de Salvaguarda do Samba de Roda do

Recôncavo Baiano, como ações emergenciais, a serem executadas em curto prazo: revitalizar

no Recôncavo Baiano a feitura artesanal de violas de samba e, em especial, de machetes, e

salvaguardar o repertório e a técnica do machete como instrumento acompanhador do samba

chula e a sua performance em associação com violas maiores.

Visando a revitalização da feitura artesanal das violas o Iphan apontou a necessidade

de construir violas machetes a partir dos exemplares remanescentes com a ajuda de artesãos-

luthiers que fazem violas similares, considerando a morte de Clarindo dos Santos, último

produtor de machetes do Recôncavo Baiano, o que denota a preocupação da instituição com a

reprodução do instrumento e conservação do mesmo nos moldes tradicionais. No que se

refere à salvaguarda da técnica e repertorio do machete, a instituição apostou na conservação

e transmissão dos conhecimentos do violeiro Zé de Lelinha, ainda vivo na época (2006) e hoje

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

já falecido, sendo apontadas ações como gravação do repertório do violeiro e oficinas para

transmissão dos seus conhecimentos aos jovens.

Na última década, essas ações previstas no plano de salvaguarda foram postas em

prática e no que se refere à feitura artesanal das violas do samba teve início o processo de

produção de machetes e de transmissão de conhecimentos acerca das técnicas de execução do

instrumento. Sobre a produção de machetes, Pinto e Graeff (2012) citam que as primeiras

tentativas de reprodução foram falhas, pois os machetes produzidos eram três vezes mais

pesados que os instrumentos tradicionais, não sendo funcionais.

O primeiro curso voltado à produção da viola manchete foi apoiado pelo Iphan e

realizado em 2005 no município de São Francisco do Conde, já no âmbito das medidas

emergenciais relativas à salvaguarda da viola machete, contidas no Plano de Salvaguarda do

Samba de Roda do Recôncavo Baiano.

Esse curso teve o artesão Antônio Carlos dos Anjos, (Tonho de Duca) como oficineiro

e, a partir dessa ação, ele passou a ser o mais novo produtor de machetes do Recôncavo

Baiano. Esse primeiro curso teve como objetivo reproduzir as violas machetes encontradas na

fase de inventário do samba de roda do Recôncavo Baiano e foram produzidos três machetes

nos moldes tradicionais, tendo os instrumentos de Clarindo dos Santos como modelo.

Em seguida, novos cursos voltados à viola machete foram realizados no ano de 2012,

já sob responsabilidade da Associação do Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia

(ASSEBA). Nesses cursos a luteria esteve sob responsabilidade de Marival Alves Cabral, de

Salvador, e Marcos “Brother”, de Conceição de Jacuípe.

Os cursos envolveram o “saber fazer” o e o “saber tocar” o instrumento, o primeiro

tendo como foco a história e construção do machete e o segundo os toques e construção do

instrumento, contemplando, desta forma, os dois fatores de atenção em relação à conservação

do machete e estando em conformidade com as orientações do Plano de Salvaguarda do

Samba de Roda do Recôncavo Baiano.

Após esses cursos, nova ação foi iniciada no ano de 2014 e atualmente são produzidos

machetes no âmbito do Projeto Essa Viola da Samba, de responsabilidade da Associação

Cultural José Vitório dos Reis - Casa do Samba Zé de Lelinha. Esse projeto, no seu primeiro

ciclo que compreendeu o período de 2014 a 2016, teve apoio da Petrobras e o objetivo de

transmitir conhecimentos voltados a luteria com vistas a capacitar 10 pessoas na produção de

viola machete, e capacitar também para execução da viola dentro do universo do samba chula,

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

estando em consonância com os direcionamentos do Plano de Salvaguarda do Samba de Roda

do Recôncavo Baiano.

Dos machetes produzidos ao longo do desenvolvimento do projeto, cinco foram

doados para violeiros do Recôncavo Baiano, visando a reintrodução do machete nos grupos

de samba chula locais, contribuindo também para sanidade do problema da falta do

instrumento na região. Neste projeto, o luthier Rodrigo Veras, oriundo do estado de

Pernambuco, foi responsável pelas oficinas voltadas à produção do instrumento e, para tal,

realizou um estudo tendo como base os instrumentos de Clarindo dos Santos, uma vez que

não conhecia o machete previamente.

Atualmente o projeto iniciou um novo ciclo, nos mesmos moldes, desta vez com apoio

do Itaú Cultural e segue produzindo machetes em sua oficina, inclusive para a venda,

garantindo a retomada da produção do instrumento no Recôncavo Baiano e a presença do

mesmo na região, uma vez que não há outros produtores, conforme informações da ASSEBA

(informação verbal)2.

No entanto, as violas produzidas no âmbito do Projeto Essa Viola da Samba (figura 2),

apesar de seguirem o padrão e medidas básicas das violas antigas, em especial as produzidas

por Clarindo dos Santos, sofreram algumas modificações na estrutura, materiais e técnicas se

comparadas às violas tradicionais encontradas no Recôncavo, modificações essas que

objetivaram uma melhor qualidade sonora (informação verbal)3.

2 Informação da diretoria da ASSEBA em entrevista concedida para autora, Santo Amaro, novembro de 2016.

3 Informação do coordenador do Projeto Essa Viola da Samba em entrevista concedida para a autora, São

Francisco do Conde, novembro de 2016.

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

Figura 2 – Machetes de abeto produzidos no Projeto Essa Viola da Samba

Fonte – Veras (2014)

Estruturalmente as modificações consistem no fato da viola machete contemporânea

apresentar quatro trastes4 adicionais se comparadas às tradicionais, que apresentavam 10

trastes; o encordoamento não ser mais do tipo “cordal”, cujas cordas saem do fundo da viola,

do bojo oposto ao cravelhal (ou as tarraxas), utilizando um cavalete fixo colado ao tampo

(semelhante ao violão); e são usadas atualmente tarraxas de metal e não mais cravelhas de

madeira como nas violas mais tradicionais.

No que se refere à técnica, hoje os machetes são construídos com uma técnica

específica da luteria espanhola e não mais seguindo técnicas tradicionais, neste sentido, não

mais se usam fôrmas e têm-se o abaulamento do tampo e a utilização de leques harmônicos na

estrutura interna do instrumento, características não observadas nos instrumentos antigos,

tradicionais.

No que tange aos recursos utilizados na produção do machete, a produção atual não

mais se utiliza de recursos naturais locais, como madeiras da região que provavelmente eram

coletadas pelos próprios artesãos, sendo as matérias-primas hoje compradas comumente do

estado de São Paulo, via internet, em locais especializados na venda de madeiras tradicionais

da luteria, já preparadas para confecção de instrumentos, muitas das quais oriundas de

espécies vegetais de outros países, como é o caso do abeto. São também atualmente utilizadas

4 Trastes ou trastos são as divisões do braço da viola.

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

peças importadas como, por exemplo, as tarraxas metálicas que são, por vezes, oriundas dos

Estados Unidos da América e os machetes atuais podem ser produzidos com o uso de

captadores, para que o instrumento passe a ser do tipo eletroacústico (informação verbal)5.

Desta maneira, alguns pontos podem ser destacados no que se refere à produção

da viola manchete e a política de salvaguarda do samba de roda, o primeiro deles recai sobre a

importante retomada da produção dessa viola e a formação de novos luthiers, o que garante a

ressurgência e transmissão do “saber fazer” o machete, bem como a presença do instrumento

no Recôncavo, dois fatores essenciais para conservação do instrumento e salvaguarda do bem

imaterial quando se avalia que o machete é elemento protagonista da prática do samba chula

tradicional. Em adição, a formação de novos luthiers, capazes de produzir não apenas a viola

machete, mas também outros instrumentos, representa uma nova possibilidade de profissão

voltada ao universo do samba de roda.

Em contraposição, essa retomada na produção do machete, que incialmente foi

realizada no contexto de resgate e replicação do instrumento em sua forma tradicional,

atualmente não mais tem sido realizada nesse contexto e mesmo que ainda produzido de

forma artesanal, nos moldes dos antigos machetes, os instrumentos atuais foram

reconfigurados e não conservam todas as características encontradas nos antigos machetes,

nem as técnicas tradicionais de produção, e nem mesmo guarda relação com o ambiente local,

uma vez que o uso de recursos e materiais clássicos destinados a luteria, importados de outros

estados e até de outros países, representou uma ruptura da relação cultura e natureza no que

tange a produção artesanal da viola machete do Recôncavo Baiano. Além disso, a utilização

de matéria prima importada acarreta no alto custo de produção, o que pode tornar a aquisição

da viola machete inviável para muitos atores envolvidos com o samba de roda, frente às

condições socioeconômicas da população do Recôncavo Baiano.

Conclusão

Frente à importância da base material para salvaguarda do patrimônio imaterial e

considerando a viola machete como elemento essencial ao desenvolvimento do samba chula,

5 Informações dos luthiers do Projeto Essa Viola da Samba em entrevista concedida para a autora, São Francisco

do Conde, novembro de 2016.

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

se observa que o Iphan deu o devido destaque ao instrumento no Plano de Salvaguarda do

Samba de Roda do Recôncavo Baiano, colocando ações voltadas à produção da viola machete

como emergenciais para salvaguarda do samba de roda, em especial o samba chula, e

apoiando as ações iniciais de replicação e retomada da produção dos machetes no Recôncavo

Baiano.

Da mesma forma, os detentores culturais também consideraram o instrumento como

importante para salvaguarda do samba de roda e, ao longo da última década, tiveram papel

fundamental na reprodução dos machetes no Recôncavo Baiano, encabeçando e

desenvolvendo diversas ações voltadas à retomada da produção do instrumento e transmissão

dos conhecimentos relacionados, sempre em consonância com os direcionamentos do Plano

de Salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Hoje, os detentores culturais são os

únicos e principais responsáveis pela produção de machetes na região, produção essa que

atualmente se desenvolve ao seu modo, sem interferência ou acompanhamento do Iphan, que

não guarda nenhuma relação com o Projeto Essa Viola da Samba e luthiers associados.

Desta forma, pode-se afirmar que sem as ações realizadas até o presente momento,

inicialmente apoiadas pelo Iphan e posteriormente conduzidas pelos detentores culturais,

talvez a viola machete já tivesse sido extinta do samba de roda, substituída por outros

instrumentos pela falta da sua presença, e na atualidade já poderia terem sidos perdidos os

“saberes” relacionados ao “fazer” e ao “tocar” a viola machete, mas por outro lado, a atual

reprodução do instrumento se desenvolve em um formato que aparentemente contribui para

redução de elementos tradicionais, já que o machete encontrado hoje é diferente dos

instrumentos antigos em estrutura, técnica produtiva e materiais.

Considerando que nas políticas voltadas para os patrimônios culturais a conservação

do passado e das “tradições” é tão importante quanto a manutenção das possibilidades de

criação no presente, e que as modificações observadas visaram a melhoria da qualidade

sonora do instrumento e até mesmo sua adaptabilidade as condições atuais a que o samba está

inserido, ficam as questões para debate: 1) Até que ponto essas alterações são válidas e parte

da dinâmica da cultura que é viva e se adequa aos contextos sociais e econômicos da

atualidade? 2) Essas alterações representam um risco para o samba de roda como patrimônio

cultural imaterial, em especial o samba chula, uma vez que aparentemente contribuem para

perda de caracteres tradicionais?

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

Questões que para serem respondidas demandam um aprofundamento maior no estudo

das diferenças entre os antigos machetes e os atuais, principalmente no que concerne a sua

execução e sonoridade, visando compreender se o machete contemporâneo atende as

necessidades dos sambadores e tocadores ou se, assim como as “violas paulistas”, não estão

de acordo com a tradição e “tons” do samba chula, como apontaram diversos sambadores no

levantamento feito para o Dossiê do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Para tal, é

essencial ouvir a comunidade detentora – sambadores, tocadores e produtores de machete e,

em especial, é necessário consultar os antigos tocadores ainda atuantes no Recôncavo Baiano,

conhecedores dos machetes tradicionais e seus “tons”.

Referências

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Convenção para a salvaguarda do

Patrimônio Cultural Imaterial. Documento originalmente publicado pela UNESCO sobre o

título Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage, Paris, 2003.

Brasília. 2006.

CAMPOS, Wagner; DÖRING, Katharina. Samba de viola do recôncavo Baiano – grupo de

Samba Chula Os Filhos da Pitangueira. In: Projeto Sonora Brasil Crioulo – Formação de

ouvintes musicais. 2006, Samba de viola do recôncavo Baiano – grupo de Samba Chula Os

Filhos da Pitangueira. Brasília: SESC, 2006.

FONSECA, Maria C. L. Referencias culturais: base para novas políticas de patrimônio. In:

IPHAN. Manual de aplicação do INRC. Brasília: IPHAN, 2000.

GALLOIS, Dominique. Patrimônio cultural imaterial. 2006. Disponível em:

<http://www.institutoiepe.org.br>. Acesso em: 10 fev. 2017.

IPHAN. Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília, 2006. Dossiê.

LIMA, Cassio Leonardo Nobre de Souza. Viola nos Sambas do Recôncavo Baiano.

Dissertação de mestrado. Universidade Federal da Bahia. Salvador. 2008.

LODY, Raul. Samba de caboclo. Cadernos de Folclore. Rio de Janeiro: Funarte, 1977.

MARQUES, Francisca. Samba de roda em Cachoeira, Bahia: uma abordagem

etnomusicológica. Dissertação de Mestrado em Música, UFRJ, 2003.

PINTO, Thiago de Oliveira; GRAEFF, Nina. Música entre materialidade e imaterialidade: os

tons-do-machete do Recôncavo Baiano. Mouseion, n. 11, jan.-abr., p. 72-97, 2012.

22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB Santo Amaro, BA

PRIMO, Milton. Entrevista concedia a Andressa Marques Siqueira. São Francisco do

Conde. Novembro de 2016.

SANT´ANNA, Marcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de

reconhecimento e valorização. Memória e patrimônio, Rio de Janeiro, 2003.

SANTANA, Adson; PINHO, Enoque. Entrevista concedia a Andressa Marques Siqueira.

São Francisco do Conde. Novembro de 2016.

SOUZA, Galdino; GÓES, Sinésio. Entrevista concedia a Andressa Marques Siqueira.

Santo Amaro. Novembro de 2016.

TIEMBLO, María Pía Timon. Plan Nacional de Salvaguarda del Patrimonio Cultural

Inmaterial. Atas do Colóquio Internacional “Políticas Públicas para o Património Imaterial

na Europa do Sul: percursos, concretizações, perspetivas”. Direção Geral do Patrimonio

Cultural. Governo de Portugal. Portugal, 1ª edição, p. 71-85, 2013.

VERAS, Rodrigo. Essa viola da samba! São Francisco do Conde – BA. 2014. Disponível

em: <http://corpodusom.blogspot.com.br/2015/02/essa-viola-da-samba-sao-francisco-

do.html>. Acesso em: 16 mar. 2017.

VIANNA, Letícia C.R.; Teixeira, João G.L.C. Patrimônio Imaterial, performance e

identidade. Concinnitas, ano 9, v.1, n. 12, p. 121-129, jul. 2008.

WADDEY, Ralph Cole. Viola de Samba e Samba de Viola no Recôncavo Baiano. In:

IPHAN. Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília: IPHAN, 2006. Dossiê.